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TEXTOS PARA LEITURA – 07/03/2020

Conceito de Literatura & Gêneros Literários – Prof. Marcelo Alves


TEXTO I
- Firmemos desde logo esse ponto: todos os poetas, a começar por Homero, não passam de imitadores de simulacros
da virtude de tudo o mais que constitui o objeto de suas composições, sem nunca atingirem a verdade, o que também
se dá com o pintor, a que já nos referimos, o qual, sem nada entender da arte de fazer sapatos, é capaz de pintar um
sapateiro que lhe pareça bom e a quantos desconheçam essa profissão e só percebam as cores e o desenho.

- A mesma coisa, creio, podemos afirmar do poeta que com palavras e frases reveste as diferentes artes das cores que
lhe são próprias, sem entender nada mais além da imitação. Como consequência, os ouvintes, que apreciam os
assuntos apenas pelo efeito das palavras, ficam convencidos de que ele fala com muita propriedade, quer o ouçam
discorrer com metro, ritmo e harmonia acerca da arte de fazer sapatos, quer sobre a estratégia militar ou o tema que
for, tal o natural fascínio que exerce com os seus recursos. Porém, se despirmos as criações dos poetas desse colorido
musical e as apresentarmos em expressões comuns, bem sabes, tenho certeza, a que ficam reduzidas. (Livro X).

TEXTO II
21 DE MAIO - Passei uma noite horrível. Sonhei que eu residia numa casa residível, tinha banheiro, cozinha, copa e
até quarto de criada. Eu ia festejar o aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu ia comprar-lhe umas panelinhas que
há muito ela vive pedindo. Porque eu estava em condições de comprar. Sentei na mesa para comer. A toalha era alva
ao lírio. Eu comia bife, pão com manteiga, batata frita e salada. Quando fui pegar outro bife despertei. Que realidade
amarga! Eu não residia na cidade. Estava na favela. Na lama, as margens do Tietê. E com 9 cruzeiros apenas. Não
tenho açúcar porque ontem eu saí e os meninos comeram o pouco que eu tinha.
... Quem deve dirigir é quem tem capacidade. Quem tem dó e amizade ao povo. Quem governa o nosso país é
quem tem dinheiro, quem não sabe o que é fome, a dor, e a aflição do pobre. Se a maioria revoltar-se, o que pode fazer
a minoria? Eu estou ao lado do pobre, que é o braço. Braço desnutrido. Precisamos livrar o país dos políticos
açambarcadores.
Eu ontem comi aquele macarrão do lixo com receio de morrer, porque em 1953 eu vendia ferro lá no Zinho.
Havia um pretinho bonitinho. Ele ia vender ferro lá no Zinho. Ele era jovem e dizia que quem deve catar papel são os
velhos. Um dia eu ia vender ferro quando parei na Avenida Bom Jardim. No Lixão, como é denominado o local. Os
lixeiros haviam jogado carne no lixo. E ele escolhia uns pedaços. Disse-me:
- Leva, Carolina. Dá pra comer.
Deu-me uns pedaços. Para não magoá-lo aceitei. Procurei convencê-lo a não comer aquela carne. Para comer
os pães duros ruídos pelos ratos. Ele disse-me que não. Que há dois dias não comia. Acendeu o fogo e assou a carne.
A fome era tanta que ele não pode deixar assar a carne. Esquentou-a e comeu. Para não presenciar aquele quadro, saí
pensando: faz de conta que eu não presenciei esta cena. Isso não pode ser real num país fértil igual ao meu. Revoltei
contra o tal Serviço Social que diz ter sido criado para reajustar os desajustados, mas não toma conhecimento da
existência infausta dos marginais. Vendi os ferros no Zinho e voltei para o quintal de São Paulo, a favela.
No outro dia encontraram o pretinho morto. Os dedos do seu pé abriram. O espaço era de vinte centímetros.
Ele aumentou-se como se fosse de borracha. Os dedos do pé pareciam leque. Não trazia documentos. Foi sepultado
como um Zé qualquer. Ninguém procurou saber seu nome. Marginal não tem nome.
... De quatro em quatro anos muda-se os políticos e não soluciona a fome, que tem a sua matriz nas favelas e
as sucursais nos lares dos operários.

