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Artimanhas da Razão Imperialista 1/8

BOURDIEU, Pierre; WACQUANT, Loïc. Sobre as Artimanhas da Razão


Imperialista. Estud. afro-asiát., Rio de Janeiro , v. 24, n. 1, 2002 . Disponível
em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
546X2002000100002&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 25 ago. 2014.
http://dx.doi.org/10.1590/S0101-546X2002000100002.

O imperialismo cultural repousa públicas (tal como o Adam Smith


no poder de universalizar os Institute e a Fondation Saint-Simon).2 A
particularismos associados a uma neutralização do conceito histórico que
tradição histórica singular, tornando-os resulta da circulação internacional dos
irreconhecíveis como tais.1 Assim, do textos e do esquecimento correlato das
mesmo modo que, no século XIX, um condições históricas de origem produz
certo número de questões ditas uma universalização aparente que vem
filosóficas debatidas como universais, duplicar o trabalho de "teorização".
em toda a Europa e para além dela, Espécie de axiomatização fictícia bem
tinham sua origem, segundo foi muito feita para produzir a ilusão de uma
bem demonstrado por Fritz Ringer, nas gênese pura, o jogo das definições
particularidades (e nos conflitos) prévias e das deduções que visam
históricas próprias do universo singular substituir a contingência das
dos professores universitários alemães necessidades sociológicas negadas pela
(Ringer, 1969), assim também, hoje em aparência da necessidade lógica tende a
dia, numerosos tópicos oriundos ocultar as raízes históricas de um
diretamente de confrontos intelectuais conjunto de questões e de noções que,
associados à particularidade social da segundo o campo de acolhimento, serão
sociedade e das universidades consideradas filosóficas, sociológicas,
americanas impuseram-se, sob formas históricas ou políticas. Assim,
aparentemente desistoricizadas, ao planetarizados, mundializados, no
planeta inteiro. Esses lugares-comuns sentido estritamente geográfico, pelo
no sentido aristotélico de noções ou de desenraizamento, ao mesmo tempo em
teses com as quais se argumenta, mas que desparticularizados pelo efeito de
sobre as quais não se argumenta ou, por falso corte que produz a
outras palavras, esses pressupostos da conceitualização, esses lugares-comuns
discussão que permanecem da grande vulgata planetária
indiscutidos, devem uma parte de sua transformados, aos poucos, pela
força de convicção ao fato de que, insistência midiática em senso comum
circulando de colóquios universitários universal chegam a fazer esquecer que
para livros de sucesso, de revistas semi- têm sua origem nas realidades
eruditas para relatórios de complexas e controvertidas de uma
especialistas, de balanços de comissões sociedade histórica particular,
para capas de magazines, estão constituída tacitamente como modelo e
presentes por toda parte ao mesmo medida de todas as coisas.
tempo, de Berlim a Tóquio e de Milão ao Eis o que se passou, por exemplo,
México, e são sustentados e com o debate impreciso e inconsistente
intermediados de uma forma poderosa em torno do "multiculturalismo", termo
por esses espaços pretensamente que, na Europa, foi utilizado, sobretudo,
neutros como são os organismos para designar o pluralismo cultural na
internacionais (tais como a OCDE ou a esfera cívica, enquanto, nos Estados
Comissão Europeia) e os centros de Unidos, ele remete às sequelas perenes
estudos e assessoria para políticas da exclusão dos negros e à crise da
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mitologia nacional do "sonho economista os efeitos do imperialismo e


americano", correlacionada ao fazer aparecer uma relação de força
crescimento generalizado das transnacional como uma necessidade
desigualdades no decorrer das últimas natural. No termo de uma reviravolta
duas décadas (Massey & Denton, 1996 simbólica baseada na naturalização dos
[1993]; Waters, 1990; Hollinger, 1995; esquemas do pensamento neoliberal,
Hochschild, 1996).3 Crise que o cuja dominação de impôs nos últimos
vocábulo "multicultural" encobre, vinte anos, graças ao trabalho de sapa
confinando-a artificial e exclusivamente dos think tanks conservadores e de seus
ao microcosmo universitário e aliados nos campos político e
expressando-a em um registro jornalístico (Grémion, 1989, 1995;
ostensivamente "étnico" quando, afinal, Smith, 1991; Dixon, 1997), a
ela tem como principal questão, não o remodelagem das relações sociais e das
reconhecimento das culturas práticas culturais das sociedades
marginalizadas pelos cânones avançadas em conformidade com o
acadêmicos, mas o acesso aos padrão norte-americano, apoiado na
instrumentos de (re)produção das pauperização do Estado, da
classes média e superior – na primeira mercantilização dos bens públicos e
fila das quais figura a universidade – em generalização da insegurança social, é
um contexto de descompromisso maciço aceita atualmente com resignação como
e multiforme do Estado.4 o desfecho obrigatório das evoluções
