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O negócio da punição, entrevista com Tempestade da Frente pelo

desencarceramento.

Entrevista realizada pela Nathália

43 mil mulheres: Esse é o número aproximado de mulheres encarceradas no Brasil.


Nós acreditamos que abordar questões específicas das prisões femininas é muito
importante, mas é igualmente importante mudar a forma como pensamos o sistema
prisional como um todo. As memórias de Tempestade, por exemplo, revelam as situações
de opressão e exploração das presas. Em 2010​, ​ela foi condenada por tráfico de drogas,
principal crime que tem aumentado a quantidade de mulheres presas no Brasil. Grande
parte das mulheres que cometem o tráfico de drogas não fazem exclusivamente por
motivação econômica, as mulheres também fazem por relações íntimo-afetivas com
familiares ou parceiros. Ainda assim, a maior parte das presas é constituída por pequenas
traficantes, e uma vez presas, são rapidamente substituídas por outras, em um mercado
instável, que se aproveita da vulnerabilidade social de mulheres negras e periféricas.
E apesar da disponibilidade de relatos detalhados da vida em prisões femininas, tem
sido extremamente difícil colocar a centralidade do gênero na compreensão do sistema de
punição. O Brasil encontra-se na terceira posição mundial, ficando atrás apenas dos
Estados Unidos e da China em relação ao tamanho absoluto de sua população prisional
feminina. Só o estado de São Paulo concentra 36% de toda a população prisional feminina
do país, com mais de 15,480 mulheres presas. Esse aumento da taxa de encarceramento
feminino aponta diretamente para a manutenção da prisão no sistema capitalista. Através
da exploração da mão de obra das presas. Para empresas privadas, a mão de obra
prisional é um pote de ouro cheio. Sem greves. Sem organização das trabalhadoras. Sem
plano de saúde, seguro-desemprego ou indenização em casos de acidente. Muitas
empresas agora contam com as prisões como uma importante fonte de lucro.
No dia 21 de dezembro de 2019 encontramos a ​Tempestade na Zona Norte para
conversar sobre a condição da mulher no sistema carcerário. Ela é sobrevivente do sistema
carcerário de São Paulo, e durante o período que esteve presa trabalhou dentro do setor
judiciário da penitenciária de Santana, com intuito de se relacionar com defensores públicos
e conhecer os seus direitos enquanto detenta. Hoje atua principalmente para que as presas
tenham acesso a informação sobre o andamento de seus processos e os seus direitos. Ela
também compõe a Frente Estadual Pelo Desencarceramento em São Paulo, que faz parte
de uma articulação nacional para a abolição do sistema penal.
Representação da obra​ ​Impressão, nascer do sol r​ ealizada em 1872 na França​ por
Claude Monet.

TEMPESTADE: ​Tá vendo aquele quadro pequenininho que tá do lado? É do artista


original, entendeu?​ ​Eu comparando isso com Monet​.
Esse quadro foi feito em Setembro de 2012, enquanto eu estava dentro do semi
aberto. Eu usei principalmente lápis de olho, porque uma menina ruim não quis me
emprestar os negócios, daí eu fiquei tão revoltada que ela não me emprestou, manja essa
fita​? Porque tem muita gente ruim dentro da cadeia. Daí eu peguei essa folha, um negócio
ali e outra aqui, não ficou do jeito que eu queria, mas ficou quase né. ​Está faltando um
pouco de escuro, eu só não vou fazer de novo, porque é uma representatividade de quem
não tinha nada. Usei lápis de olho, batom e um restinho de tinta óleo. Mas olha a minha
cara dura de comparar isso com um Monet, hoje eu dou risada! Foi o que deu pra fazer, e
passou muito rápido, você pensa que demorou quanto tempo? foi uns 15 minutos.

NR: Você pode nos contar um pouco sobre você e sua história dentro da
penitenciária feminina de Santana?