TEXTO III
Príamo salta depressa do carro, deixando ainda nele
o venerável Ideu, que ficou para guarda dos mulos
e dos cavalos. O velho penetra direto na tenda
onde o Pelida, a Zeus, caro, soía sentar-se, encontrando-o
dentro, sozinho, que os sócios à parte moravam, exceto
Automedonte galhardo e o ínclito Álcimo, de Ares aluno,
que, prestimosos, o servem. De cear acabara nessa hora,
sim, de comer e beber, mas ao lado ainda a mesa lhe estava.
Sem pelos outros ser visto, entra o grande monarca, e de Aquiles
aproximando-se, abraça-lhe os joelhos e beija as terríveis
mãos homicidas, que muitos dos filhos lhe haviam matado.

"Lembra-te, Aquiles, igual a um dos deuses, teu pai venerável é


da mesma idade que a minha e, portanto, como eu, assim velho.
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É bem possível que esteja cercado por fortes vizinhos,
cheio de angústia, sem ter quem lhe sirva de amparo e defesa;
mas, só de ouvir que estás vivo, alegria indizível lhe invade
o coração, dia a dia esperando poder ante os olhos
ter a figura do filho glorioso, de volta de Tróia.
Muito mais triste é meu fado, que, após tantos filhos ter tido,
de comprovado valor, nem um só na velhice me resta.
Vivos, cinquenta floriam no tempo em que os Dânaos chegaram;
da mesma mãe, dezenove guerreiros me foram brindados;
os outros todos diversas mulheres nos paços tiveram.
De muito dele as forças dos joelhos tirou Ares forte;
e o único herói que restava, dos muros amparo e de todos,
a combater pela pátria, não há muito tempo mataste,
o meu Heitor, cujo corpo aqui venho insistente pedir-te,
às naus Aquivas trazendo resgate de preço infinito.
Sê reverente aos eternos, Aquiles; de mim tem piedade;
pensa em teu pai, também velho; bem mais infeliz sou do que ele,
pois chego agora a fazer o que nunca mortal fez na terra:
beijo-te as mãos, estas mãos que a meus filhos a Morte levaram".

TEXTO IV Já sem maracás;


Meu canto de morte, E os meios cantores,
Guerreiro, ouvi: Servindo a senhores,
Sou filho das selvas, Que vinham traidores,
Nas selvas cresci; Com mostras de paz.
Guerreiros, descendo
Da tribo Tupi Aos golpes do imigo
Meu último amigo,
Da tribo pujante Sem lar, sem abrigo
Que agora anda errante Caiu junto a mi!
Por fado inconstante, Com plácido rosto,
Guerreiro, nasci: Sereno e composto,
Sou bravo, sou forte, O acerbo desgosto
Sou filho do Norte; Comigo sofri.
meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi. Meu pai a meu lado
Já cego e quebrado,
Já vi cruas brigas, De penas ralado,
De tribos imigas, Firmava-se em mi:
E as duras fadigas Nós ambos, mesquinhos
Da guerra provei; Por ínvios caminhos,
Nas ondas mendaces Cobertos de espinhos
Senti pelas faces Chegamos aqui!
Os silvos fugaces
Dos ventos que amei. O velho no entanto
Sofrendo já tanto
Andei longas terras, De fome e quebranto,
Lidei cruas guerras, Só queria morrer!
Vaguei pelas serras Não mais me contenho,
Dos vis Aimorés; Nas matas me embrenho,
Vi lutas de bravos, Das frechas que tenho
Vi fortes - escravos! Me quero valer.
De estranhos ignavos
Calcados aos pés. Então, forasteiro,
Caí prisioneiro
E os campos talados, De um troço guerreiro
E os arcos quebrados, Com que me encontrei:
E os piagas coitados O cru dessossego

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Do pai fraco e cego, Que resta? - Morrer.
Enquanto não chego, Enquanto descreve
Qual seja, - dizei! O giro tão breve