Através desse exemplo, vê-se de nacionais quando não é celebrada com
passagem que, entre os produtos um entusiasmo subserviente que faz
culturais difundidos na escala lembrar estranhamente a "febre" pela
planetária, os mais insidiosos não são as América que, há meio século, o Plano
teorias de aparência sistemática (como Marshall tinha suscitado em uma
o "fim da história" ou a "globalização") e Europa devastada.5
as visões do mundo filosóficas (ou que Um grande número de temas
pretendem ser tais, como o "pós- conexos publicados recentemente sobre
modernismo"), no final das contas, a cena intelectual européia e,
fáceis de serem identificadas; mas singularmente, parisiense,
sobretudo determinados termos atravessaram assim o Atlântico, seja às
isolados com aparência técnica, tais claras, seja por contrabando,
como a "flexibilidade" (ou sua versão favorecendo a volta da influência de que
britânica, a "empregabilidade") que, gozam os produtos da pesquisa
pelo fato de condensarem ou veicularem americana, tais como o "politicamente
uma verdadeira filosofia do indivíduo e correto", utilizado de forma paradoxal,
da organização social, adaptam-se nos meios intelectuais franceses, como
perfeitamente para funcionar como instrumento de reprovação e repressão
verdadeiras palavras de ordem políticas contra qualquer veleidade de subversão,
(no caso concreto: "menos Estado", principalmente feminista ou
redução da cobertura social e aceitação homossexual, ou o pânico moral em
da generalização da precariedade torno da "guetoização" dos bairros ditos
salarial como uma fatalidade, inclusive, "imigrantes", ou ainda o moralismo que
um benefício). se insinua por toda parte através de
Poder-se-ia analisar também em uma visão ética da política, da família
todos os seus detalhes a noção etc., conduzindo a uma espécie de
fortemente polissêmica de despolitização "principielle" dos
"mundialização" que tem como efeito, problemas sociais e políticos, assim
para não dizer função, submergir no desembaraçados de qualquer referência
ecumenismo cultural ou no fatalismo a toda espécie de dominação ou, enfim,
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a oposição que se tornou canônica, nos tão visivelmente absurdas na medida


setores do campo intelectual mais em que obrigam a inventar "holistas-
próximos do jornalismo cultural, entre o individualistas" para enquadrar
"modernismo" e o "pós-modernismo" Humboldt, ou "atomistas-coletivistas"; e
que, baseada em uma releitura eclética, tudo isso expresso em um
sincrética e, na maioria das vezes, extraordinário jargão, em uma terrível
desistoricizada e bastante imprecisa de língua franca internacional, que permite
um pequeno número de autores incluir, sem levá-las em consideração de
franceses e alemães, está em vias de se forma consciente, todas as
impor, em sua forma americana, aos particularidades e os particularismos
próprios europeus.6 associados às tradições filosóficas e
Seria necessário atribuir um lugar políticas nacionais (sendo que alguém
à parte e conferir um desenvolvimento pode escrever liberty entre parênteses
mais importante ao debate que, após a palavra liberdade, mas aceitar
atualmente, opõe os "liberais" aos sem problema determinados
"defensores da comunidade"7 (outros barbarismos conceituais como a
tantos termos diretamente transcritos, e oposição entre o "procedural" e o
não traduzidos, do inglês), ilustração "substancial"). Esse debate e as
exemplar do efeito de falso corte e de "teorias" que ele opõe, e entre as quais
falsa universalização que produz a seria inútil tentar introduzir uma opção
passagem para a ordem do discurso política, devem, sem dúvida, uma parte
com pretensões filosóficas: definições de seu sucesso entre os filósofos,
fundadoras que marcam uma ruptura principalmente conservadores (e, em
aparente com os particularismos especial, católicos), ao fato de que
históricos que permanecem no segundo tendem a reduzir a política à moral: o
plano do pensamento do pensador imenso discurso sabiamente
situado e datado do ponto de vista neutralizado e politicamente
histórico (por exemplo, como será desrealizado que ele suscita veio tomar
possível não ver que, como já foi o lugar da grande tradição alemã da
sugerido muitas vezes, o caráter Antropologia filosófica, palavra nobre e
dogmático da argumentação de Rawls falsamente profunda de denegação
em favor da prioridade das liberdades (Verneinung) que, durante muito tempo,
de base se explica pelo fato de que ele serve de anteparo e obstáculo — por
atribui tacitamente aos parceiros na toda parte em que a filosofia (alemã)
posição original um ideal latente que podia afirmar sua dominação — a
não é outro senão o seu, o de um qualquer análise científica do mundo
professor universitário americano, social.8
apegado a uma visão ideal da Em um campo mais próximo das
democracia americana?) (cf. Hart, realidades políticas, um debate como o
1975); pressupostos antropológicos da "raça" e da identidade dá lugar a
antropologicamente injustificáveis, mas semelhantes intrusões etnocêntricas.
