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LÉO RAMOS CHAVES

AVALIAÇÃO ACADÊMICA

NOVAS
RÉGUAS
PARA
MEDIR
A QUALIDADE
Universidades e agências de fomento buscam
e adotam métricas mais abrangentes
para examinar o desempenho de pesquisadores

Fabrício Marques

A
comunidade científica dos Países atualiza anualmente o Journal Citation Reports,
Baixos trava uma disputa que base de dados que estima o fator de impacto médio
promete reverberar na forma de mais de 10 mil revistas. O FI é considerado em
como são avaliados a qualidade diversas disciplinas como um bom sinalizador da
do trabalho e o desempenho de repercussão que um artigo teve entre especialistas
pesquisadores em outras partes de sua área e se tornou matéria-prima para outros
do mundo. A controvérsia teve início em junho, indicadores, como o índice h – que combina o
quando a Universidade de Utrecht, a mais antiga número de artigos de um autor com a frequência
e bem ranqueada instituição de ensino superior de citações desses manuscritos.
holandesa, anunciou uma reforma em suas re- No novo modelo proposto pela Universidade
gras de contratação e promoção, abolindo o uso de Utrecht, os pesquisadores serão avaliados
de indicadores bibliométricos como o fator de sem computar o número e a influência de seus
impacto (FI) para mensurar a relevância da pro- papers, mas sim com base na qualidade do en-
dução de seus docentes. Calculado pelo número sino, no compromisso de atuar em equipes e na
de citações que um artigo recebe nas referências disposição de compartilhar dados de pesquisa.
bibliográficas de outros artigos, o FI é adotado, Cada departamento deverá elaborar estratégias
por exemplo, para examinar o prestígio de perió- próprias para apreciar o desempenho de seus
dicos científicos – a empresa Clarivate Analytics docentes, levando em conta o efeito na economia

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e na sociedade e os princípios de “ciência aber- 148 países, que recomenda
ta”, conjunto de práticas que promove a trans- abolir o uso isolado do fa- Nos últimos anos,
parência e o trabalho em colaboração. “Temos tor de impacto de periódi-
uma forte convicção de que algo precisa mudar. cos em avaliações relativas uma série de
E abandonar o fator de impacto é uma mudança a financiamento, promo-
necessária”, disse à revista Nature Paul Boselie, ções e contratações. Outro
manifestos propôs
professor da Escola de Governança da universida- documento de referência meios de fazer
de, responsável pela construção do novo sistema. é um conjunto de diretri-
Segundo ele, o uso indiscriminado do FI produziu zes definidas em 2019 na avaliações mais
consequências indesejadas, como a preocupação 6ª Conferência Mundial
excessiva em publicar artigos e a busca de artifí- de Integridade Científica, amplas, ganhando
cios para anabolizar sua ressonância, deixando realizada em Hong Kong,
em segundo plano outros objetivos importantes para avaliar o desempe-
adeptos entre
da atividade científica. nho dos pesquisadores de as universidades
A decisão gerou ondas de choque em outras ins- forma mais ampla e criar
tituições dos Países Baixos, que se materializaram recompensas na carreira
em uma carta aberta assinada por 170 pesquisa- para os que adotarem prá-
dores contrários à mudança e temerosos de que ticas capazes de reforçar a
ela seja adotada por mais universidades – entre integridade da ciência (ver
os signatários está o Nobel de Química de 2016 Pesquisa FAPESP nº 303).
Bernard Feringa, da Universidade de Groningen. Instituições de vários
O contra-argumento é que, na ausência de indi- países vêm reduzindo o
cadores objetivos, os processos de contratação peso de indicadores bi-
e promoção passem a ser regidos por critérios bliométricos e ampliando
eventualmente arbitrários. “O fator de impacto é o de parâmetros de cará-
uma métrica imperfeita, mas continua sendo útil”, ter qualitativo, em busca
disse à revista Nature Index um dos signatários da do que se convencionou
carta, o biólogo celular Raymond Poot, do Centro chamar de “métricas res-
Médico da Universidade Erasmus, em Roterdã. ponsáveis”. A Universida-

