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A SAÚDE NA PANDEMIA NA ERA BOLSONARO

No dia 23 de abril o inimaginável aconteceu. Na verdade, inimaginável em outras


épocas, mas não na era Bolsonaro. Naquela tarde quente de Campo Grande Paulo Ghiraldelli
me chamou para ler uma notícia: o Conselho Federal de Medicina (CFM) divulgou um parecer
(nº04/2020) no qual autorizou o uso de hidroxicloroquina (HDX) para o tratamento do COVID-
19, mesmo sem evidências sólidas que embasassem a decisão. A própria autarquia e o
presidente do CFM lembraram da falta de comprovação científica. Aliás, um estudo sobre o
assunto1, na época, foi interrompido, pois o grupo de pacientes que tomou a HDX apresentou
maior mortalidade. Nos resta a pergunta: Qual o sentido disso? O que fez a entidade médica
mais importante do país autorizar essa droga?

O sentido foi o de abaixar a cabeça para a ideologia do presidente Jair Messias


Bolsonaro. Na manhã do mesmo dia houve uma reunião entre o chefe do executivo, o ministro
da saúde e o presidente do CFM, e então o que era consenso no mundo todo foi abandonado
pelo CFM. A boa prática médica foi desconsiderada. O FDA e as recomendações da OMS
deixaram de valer. O Conselho Federal de Medicina passou a obedecer ao comando do segundo
maior “tosco” da República (Bolsonaro disse que era Mourão o mais tosco!). O presidente vinha
defendendo que o isolamento social, pedido por especialistas de todo mundo, era uma “medida
histérica” que atrapalhava a economia do país. Assim, havendo um remédio mágico para a
doença, o trabalhador poderia voltar às ruas e o Estado não precisaria ajudá-lo. A benção do
CFM lhe foi de extrema valia.

Houve reação dos médicos quando o conselho de maior importância para a profissão foi
maculado por uma ideologia genocida?

Parece que a covardia se apoderou da classe médica. Notei isso quando deixaram
Drauzio Varella ser atacado em cadeia nacional e não vieram em defesa do colega; quando
deixaram o Bolsonaro fritar o então ministro da Saúde Henrique Mandetta; quando o “gabinete
do ódio”2 começou a atacar os colegas da Fiocruz; quando não reagiram ao desmanche do
ministério da Saúde(MS). Se eu disser que houve um silêncio generalizado estaria mentindo,
mas a resposta foi fraca e sem união, e, diga-se de passagem, com aquela isenção política típica
dos que não entendem o conceito de biopolítica e biopoder3 inerentes a uma pandemia. Alguns
pediram em suas redes sociais que as pessoas ficassem em casa, outros elogiaram o Mandetta,
mas nada falaram do cerne do problema, nada a respeito de políticas públicas, e poucos4
lembraram que o maior inimigo dos médicos e dos brasileiros era o próprio presidente, que
iniciou sua marcha em favor do coronavírus dia 24 de março.

Será que as confrarias de séculos, pelas quais a prática médica surgiu e se


institucionalizou, não significaram nada? Será que os médicos não perceberam que eles tinham
grande força em um momento de pandemia? Talvez a história da ciência brasileira não esqueça
esse silêncio. Alguns órgãos, a exemplo do Instituto Questão de Ciência chegaram a enviar cartas
à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa

1
O Estudo que posteriormente será atacado pelo Planalto
https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.04.07.20056424v2
2
“Gabinete do ódio”: título dado pela impressa ao se referir da máquina criada para disseminar notícias
falsas e pejorativas.
3
Vide capítulo tal
4
O neurologista Miguel Nicolellis referiu-se ao Presidente Bolsonaro como um Pandemônio, que nos
atrasava em meio a pandemia.
(CONEP) e ao Ministério da Saúde (MS) alertando as crescentes evidências que a droga não tinha
eficácia. Aliás, avisaram mais, que a droga colocava em risco a vida dos pacientes com COVID-
195. Será que apoiamos como deveríamos os gladiadores da ciência no país, que apesar das
constantes agressões continuaram sua luta? O silêncio desse momento era o grito mais alto que
um profissional, com responsabilidade ao diploma, poderia dar!

