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JUSTIÇA

&
TREVAS

Antônio Augusto Shaftiel


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Justiça e trevas
Por Antônio Augusto Shaftiel

Em Dohrerimm o tempo sempre esteve nas mãos dos sacerdo- pensar um pouco sobre o trabalho.
tes de Tenebra, para provar que a deusa tomava as decisões so- Ele acabou vendo os dois anões em negociação e ou-
bre a vida dos anões. Cabia aos sacerdotes medir a passagem das viu Ebreghur clamando que Tenebra ainda teria sua vingança.
horas e dos dias. No Templo de Tenebra estavam as chamadas Antes que Benderrim pudesse sair dali e voltar para avisar o
velas negras. Eram grandes velas feitas de cera negra com peque- Templo de Khalmyr, Thalith o vi pela janela. O armeiro e assas-
nas chamas que nunca se apagavam devido à correntes de ar. sino avisou ao sacerdote naquele mesmo momento e os dois
Apenas quando queimavam até o final, o fogo se pagava. sacaram suas armas.
E isso ocorria para provar uma coisa. Que a energia da Enquanto Thalith tinha dois punhais presos a um me-
luz sempre chegaria ao fim e que as trevas de Tenebra dominari- canismo em seus pulsos, Ebreghur usava um pequeno martelo,
am, sem dúvida, por mais resistência que houvesse. E a deusa negro como sua barba e o manto de sua deusa. Os dois corre-
era paciente. Sabia esperar o momento de atacar. Esperava paci- ram para a rua a tempo de ver Benderrim fugir, já sacando seu
entemente as energias dos oponentes se esvaírem para execu- martelo de batalha para se proteger.
tar o golpe final. Thalith pegou um punhal que carregava no cinto e ar-
Quando Ebreghur Feições Sombrias saiu do Templo de remessou, atingindo as costas do anão. O guarda caiu no chão
Tenebra, a sexta vela do Domínio de Tenebra estava acabando e rolou até bater nos muros de uma casa. Para a sorte dos dois
de se queimar. Um de seus acólitos já se dirigia para o alto do conspiradores, Benderrim não gritou, apenas rolou sentindo o
prédio para tocar o berrante que anunciara a passagem de mais ferimento nas costas.
uma hora no reino dos anões. - Por que fez isso? - Ebreghur perguntou, a surpresa
Ebreghur já estava acostumado com o processo e nem aparente em seu rosto sombrio.
se importar em ficar para verificar o que seus subordinados es- - Ele contaria tudo ao Templo de Heredrimm. Não viu o
tavam fazendo. Ele tinha uma missão ainda mais importante como símbolo em sua roupa? - Thalith respondeu, já preparando ou-
o Grande Sacerdote da Deusa das Trevas em Doherimm. tro punhal e começando a correr na direção do inimigo caído.
Ele andava sem nenhum de seus seguranças. Simples- - Não precisava. Eu simplesmente suaria meu poder para
mente não se preocupava com ataque nenhum. Beijou o símbo- fazê-lo esquecer. Tenebra me concede magias para isso. - O sa-
lo da deusa que sempre carregava, uma anã grávida envolta em cerdote argumentou, tentando o acompanhar.
um manto de sombras. Continuou caminhando pelas ruas pla- - Não se preocupe. Eu sou um assassino, sei muito bem
nejadas e bem trabalhadas de Doher até chegar a seu destino. como me livrar dos corpos de meus inimigos sem que ninguém
Em uma casa abandonada, na periferia da cidade, ele se perceba.
encontrou com quem queria. Lá estava Thalith do clã Aço Mor- - Não há honra nisso.
tal, um grupo de armeiros que criava armas especiais para se - Não há como se pensar em honra quando alguém ouve
cometer assassinatos e para passar pelas proteções mágicas de sua conversa por detrás da porta ou uma conspiração está em
clérigos. Ebreghur queria se encontrar com ele para aumentar progresso.