TEMPESTADE: ​Meu nome é Tempestade, eu tenho 68 anos hoje. Cai em cana quando eu
tinha 58 anos. Quando eu entrei eu não sabia nada e queria ir embora, só sabia que queria
ir embora, e achava que era fácil ir embora. Eu era traficante de maconha, só
comercializava maconha e não me sinto uma traficante de maconha.

Quando entrei na cadeia eu não entendia como funciona uma relação de sentença,
eu achava que ia chegar na mesa, falar minha história e ir embora. Então eu achei que no
dia da minha audiência eu vinha embora. Chegou no dia da audiência eu vi que não era
nada disso. Já fazia três meses que eu estava lá na Penitenciária de Santana, quando veio
minha audiência, só depois de 3 meses pra vir o resultado.

Peguei 11 anos de cadeia. Principalmente pra você que não entende nada de
Judiciário, eu achava que ia sair morta da cadeia, que eu não ia mais ter minha vida, e hoje,
graças a Deus eu tô aqui pra contar essa história.
Foi uma história de luta interna comigo mesma, porque até vir uma sentença
declarada. Você vai ficar seis meses esperando aquilo. E dentro desses seis meses, a
pressão psicológica comigo mesma “eu podia não ter feito isso, eu podia tá aqui eu podia tá
lá” era enorme, mas eu não podia mudar nada daquilo. Quando a sentença chegou, era
onze anos, eu falei “não tem como fugir daqui?”
Se eu fizesse um túnel eu ia cair no pavilhão 1, se eu fizesse um túnel do outro lado
eu ia cair no 3, se eu fizesse para trás eu ia cair na cadeia da PFC, se eu fosse trabalhar na
cozinha que a remição é de 30 dias eu ia morrer, eu não ia aguentar. Aí eu fui trabalhar no
judiciário da cadeia pra saber como eu ia sair de lá pela porta da frente. Descobri que eu
tinha que tirar pelo menos uns 5 anos de cadeia, e isso me abalou, mas como eu diria: sou
uma pessoa de muita resistência e luta. Muito antes de cadeia eu já tinha minhas lutas na
época que eu era estudante secundarista, que era contra a ditadura.

NR: Quando você começou a participar da luta pelo desencarceramento?

TEMPESTADE: ​Em 2008, quando eu comecei a trabalhar no setor judiciário dentro da


cadeia. Era pra saber como eu ia embora daquele lugar. Mas a pessoa, quando ela luta por
igualdade social, seja isso na época que for, a injustiça vai incomodar. Então eu comecei a
minha luta pelo desencarceramento já dentro da cadeia, quando eu descobri que todo
mundo ficava na merda. Era muita gente presa. Porque aquela cadeia são três mil presas,
mil em cada pavilhão. 500 mulheres do lado par e 500 mulheres do lado ímpar. Quer dizer,
mil presas, não é brincadeira! Todo dia entrava presa na cadeira, e mesmo assim, o rodízio
de presas que iam para o semiaberto ou ganhava uma liberdade era pouco.
A penitenciária feminina de Santana era masculina e foi desativada e colocada como
feminina. E quando colocaram eles tinham que lotar ela. Então o que foi que aconteceu, a
ROTA (​Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, tropa do Comando Geral da Polícia Militar do
Estado de São Paulo​), saia pelas imediações da Sé, dentro dos bairros e fazia aquele
arrastão para levar as presas direto para a penitenciária de Santana, que estava virando um
Cadeião.
Quando comecei a trabalhar no judiciário passei a ver esse lado político também.
Não tinha emprego para as pessoas, e os empregos que tinham, as estrangeiras
ocupavam. Elas sofriam um abuso maior, porque eram exploradas por não entenderem o
português. E como existiam poucos empregos, as brasileiras sempre dançavam nessa.