dotados de toda a autoridade social da Uma representação histórica, surgida
teoria econômica neomarginalista à do fato de que a tradição americana
qual são tomados de empréstimo; calca, de maneira arbitrária, a
pretensão à dedução rigorosa que dicotomia entre brancos e negros em
permite encadear formalmente uma realidade infinitamente mais
consequências infalsificáveis sem se complexa, pode até mesmo se impor em
expor, em nenhum momento, à menor países em que os princípios de visão e
refutação empírica; alternativas rituais, divisão, codificados ou práticos, das
e irrisórias, entre atomistas- diferenças étnicas são completamente
individualistas e holistas-coletivistas, e diferentes e em que, como o Brasil,
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ainda eram considerados, Wagley mostrava que a concepção da


recentemente, como contra-exemplos do "raça" nas Américas admite várias
"modelo americano".9 A maior parte das definições, segundo o peso atribuído à
pesquisas recentes sobre a ascendência, à aparência física (que não
desigualdade etno-racial no Brasil, se limita à cor da pele) e ao status
empreendidas por americanos e latino- sociocultural (profissão, montante da
americanos formados nos Estados renda, diplomas, região de origem,
Unidos, esforçam-se em provar que, etc.), em função da história das relações
contrariamente à imagem que os e dos conflitos entre grupos nas
brasileiros têm de sua nação, o país das diversas zonas (Wagley, 1965). Os
"três tristes raças" (indígenas, negros norte-americanos são os únicos a definir
descendentes dos escravos, brancos "raça" a partir somente da ascendência
oriundos da colonização e das vagas de e, exclusivamente, em relação aos afro-
imigração europeias) não é menos americanos: em Chicago, Los Angeles
"racista" do que os outros; além disso, ou Atlanta a pessoa é "negra" não pela
sobre esse capítulo, os brasileiros cor da pele, mas pelo fato de ter um ou
"brancos" nada têm a invejar em relação vários parentes identificados como
aos primos norte-americanos. Ainda negros, isto é, no termo da regressão,
pior, o racismo mascarado à brasileira como escravos. Os Estados Unidos
seria, por definição, mais perverso, já constituem a única sociedade moderna
que dissimulado e negado. É o que a aplicar a one-drop rule e o princípio
pretende, em Orpheus and Power de "hipodescendência", segundo o qual
(1994),10 o cientista político afro- os filhos de uma união mista são,
americano Michael Hanchard: ao automaticamente, situados no grupo
aplicar as categorias raciais norte- inferior (aqui, os negros). No Brasil, a
americanas à situação brasileira, o identidade racial define-se pela
autor erige a história particular do referência a um continuum de "cor",
Movimento em favor dos Direitos Civis isto é, pela aplicação de um princípio
como padrão universal da luta dos flexível ou impreciso que, levando em
grupos de cor oprimidos. Em vez de consideração traços físicos como a
considerar a constituição da ordem textura dos cabelos, a forma dos lábios
etno-racial brasileira em sua lógica e do nariz e a posição de classe
própria, essas pesquisas contentam-se, (principalmente, a renda e a educação),
na maioria das vezes, em substituir, na engendram um grande número de
sua totalidade, o mito nacional da categorias intermediárias (mais de uma
"democracia racial" (tal como é centena foram repertoriadas no censo
mencionada, por exemplo, na obra de de 1980) e não implicam ostracização
Gilberto Freyre, 1978), pelo mito radical nem estigmatização sem
segundo o qual todas as sociedades são remédio. Dão testemunho dessa
"racistas", inclusive aquelas no seio das situação, por exemplo, os índices de
quais parece que, à primeira vista, as segregação exibidos pelas cidades
relações "sociais" são menos distantes e brasileiras, nitidamente inferiores aos
hostis. De utensílio analítico, o conceito das metrópoles norte-americanas, bem
de racismo torna-se um simples como a ausência virtual dessas duas
instrumento de acusação; sob pretexto formas tipicamente norte-americanas de
de ciência, acaba por se consolidar a violência racial como são o linchamento
lógica do processo (garantindo o e a motim urbano (Telles, 1995; Reid,
sucesso de livraria, na falta de um 1992). Pelo contrário, nos Estados
sucesso de estima).11 Unidos não existe categoria que, social
Em um artigo clássico, publicado e legalmente, seja reconhecida como
há trinta anos, o antropólogo Charles "mestiço" (Davis, 1991; Williamson,
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1980). Aí, temos a ver com uma divisão violência simbólica nunca se exerce, de
que se assemelha mais à das castas fato, sem uma forma de cumplicidade
definitivamente definidas e delimitadas (extorquida) daqueles que a sofrem e a
(como prova, a taxa excepcionalmente "globalização" dos temas da doxa social
baixa de intercasamentos: menos de 2% americana ou de sua transcrição, mais
das afro-americanas contraem uniões ou menos sublimada, no discurso semi-
"mistas", em contraposição à metade, erudito não seria possível sem a
aproximadamente, das mulheres de colaboração, consciente ou
origem hispanizante e asiática que o inconsciente, direta ou indiretamente
fazem) que se tenta dissimular, interessada, não só de todos os
submergindo-a pela "globalização" no "passadores" e importadores de
universo das visões diferenciantes. produtos culturais com grife ou
Como explicar que sejam assim dégriffés (editores, diretores de
elevadas, tacitamente, à posição de instituições culturais, museus, óperas,
padrão universal em relação ao qual galerias de arte, revistas etc.) que, no
deve ser analisada e avaliada toda próprio país ou nos países-alvo,
situação de dominação étnica,12 propõem e propagam, multas vezes com
determinadas "teorias" das "relações toda a boa-fé, os produtos culturais
raciais" que são transfigurações americanos, mas também de todas as
conceitualizadas e, incessantemente, instâncias culturais americanas que,
renovadas pelas necessidades da sem estarem explicitamente
atualização, de estereótipos raciais de coordenadas, acompanham, orquestram
uso comum que, em si mesmos, não e, até por vezes, organizam o processo
passam de justificações primárias da de conversão coletiva à nova Meca
dominação dos brancos sobre os simbólica.15
negros?13 O fato de que, no decorrer dos Mas todos esses mecanismos que
últimos anos, a sociodicéia racial (ou têm como efeito favorecer uma
racista) tenha conseguido se verdadeira "globalização" das
"mundializar", perdendo ao mesmo problemáticas americanas, dando,
tempo suas características de discurso assim, razão, em um aspecto, à crença
justificador para uso interno ou local, é, americanocêntrica na "globalização"
sem dúvida, urna das confirmações mais entendida, simplesmente, como
exemplares do império e da influência americanização do mundo ocidental e,
simbólicos que os Estados Unidos aos poucos, de todo o universo, não são
exercem sobre toda espécie de suficientes para explicar a tendência do
produção erudita e, sobretudo, semi- ponto de vista americano, erudito ou
erudita, em particular, através do poder semi-erudito, sobre o mundo, para se
de consagração que esse país detém e impor como ponto de vista universal,
dos benefícios materiais e simbólicos sobretudo quando se trata de questões
que a adesão mais ou menos assumida tais como a da "raça" em que a
ou vergonhosa ao modelo norte- particularidade da situação americana é
americano proporciona aos particularmente flagrante e está
pesquisadores dos países dominados. particularmente longe de ser exemplar.