as armas de sua ordem. Os seguidores de Tenebra estavam muito Os dois só se calaram quando já estavam na frente de
atrasados em relação aos malditos clérigos de Khalmyr. A or- Benderrim. O guarda já havia se levantado e se preocupava com
dem precisa se militarizar. E com urgência. o sangue que não parava de sair de suas feridas. Ebreghur o
Os dois anões se olharam por um tempo e fizeram o cum- olhou com raiva. O idiota não deveria estar ali. E ele não poderia
primento habitual de respeito de sua raça. Ergueram a mão direi- permitir que seus inimigos soubessem de seus negócios.
ta e a bateram fechada na palma esquerda, colocada na frente Tenebra exigia vingança. E uma vingança silenciosa.
do coração. Era a forja, símbolo da força do trabalho, da honra Antes que o sacerdote fizesse qualquer coisa, Thalith
de um anão e de seu coração, sempre cheio de fé. usou um dos punhais de seu pulso para cortar o pescoço de
- O negócio ainda está de pé? - Thalith perguntou, com Benderrim. A lâmina correu pelo ar e encontrou a pele do anão,
uma voz um tanto embargada. fazendo um corte fino e preciso. O sangue espirrou um pouco,
- Sim. O Templo de Tenebra quer as armas. Por isso vim caindo apenas em Ebreghur, por puro azar.
pessoalmente. Precisa ter certeza de tudo. E eu quero sigilo ab- Mais uma vez o sacerdote ficou surpreso. Thalith era rápido
soluto. Ninguém pode saber. demais. Fora arduamente treinado pelo clã Aço Mortal e apren-
- Não se preocupe. Eu me certifiquei para que nenhuma dera a nunca deixar uma testemunha viva. O sacerdote lamen-
patrulha passe por aqui hoje. tou por não ter se lembrado disso antes.
Os dois anões começaram as negociações. A barganha Benderrim ainda tentou erguer seu martelo para lutar,
se estendeu durante algumas horas, sempre no estilo dos anões. mas Ebreghur acertou-lhe o rosto com sua própria arma, que-
Um coçando e puxando a barba sempre que o outro exagerava brando seus ossos. Ouviu-se um forte estalo e a mandíbula se
em seus pedidos. E eles terminariam muito bem se o acaso não separou. Benderrim cuspiu sangue enquanto perdia sua cons-
interviesse. ciência. O anão caiu morto com a barba ensangüentada.
Quis a sorte que o anão Benderrim aparecesse ali. Ele Quando se virou para conversar com Thalith, o assas-
era apenas um dos guardas do templo de Khalmyr (ou sino já havia desaparecido. Ebreghur viu apenas alguns anões
Heredrimm) voltando para casa. Seu turno terminara e ele resol- o observando pelas janelas de suas casas. Ele estava perdido.
veu tomar um caminho mais longo naquele dia justamente para Em pouco tempo os guardas da cidade já estariam o procuran-

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do. - Quero que mande seus sacerdotes soltarem Ebreghur.
E, de fato, isso não demorou muito. Na mesma noite o - Ela exigiu. Sua voz era um sussurro, no entanto soou como
anão foi pego enquanto voltava para o Templo de Tenebra. uma ordem poderosa.
Ebreghur ainda pensava no ocorrido quando sacerdotes e pa- Khalmyr olhou par ao teto perguntando-se porque sua
ladinos de Khalmyr o abordaram. Alguns de seus acólitos ten- amada era tão exigente. Por que o Nada e o Vazio haviam a cria-
taram impedir a prisão, mas ele mandou todos se afastarem. Era do assim?
um anão honrado e iria a julgamento. - Sabe que não posso fazer isso. - Ele respondeu, ten-
Ele não poderia permitir que mais ninguém do Templo tando manter a calma. - Já ouvi as preces de Handhur. Ele me
de Tenebra fosse julgado. Um de seus subordinados continua- pediu um conselho. Eu disse o de sempre. Siga a justiça.
ria seus planos. Ele tinha certeza disso. Ebreghur rezou durante - E eu ouvi as preces de Ebreghur. Ele não é culpado.
todo o caminho até o Templo de Khalmyr, onde seria julgado. - Então deixe que a justiça prove isso.