Eu era o seu guia Da vida que teve


Na noite sombria, Deixai-me viver!
A só alegria
Que Deus lhe deixou: Não vil, não ignavo,
Em mim se apoiava, Mas forte, mas bravo,
Em mim se firmava, Serei vosso escravo:
Em mim descansava, Aqui virei ter.
Que filho lhe sou. Guerreiros, não coro
Do pranto que choro;
Ao velho coitado Se a vida deploro,
De penas ralado, Também sei morrer.
Já cego e quebrado,
TEXTO V ***
Que soidade de mia senhor hei Que saudade de minha senhora tenho
quando me nembra dela qual a vi quando me lembro dela como a vi
e que me nembra que ben'a oí e que me lembro que bem a ouvi
falar; e por quanto bem dela sei, falar; e por quanto bem dela sei,
rog'eu a Deus, que end'há o poder, rogo eu a Deus, que tem para isso o poder,
que mi a leixe, se lhi prouguer, veer que me deixe, se Lhe aprouver, a ver

cedo; ca, pero mi nunca fez bem, logo; porque ainda nunca me fez bem,
se a nom vir, nom me posso guardar se não a vir, não posso evitar
d'ensandecer ou morrer com pesar; enlouquecer ou morrer com pesar;
e porque ela tod'em poder tem, e porque ela tem o poder em tudo,
rog'eu a Deus que end'há o poder rogo eu a Deus, que tem para isso o poder,
que mi a leixe, se lhi prouguer, veer que me deixa, se Lhe aprouver, a ver

cedo; ca tal a fez Nostro Senhor, logo; porque tal a fez Nosso Senhor,
de quantas outras no mundo som de quantas outras no mundo existem,
nom lhi fez par, a la minha fé, nom; não lhe fez par, juro por Deus, não;
e poila fez das melhores melhor, pois a fez das melhores a melhor,
rog'eu a Deus que end'há o poder, rogo eu a Deus, que tem para isso o poder,
que mi a leixe, se lhi prouguer, veer que me deixe, se Lhe aprouver, a ver

cedo; ca tal a quiso Deus fazer, logo; porque tal a quis Deus fazer,
que, se a nom vir, nom posso viver. que, se não a vir, não posso viver.

TEXTO VI
A COMPADECIDA - Está bem, vou ver o que posso fazer.
JOÃO GRILO, ao Encourado - Está vendo? Isso aí é gente e gente boa, não é filha de chocadeira não! Gente como eu,
pobre, filha de Joaquim e de Ana, casada com um carpinteiro, tudo gente boa.
MANUEL - E eu, João? Estou esquecido nesse meio?
JOÃO GRILO - Não é o que eu digo, Senhor? A distância entre nós e o Senhor é muito grande. Não é por nada não,
mas sua mãe é gente como eu, só que gente muito boa, enquanto que eu não valho nada. (Ocorrendo-lhe a
brincadeira.) Mas com toda desgraça, acho que sou menos ruim do que o sacristão.
A COMPADECIDA - Intercedo por esses pobres que não têm ninguém por eles, meu filho. Não os condene.
MANUEL - Que é que eu posso fazer? Esse aí era um bispo avarento, simoníaco, político...
A COMPADECIDA - Mas isso é a única coisa que se pode dizer contra ele. E era trabalhador, cumpria suas
obrigações nessa parte. Era de nosso lado e quem não é contra nós é por nós.
MANUEL - O padre e o sacristão... (Gesto de desânimo).
A COMPADECIDA - É verdade que não eram dos melhores, mas você precisa levar em conta a língua do mundo e o
modo de acusar do diabo. O bispo trabalhava e por isso era chamado de político e de mero administrador. Já com
esses dois a acusação é pelo outro lado. É verdade que eles praticaram atos vergonhosos, mas é preciso levar em conta