E foi aí que começou a minha pequena luta, para conseguir advogadas que
atuassem nos dois presídios, o da PFC (Penitenciária Feminina da Capital) que era das
estrangeiras, e da PFS (Penitenciária Feminina de Santana) que era uma mistura do
caramba. Essa foi minha primeira luta, vamos dizer assim, tirar as estrangeiras da PFS e
levar para a PFC. E a partir desse dia não entrou mais estrangeiras na PFS, porque
politicamente falando “A carne mais barata do mercado é a carne negra”​, mas a carne que
vale dentro do sistema é a carne estrangeira, também é a negra, mas é principalmente a
estrangeira.
Todas as presas de outros países que ficam na cadeia recebem uma ajuda de custo
para aquele presídio que acolhe as estrangeiras. Então na PFS tinha um pavilhão inteiro
ainda em aberto, eles começaram a recolher gente, levando as presas direto do aeroporto
para PFS, até que por uma reclamação elas foram removidas para PFC, então foi a primeira
grande vitória que tive judicialmente.

Quando eu fui pro semi aberto todas as portas em relação ao Judiciário fecharam.
Eu fiquei dois anos no semi aberto e mal sai da temporária. As piores coisas que a gente
imagina acontecem no fechado. ​Alí que o preso chora e a mãe não vê! No semi aberto, a
opressão e tortura psicológica era muito grande, porque você sabe que qualquer
escorregãozinho já perdia as saídas temporárias e regredia para o fechado. As pessoas
aqui de fora, mesmo as famílias acham que o regime semi aberto é um adianto para os
presos. A opressão do dinheiro por exemplo, coloca as presas para trabalhar naquelas
firmas de metalúrgica pesada, de serviço muito rude, eles não pagam a mesma coisa para
uma mulher, ainda mais se for presa. Então não tem um recolhimento de INSS pra você sair
de lá e se aposentar um dia. Que nem, eu trabalhei 5 anos dentro da cadeia por conta e saí
de lá com 450 reais, eles colocam por mês e deixam no seu pecúlio, você só retira quando
ganha liberdade.
Existe muita coisa errada, o povo fala que a escravidão acabou no Brasil, mas não
acabou, no Brasil se você olhar dentro das cadeias, você vê que a escravidão existe, e ela é
muito forte. Eu passei 5 anos dentro do sistema, quase 4 dentro do fechado. E todas as
lutas que eu fiz no fechado eu não olhei pro lado pra vê se eu ia me ferrar. Porque qualquer
coisa que você faça na cadeia, você pode assinar um motim e um motim significa 5 anos de
cana sem direito a bosta nenhuma. Que não deixa de ser o pacote anti crime fake do Moro.
Esse pacote que o ministro ​da justiça quer que seja aprovado, fará que cada preso assuma
um motim, porque um motín você fica cinco anos preso. O que ele quer é que a pessoa
passe mais tempo na prisão para eliminar os benefícios. E o semi aberto ele quer fechar
fechando, jogando a chave no fundo do mar. E nós estamos lutando contra isso, porque
além de ser um acordo totalmente retrógrado, daqui a pouco eles vão colocar até cruz para
crucificar as pessoas. Nós estamos retrocedendo tanto tanto tanto… que é um passo para o
militarismo, é um passo para o suicídio social, nós estamos na beira do abismo. ​E nós
temos que cuidar emocionalmente dessa população porque a gente quer acabar com
o desencarceramento.

NR: Qual trabalho você faz como militante?