Ele não negaria o assassinato, mas também não diria quem esta- - Justiça? Você sabe que eles falharão...
va com ele ou porque estava ali. Daria respostas que fossem Os dois se olharam. Começaram a pensar nas acusa-
apenas parte da verdade. ções que estavam fazendo. Ouviram as preces de seus segui-
Ele teve vontade de cuspir no chão da construção dos dores por algum tempo. Uns pediam justiça e outros vingança.
seguidores do deus que roubara a fé de Tenebra, aquele que Um ou outro pedia orientação para o que fazer naquele momen-
insistia em insultar a mãe dos anões. Handhur, o Grande sacer- to. Anões por toda Doherimm já começavam a comentar sobre
dote de Heredrimm em Doher, já o esperava na porta. Os olhos o assunto. E as duas divindades precisam decidir depressa o
azuis do sacerdote da justiça se encontraram com as órbitas que fazer.
negras do filho de Tenebra. Ambos sabiam que os problemas Khalmyr sabia que uma verdadeira guerra religiosa sur-
estavam apenas começando. Era hora de rezar a seus deuses giria se Ebreghur fosse condenado. Mas o deus não pararia o
com ainda mais fervor. julgamento. Isso seria ir contra tudo o que ele pregava, tudo o
que ele realmente era. Estaria enfiando uma adaga em seu pró-
********** prio coração se o fizesse. Ele não podia, não queria e não faria
nada que pudesse acabar com um julgamento justo.
O céu Arton está cheio de constelações dos mais dife- Tenebra não queria saber disso. Ela não estava ligada à
rentes tipos. E diz a lenda que as estrelas que as formam delimi- justiça, mas à vingança e às trevas. Ela não queria ver seu sa-
tam as fronteiras dos reinos dos deuses. Muitos acreditam que cerdote morto. Ele era um de seus protegidos e a deusa tinha
as moradas espirituais das divindades circundam todo o plane- certeza de que ele fora enganado de alguma maneira. Khalmyr
ta e aqueles pontos brilhantes no céu mostram onde começa e não tinha capacidade para enxergar através das tramas de cons-
acaba o território de cada um. piração. Estava muito ligado aos valores da verdade e da justi-
Alguns dizem que nem todo deus do Panteão tem seu ça para perceber isso.
território no céu. Alguns estão debaixo da terra e as fronteiras A deusa das trevas podia enxergar tudo o que era obs-
de seus reinos só podem ser vistas por eles mesmos. E esse é curo. E faria seu amante saber o que estava acontecendo ali.
um caso de muita controvérsia. Não desejava que um de seus grandes sacerdotes fosse conde-
Em um desses reinos espirituais, chamado de a Corte nado e morto por assassinato. Ela precisava proteger qualquer
dos Justos, morava Khalmyr, o Senhor da Justiça, também cha- um de seus devotos. Precisava deles para sobreviver.
mado de Heredrimm entre os anões. Naquele momento, ele se - Tenebra, não duvide de meus fiéis. Hardhur será o juiz
dera ao luxo de uma pequena folga. Retirou sua armadura para e eu confio nele. O sacerdote tem minha benção. - Khalmyr dis-
descansar e se retirou para um aposento especial no reino. se, tentando se manter calmo.
Khalmyr vestia uma espécie de túnica judicial quando - Você fala como se isso fosse grande coisa. - Tenebra
entrou naqueles aposentos. Na verdade, aquele era seu traje de disse, debochando do deus da justiça.
descanso. Mas, como tudo em seu reino, ele sempre se manti- - Não entendo por que me ofende. Sabe que eu nunca
nha ligado aos ideais de justiça. A vida de um deus sempre es- mudo de opinião.
tava intimamente ligada aos ideais que representava em Arton. - Você é muito inflexível.
Ele se sentou na cama e esperou. Olhou para o quarto - Sim. - Ele respondeu secamente, invocando sua arma-
decorado com espadas e balanças, mas com tecidos negros e dura. Imediatamente suas roupas mudaram. A túnica, ou beca,
sombras por toda parte. As espadas e balanças eram para sus- desapareceu para se transformar na armadura reluzente que usa-
tentar seus gostos. Já as sombras eram para sua amante. va tradicionalmente.
Khalmyr olhou para o espelho negro que cobria grande - Por que precisa ser assim? - Ela perguntou, aproximan-
parte da parede e esperou que ela aparecesse. Aquele quarto do-se e o tocando sedutoramente.
era um ponto de ligação entre seu reino e o de seu amor. Ali - Eu me pergunto o mesmo. - Ele respondeu, passando
Tenebra podia entrar quando quisesse. os dedos por seus cabelos.