Com efeito, é possível dizer, com Poder-se-ia ainda invocar,
Thomas Bender, que os produtos da evidentemente, o papel motor que
pesquisa americana adquiriram "uma desempenham as grandes fundações
estatura internacional e um poder de americanas de filantropia e pesquisa na
atração" comparáveis aos "do cinema, difusão da doxa racial norte-americana
da música popular, dos programas de no seio do campo universitário
informática e do basquetebol brasileiro, tanto no plano das
americanos" (Bender, 1997).14 A representações, quanto das práticas.
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Assim, a Fundação Rockefeller financia coletânea de textos sobre as novas


um programa sobre "Raça e Etnicidade" formas de pobreza urbana, na Europa e
na Universidade Federal do Rio de na América, reunidos em 1996 pelo
Janeiro, bem como o Centro de Estudos sociólogo italiano Enzo Mingione, foi
Afro-Asiáticos (e sua revista Estudos dado o título Urban Poverty and the
Afro-Asiáticos) da Universidade Candido Underclass, contra o parecer de seu
Mendes, de maneira a favorecer o responsável e dos diferentes
intercâmbio de pesquisadores e colaboradores, uma vez que toda a obra
estudantes. Para a obtenção de seu tende a demonstrar a vacuidade da
patrocínio, a Fundação impõe como noção de underclass (Backwell chegou
condição que as equipes de pesquisa mesmo a se recusar a colocar o termo
obedeçam aos critérios de affirmative entre aspas).16 Em caso de reticência
action à maneira americana, o que demasiado grande por parte dos
levanta problemas espinhosos já que, autores, Basil Blackwell está em
como se viu, a dicotomia branco/negro é condições de pretender que um título
de aplicação, no mínimo, arriscada na atraente é o único meio de evitar um
sociedade brasileira. preço de venda elevado que, de
Além do papel das fundações qualquer modo, liquidaria o livro em
filantrópicas, deve-se, enfim, colocar questão. É assim que certas decisões de
entre os fatores que contribuem para a pura comercialização editorial orientam
difusão do "pensamento US" nas a pesquisa e o ensino universitários no
ciências sociais a internacionalização da sentido da homogeneização e da
atividade editorial universitária. A submissão às modas oriundas da
integração crescente da edição dos América, quando não acabam por criar,
livros acadêmicos em língua inglesa claramente, determinadas "disciplinas",
(doravante vendidos, frequentemente, tais como os cultural studies, campo
pelas mesmas editoras nos Estados híbrido, nascido nos anos 70 na
Unidos, nos diferentes países da antiga Inglaterra que deve sua difusão
Commonwealth britânica, bem como internacional a uma política de
nos pequenos países poliglotas da União propaganda editorial bem-sucedida.
Européia, tais como a Suécia e a Deste modo, o fato de que essa
Holanda, e nas sociedades submetidas "disciplina" esteja ausente dos campos
mais diretamente à dominação cultural universitário e intelectual franceses não
americana) e o desaparecimento da impediu Routledge de publicar um
fronteira entre atividade editorial compendium intitulado French Cultural
universitária e editoras comerciais Studies, segundo o modelo dos British
contribuíram para encorajar a Cultural Studies (existe também um
circulação de termos, temas e tropos tomo de German Cultural Studies). E
com forte divulgação prevista ou pode-se predizer que, em virtude do
constatada que, por ricochete, devem princípio de partenogênese étnico-
seu poder de atração ao simples fato de editorial em voga atualmente, ver-se-á
sua ampla difusão. Por exemplo, a em breve aparecer uma manual de
grande editora semicomercial, semi- French Arab Cultural Studies que venha
universitária (designada pelos anglo- a constituir o par simétrico de seu
saxões como crossover press), Basil primo do além-Mancha, Black British
Blackwell, não hesita em impor a seus Cultural Studies, publicado em 1997.
autores determinados títulos em Mas todos esses fatores reunidos
consonância com esse novo senso não podem justificar completamente a
comum planetário para a instalação do hegemonia que a produção exerce sobre
qual ela tem dado sua contribuição sob o mercado mundial. É a razão pela qual
pretexto de repercuti-lo. Assim, à é necessário levar em consideração o
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papel de alguns dos responsáveis pelas fazer referência a uma nova posição na
estratégias de import-export conceitual estrutura do espaço social urbano
mistificadores mistificados que podem quando seus colegas americanos ouvem
veicular, sem seu conhecimento, a parte falar de "under" pensam em uma
oculta — e, muitas vezes, maldita — dos cambada de pobres perigosos e imorais,
produtos culturais que fazem circular. tudo isso sob uma óptica
Com efeito, o que pensar desses deliberadamente vitoriana e racistóide.