TEMPESTADE: O Estado está mais que ruído, temos que fazer nossa própria luta.
Muita gente me pergunta hoje, como eu trabalho no desencarceramento porque eu não
ganho nada com isso. Aliás, eu ganho, porque é um trabalho de formiguinha, e me dá uma
satisfação muito grande no meu ego, então eu sou muito egoísta neste ponto.
Eu faço um trabalho no Butantã com as detentas durante todas as saídas e
entradas. Na saída eu panfleto, abraço e choro pra caramba. Porque elas vêem o meu
trabalho em relação às presas. Quando elas recebem uma carta da defensoria pública
informando quando elas vão pro regime aberto - o dia que elas montam uma liberdade
condicional- com essa carta da defensoria pública ela consegue ser atendida pelo advogado
da FUNAP (​Fundação Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel) ​de dentro do sistema. Então isso
pressiona muito eles a trabalharem. Eu não faço nada, o máximo que faço é pegar o nome
das presas e a sentença, para levar no núcleo da situação carcerária. Porque eles são os
advogados responsáveis por fiscalizar, vamos dizer assim, os advogados da FUNAP,
verificar se eles montam ou não os benefícios para os presos. Existem sistemas e sistemas.
Tem sistema que advogado é advogado, e sistema que o advogado é chefe de
estabelecimento, as vezes não é diretor de presídio, mas o diretor de disciplina que bota o
pé na vida do preso.Um diretor de disciplina dentro de um presídio manda mais que um
diretor normal, porque ele que assinam até sua saída para ir pro médico e para você ir
visitar seu parente que morreu lá nos cafundó do Judas.
Eu faço um questionário com as presas durante a saída temporária, geralmente eu
faço na volta, quando a pessoa está mais suave pra entrar dentro da cadeia, então eu sento
ali e escrevo todo esse questionário com elas. E sempre faço uma pergunta: “​Já morreu
alguém da sua família e não te avisaram?​” “​Te levaram ou não pro enterro?​” A maioria
chora, e fala assim para mim: “​Tempestade já morreu minha mãe, meu irmão, meu filho”​ . ​“E
como você ficou sabendo?” “​ F ​ iquei sabendo através de outra visita; Fiquei sabendo através
de carta, através de carta de outra pessoa, que não era nem pra mim. O sistema mesmo
não me avisou, eu só fiquei sabendo tempos depois.” Isso acontece com parentes diretos,
mãe, pai, filho e filha. Eu fico impressionada e me coloquei essa pergunta: “​Quando vou
conseguir fazer alguma coisa com esse resultado?”,​ porque em 2 anos, parece que é muito,
mas é pouco, são 5 saída por ano, então praticamente eu fiz 10 saídas, ida e volta. Então
foram 20 vezes que eu fui falar com algumas presas e tenho aquele balanço de quantas
pessoas faleceram enquanto a pessoa estava dentro do sistema e não levaram por falta de
gasolina, falta de escolta, eles só avisam quando a família da presa cobra do sistema.

NR: Como funciona o trabalho remunerado dentro da cadeia?


TEMPESTADE: ​O balanço que eu faço em relação aos trabalhos remunerados dentro da
cadeia, é que quem ganha com o trabalho da presa é a firma. A firma não paga condução
pra presa porque ela já está ali. Se a presa atrasa um, se atrasa dois dias, a outra vez é pé
na bunda, porque está cheio de gente que precisa trabalhar também. Outra coisa, a firma
não paga vale alimentação porque tem a comida da cadeia, que é horrível, mas eles deixam
de gastar com isso.

O aluguel de um espaço dentro de uma cadeia é caríssimo. O lugar que eu trabalhei


dentro do Butantã fazendo cúpula de Abajur, com um papel meio duro nós fazíamos flores,
então eram flores secas, um trabalho muito bonito. E naquele lugar, o espaço era uns 4x10.
O aluguel daquele espaço em 2007 era 7 mil reais. ​Agora me pergunta se o encanamento
daquela merda funcionava? ​Estava tudo entupido, tudo ferrado! As presas faziam esse
trampo e machucavam todos os dedos para ganhar menos que um salário mínimo. E se
você ficasse doente não tinha um respaldo de nada do trabalho. Eles faziam isso porque no
semiaberto a pessoa ficava menos tempo, dois anos no máximo.
Eles deixam de recolher os direitos trabalhistas da presa, e quando ela
egressa, cadê o dinheiro? Não tem nenhum fundo de liberdade! E se ela paga
aluguel? Se a família não aceitar ela porque passou pela cadeia? Existe esse vai e
vem da sociedade, não é todo mundo que acolhe preso não! Então existe essa
injustiça muito grande de soltar o presos na ladeira.

NR: Qual a condição da saúde na penitenciária?


