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desencarceramento.
NR: Você pode nos contar um pouco sobre você e sua história dentro da
penitenciária feminina de Santana?
TEMPESTADE: Meu nome é Tempestade, eu tenho 68 anos hoje. Cai em cana quando eu
tinha 58 anos. Quando eu entrei eu não sabia nada e queria ir embora, só sabia que queria
ir embora, e achava que era fácil ir embora. Eu era traficante de maconha, só
comercializava maconha e não me sinto uma traficante de maconha.
Quando entrei na cadeia eu não entendia como funciona uma relação de sentença,
eu achava que ia chegar na mesa, falar minha história e ir embora. Então eu achei que no
dia da minha audiência eu vinha embora. Chegou no dia da audiência eu vi que não era
nada disso. Já fazia três meses que eu estava lá na Penitenciária de Santana, quando veio
minha audiência, só depois de 3 meses pra vir o resultado.
Peguei 11 anos de cadeia. Principalmente pra você que não entende nada de
Judiciário, eu achava que ia sair morta da cadeia, que eu não ia mais ter minha vida, e hoje,
graças a Deus eu tô aqui pra contar essa história.
Foi uma história de luta interna comigo mesma, porque até vir uma sentença
declarada. Você vai ficar seis meses esperando aquilo. E dentro desses seis meses, a
pressão psicológica comigo mesma “eu podia não ter feito isso, eu podia tá aqui eu podia tá
lá” era enorme, mas eu não podia mudar nada daquilo. Quando a sentença chegou, era
onze anos, eu falei “não tem como fugir daqui?”
Se eu fizesse um túnel eu ia cair no pavilhão 1, se eu fizesse um túnel do outro lado
eu ia cair no 3, se eu fizesse para trás eu ia cair na cadeia da PFC, se eu fosse trabalhar na
cozinha que a remição é de 30 dias eu ia morrer, eu não ia aguentar. Aí eu fui trabalhar no
judiciário da cadeia pra saber como eu ia sair de lá pela porta da frente. Descobri que eu
tinha que tirar pelo menos uns 5 anos de cadeia, e isso me abalou, mas como eu diria: sou
uma pessoa de muita resistência e luta. Muito antes de cadeia eu já tinha minhas lutas na
época que eu era estudante secundarista, que era contra a ditadura.
E foi aí que começou a minha pequena luta, para conseguir advogadas que
atuassem nos dois presídios, o da PFC (Penitenciária Feminina da Capital) que era das
estrangeiras, e da PFS (Penitenciária Feminina de Santana) que era uma mistura do
caramba. Essa foi minha primeira luta, vamos dizer assim, tirar as estrangeiras da PFS e
levar para a PFC. E a partir desse dia não entrou mais estrangeiras na PFS, porque
politicamente falando “A carne mais barata do mercado é a carne negra”, mas a carne que
vale dentro do sistema é a carne estrangeira, também é a negra, mas é principalmente a
estrangeira.
Todas as presas de outros países que ficam na cadeia recebem uma ajuda de custo
para aquele presídio que acolhe as estrangeiras. Então na PFS tinha um pavilhão inteiro
ainda em aberto, eles começaram a recolher gente, levando as presas direto do aeroporto
para PFS, até que por uma reclamação elas foram removidas para PFC, então foi a primeira
grande vitória que tive judicialmente.
Quando eu fui pro semi aberto todas as portas em relação ao Judiciário fecharam.
Eu fiquei dois anos no semi aberto e mal sai da temporária. As piores coisas que a gente
imagina acontecem no fechado. Alí que o preso chora e a mãe não vê! No semi aberto, a
opressão e tortura psicológica era muito grande, porque você sabe que qualquer
escorregãozinho já perdia as saídas temporárias e regredia para o fechado. As pessoas
aqui de fora, mesmo as famílias acham que o regime semi aberto é um adianto para os
presos. A opressão do dinheiro por exemplo, coloca as presas para trabalhar naquelas
firmas de metalúrgica pesada, de serviço muito rude, eles não pagam a mesma coisa para
uma mulher, ainda mais se for presa. Então não tem um recolhimento de INSS pra você sair
de lá e se aposentar um dia. Que nem, eu trabalhei 5 anos dentro da cadeia por conta e saí
de lá com 450 reais, eles colocam por mês e deixam no seu pecúlio, você só retira quando
ganha liberdade.