pesquisadores americanos que vão ao No entanto, Paul Peterson, professor de
Brasil encorajar os líderes do ciência política em Harvard e diretor do
Movimento Negro a adotar as táticas do "Comitê de pesquisas sobre underclass
movimento afro-americano de defesa urbana" do Social Science Research
dos direitos civis e denunciar a Council (também financiado pelas
categoria pardo (termo intermediário Fundações Rockefeller e Ford), não
entre branco e preto que designa as deixa subsistir qualquer equívoco
pessoas de aparência física mista) a fim quando, com o seu aval, resume os
de mobilizar todos os brasileiros de ensinamentos extraídos de um grande
ascendência africana a partir de uma colóquio sobre a underclass realizado,
oposição dicotômica entre "afro- em 1990, em Chicago, nestes termos
brasileiros" e "brancos" no preciso que não tem necessidade de qualquer
momento em que, nos Estados Unidos, comentário: "O sufixo 'class' é o
os indivíduos de origem mista se componente menos interessante da
mobilizam a fim de que o Estado palavra. Embora implique uma relação
americano (a começar pelos Institutos entre dois grupos sociais, os termos
de Recenseamento) reconheça, dessas relações permanecem
oficialmente, os americanos "mestiços", indeterminados enquanto não for
deixando de os classificar à força sob a acrescentada a palavra mais familiar
etiqueta exclusiva de "negro"? 'under'. Esta sugere algo de baixo, vil,
(Spencer, 1997; DaCosta, 1998). passivo, resignado e, ao mesmo tempo,
Semelhantes constatações nos algo de vergonhoso, perigoso,
autorizam a pensar que a descoberta disruptivo, sombrio, maléfico, inclusive,
tão recente quanto repentina da demoníaco. E, além desses tributos
"globalização da raça" (Winant, 1994 e pessoais, ela implica a idéia de
1995) resulta, não de uma brusca submissão, subordinação e miséria"
convergência dos modos de dominação (Jenks e Peterson, 1991:3).
etno-racial nos diferentes países, mas Em cada campo intelectual
antes da quase universalização do follk racional, existem "passadores" (por
concept norte-americano de "raça" sob vezes, um só; outras vezes, vários) que
o efeito da exportação mundial das retomam esse mito erudito e
categorias eruditas americanas. reformulam nesses termos alienados a
Poder-se-ia fazer a mesma questão das relações entre pobreza,
demonstração a propósito da difusão imigração e segregação em seus países.
internacional do verdadeiro-falso Assim, já não é possível contar o
conceito de underclass que, por um número de artigos e obras que têm
efeito de allodoxia transcontinental, foi como objetivo provar – ou negar, o que
importado pelos sociólogos do velho acaba sendo a mesma coisa – com uma
continente desejosos de conseguirem bela aplicação positivista, a "existência"
uma segunda juventude intelectual desse "grupo" em tal sociedade, cidade
surfando na onda da popularidade dos ou bairro, a partir de indicadores
conceitos made in USA.17 Para avançar empíricos na maioria das vezes mal
rápido, os pesquisadores europeus construídos e mal correlacionados entre
ouvem falar de "classe" e acreditam si (cf., entre muitos, Rodant, 1992;
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Dangschat, 1994; Whelm, 1996). Ora, científica e, a outras, um tema


colocar a questão de saber se existe politicamente compensador (Wacquant,
uma underclass (termo que alguns 1996b). Inapto e inepto no caso
sociólogos franceses não hesitaram em americano, o conceito de importação
traduzir por "subclasse", na expectativa, não traz nada ao conhecimento das
sem dúvida, de introduzir o conceito de sociedades europeias. Com efeito, os
sub-homens) em Londres, Lyon, Leiden instrumentos e as modalidades do
ou Lisboa é pressupor, no mínimo, por governo da miséria estão longe de ser
um lado, que o termo é dotado de uma idênticos, dos dois lados do Atlântico,
certa consistência analítica e, por outro, sem falar das divisões étnicas e de seu
que tal "grupo" existe realmente nos estatuto político.19 Segue-se que, nos
Estados Unidos.18 Ora a noção Estados Unidos, a definição e o
semijornalística e semierudita de tratamento reservados às "populações
underclass é desprovida não só de com problemas" diferem dos que são
coerência semântica, mas também de adotados pelos diversos países do Velho
existência social. As populações Mundo. E, sem dúvida, o mais
heteróclitas que os pesquisadores extraordinário é que, segundo um
americanos colocam, habitualmente, paradoxo já encontrado a propósito de
sob esse termo – beneficiários da outros falsos conceitos da vulgata
assistência social, desempregados mundializada, essa noção de underclass
crônicos, mães solteiras, famílias que nos chega na América surgiu na
monoparentais, rejeitados do sistema Europa, bem como a de gueto que ela
escolar, criminosos e membros de tem por função ocultar em razão da
gangues, drogados e sem teto, quando severa censura política que, nos Estado
não são todos os habitantes do gueto Unidos, pesa sobre a pesquisa a
sem distinção – devem sua inclusão respeito da desigualdade urbana e
nessa categoria "fourre-tout" ao fato de racial. Com efeito, tal noção tinha sido
que são percebidas como outros tantos forjada, nos anos 60, a partir da palavra
desmentidos vivos do "sonho sueca onderklass, pelo economista
americano" de sucesso individual. O Gunnar Myrdal. Mas sua intenção era,
"conceito" aparentado de "exclusão" é nesse caso, descrever o processo de
comumente empregado, na França e em marginalização dos segmentos
certo número de outros países europeus inferiores da classe operária dos países
(principalmente, sob a influência da ricos para criticar a ideologia do
Comissão Européia), na fronteira dos aburguesamento generalizado das
campos político, jornalístico e científico, sociedades capitalistas (Myrdal, 1963).
com funções similares de Vê-se como o desvio pela América pode
desistoricização e despolitização. Isso transformar uma ideia: de um conceito
dá uma ideia da inanidade da operação estrutural que visava colocar em
que consiste em retraduzir uma noção questão a representação dominante
inexistente por uma outra mais do que surgiu uma categoria behaviorista
incerta (Herpin, 1993). recortada sob medida para reforçá-la,
Com efeito, a underclass não imputando aos comportamentos "anti-
passa de um grupo fictício, produzido socais" dos mais desmunidos a
no papel pelas práticas de classificação responsabilidade por sua despossessão.