E assim ela fez. A deusa das trevas pareceu na forma de - Você me irrita! Ceda pelo menos uma vez e deixe meu
uma mulher de beleza exuberante, mas de face pálida e olhos sacerdote viver. - Ela disse, afastando-se e mostrando sua irri-
profundos e negros. Seus longos cabelos se confundiam com tação fazendo as sombras se espalharam pelo quarto.
as sombras de seu vestido. Ela caminhou silenciosamente até - É o mesmo que eu pedir para você deixar Azgher to-
Khalmyr e parou logo à sua frente. mar uma hora da noite.
O Senhor da Justiça observou aquele corpo divino e - Não pronuncie o nome dele! Por que quer tanto me
levantou-se para beijá-la. Ela o parou colocando uma mão em irritar?
seu peito. Khalmyr estranhou o fato. Tenebra deu um passo para - Não quero. Só falo o que é justo. Se preciso falar as-
trás e espremeu as sobrancelhas negras, demonstrando sua rai- sim para que entenda, então eu direi. Minhas palavras são jus-
va. tas como...

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Ela ergueu a mão pedindo para que ele se calasse. Fez mo lugar. No bairro de Baboc havia a maior concentração de
um gesto zombeteiro e caçoou de seus modos. Tenebra estava seguidores da deusa, e todos haviam recebido o sinal.
cada vez mais irritada. Parte de sua consciência estava voltada No caminho, eles se encontraram com os sacerdotes.
para Doherimm. Ela acompanhava o julgamento através das pre- Eles orientaram a multidão, fazendo-a rumar para o Templo de
ces de seus seguidores. Khalmyr. Anões que desconheciam o fato observavam da jane-
Khalmyr sabia que a deusa queria ver dentro de seu la. Os que ouviam os sussurros dos fiéis de tenebra, simples-
templo, mas o orgulho a impedia de fazer o pedido. Ele resolveu mente se escondiam ou se juntavam à procissão. Ainda havia
ceder. Permitiu que Tenebra enxergasse dentro do prédio. Ne- aqueles que se arrumavam depressa e corriam para o Templo de
nhum deus tinha a capacidade de enxergar o que se passava em Khalmyr.
um local abençoado por outro. A fé dos seguidores e a presen-
ça da força da divindade, impedia que um deus olhasse direta- **********
mente. Só na forma de um avatar ou através de seus discípulos Wuragim Forte e Justo era um dos mais fortes guerrei-
este poderia saber o que ocorria em um desses templos. ros de Khalmyr. Ele era considerado praticamente invencível
A deusa sorriu ao perceber que pelo menos naquilo pelos companheiros do templo. Sua habilidade com o machado
Khalmyr cedera. Só que as sombras impediram que ele perce- e o martelo lhe valeram um posto na guarda da Gruta de
besse o sorriso. Tenebra aproximou-se novamente. Rhumnam. E ele cumpria sua missão com orgulho, só saindo de
- O que é preciso para que meu sacerdote não seja pu- lá para proteger seu rei.
nido? O anão sabia que podia deixar Rhumnam sobre a prote-
- Que ele seja inocente. ção de Ghoharimm, o Guardião Invisível. O próprio Khalmyr
- Khalmyr, você me irrita! Primeiro rouba meus seguido- abençoara a criatura, então ele poderia confiar em seu poder.
res. Tira meus filhos de mim! E agora permite que eles matem Wuragim acreditava piamente nas palavras dos sacerdotes do
aqueles que ainda são fiéis a sua própria mãe? - Ela gritou com deus da justiça e seguia todos os seus desígnios sem questio-
uma voz aguda, que feriu os ouvidos de Kahlmyr. nar qualquer ordem. A justiça deveria ser feita de qualquer ma-
- Eu não estou fazendo nada! Não tenho culpa se seus neira e a ordem mantida.