TEMPESTADE: Porque a tortura que eu falo é de eles chegarem a desligar a geladeira
para fazer economia de luz, cozinhar menos um feijão para economizar o gás, então fica
duro quase que nem milho. Abrirem a água só por 15 minutos para uma pessoa tomar
banho, e de noite desligam a água, então quem está no semiaberto chega de noite e não
pode tomar banho, e às 5 e meia da manhã já estão levantando pra ir trabalhar, às vezes
numa metalúrgica. Então, tem muito tortura que o povo aqui fora desconhece, então a
visibilidade de dentro da cadeia tem que ser maior. Eu já fui falar na USP, na PUC, já fui
falar com estudante pra xuxu, eu disse que eles não lutam pela classe deles. Então
deveriam fazer curso no último ano dentro de um cárcere para eles entenderem o que é
sofrimento humano, agentes sociais deveriam fazer último ano de estágio dentro do
cárcere, para aprenderem que, não é levando documento para a detenta assinar abrindo
mão do filho, para que ele seja adotado por um gringo. Estudantes de enfermagem
deveriam fazer o mesmo, porque dentro de um presídio pode ter um médico, mas um
médico não vai resolver o problema da presa porque o que resolve o problema dela é
diagnóstico, começa por aí, exame de sangue, exame de urina, exames que buscam
respostas.
​Existe muita contaminação dentro da cadeia em relação a tuberculose, porque
fica todo mundo dentro do mesmo ar, nós podemos ficar conversando horas sobre a
saúde dentro da cadeia.
Na cadeia as presas são obrigadas a tomar Dipirona e Paracetamol para qualquer
doença, porque as não são curadas com os remédio certos, e vão sendo substituídas com
Dipirona e Paracetamol, então a pessoa vai piorando, piorando... “​Foi o que aconteceu com
um senhor, ele ficou 28 anos preso e quando saiu do presídio morreu. Porque ele já estava
em um estágio muito avançado da doença. O câncer não tinha sido diagnóstico e não
estavam curando com nada!​”

NR: Um dos principais livros sobre as Prisioneiras foi escrito pelo Dr. Dráuzio Varella,
que toca a questão da condição das presas, o que você acha dessa figura pública?
TEMPESTADE: Eu acho que as pessoas poderosas que tem um acesso ao sistema já
deveriam lutar por dentro do sistema. Eu adoro o Doutor Drauzio Varella, acho o trabalho
dele incrível, mas se ele quiser colocar os profissionais de saúde dentro de um sistema, ele
colocaria. Porque ele tem esse poder de ser um médico renomado, se ele quiser pode fazer
mutirão de saúde, por exemplo, dentro de toda a cadeia que eu já fiquei, em 5 anos, eu vi
um único mutirão da saúde sendo feito dentro da penitenciária de Santana no ano de 2009,
onde muitas pessoas passaram por um exame de mamografia, inclusive uma amiga minha
detectou um tumor que ela se curou, ela tratou dentro da cadeia e hoje faz apenas, um
acompanhamento preventivo.

Afinal das contas nós temos entre 178 cadeias dentro de São Paulo. É muita cadeia.
Eu acho importante fazer mutirão, mas não um aqui pra tampar peneira. O lado feminino é
muito defasado, a luta por essas mães que tem bebê é difícil. É um sistema opressor que
arranca o filho do peito da mãe, depois de 6 meses de vida eles separam a mãe do filho e
se a criança não tem família vai direto para o abrigo.Eu acho isso desumano, acho que o
Drauzio Varella enquanto médico deveria olhar com mais propriedade política a condição
das presas, existe uma outra grande luta.

Eu acredito que as pessoas podem transformar muitas coisas, a parte da saúde que
acabei de dizer, um só homem Dr. Drauzio por exemplo, ele pode conseguir coisas
absurdas em questão de médicos e remédios porque ele tem acesso. Ele é um homem
conhecido mundialmente que têm essa capacidade, não sei porque ele não fez isso ainda,
talvez não seja ele, mas sim as pessoas que o cercam que levam o barco para outro
campo. ​E eu acho que o barco dele tem que aportar onde ele sempre esteve dentro de
uma cadeia e lutar pela questão da saúde dentro do sistema.