dos eruditos, jornalistas e outros Esses mal-entendidos devem-se,
especialistas em gestão dos pobres em parte, ao fato de que os
(negros urbanos) que comungam da "passadores" transatlânticos dos
crença em sua existência porque tal diversos campos intelectuais
grupo é constituído para voltar a dar a importadores, que produzem,
algumas pessoas uma legitimidade reproduzem e fazem circular todos
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esses (falsos) problemas, retirando de europeu), contribuem, de maneira


passagem sua pequena parte de particularmente paradoxal, para a
benefício material ou simbólico, estão imposição de uma visão do mundo que
expostos, pelo fato de sua posição e de está longe de ser incompatível, apesar
seus habitus eruditos e políticos, a uma das aparências, com as que produzem e
dupla heteronomia. Por um lado, olham veiculam os grandes think tanks
em direção da América, suposto núcleo internacionais, mais ou menos
da (pós)"modernidade" social e diretamente plugados às esferas do
científica, mas eles próprios são poder econômico e político.
dependentes dos pesquisadores Quanto aos que, nos Estados
americanos que exportam para o Unidos, estão comprometidos, muitas
exterior determinados produtos vezes sem seu conhecimento, nessa
intelectuais (muitas vezes, nem tão imensa operação internacional de
frescos) já que, em geral, não têm import-export cultural, eles ocupam, em
conhecimento direto e específico das sua maioria, uma posição dominada no
instituições e da cultura americanas. campo do poder americano, e até
Por outro lado, inclinam-se para o mesmo, muitas vezes, no campo
jornalismo, para as seduções que ele intelectual. Do mesmo modo que os
propõe e os sucessos imediatos que produtores da grande indústria cultural
proporciona, e, ao mesmo tempo, para americana como o jazz ou o rap, ou as
os temas que afloram na interseção dos modas de vestuário e alimentares mais
campos midiático e político, portanto, comuns, como o jeans, devem uma parte
no ponto de rendimento máximo sobre o da sedução quase universal que
mercado exterior (como seria mostrado exercem sobre a juventude ao fato de
por um recenseamento das resenhas que são produzidas e utilizadas por
complacentes que seus trabalhos minorias dominadas (Fantasia, 1994),
recebem nas revistas em voga). Daí, sua assim também os tópicos da nova
predileção por problemáticas soft, nem vulgata mundial tiram, sem dúvida, uma
verdadeiramente jornalísticas (estão boa parte de sua eficácia simbólica do
guarnecidas com conceitos), nem fato de que, utilizados por especialistas
completamente eruditas (orgulham-se de disciplinas percebidas como
por estarem em simbiose com "o ponto marginais e subversivas, tais como os
de vista dos atores") que não passam da cultural studies, os minority studies, os
retradução semi-erudita dos problemas gay studies ou os women studies, eles
sociais do momento em um idioma assumem, por exemplo, aos olhos dos
importado dos Estados Unidos escritores das antigas colônias
(etnicidade, identidade, minorias, europeias, a aparência de mensagens de
comunidade, fragmentação, etc.) e que libertação. Com efeito, o imperialismo
se sucedem segundo uma ordem e ritmo cultural (americano ou outro) há de se
ditados pela mídia: juventude dos impor sempre melhor quando é servido
subúrbios, xenofobia da classe operária por intelectuais progressistas (ou "de
em declínio, desajustamento dos cor", no caso da desigualdade racial),
estudantes secundaristas e pouco suspeitos, aparentemente, de
universitários, violências urbanas, etc. promover os interesses hegemônicos de
Esses sociólogos-jornalistas, sempre um país contra o qual esgrimem com a
prontos a comentar os "fatos de arma da crítica social. Assim, os
sociedade", em uma linguagem, ao diversos artigos que compõem o número
mesmo tempo, acessível e "modernista", de verão de 1996 da revista Dissent,
portanto, muitas vezes, percebida como órgão da "velha esquerda" democrática
vagamente progressista em referência de Nova York, consagrado às "Minorias
aos "arcaísmos" do velho pensamento em luta no planeta: direitos,
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esperanças, ameaças", projetam sobre a ciência social nacionais estão de acordo


humanidade inteira, com a boa em situá-lo, isto é, na fluidez de uma
consciência humanista característica de ordem social que oferece oportunidades
certa esquerda acadêmica, não só o extraordinárias (principalmente, em
senso comum liberal norte-americano, comparação com as estruturas sociais
mas a noção de minority (seria rígidas do velho continente) à
necessário conservar sempre a palavra mobilidade: os estudos comparativos
inglesa para lembrar que se trata de um mais rigorosos estão de acordo em
conceito nativo importado na teoria — e concluir que, neste aspecto, os Estados
ainda aí, originário da Europa) que Unidos não diferem fundamentalmente
pressupõe aquilo mesmo cuja existência das outras nações industrializadas
real ou possível deveria ser quando, afinal, o leque das
demonstrada, 20
a saber: categorias desigualdades é aí nitidamente mais
recortadas no seio de determinado aberto.21 Se os Estados Unidos são
Estado-nação a partir de traços realmente excepcionais, segundo a
"culturais" ou "étnicos" têm, enquanto velha temática tocquevilliana,
tais, o desejo e o direito de exigir um incansavelmente retomada e
reconhecimento cívico e político. Ora, periodicamente reatualizada, é antes de
as formas sob as quais os indivíduos tudo pelo dualismo rígido das divisões
procuram fazer reconhecer sua da ordem social. É ainda mais por sua
existência e seu pertencimento pelo capacidade para impor como universal o
Estado variam segundo os lugares e os que têm de mais particular, ao mesmo
momentos em função das tradições tempo em que fazem passar por
históricas e constituem sempre um excepcional o que têm de mais comum.