N
de de Glasgow, no Reino
a avaliação de Jacques Marco- Unido, incorporou recentemente o critério de
vitch, reitor da Universidade “colegialidade” à avaliação de docentes: para se-
de São Paulo (USP) entre 1997 rem promovidos ao topo da carreira, eles devem
e 2001, o embate nos Países Bai- demonstrar que contribuíram com a trajetória
xos põe em evidência vantagens de colegas e assistentes, compartilhando dados e
e limites das duas abordagens. produzindo artigos em coautoria. No sistema de
“Indicadores bibliométricos são racionais e obje- avaliação das universidades do Reino Unido, uti-
tivos, mas eles sabidamente provocam distorções lizado para classificar as instituições e distribuir
de comportamentos e são incapazes de captar recursos, há tempos se conjugam alguns indica-
dimensões como a qualidade do ensino na sala dores bibliométricos com a análise feita por pares
de aula”, afirma. Já a análise detalhada da contri- de uma seleção dos trabalhos mais relevantes dos
buição científica e acadêmica de pesquisadores é pesquisadores – o peso de cada modelo é ajustado
mais trabalhosa e impõe desafios complexos. “Na- a cada temporada de avaliação.
turalmente, isso envolve um processo bem mais A estratégia da China também está em transfor-
demorado e difícil de realizar”, afirma Marcovitch, mação. Em vez de valorizar o volume de estudos
que coordena um projeto financiado pela FAPESP publicados, passou-se a exigir que os pesquisa-
voltado ao desenvolvimento de novas métricas dores selecionem as melhores contribuições para
para avaliar o desempenho científico, econômico serem analisadas por painéis de especialistas. Os
e cultural das universidades públicas paulistas. chineses anunciaram a intenção de elaborar indi-
A disputa nos Países Baixos é simbólica porque cadores bibliométricos próprios, que contemplem
estabelece uma ruptura com indicadores consa- o impacto regional de sua pesquisa.
grados, cujo uso exagerado há tempos é criticado Em novembro do ano passado, diversas inicia-
como reducionista. Nos últimos anos, uma série tivas relacionadas a uma avaliação mais completa
de manifestos propôs meios de fazer avaliações da pesquisa foram apresentadas em uma confe-
mais abrangentes e ganhou adeptos entre uni- rência virtual do Global Research Council, enti-
versidades de toda parte. O principal deles é a dade criada em 2012 para estimular o intercâmbio
OCEGEP / FLICKR

Declaração de São Francisco sobre Avaliação de de práticas de gestão entre agências de fomento.
Pesquisa (Dora), de 2012, endossada por mais Em vários países, os pesquisadores estão sendo
de 20 mil pesquisadores e 2 mil instituições de instados a fornecer uma narrativa estruturada

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sobre sua carreira, exprimindo sua contribuição ordem financeira para escolher os 32 docentes
individual, em vez de listar o volume de artigos e de sua Faculdade de Saúde e Ciências da Vida
as citações que receberam. A Fundação Nacional que serão demitidos. Para manter os empregos,
de Ciência da Suíça está testando um currículo eles precisam demonstrar que conseguiram atrair
desse tipo, o SciCV, fácil de preencher e de atuali- financiamento para seus projetos em níveis se-
zar. A Royal Society, do Reino Unido, desenvolveu melhantes aos de um grupo de 24 universidades
um currículo dividido em quatro seções: geração intensivas em pesquisa ao qual Liverpool pertence.
de conhecimento, desenvolvimento de talentos, Um editorial recente da revista Nature apontou o
contribuição para a comunidade de pesquisa e imbróglio de Liverpool como uma encruzilhada
contribuição para a sociedade. para o movimento deflagrado pelo manifesto Dora.