seguidores não são tão fiéis. Eles preferem à justiça a uma mãe Ele desejava tombar lutando em nome do deus. E esta-
ciumenta e vingativa. - Khalmyr respondeu, dando um passo à va preparado para enfrentar os seguidores de Tenebra se eles
frente e impondo-se perante a deusa. ousassem interromper o julgamento de Ebreghur. Wuragim que-
Ela recuou no início, assustada com a agressividade de ria ver o anão julgado e condenado por seus crimes. Ele sabia
Khalmyr. Não era à toa que ele dividia o título de deus da guerra que Handhur nunca erraria ao julgar.
com Keenn. Só que o medo não durou muito tempo e logo se Só que naquele dia Wuragim não teria condições de
transformou em ódio. As trevas tomaram todo o quarto. Khalmyr lutar. Ele fora picado por uma aranha e estava prestes à morrer.
só pôde enxergar o rosto alvo da deusa. Ninguém entendia o motivo, mas ele fora o quarto a sofrer com
- Você não faz nada. Inútil. Então eu farei. Se quer guer- o veneno de uma beijo-de-Tenebra desde que a procissão dos
ra, eu posso te mostrar o que é guerra. seguidores da deusa das trevas começara.
Todos sabiam que a própria mãe dos anões lhes conce-
*********** dera imunidade ao veneno mortal da aranha. Só que naquele
Um dos rituais básicos dos seguidores de Tenebra em dia, todos os seguidores de Khalmyr haviam perdido essa pro-
Doherimm era a reza da vela negra. Em um pequeno quarto es- teção. E não foram poucos os que começaram cair enfermos, já
curo reservado em sua casa, o anão punha-se rígido em frente à que os aracnídeos infestavam toda Doher. Alguns ainda se con-
uma vela segurada pela estátua da deusa. Ele acendia a chama e torciam de dor, enquanto outros já haviam partido para encon-
começava a rezar até que nada sobrasse do fogo. Assim ele de- trar seu deus na Corte dos Justos.
monstrava sua fé em Tenebra, sempre rezando até que a energia
da luz se acabasse. Ele nunca desistiria. **********
Baboc morava sozinho. Era um anão solteiro e não ti- Jol estava triste demais para sequer pensar na procis-
nha mais nenhum parente. Ele nunca fora aventureiro. Sempre são. Ela viu aquela multidão passando pelas ruas principais de
se dedicara ao trabalho nas minas e às rezas no Templo de Doher e se dirigindo para o Templo de Khalmyr, mas continuou
Tenebra. Fazia parte da população que movia Doherimm, a for- estática. A anã vinha de uma família fiel a Khalmyr. Sua mãe fora
ça trabalhadora, pouco notada entre os heróis e aventureiros, uma sacerdotisa no templo e seu marido também.
mas essencial para sua existência. Só que agora Jol estava sozinha. À sua frente estava o
Naquele dia, Baboc entrou no Recinto de Tenebra para túmulo de seu amado. Ele morrera no dia anterior em um ataque
rezar pelo Grande Sacerdote da deusa. Ele tinha certeza de que de Gilainn, os trolls da montanha. Diziam os colegas que ele
Ebreghur fora acusado injustamente e pediria para a deusa in- perdera sua vida lutando em nome de Khalmyr e gritando seu
tervir. Daria sua própria vida pela de Ebreghur. nome, enquanto permitia que os mineiros que protegia esca-
E teve uma grande surpresa quando a vela se pagou no passem.
terceiro verso de sua reza. Ele ainda invocava a deusa quando Ela não sabia se o considerava um herói ou um tolo.
viu a chama desaparecer. Baboc fez questão de verificar se ha- Três famílias estariam completas naquele dia, mas não a dela.
via alguma corrente de ar ou algum problema com a vela. Nada Jol ficaria sozinha. Não tinha filhos, não tinha mais nenhum pa-
de errado. Ele realmente fora agraciado com um sinal da deusa. rente no mundo. Tudo o que lhe restava eram as saudades que
Ele, um anão simples e sem espírito aventureiro, recebera um sentia de seu esposo.