NR: Qual a situação de trabalho durante e depois do cárcere?


TEMPESTADE: ​Vamos dizer assim, pensando o que poderia ser feito. Eu acho que cuidar
da egressa é uma coisa que não fazem, já até citei aqui, que a presa sai e fica na ladeira
porque não tem dinheiro e não tem emprego.
Eu participei de uma roda de conversa com a Gabrielle Nascimento e a jornalista
Regina Volpato no SESC (​Serviço Social do Comércio​) em Santana no mês Abril deste
ano. Eu falei que haviam muitos empregos no comércio que poderiam abrir espaço para
mulheres presas que estão saindo do sistema para trabalhar. Eu achei que tinha “estourado
no norte​”,​ que o SESC logo me chamaria pra dizer que estavam prontos para abrir as portas
das empresas. Mas eu dei uma ideia, que foi um tiro no pé (risos). Lembro que depois de
Abril tinha uma fila enorme de desempregados no Anhangabaú, foi aquela monstruosidade
que todo mundo viu, a quantidade de pessoas procurando emprego em São Paulo. Quer
dizer, mesmo se eu quisesse ou implorasse que o SESC reservasse emprego para as
egressas, entre uma pessoa que saiu da cadeia e uma que nunca tinha passado, eles não
dariam para a egressa. É uma coisa triste de se comparar, mas é verdade.
As pessoas precisam de um emprego remunerado quando saem da cadeia, para
alugar uma casa e comprar alimentos e assim melhorar de vida para não retornar mais ao
cárcere. E as pessoas que retornam, realmente é porque não têm chance de conseguir
emprego aqui fora, é uma coisa impressionante! Outra coisa, o mundo é muito descartável,
eles querem pessoas jovens para trabalhar. Dentro da cadeia além de você bombardear
seu nome, acaba saindo muito defasado e acabado, e você vai competir com uma pessoa
de 20 ou 30 anos aqui fora, já é dificultoso quando a pessoa tem estudo, porque na prisão
não tem.

Então é uma coisa que não deixa de ser como na escravidão, você sai livre sem estar
livre e fica mendigando. ​Mendiga para os parentes, mendiga pela família, mendiga por
sentimentos, e o próprio egresso, não gostam de se unir para lutar pelos que continuam
presos. Não é porque eu sai do cárcere que vou virar as costas e ir embora, como
abandonaria todo mundo lá? Eu não vou fazer mais nada para ajudar esse povo? Eu
faço o que eu posso. Daí todo mundo fala “​Ah, mas isso é muito pouco!”​ Depois de dois
anos fazendo esse trampo, olho pra trás e vejo, que consegui mais de 300 liberdades.
Quando você vê o número todo não é pouco. Não é uma coisa fabulosa, mas é um pouco, e
quando você vê o retorno de uma pequena carta de dentro do sistema, que diz o dia que a
presa vai receber seus direitos, isso é grande!

A maior tortura dentro do cárcere é a falta de informação de quando você vai poder
sair em liberdade. De todas as torturas de comida, de saúde, a maior tortura é não saber
quando vai sair da cadeia. Porque às vezes você trabalha dentro do fechado ou do semi
aberto há anos e quando vai olhar, cadê aquela remição da pena? Fizeram aquela remição
do tempo que você produziu pregadores ou de bandeirinhas? Não! Por quê? Porque aquela
firma só pagava o aluguel da cadeia e olha lá.

A IBRAMED (Indústria Brasileira de Equipamentos Médicos) por exemplo, é a principal firma


que estava dentro da PFC. A IBRAMED é uma firma que produz equipamentos médicos,
entre eles as máscaras e luvas de proteção. A firma funciona na PFC por ser uma cadeia
modelo. É uma coisa bem bizarra vamos dizer assim, porque em vez de firma fundo de
quintal não coloca uma coisa que vão recolher o imposto depois, que pague direito a
pessoa, e que vai recolher seus benefícios com direito a sacar o fundo de garantia quando
sair do cárcere.