Existe muita coisa errada, o povo fala que a escravidão acabou no Brasil, mas não
acabou, no Brasil se você olhar dentro das cadeias, você vê que a escravidão existe, e ela é
muito forte. Eu passei 5 anos dentro do sistema, quase 4 dentro do fechado. E todas as
lutas que eu fiz no fechado eu não olhei pro lado pra vê se eu ia me ferrar. Porque qualquer
coisa que você faça na cadeia, você pode assinar um motim e um motim significa 5 anos de
cana sem direito a bosta nenhuma. Que não deixa de ser o pacote anti crime fake do Moro.
Esse pacote que o ministro da justiça quer que seja aprovado, fará que cada preso assuma
um motim, porque um motín você fica cinco anos preso. O que ele quer é que a pessoa
passe mais tempo na prisão para eliminar os benefícios. E o semi aberto ele quer fechar
fechando, jogando a chave no fundo do mar. E nós estamos lutando contra isso, porque
além de ser um acordo totalmente retrógrado, daqui a pouco eles vão colocar até cruz para
crucificar as pessoas. Nós estamos retrocedendo tanto tanto tanto… que é um passo para o
militarismo, é um passo para o suicídio social, nós estamos na beira do abismo. E nós
temos que cuidar emocionalmente dessa população porque a gente quer acabar com
o desencarceramento.
NR: Um dos principais livros sobre as Prisioneiras foi escrito pelo Dr. Dráuzio Varella,
que toca a questão da condição das presas, o que você acha dessa figura pública?
TEMPESTADE: Eu acho que as pessoas poderosas que tem um acesso ao sistema já
deveriam lutar por dentro do sistema. Eu adoro o Doutor Drauzio Varella, acho o trabalho
dele incrível, mas se ele quiser colocar os profissionais de saúde dentro de um sistema, ele
colocaria. Porque ele tem esse poder de ser um médico renomado, se ele quiser pode fazer
mutirão de saúde, por exemplo, dentro de toda a cadeia que eu já fiquei, em 5 anos, eu vi
um único mutirão da saúde sendo feito dentro da penitenciária de Santana no ano de 2009,
onde muitas pessoas passaram por um exame de mamografia, inclusive uma amiga minha
detectou um tumor que ela se curou, ela tratou dentro da cadeia e hoje faz apenas, um
acompanhamento preventivo.
Afinal das contas nós temos entre 178 cadeias dentro de São Paulo. É muita cadeia.
Eu acho importante fazer mutirão, mas não um aqui pra tampar peneira. O lado feminino é
muito defasado, a luta por essas mães que tem bebê é difícil. É um sistema opressor que
arranca o filho do peito da mãe, depois de 6 meses de vida eles separam a mãe do filho e
se a criança não tem família vai direto para o abrigo.Eu acho isso desumano, acho que o
Drauzio Varella enquanto médico deveria olhar com mais propriedade política a condição
das presas, existe uma outra grande luta.
Eu acredito que as pessoas podem transformar muitas coisas, a parte da saúde que
acabei de dizer, um só homem Dr. Drauzio por exemplo, ele pode conseguir coisas
absurdas em questão de médicos e remédios porque ele tem acesso. Ele é um homem
conhecido mundialmente que têm essa capacidade, não sei porque ele não fez isso ainda,
talvez não seja ele, mas sim as pessoas que o cercam que levam o barco para outro
campo. E eu acho que o barco dele tem que aportar onde ele sempre esteve dentro de
uma cadeia e lutar pela questão da saúde dentro do sistema.