sinal. Rezou para que Kahlmyr recebesse sua alma na Corte
Baboc saiu de sua casa correndo para contar a notícia. dos Justos e o tratasse bem, concedendo-o uma armadura bri-
Iria para o templo de Tenebra avisar os outros. Só que assim lhante e permitindo que ele continuasse exercendo a justiça em
que chegou na rua, ele viu outros anões rumando par ao mes- seu nome. Mesmo assim as lágrimas não paravam de cair em

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seu rosto. lavra não fosse pronunciada. Acaso. Logo depois, o acusador
Ela só parou o choro quando teve uma surpresa. Viu a falou de sorte e azar. E Khalmyr odiava esses três conceitos.
mão de seu marido se erguendo no solo. Jol caiu para trás e Sabia reconhecê-los em qualquer lugar. Foi então que percebeu
tentou se apoiar em uma lápide, mas não conseguiu. Ficou no que Tenebra estava certa.
chão sem saber o que fazer. - Você está certa. Há o dedo de Nimb nisso tudo.
Seu marido cavou o caminho para a superfície e parou Tenebra não acreditou e quase gargalhou ao ouvir a
em frente a ela. Tinha o corpo todo cortado. Os ferimentos cau- acusação. Khalmyr já estava paranóico quanto a seu inimigo
sados pelos trolls ainda estavam abertos e sujos de terra. Jol mortal. O deus do caos e o deus da justiça eram inimigos decla-
podia jurar que via alguns vermes saindo de dentro daquelas rados. Tudo o que representavam estava em oposição.
feridas. A armadura estava suja de terra, faltavam várias partes Khalmyr exigia a ordem e a disciplina. Queria sempre
da barba. O anão olhou para si mesmo e para a esposa. tudo organizado, seguindo um rígido código de conduta. Tudo
- Por que não fui acolhido por Khalmyr? isso era negado pelo deus do caos. O destino de um réu seria
Jol apenas olhou para a procissão, sem saber o que di- julgado pela sorte nos dados se dependesse de Nimb e seus
zer. E mal sabia ela que outras famílias estavam com o mesmo seguidores.
problema. A luta entre os dois poderia parecer bobagem para al-
guns, mas não era. Os deuses eram aquilo que representavam e
********* enxergavam o mundo de acordo com seus códigos. Tudo que
- Isso é só o início, Khalmyr. Não ouse me irritar mais. - pudesse afetar sua visão de um mundo perfeito era uma grande
Tenebra disse, seu sussurro partindo de todas as direções na ofensa à própria existência da divindade. Se não existisse or-
escuridão. dem e justiça, Khalmyr desapareceria de Arton. Portanto, ele
Khalmyr ficou parado por um tempo, pensando no ocor- precisava ficar atento a qualquer movimento de Nimb.
rido. tentava direcionar parte de seu poder para impedir que as Imediatamente, Khalmyr repassou todo o julgamento e
almas dos anões mortos fossem retidas e que eles se tornassem a descrição das cenas em sua mente. Percebeu que Ebreghur
mortos-vivos. Precisava disso antes que Tenebra os tocasse. O estava protegendo alguém. Não deveria ser acusado de assas-
mesmo podia ser dito quanto à proteção ao veneno das ara- sinato. Havia algo mais ali. As perguntas certas deveriam ser
nhas. feitas. Com certeza o sacerdote matara a vítima, mas o motivo
Só que era muito difícil competir com Tenebra. Suas tre- não fora totalmente esclarecido.
vas tocavam toda Doherimm. Seu poder chegava em qualquer - Tenebra, una-se a mim. Deixe-me ver pelas trevas que
lugar quase instantaneamente. você espalha para localizar qualquer vestígio de caos.
O Senhor da Justiça decidiu que precisava revidar. O De certa forma, Khalmyr percebeu que Tenebra parecia
que ela estava fazendo era errado. Estava criando caos em um esperar por aquilo. Toda as trevas desapareceram e sua forma
dos lugares mais organizados de Arton. Um dos povos mais alva se apresentou novamente para abraçar o deus da justiça.
honrados precisava de sua proteção e estava sendo destruído Os dois e envolveram e se beijaram apaixonados.
por uma deusa ciumenta. Khalmyr pôde enxergar por toda Doherimm. Não teve
Tenebra reconhecia seus ciúmes. Ela criara os anões e problemas para sentir a presença do caos justamente no lugar
os queria, mas não achava que o que estava fazendo era idiota. onde Benderrim fora assassinado. Com certeza Nimb agira ali.
