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Produção Geográfica, Controle e Poder1

Roberto Lobato Corrêa

Três pequenos textos publicados na revista Area, um dos periódicos da entidade


dos geógrafos britânicos (Institute of British Geographers), apontam para questões que
cada vez mais envolvem os geógrafos em geral, inclusive os brasileiros. Trata-se dos
textos de Short (2002), Kitchin e Fuller (2003) e Gibson e Klocker (2004) que discutem
o sentido da crescente produção de artigos e livros, o controle pelo Estado dessa
produção e a concentração de poder na mão de alguns poucos geógrafos. Sem dúvida,
são questões tensas, envolvendo relações interpessoais, porém, mais importante, dizem
respeito à prática acadêmica de uma comunidade que, no Brasil, está longe de ser
fortemente organizada e consciente de si mesma.

Na Grã Bretanha, como nos Estados Unidos, verificou-se, a partir dos anos 80,
uma crescente produção de artigos, livros, tendo sido criados inúmeros periódicos
privilegiando temas específicos no âmbito da geografia. Algumas editoras tem
divulgado, por meio de livros, textos e coletâneas, a produção dos geógrafos
(Routledge, Blackwell, Arnold, Sage, entre outras). Muitos dos textos são repetições,
em maior ou menor grau, do que já foi escrito antes, alguns são inequivocamente fracos,
mas há excelente e rico material abrangendo novos temas, novas interpretações de
temas antigos, debates intra e interdisciplinares e novas metodologias. O número de
jovens geógrafos que publicam cresceu muito. Acompanhando esse crescimento
verifica-se na Grã Bretanha, a expansão de cursos de geografia já existentes e a criação
de novos (Short, 2002).

Esse crescimento foi acompanhado do envolvimento do Estado, que introduziu


mecanismos de controle, como avaliações periódicas relativas ao desempenho dos
departamentos das universidades. Um desses mecanismos é a RAE (Research
Assessment Exercises), desde o final da década de 1980. Para cada disciplina há um
comitê que avalia a produção acadêmica, qualificando os departamentos segundo uma
pontuação que serve de referência para a obtenção de recursos.

1
Publicado originalmente na Revista Bibliografica de Geografia y Ciencias Sociales, Universidad de
Barcelona, vol. X, 650, 10 de mayo de 2006. Republicado em: Caminhos Paralelos e Entrecruzados. São
Paulo: UNESP, 2018.
Nos critérios de avaliação os artigos são os mais valorizados que os livros e
capítulos em livros. Os periódicos também são submetidos a uma classificação. Assim,
por exemplo, publicar um artigo na Transactions of Institute of British Geographers, no
seu congênere norte-americano Annals of the Association of American Geographers,
nos periódicos Environment and Planning e Progress in Human Geography, tem um
valor, numericamente qualificado, que em outros periódicos. As revistas de menor
circulação, porém mais criativas são relegadas a um plano muito secundário, porque não
ficaram classificadas como de grau A. Aqueles que publicam artigos nas revistas
acadêmicas de alto status obtêm maior pontuação. Aqueles que editam essas revistas
acabam detendo poder na comunidade, assim como aqueles membros do comitê de
avaliação, transformados em “árbitros da disciplina, os novos guardiões, parte do
sistema governamental de vigilância” (Short, 2002, p.324). Esses membros são
selecionados, em parte, pelo status que individualmente conquistaram, mas são, segundo
Short (2002, p.324), os “recipientes (...) e não os artífices do processo” de avaliação de
cursos e distribuição de bolsas. Esses membros, pouco numerosos, concentram poder
acadêmico, passando a desfrutar de enorme prestígio. Nesse processo certos temas são
considerados mais relevantes, mas essa relevância está associada, em grande parte, à
aceitação que os temas desfrutam entre aqueles que detêm poder.

Short conclui afirmando que o controle da produção e a concentração de poder


nas mãos de poucos, acabam sendo perniciosos para o futuro da disciplina, que
necessita de multiplicar vozes e um conjunto variado de discursos.

A produção geográfica, por outro lado, ao se subordinar crescentemente às


grandes editoras, que editam os principais periódicos, detendo o direito de cópia, torna-
se mercantilizada, “a commodity”, parte integrante da indústria da produção cultural,
submetida aos cânones da moda e da criação de celebridades. Os geógrafos passam,
desse modo, a fazer parte daqueles que criam e re-criam novos valores para a sociedade,
a partir de poucos centros de criação e difusão de conhecimento (Gibson e Klocker,
2004).