Então é uma coisa que não deixa de ser como na escravidão, você sai livre sem estar
livre e fica mendigando. Mendiga para os parentes, mendiga pela família, mendiga por
sentimentos, e o próprio egresso, não gostam de se unir para lutar pelos que continuam
presos. Não é porque eu sai do cárcere que vou virar as costas e ir embora, como
abandonaria todo mundo lá? Eu não vou fazer mais nada para ajudar esse povo? Eu
faço o que eu posso. Daí todo mundo fala “Ah, mas isso é muito pouco!” Depois de dois
anos fazendo esse trampo, olho pra trás e vejo, que consegui mais de 300 liberdades.
Quando você vê o número todo não é pouco. Não é uma coisa fabulosa, mas é um pouco, e
quando você vê o retorno de uma pequena carta de dentro do sistema, que diz o dia que a
presa vai receber seus direitos, isso é grande!
A maior tortura dentro do cárcere é a falta de informação de quando você vai poder
sair em liberdade. De todas as torturas de comida, de saúde, a maior tortura é não saber
quando vai sair da cadeia. Porque às vezes você trabalha dentro do fechado ou do semi
aberto há anos e quando vai olhar, cadê aquela remição da pena? Fizeram aquela remição
do tempo que você produziu pregadores ou de bandeirinhas? Não! Por quê? Porque aquela
firma só pagava o aluguel da cadeia e olha lá.
Então existe as firmas avulsas, de fundo de quintal, as que vão no quintal de uma
penitenciária para conseguir lucrar. Então esses direitos que não são pagos eles usam para
pagar o aluguel do espaço no cadeia. Eles não se importam com quem está sofrendo. E
quando ele sair da cadeia não tem uma firma que aceite seu trabalho aqui fora. Então isso é
muito triste porque você percebe o retorno das pessoas para o cárcere por falta de opção.
É muito difícil porque as pessoas têm preconceito com egressa, pensam que ela não é de
confiança. Primeiro porque já passou na cadeia. Imagina se eu vou colocar uma pessoa que
já assinou um roubo dentro da minha casa. Então a pessoa fica sem opções. Por que uma
cadeia do fechado ou do semiaberto, não constrói essa pessoa para ter um profissão. Eu
vejo que tem no presídio masculino um trampo de ensinar marcenaria, e são poucas
cadeias que fazem isso, e elas são principalmente masculina. As cadeias femininas não tem
tanta opção, deveriam colocar um ensinamento lá dentro. Deveriam colocar SENAI, porque
o SENAI antes era do governo, hoje em dia eu nem sei o que virou, só vejo a cara do Skaf
lá que é um empresário riquíssimo, e antigamente a fatia desse bolo, há muitos anos atrás,
há mais de 50 anos vamos colocar assim, eu sonhava em entrar no SENAI para fazer
secretariado, que coisa louca. Hoje só se eu fosse ser secretária do diabo né mano.
Porque olha só, para pra analisar, hoje em dia nem esse trampo existe direiro. Porque se
extinguiu na face da terra por causa da tecnologia. Era uma coisa que todo pobre fala “Poxa
eu vou entrar lá no SENAI pra eu conseguir ter uma proficiência e sair de lá para uma firma”
Eu acho que é isso que deveria existir na cadeia, por exemplo, fazer uma coisa que daria
continuidade para aquela pessoa, ela é uma boa funcionária, ela chega lá na hora certa e
faz o trampo dela.
Muitas mulheres falavam assim “poxa eu trabalho em uma metalúrgica eu trabalho com uma
pá na mão pra alimentar caldeira pra derreter lá os negócios para fazer os metais
novamente”. Daí ela questionava, "eu gosto de estar naquele inferno quente, porque eles
não querem me dar esse emprego quando eu saio?É mais ou menos perto da minha casa.”
Então eu via que as pessoas até gostariam de dar continuidade naquele trabalho e não é
isso que acontece. A pessoa saiu já era, não vai trabalhar naquela firma mesmo que tenha
ela aqui fora.
Não é só cuidar da pessoa que sai do cárcere, e sim não deixar a pessoa entrar. Deveria
existir mais educação, deveriam ter muito mais escolas com empreendedorismo dentro
tanto das estaduais quanto dás municipais, deveria ter muito mais ensinamento sobre
computadores, sobre tecnologia, e sobretudo, que possa ser uma outra alternativa de vida.