A deusa sabia que havia algo de errado e que Khalmyr precisa- Não havia dúvidas. O deus do caos deixara seu registro naque-
va intervir. A justiça estava cega. E ela nem precisara utilizar le lugar. Khalmyr nem precisava usar seus poderes totais para
suas trevas para impedir sua visão. perceber quando o caos emergia em algum lugar.
- Pare com isso, Tenebra. Eu não suportarei seus capri- - Foi Nimb. Agora eu posso intervir nesse julgamento.
chos. - Khalmyr disse, sacando sua espada e demonstrando cla- Outro deus usou sues poderes em Doherimm. E acho que ele
ramente que não queria brincadeiras. - Já estou cheio de suas pretendia criar esse caos e essa guerra religiosa, minha querida.
tolices. Tenho que prestar atenção ao julgamento e ainda usar Venha comigo. Desça a Arton acompanhada de mim para morar-
meus poderes para deter sua insanidade. mos a nossos filhos à verdade.
- Eu também tenho parte da minha consciência voltada Tenebra deu a mão a Khalmyr e os dois se concentra-
para o julgamento. Estou acompanhando as palavras imbecis ram para criar seus avatares no templo do deus da justiça.
de seu sacerdote. - Ela gritou de volta.
- E eu ainda ouço a confissão do criminoso que você **************
protege. Guerreiros de Khalmyr tentavam impedir a entrada da
- Idiota. Não percebe a intriga por trás de tudo? multidão no templo. Eles discutiam com os sacerdotes de
- Percebo a verdade... Tenebra que insistiam em levar todos os seus fiéis para assistir
Khalmyr não queria atacar Tenebra, assim como a deu- ao julgamento de seu líder espiritual e averiguar qualquer tipo
sa também não estava disposta a lutar com seu amante. Os dois de injustiça.
se mantiveram estáticas durante longos minutos, mantendo a A bagunça só terminou quando os avatares chegaram
batalha apenas em Arton. Um tentava impedir as ações dos ou- em Doherimm. Agora eles não tinham forma humana. Eram dois
tros, orientando seu sacerdotes, concedendo magias, protegen- anões. Khalmyr, chamado de Heredrimm pela multidão, parecia
do algum mortal importante em um momento estratégico. um anão forte de longas barbas prateadas como sua armadura.
- Espere... - Khalmyr pediu. Ele acabara de ouvir algo Tenebra tinha a forma de uma anã de longos cabelos negros,
no julgamento que atraíra sua atenção. com o rosto liso e rígido como uma estátua.
- ... Benderrim não estava em seu turno de guarda. Ele Nenhuma voz foi ouvida quando os dois deram as mãos
passou pela região por acaso e com certeza viu o que não que- e entraram no templo. Todos entenderam que a luta acabara. Os
ria... - Disse um dos acusadores. deuses explicariam tudo.
Aquela frase não atrairia a atenção do deus se uma pa- Eles apareceram em frente a corte e todos se ajoelharam

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para recebê-los. Hardhur levantou-se e aproximou-se de Khalmyr eu o culpei por isso. - Parou para rir enquanto tapava o boca. -
com a cabeça baixa, respeitando o deus. Pra falar a verdade, não sei se ficaria zangado ou se riria. Com o
- Meu fiel Hardhur. Venho aqui para corrigir um erro de caos é assim. mas Khalmyr não gosta de mim. Ele faria de tudo
que não é culpado. Um deus os enganou e provocou toda essa para me prender. E se separaria de você de novo.
confusão. Nimb tentou gerar caos em Doherimm e quase con- - Já disse que nosso plano foi bom. Khalmyr tem um
seguiu. Ebreghur não deve ser julgado por assassinato à san- pensamento muito plano. Nem vai perceber que você usou seus
gue frio. Diga Ebreghur. Você matou Benderrim à sangue frio? poderes para disfarçar a essência de Nimb. E agora você pode
Fale a verdade. ficar feliz. Provou mais uma vez que é capaz de irritar o deus da
O sacerdote de Tenebra olhou para a corte e para seus justiça e o enganar. - Tenebra disse, enquanto arrumava-se em
acólitos que assistiam ao julgamento. Em seguida cumprimen- frente a um espelho negro.
tou sua deusa e voltou-se para Khalmyr. - E você teve seu amante de volta. Pelo menos até a
- Não. Matei para me defender quando ele me atacou. próxima briga. - Riu mais uma vez. - E eu sei da sutileza do plano.