motivo de lutas na história. É assim que Se é verdade que a
uma análise comparativa deshistoricização que resulta quase
aparentemente rigorosa e generosa inevitavelmente da migração das ideias
pode contribuir, sem que seus autores através das fronteiras nacionais é um
tenham consciência disso, para fazer dos fatores de desrealização e de falsa
aparecer como universal uma universalização (por exemplo, com os
problemática feita por e para "falsos amigos" teóricos), então somente
americanos. uma verdadeira história da gênese das
Chega-se, assim, a um duplo ideias sobre o mundo social, associada a
paradoxo. Na luta pelo monopólio da uma análise dos mecanismos sociais da
produção da visão do mundo social circulação internacional dessas ideias,
universalmente reconhecida como poderia conduzir os eruditos, tanto
universal, na qual os Estados Unidos nesse campo quanto alhures, a um
ocupam atualmente uma posição controle mais aperfeiçoado dos
eminente, inclusive dominante, esse instrumentos com os quais argumentam
país é realmente excepcional, mas seu sem ficarem inquietos, de antemão, em
excepcionalismo não se situa argumentar a propósito dos mesmos.2
exatamente onde a sociologia e a
2

NOTAS
1. Para evitar qualquer mal-entendido – e afastar a 2. Entre os livros que dão testemunho dessa
acusação de "antiamericanismo" – é preferível macdonaldização rampante do pensamento, pode-se
afirmar, de saída, que nada é mais universal do que a citar a jeremiada elitista de A. Bloom (1987),
pretensão ao universal ou, mais precisamente, à traduzida imediatamente para o francês, pela editora
universalização de uma visão particular do mundo; Julliard, com o título L'Âme Désarmée (1987) e o
além disso, a demonstração esboçada aqui será panfleto enraivecido do imigrante indiano
válida, mutatis mutandis, para outros campos e neoconservador (e biógrafo de Reagan), membro do
países (principalmente, a França: cf. Bourdieu, 1992). Manhattan Institute, D. DiSouza (1991), traduzido
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para o francês com o título L'Éducation contre les Propriedades Universais daqueles que dominam
Libertés (1993). Um dos melhores indícios para simbolicamente um universo (cf. Casanova, 1997).
identificar as obras que participam desta nova doxa 13. James McKee demonstra, a uma só vez, em sua
intelectual com pretensão planetária é a celeridade, obra-mestra (1993), por um lado, que essas teorias
absolutamente inabitual, com a qual são traduzidas e com pretensões científicas retomam a estereótipo da
publicadas no exterior (sobretudo, em comparação inferioridade cultural dos negros e, por outro, que
com as obras científicas). Para uma visão nativa de elas se revelaram singularmente inaptas para
conjunto dos sucessos e fracassos dos professores predizer e depois explicar a mobilização negra do
universitários americanos, atualmente, ver o recente após-guerra e os motins raciais dos anos 60.
número de Daedalus consagrado a "The American 14. Sobre a importação da temática do gueto no
Academic Profession" (1997), principalmente B. recente debate em torno da cidade e de seus males,
Clark, "Small Worlds, Different Worlds: The Wacquant (1992).
Uniqueness and Troubles of American Academic 15. Uma descrição exemplar do processo de
Professions" (pp. 21-42), e P. Altbach, "An transferência do poder de consagração de Paris para
International Academic Crisis? The American Nova York, em matéria de arte de vanguarda,
Professoriate in Comparative Perpspective" (pp. 315- encontra-se no livro clássico de Serge Guilbaut
338). (1983).
3. Para uma análise de conjunto dessas questões que, 16. Não se trata de um incidente isolado: no momento
com justeza, coloca em evidência sua ancoragem e em que este artigo vai para o prelo, a mesma editora
recorrências históricas, ver Lacorne (1997). empreendeu um combate furioso comos urbanólogos
4. Sobre o imperativo de reconhecimento cultural, Ronald van Kempen e Peter Marcuse, a fim de que
ver Taylor (1994) e os textos coletados e estes modifiquem o título de sua obra coletiva, The
apresentados por T. Goldberg (1994); sobre os Partitioned City, para Globalizing Cities.
entraves às estratégias de perpetuação da classe 17. Como tinha sido observado, há alguns anos, por
média nos Estados Unidos, cf. Wacquant (1996a); o John Wastergaard em sua alocução diante da British
profundo mal-estar da classe média americana é bem Sociological Association (Wastergaard, 1992).
descrito em Newman (1993). 18. Tendo sentido muita dificuldade para arguir uma
5. Sobre a "mundialização" como "projeto evidência, ou seja, o fato de que o conceito de
americano", cf. Fligstein (1997); sobre o fascínio underclass não se aplica às cidades francesas,
ambivalente pela América no período após a guerra, Cyprien Avend aceita e reforça a idéia preconcebida
ver Boltanski (1981) e Kuisel (1993). segundo a qual ele seria operatório nos Estados
6. Não se trata do único caso em que, por um Unidos (cf. Avend, 1997).
paradoxo que manifesta um dos efeitos mais típicos 19. Essas diferenças estão enraizadas em profundos
da dominação simbólica, um certo número de tópicos pedestais históricos, como indica a leitura comparada
que os Estados Unidos exportam e impõem em todo o dos trabalhos de Giovanna Procacci (1993) e Michael
universo, a começar pela Europa, foram tomados de Katz (1997).