Então existe as firmas avulsas, de fundo de quintal, as que vão no quintal de uma
penitenciária para conseguir lucrar. Então esses direitos que não são pagos eles usam para
pagar o aluguel do espaço no cadeia. Eles não se importam com quem está sofrendo. E
quando ele sair da cadeia não tem uma firma que aceite seu trabalho aqui fora. Então isso é
muito triste porque você percebe o retorno das pessoas para o cárcere por falta de opção.
É muito difícil porque as pessoas têm preconceito com egressa, pensam que ela não é de
confiança. Primeiro porque já passou na cadeia. Imagina se eu vou colocar uma pessoa que
já assinou um roubo dentro da minha casa. Então a pessoa fica sem opções. Por que uma
cadeia do fechado ou do semiaberto, não constrói essa pessoa para ter um profissão. Eu
vejo que tem no presídio masculino um trampo de ensinar marcenaria, e são poucas
cadeias que fazem isso, e elas são principalmente masculina. As cadeias femininas não tem
tanta opção, deveriam colocar um ensinamento lá dentro. Deveriam colocar SENAI, porque
o SENAI antes era do governo, hoje em dia eu nem sei o que virou, só vejo a cara do Skaf
lá que é um empresário riquíssimo, e antigamente a fatia desse bolo, há muitos anos atrás,
há mais de 50 anos vamos colocar assim, eu sonhava em entrar no SENAI para fazer
secretariado, que coisa louca. Hoje só se eu fosse ser secretária do diabo né mano.

Porque olha só, para pra analisar, hoje em dia nem esse trampo existe direiro. Porque se
extinguiu na face da terra por causa da tecnologia. Era uma coisa que todo pobre fala “Poxa
eu vou entrar lá no SENAI pra eu conseguir ter uma proficiência e sair de lá para uma firma”
Eu acho que é isso que deveria existir na cadeia, por exemplo, fazer uma coisa que daria
continuidade para aquela pessoa, ela é uma boa funcionária, ela chega lá na hora certa e
faz o trampo dela.

Muitas mulheres falavam assim ​“poxa eu trabalho em uma metalúrgica eu trabalho com uma
pá na mão pra alimentar caldeira pra derreter lá os negócios para fazer os metais
novamente”. Daí ela questionava, "​eu gosto de estar naquele inferno quente, porque eles
não querem me dar esse emprego quando eu saio?É mais ou menos perto da minha casa.”
Então eu via que as pessoas até gostariam de dar continuidade naquele trabalho e não é
isso que acontece. A pessoa saiu já era, não vai trabalhar naquela firma mesmo que tenha
ela aqui fora.

NR: Como desencarcerar?


TEMPESTADE: O desencarceramento não é só desencarcerar a pessoa que está
presa​, é não deixar a pessoa que está fora cair dentro do sistema. E para fazer isso,
você tem que ter trabalho de cultura, você tem que ter um monte de coisa. Espero que até
isso acontecer, a gente não tenha que aceitar 9 jovens e mais 9 jovens perdendo suas vidas
pelo o Estado. Temos que conseguir um espaço cultural dentro do bairro, para as pessoas
se divertirem e terem uma possibilidade maior na vida, sem ser o tráfico, sem ser carrão,
sem ser corrente grossa de ouro no pescoço. E sim qualidade de vida, saneamento básico,
água, luz, um gás mais barato, porque sem comida, sem gás, sem água tratada vamos
cozinhar como?

Não é só cuidar da pessoa que sai do cárcere, e sim não deixar a pessoa entrar. Deveria
existir mais educação, deveriam ter muito mais escolas com empreendedorismo dentro
tanto das estaduais quanto dás municipais, deveria ter muito mais ensinamento sobre
computadores, sobre tecnologia, e sobretudo, que possa ser uma outra alternativa de vida.

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