Mas admito que a culpa é minha e devo pagar pela morte de Todos em Doherimm perceberam quem é que manda nesse ca-
Benderrim. sal. Hoje eles pensam que você forçou Khalmyr a descer dos
- Ele confessa essa parte, Heredrimm. Acho que agora céus para parar o julgamento de Ebreghur.
não devemos mais nos intrometer no julgamento, como você - Sim. E vão declarar um novo feriado. O Dia da Marcha
mesmo já disse. Vamos embora e deixem nossos filhos fazerem de Tenebra. Essa história será registrada no Muro Histórico de
sua justiça com nossa benção. - Tenebra disse, antes que Doher. - Dessa vez ela riu.
Khalmyr reagisse. Os dois deuses ainda conversaram durante um tempo.
O deus da justiça simplesmente concordou com a ca- Hyninn olhava para Tenebra com os olhos cheios de paixão.
beça e fez sinal para que os dois voltassem para a Corte dos Simplesmente adorara os jogos da deusa. Finalmente tinha al-
Justos. O julgamento continuaria a partir dali. Com certeza guém com quem competir e ao mesmo tempo admirar no Panteão.
Ebreghur seria forçado a passar um tempo na prisão por ter con- Sem Sszzas tudo já estava muito sem graça.
fessado seu crime. Seria liberado em breve, mesmo não tendo Agora ele só precisava tramar um meio de separar
contado toda a verdade sobre o que acontecera. Tenebra e Khalmyr. Essa seria uma brincadeira muito boa. E quem
sabe se também não conseguia acabar com o amor que a deusa
********** sentia pelo Senhor da Justiça. A Senhora das Trevas e o Senhor
Tenebra acabara de sair da Corte dos Justos e voltara a da Trapaça deveriam andar juntos para tramar juntos e ainda
Escuridão Eterna, seu reino de trevas no mundo espiritual. Ela disputar um com o outro.
estava um pouco cansada, mas sentia-se muito bem. Há muito
tempo não tinha uma noite de amor com Khalmyr. Finalmente
os dois haviam concordado em alguma coisa e voltaram a es-
treitar seu relacionamento. Não seria como nos velhos tempos,
mas estariam mais próximos do que antes.
Antes que pudesse se deitar para descansar um pouco,
uma visita apareceu em seu quarto. Era um homem de aparência
jovem. Tinha olhos que mudavam de cor constantemente, man-
tendo apenas o mesmo brilho sagaz e ambicioso. Seus cabelos
negros se jogavam sobre seu rosto, conferido-lhe um tom ainda
mais misterioso, porém simpático. E uma sorriso marcava seu
rosto. Cruzava seus lábios como se fosse sua marca registrada.
Era um sorriso debochado, de alguém muito esperto. Alguém
que ri por ter te passado para trás, mesmo que você mal tenha
iniciado uma conversa com ele.
Vestia uma capa azul escura sobre roupas e botas leves, que
facilitavam seu movimento. Não usava luvas, porque gostava
de deixar livres suas mãos ágeis.
A deusa das trevas levantou-se, mas não se preocu-
pou em cumprimentar Hyninn, o deus da trapaça. Simplesmente
não precisava, pois não o respeitava. Só tinha que admitir que
ele era útil.
- E então? Gostou? - Hyninn perguntou, com uma voz
aguda e com movimentos espalhafatosos.
- É óbvio. Eu sempre consigo o que quero. O problema
é que Khalmyr demorou para perceber que havia intriga ali. Pre-
cisou de muitas dicas.
- É normal. Ele é meio lento. - O deus disse, arremedan-
do Khalmyr. - E agora? Acha que ele irá atrás de meu pai?
- É óbvio. Mas não se preocupe. Os dois sempre estão
brigando e nunca revelam os motivos. Se algum dia Khalmyr
revelar a Nimb que está brigando por isso, é bem capaz de seu
pai aceitar.
- É melhor que seja assim. Ele não pode nem saber que

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