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a pobre e triste condição do homem. A carne implica todas essas coisas turvas e mesquinhas. Quase tudo o que eles
faziam era por medo. Eu conheço isso, porque convivi com os homens: começam com medo, coitados, e terminam por
fazer o que não presta, quase sem querer. É medo.
ENCOURADO - Medo? Medo de quê?
BISPO - Ah, senhor, de muitas coisas. Medo da morte...
PADRE - Medo do sofrimento...
SACRISTÃO - Medo da fome...
PADEIRO - Medo da solidão. Perdoei minha mulher na hora da morte, porque a amava e porque sempre tive um
medo terrível da solidão.
MANUEL - E é a mim que vocês vêm dizer isso, a mim que morri abandonado até por meu pai!
A COMPADECIDA - Era preciso e eu estava a seu lado. Mas não se esqueça da noite no jardim, do medo por que
você teve de passar, pobre homem, feito de carne e de sangue, como qualquer outro e, como qualquer outro também,
abandonado diante da morte e do sofrimento.
JOÃO GRILO - Ouvi dizer que até suar sangue o senhor suou.
MANUEL - É verdade, João, mas você não sabe do que está falando. Só eu sei o que passei naquela noite.
A COMPADECIDA - Seja então compassivo com quem é fraco.
MANUEL - Mas esses dois? Você mesma via daqui e comentava o que eles faziam com João Grilo e os outros
empregados na padaria!
JOÃO GRILO - Se é por mim, não há dificuldade, porque eu sou tão sem-vergonha, que já me esqueci de tudinho.
MANUEL - Devia ter esquecido lá, João. Pode alegar alguma coisa em favor deles?
A COMPADECIDA - O perdão que o marido deu à mulher na hora da morte, abraçando-se com ela para morrerem
juntos.
MANUEL - Isso pode se dizer em favor dele. Mas ela?
ENCOURADO - Enganava o marido com todo mundo.
MULHER - Porque era maltratada por ele. Logo no começo de nosso casamento, começou a me enganar. A senhora
não sabe o que eu passei, porque nunca foi moça pobre casada com homem rico, como eu. Amor com amor se paga.
A COMPADECIDA - Eu entendo tudo isso mais do que você pensa. Sei o que as mulheres passam no mundo, se bem
que não tenha do que me queixar, porque meu marido era o que se pode chamar um santo. (...)
*
JOÃO GRILO - E o senhor vai dar uma satisfação a esse sujeito, me desgraçando para o resto da vida? Valha-me
Nossa Senhora, mãe de Deus de Nazaré, já fui menino, fui homem...
A COMPADECIDA, sorrindo - Só lhe falta ser mulher, João, já sei. Vou ver o que posso fazer. (A Manuel.) Lembre-
se de que João estava se preparando para morrer quando o padre o interrompeu.
ENCOURADO - É, e apesar de todo o aperreio, ele ainda chamou o padre de cachorro bento.
A COMPADECIDA - João foi um pobre como nós, meu filho. Teve de suportar as maiores dificuldades, numa terra
seca e pobre como a nossa. Não o condene, deixe João ir para o purgatório.
JOÃO GRILO - Para o purgatório? Não, não faça isso assim não. (Chamando a Compadecida à parte.) Não repare eu
dizer isso mas é que o diabo é muito negociante e com esse povo a gente pede o mais para impressionar. A senhora
pede o céu, porque aí o acordo fica mais fácil a respeito do purgatório.
A COMPADECIDA - Isso dá certo lá no sertão, João! Aqui se passa tudo de outro jeito! Que é isso? Não confia mais
na sua advogada?
JOÃO GRILO - Confio, Nossa Senhora, mas esse camarada enrolando nós dois.
A COMPADECIDA - Deixe comigo. (A Manuel.) Peço-lhe então, muito simplesmente, que não condene João.
MANUEL - O caso é duro. Compreendo as circunstâncias em que João viveu, mas isso também tem um limite. Afinal
de contas, o mandamento existe e foi transgredido. Acho que não posso salvá-lo.
A COMPADECIDA - Dê-lhe então outra oportunidade.
MANUEL - Como?
A COMPADECIDA - Deixe João voltar.

REFERÊNCIAS
HOMERO. Ilíada. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001, p.539-40. (Séc. VIII a.C)
DIAS, Gonçalves. I-Juca Pirama. São Paulo: Martin Claret, 2012, 20-23. (Século XVIII)
D. DINIS. “Que soidade de mia senhor”. In.: MONGELLI, Lênia. Fremosos cantares. São Paulo: Martins Fontes,
2009, p.68-69. (Século XIII)
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, p.39-41. [1958]
PLATÃO. A República – Livro X. In.: Souza, Roberto Acízelo (org.). Do mito das Musas à razão das Letras.
Chapecó: Argos Editora, 2015. (Século VI a.C).
SUASSUNA, Ariano. O auto da compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2005, p.147-157 [1955]

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