Kitchin e Fuller (2003), por sua vez, apontam para o aumento de discussões
sobre a transparência dos mecanismos de avaliação da prática dos geógrafos, congressos
e publicações, mais especificamente. Questões como “quem decide?” e “que critérios
foram adotados?” emergem nessas discussões. Questões dessa natureza, apareceram em
textos publicados em periódicos correntes, na revista eletrônica de geografia crítica e
durante a Conferência Internacional de Geografia Crítica realizada em 2002 na cidade
húngara de Békéscsaba.

As questões apontadas nos três textos não são estranhas e irrelevantes aos
geógrafos brasileiros envolvidos em programas de pós-graduação. A explosão de cursos
de mestrado e, menos acentuadamente, de doutorado em geografia, foi acompanhada de
crescente controle por parte do Estado por intermédio, sobretudo, do CNPq e da
CAPES. A produção acadêmica e o desempenho do curso são avaliados por comitês de
geógrafos.

Nesse processo de controle, de vigiar, punir e premiar, algumas práticas foram


estabelecidas na academia, inclusive entre geógrafos. Apontaremos três dessas práticas
que têm por finalidade última a premiação e a não-exclusão. As práticas constituem, na
realidade, em metáforas da vida social, econômica e política da sociedade capitalista
avançada, efetivadas mesmo em países do capitalismo periférico.

 Aumento do número de orientandos e de trabalhos publicados, especialmente em


periódicos internacionais. Isto tem levado a que se publique o mesmo texto, ou
pequenas variações deles, em vários periódicos, aumentando, assim, a pontuação
do pesquisador.
 Utilização do trabalho de seus orientandos e bolsistas para ampliar e diversificar
a produção por meio do artifício da co-autoria. O orientador passa a ser co-autor
nato, mesmo que não tenha orientado ou que a orientação seja parte de suas
tarefas (lembrar-se que, mesmo sem a co-autoria, o orientador ganha muito
intelectualmente com um bom trabalho de seu orientado). Com isto o orientador
pode apresentar oito ou dez trabalhos em um único congresso, aumentando a sua
pontuação.
 Estabelecimento de rede de trocas envolvendo convites para cursos ou
congressos fora do lugar de origem, aumentando assim o desempenho do
programa de pós-graduação em questões como extensão universitária e relações
internacionais. A qualidade dos temas abordados é de natureza secundária e não
avaliável.
As práticas acima apontadas revelam simbolicamente o caráter mercantil que a
produção acadêmica está sendo submetida. Tudo é avaliado e contabilizado: o melhor é
aquele que produziu mais pontos. Também dessa maneira a academia está integrada ao
modelo dominante na sociedade.

Indicaremos a seguir alguns pontos a respeito do controle sobre a produção


acadêmica, com o intuito de levantar o debate sobre questões que envolvem a todos nós.

 Até que ponto é necessária uma avaliação formal da prática e do desempenho


acadêmico?
 Que critérios devem pautar essa avaliação se ela for inevitável? Critérios
adotados no exterior, em contextos sócio-culturais e econômicos distintos?
Critérios indiferenciados para as ciências naturais e ciências sociais e
humanidades?
 Quem avalia e como são selecionados os avaliadores? Que jogo de poder está
subjacente a essa seleção e o que isto implica?
 O que a comunidade geográfica pensa a esse respeito? É favorável no todo, em
parte, ou nega a prática de controle totalmente? Alguns programas se aproveitam
dessa prática e estabelecem ou ratificam sua hegemonia?
 Quais os impactos dessa prática sobre a comunidade? Desagregador?
Hierarquizador?
 A comunidade geográfica é capaz de negociar com os órgãos do Estado alguns
pontos que julga relevantes ou submete-se ao Estado e tenta tirar proveito disto,
ainda que a coesão interna seja afetada?

Referências Bibliográficas

GIBSON, C. E KLOCKER, N. (2004) – Academia Publishing as ‘Creative’ Industry


and Recent Discourses of ‘Creative Economies’: Some Critical Reflections. Area,
36(4), pp. 423-434.

KITCHIN, R. E FULLER, D. (2003) – Making the ‘Black Box’ Transparent: Publishing


and Presenting Geographic Knowledge. Area, 35(3), pp. 313-315.

SHORT, J.R. (2002) – The Disturbing of the Concentration of Power in Human


Geography. Area, 34(2), pp. 323-324.

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