empréstimo a esses mesmos que os recebem como as 20. O problema da língua, evocado de passagem, é
formas mais avançadas da teoria. um dos mais espinhosos. Tendo conhecimento das
7. Para uma bibliografia do imenso debate, ver precauções tomadas pelos etnólogos na introdução de
Philosophy & Social Criticism, vol. 14, nº 3-4, 1988, palavras nativas, e embora também sejam conhecidos
número especial – Universalism vs. todos os benefícios simbólicos fornecidos por esse
Communitarianism: Contemporary Debates in Ethics. verniz de modernity, podemos nos surpreender que
8. Desse ponto de vista, aviltadamenle sociológico, o determinados profissionais das ciências sociais
diálogo entre Rawls e Habermas — a respeito dos povoem sua linguagem científica com tantos "falsos
quais não é exagerado afirmar que, em relação à amigos" teóricos baseados no simples decalque
tradição filosófica, são bastante equivalentes — é lexicológico (minority, minoridade; profession,
altamente significativo (cf., por exemplo, profissão liberal, etc.) sem observar que essas
Habermas,1995). palavras morfologicamente gêmeas estão separadas
9. Segundo o estudo clássico de Carl Degler, Neither por toda a diferença existente entre a sistema social
Black Nor White (1995), publicado pela primeira vez no qual foram produzidas e o novo sistema no qual
em 1974. estão sendo introduzidas. Os mais expostos à fallacy
10. Um poderoso antídoto ao veneno etnocêntrico do "falso amigo" são, evidentemente, os ingleses
sobre esse tema encontra-se na obra de Anthony porque, aparentemente, falam a mesma língua, mas
Marx (1998), que demonstra que as divisões raciais também porque, na maioria das vezes, tendo
são estreitamente tributárias da história política e aprendido a sociologia em manuais, readers e livros
ideológica do país considerado, sendo que cada americanos, não têm grande coisa a opor, salvo uma
Estado fabrica, de alguma forma, a concepção de extrema vigilância epistemológico-politica, à invasão
"raça" que lhe convém. conceitual. (É claro, existem pólos de resistência
11. Quando será publicado um livro intitulado "O declarada à hegemonia americana, como, por
Brasil Racista" segundo o modelo da obra com o título exemplo, no caso dos estudos étnicos, em torno da
cientificamente inqualificável, "La France Raciste", de revista Ethnic and Racial Studies, dirigida por Martin
um sociólogo francês mais atento às expectativas do Bulmer, e do grupo de estudos do racismo e das
campo jornalístico do que às complexidades da migrações de Robert Miles na Universidade de
realidade? Glasgow; no entanto, esses paradigmas alternativos,
12. Esse estatuto de padrão universal, de "meridiano preocupados em levar plenamente em consideração
de Greenwich" em relação ao qual são avaliados os as especificidades da ordem britânica, não se definem
avanços e os atrasos, os "arcaísmos" e os menos por oposição às concepções americanas e seus
"modernismos" (a vanguarda), é uma das derivados britânicos.) Segue-se que a Inglaterra está
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estruturalmente predisposta a servir de cavalo de 22. Em uma obra essencial para avaliar plenamente
Tróia pelo qual as noções do senso comum erudito não só a partede inconsciente histórico que, sob uma
americano penetram no campo intelectual europeu forma mais ou menos irreconhecível e reprimida,
(isto é válido tanto em matéria intelectual, quanto em sobrevive nas problemáticas eruditas de um país,
política econômica e social). É na Inglaterra que a mastambém o peso histórico que dá ao imperialismo
ação das fundações conservadoras e dos intelectuais- acadêmico americano uma parte de sua
mercenários está estabelecida há mais tempo e é a extraordinária forçade imposição, Dorothy Ross
mais apoiada e compensadora. Dão testemunho dessa revela como as ciências sociais americanas
situação a difusão do mito erudito da underclass na (economia, sociologia, ciência política e psicologia)
sequência de intervenções ultramidiatizadas de seconstruíram, de saída, apartir de dois dogmas
Charles Murray, especialista do Manhattan Institute complementares constitutivos da doxa nacional,
e guru intelectual da direita libertária dos Estados asaber: o "individualismo metafísico" e aidéia de uma
unidos, e de seu par simétrico, ou seja, o tema da oposição diametralentre o dinamismo e aflexibilidade
"dependência" dos desfavorecidos em relação às da "nova" ordem social americana, porum lado, e,por
ajudas sociais que, segundo proposta de Tony Blair, outro, aestagnação e arigidez das "velhasformações
devem ser reduzidas drasticamente a fim de sociais européias" (Ross, 1991). Dois dogmas
"libertar" os pobres da "sujeição" da assistência, fundadores cujas retraduções diretas se encontram,
como foi feito por Clinton em relação aos primos da em relação ao primeiro, na linguagem
América no verão de 1996. ostensivelmente depurada da teoria sociológica com
21. Cf. em particular Erickson & Goldthorpe (1992); atentativa canônica de Talcott Parsons de elaborar
Erik Olin Wright (1997) chega ao mesmo resultado uma "teoria voluntarista da ação" e, mais
com uma metodologia sensivelmente diferente; sobre recentemente, na ressurgência da teoria dita da
os determinantes políticos da escala das escolha racional; e, em relação aosegundo, na "teoria
desigualdades nos Estados Unidos e de seu da modernização" que reinou sem partilhas sobre o
crescimento durante as últimas duas décadas, estudo da mudança societal nas três décadas após a
Fischer et alii (1996). Segunda Guerra Mundial e que, atualmente, faz um
retorno inesperado nos estudos pós-soviéticos
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