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Ecoa o pedido de D.
Atravessando, pisei na lama sem querer. Tentando correr antes do sinal fechar.
A lama suja e líquida do Rio, esgoto e lama, que mancha. Que mancha. Lama-sangue
que o chinelo espirra. Lama-sangue de todos os cadáveres esquecidos soterrados pela
beleza cega, surda e muda da cidade. Lama-sangue que cola na batata da perna, nos
dedos do pé, na alma.
Atravessei toda aquela lama-sangue que cobre os pés, as pernas e toda essa cidade.
Todo o sangue que escorre dos morros e das ladeiras dessa cidade e se mistura com a
lama-esgoto das ruas, das esquinas, dos comércios, dos mercados, das valas, das areias
brancas cheias de graça. “Lava o pé na torneirinha do play”. A lama-sangue que cola na
sola de todos os pés.
Demolição.
Como se começa e como se esquece?
Como se desmancha?
Como se grita?
Travessia. Desmemória.
Há 20 anos, estava lá, naquela aldeia.
Em junho
Achei a foto
dela
Beri na beira do rio
com a mãe
Lembrei dela. Beri. Beri sorrindo, no alto da árvore.
Achava que tinha esquecido.
Não dela Beri, mas da memória dela, da irmã dela, da mãe dela, do pai, do irmão dela,
da aldeia, do Rio Javaés rasinho no verão, das travessias a pé, espantando as arraias com
um pau, das expedições a cavalo, dos lagos, das praias de areia branca, dos jacarés
boiando, do gado, do sol implacável do cerrado. Do sorriso dela. De toda a violência
que já cercava aquelas terras, há quantos? Vinte e tantos anos atrás. Do gado. Do arroz.
Do milho. Da colheitadeira. Da poeira da estrada. Das pontes. Da chuva, da lama.
O sangue
O soterramento do corpo
Demolição.
Estupros. Estupros.
O sorriso dela
O sorriso da Beri
O sorriso da Beri
O sorriso dela
O Txuirí estava lá. Beri estava lá. A irmã estava lá. E a mãe, também.
Beri cresceu. Casou. Foi mãe, três vezes.
E chorou.
Corre, Beri!
Ele vem com raiva!
A menina Beri que não largava do meu pé. A curiosidade insaciável de Beri. A Beri que
lia meus cadernos de campo. Onde eu ia ela ia, abrindo os caminhos, os emaranhados de
cercas, levantando os arames farpados, pequena desbravadora de quintais. Pendurada no
meu colo, Beri. Gargalhávamos atravessando o rio contra a corrente para tomar guaraná.
O guaraná, o orelhão, a travessia, a estrada. O pau que espanta as arraias no leito do rio
raso. As risadas de Beri e de D. O banho de rio. O Rio Javaés.
Corre, Beri!
Que ele vem aí!
Nunca mais vi
o lugar onde Beri chorou.
Suas águas mansas e rasas no verão.
A outra margem do rio, para aonde atravessávamos.
A praia de areia branca.
Grita, Beri!
O verão.
A travessia.
As arraias.
A correnteza.
A alegria.
Beri.
O terror.
Sem grito.
ninguém ouve,
ninguém vê, ninguém fala
Do outro lado, os brancos.
O orelhão.
A venda.
O guaraná.
Do outro lado, os tori.
O chute
A estrada. A porteira.
A garrafa.
O tum-tum-tum.
O troféu.
O gado.
O curral.
A lama.
O chão
O chinelo
O sangue
O fígado atravessado pela dor
A lama
O arame farpado
O golpe na cabeça
O chute na barriga
O fígado
A lama no pé
O sangue
O chão
Demolição.
pequena atravessadora de rios,
o que subsiste nas ruínas do (seu) mundo?
Beriaru
na beira do rio
seu sorriso
a praia de areia branca
a travessia
a dor
a lama
o túmulo
O lugar onde Txuirí chorou.
Para Beriaru Javaé, assassinada em 16 dezembro de 2016.