A
A busca e a adoção de métricas responsáveis
pesar das mudanças, os indica- também avançam no Brasil. Em um artigo divul-
dores bibliométricos ainda são gado recentemente nos Anais da Academia Brasi-
uma ferramenta muito presen- leira de Ciências, um trio de bioquímicos lançou o
te na avaliação da ciência. Um manifesto “Avaliação científica responsável: Mi-
estudo publicado em 2019 na nimizando os índices, aumentando a qualidade”,
revista eLifeSciences constatou que ressalta a importância da revisão por pares
que 40% das universidades de pesquisa nos Es- para identificar a contribuição de uma pesquisa.
tados Unidos e Canadá mencionam fatores de Uma das recomendações é criar mecanismos de
impacto ou termos relacionados em documen- recompensa para bons avaliadores, aqueles cien-
tos referentes à estabilidade, revisão e promoção tistas que têm conhecimento profundo em um
de seus quadros. Um caso recente envolvendo tema e concentram suas sugestões na possibili-
a Universidade de Liverpool, no Reino Unido, dade de melhorar a qualidade do manuscrito ou
Campus da Universidade é revelador das dificuldades de promover uma de um projeto de pesquisa de colegas.
de Utrecht: em vez do mudança de cultura. A instituição é uma das sig- O documento propõe ainda que indicadores
fator de impacto, natárias do manifesto Dora e se diz engajada na bibliométricos sejam utilizados com parcimônia,
docentes serão avaliados
pela repercussão de seu
adoção de métricas responsáveis, como a análise levando em conta as suas limitações. “O trabalho
trabalho no ensino, na por pares do trabalho de seus pesquisadores. Mas de pesquisadores atuando na fronteira do conhe-
economia e na sociedade está sendo criticada por utilizar indicadores de cimento não pode ser avaliado de forma quanti-
N
tativa. A avaliação da qualidade só pode ser feita os anos 2000, a Capes criou o Universidade de
por pessoas experientes, na chamada revisão por Qualis, sistema de classificação Liverpool: críticas por
utilizar indicadores
pares”, afirma Alicia Kowaltowski, pesquisadora de revistas científicas usado pa- financeiros para demitir
do Instituto de Química da USP e coordenadora ra avaliar os programas de pós- pesquisadores
de área da Diretoria Científica da FAPESP, que es- -graduação do Brasil. O sistema
creveu o manifesto em parceria com Ariel Silber, está sendo revisto e costuma ser
também da USP, e Marcus Oliveira, da Univer- criticado por considerar a importância de um
sidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O uso artigo não pelo número de citações que ele de fato
responsável de métricas, observa Kowaltowski, recebeu, mas por um parâmetro indireto: o fator
exige uma análise do contexto. “O número de ci- de impacto médio do periódico que o publicou.
tações varia de acordo com as áreas do conheci- Essa estratégia é condenada em manifestos favo-
mento e é mediado por outros fatores – artigos de ráveis a métricas responsáveis, mas Guimarães
revisão, por exemplo, não trazem dados originais, explica que ela teve uma razão de ser. “A avaliação
mas costumam ser mais citados. O contexto é im- dos programas leva em conta a produção científica
portante”, afirma. gerada nos quatro anos anteriores. Nesse breve
O bioquímico Jorge Guimarães, que foi presi- espaço de tempo, o número de citações de cada
dente da Coordenação de Aperfeiçoamento de artigo é pequeno e não serviria como boa medida
Pessoal de Nível Superior (Capes) entre 2004 e de avaliação”, afirmou. Ele observa que o peso
2015 e atualmente preside a Empresa Brasileira atribuído a cada periódico era objeto de discussão
de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii), aprofundada entre os representantes dos comitês
vê com cautela a dicotomia entre indicadores de de avaliação de cada área do conhecimento.
quantidade e qualidade. “Fala-se muito em mudar Guimarães sustenta que indicadores devem
para componentes mais qualitativos, mas ninguém sempre ser interpretados com critério. Ele obser-
sabe muito bem quais deveriam ser usados”, afir- va, por exemplo, que o impacto da ciência brasilei-
ANTONIO CAMPOY / FLICKR

ma. Ele rejeita a ideia de que índices bibliométri- ra em agricultura tropical é baixo, uma vez que os
cos sejam meramente quantitativos. “O fator de resultados têm interesse regional. “Mas ninguém
impacto mede qualidade. Mostra que alguém leu tem dúvida de sua importância econômica e so-
seu artigo e o utilizou como referência, em geral cial no Brasil. Isso precisa ser levado em conta
por conta de sua contribuição.” na avaliação.” Já os pesquisadores brasileiros da

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área de química, diz Guimarães, têm trabalhos coordenação do programa a destacar o que há de
de alta qualidade. “Mas há pouca transposição mais relevante na produção é boa e reduz o peso
da pesquisa desenvolvida nas universidades para do volume de produção na avaliação do programa,
o setor industrial.” desestimulando o produtivismo”, afirma. Segundo

P
ele, ainda é cedo para avaliar quais serão os efeitos.
ara Jacques Marcovitch, um dos “O ideal é que esses modelos fossem testados em
desafios é identificar os tipos de um ciclo de avaliação, mas só implementados no
impacto que a universidade é ca- seguinte, para ver se funcionam bem”, afirma. No
paz de gerar em diferentes áreas do futuro, a Capes planeja mudar profundamente seu
conhecimento. “Há métricas que são sistema de avaliação, analisando os programas em
adequadas para algumas disciplinas, cinco diferentes dimensões (ver Pesquisa FAPESP
mas não fazem nenhum sentido para outras. Se nº 286). De acordo com Mugnaini, a combinação
nas engenharias um indicador sobre patentes ideal entre indicadores de quantidade e qualida-
pode ser útil, na filosofia o reconhecimento dos de está por ser testada, mas ele não acredita que
pares é o principal objetivo a ser obtido”, explica. métricas sobre a produção venham a ser abando-
Já a sociedade espera das universidades um outro nadas. “Publicar trabalhos é parte essencial para
tipo de impacto. “Quer ver resultado todo ano, na a atividade científica e não me parece possível
forma de ingresso de novos alunos e na saída de prescindir deles em um modelo de avaliação. Mas
profissionais bem formados, assim como espera sem dúvida importa olhar além do mero produto,
extensão e pesquisa de qualidade. Na crise sani- estimulando o desenvolvimento de projetos con-
tária, essa pressão gerou um enorme estresse e sistentes e duradouros e também a participação
as universidades se esmeraram em dar respostas em redes de colaboração.”
à sociedade”, afirma. A FAPESP tem aperfeiçoado o processo de ava-
A avaliação dos programas de pós-graduação liação de projetos para assegurar uma análise cal-
da Capes está mudando para contemplar mais cada em mérito e qualidade. A principal mudança
aspectos qualitativos. Alguns indicadores, como envolve os termos usados nos formulários para
quantidade de professores e número de estudantes apresentação de projetos – e servem para refor-
de mestrado e doutorado, perderam importância çar as expectativas da Fundação tanto para quem
na avaliação quadrienal que se encerra neste ano e submete propostas quanto para quem as avalia.
não influenciarão mais na Em vez de indagar quais foram os artigos, livros
nota dos cursos. Serão con- ou patentes do proponente que tiveram mais im-
siderados apenas como in- pacto, o foco agora são os resultados científicos
dicativo para manter o mí- mais relevantes e a capacidade daquele projeto
nimo de pessoas atuando de multiplicar essa contribuição e ampliar seu
no programa. Já a publica- alcance. “O objetivo é colocar na frente a quali-
ção de artigos dos docentes dade do projeto e garantir que o que está sendo
e alunos vinculados a ca- avaliado em primeiro lugar é a sua contribuição”,
da programa passará a ser diz Cristóvão de Albuquerque, gerente de Cola-
analisada em três níveis boração em Pesquisa da FAPESP.
diferentes e só o primeiro Há um esforço, também, no sentido de aperfei-
deles, o que mede a pro- çoar a revisão por pares. A Fundação fez um vídeo
dução total, terá caráter para orientar avaliadores que busca ajudá-los a
quantitativo. Nos demais, produzir um despacho construtivo. “A ideia é que
contemplará análise por o parecer represente sempre uma contribuição à
pares para avaliar um con- melhoria da proposta e, caso seja denegada, ela
junto seleto de trabalhos possa ser refeita e ressubmetida adiante de forma
Quarenta por cento de cada docente, assim co- mais consistente”, afirma Albuquerque. A FAPESP,
mo os melhores itens da observa ele, também permite que os proponentes
das universidades de produção intelectual do incluam narrativas informando circunstâncias da
pesquisa nos Estados programa – além da produ- vida relevantes para compreender sua contribui-
ção científica, também será ção. “Isso auxilia, por exemplo, pesquisadoras
Unidos e Canadá possível escolher trabalhos que foram mães e precisaram se afastar por um
técnicos e artísticos. Para período”, conclui. n
consideram o fator o cientista da informação
Rogério Mugnaini, da Es-
de impacto como cola de Comunicações e Projeto

critério de promoção Artes da USP, as mudanças Indicadores de desempenho nas universidades estaduais paulistas
2022 (nº 19/10963-7); Modalidade Pesquisa em Políticas Públicas;
são interessantes. “A ideia
de docentes
Pesquisador responsável Jacques Marcovitch (USP); Investimento
de obrigar os docentes e a R$ 614.583,66.

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