De certo, a opinião médica durante essa pandemia tinha “algum” valor, ou seja, nós da
área da saúde tínhamos tudo para ter lutado e defendido nossas instituições, nosso ministério
e nossos médicos naquilo que tinham de postura e ética médicas. Digo isso pois algumas
atitudes do ex-ministro Henrique Mandetta foram, de fato, as atitudes que um médico, frente
ao ministério, tomaria. Outras eram execráveis, vindas do mais podre jogo político, como a de
permanecer no cargo, mesmo as custas da ruína do MS. Fato que ficou evidente no episódio do
dia 25 de março, em pronunciamento coletivo para a imprensa. Henrique Mandetta tentou ao
máximo racionalizar o discurso do presidente, falando de isolamento vertical (depois mudou de
opinião), elogiando Bolsonaro em sua fala da noite anterior, coisa que nenhuma associação
médica conseguiu fazer. Inclusive, a Sociedade Brasileira de Infectologia foi a primeira a vir a
público (25/03) com uma nota que, veementemente, discordava do discurso e da postura
presidencial; atitude oposta à tomada pelo ministro.

Para esclarecer o início do fim de Mandetta no ministério da Saúde, temos que voltar à
noite do dia 24 de março.

Nessa noite ocorreu o pronunciamento do presidente da República em rede nacional.


Jair Messias Bolsonaro fez um ataque frontal ao MS e suas decisões técnicas, que na época
recebia atenção e elogios do mundo todo. Ao atacar a pasta ele também atacou a Organização
Mundial de Saúde (OMS) e a boa prática científica, uma vez que o Brasil vinha se guiando por
elas. É que para Bolsonaro uma pandemia, capaz de mudar os paradigmas da história, deixando
um rastro de mortes, não poderia ter mais atenção que o próprio presidente, não poderia roubar
seus holofotes.

De fato, o nosso país estava atento às orientações do ministério da Saúde. Começamos


bem o isolamento social em março e estávamos a cada dia com maior adesão, até a data
cabalística que coincide com o discurso do excelentíssimo.

Você pode estar se perguntando: por que em meio ao caos do governo Bolsonaro e ao
caos que se instalou em outros ministérios o problema da COVID-19 no Brasil conseguiu ser bem
encaminhado na pasta da Saúde? A resposta é que tínhamos competentes médicos e
profissionais da área em cargos importantes no ministério da Saúde, atentos desde 31 de
dezembro, quando foi notificado o primeiro caso à OMS de uma “pneumonia atípica” na China.
Foi dia 23 de janeiro a primeira vez que o ministério se pronunciou acerca do coronavírus, e nos
esclareceram tudo que sabiam da doença até o momento. Isso ocorreu na voz do dr. Júlio Croda,
o então diretor do Departamento de Vigilância em Saúde e Doenças Infecto Parasitárias. Foi uma
verdadeira aula aos jornalistas. Croda é um infectologista, foi meu professor na faculdade de
medicina da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Foi ele e sua equipe os primeiros
responsáveis a enfrentar o problema. Foram os elaboradores dos protocolos iniciais e os que
ensinaram os passos que deveriam ser tomados dali em diante.

5
Natalia Pasternak e Carlos Orsi, “CFM abandona médicos que seguem a ciência à própria sorte”.
Disponível em: https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/index.php/artigo/2020/04/23/cfm-
abandona-medicos-que-seguem-ciencia-propria-sorte Acesso em: 23/04/2020
No final de janeiro havia muito desespero, alguns jornalistas confundiram casos
suspeitos com confirmados e alarmaram a população. Havia medo e desconhecimento por parte
das pessoas e dos próprios profissionais de saúde. Porém, o ministério iniciou um ótimo trabalho
de educação em saúde, com pronunciamentos transmitidos ao vivo em redes sociais
cotidianamente e notícias atualizadas em seu site. Estávamos adiantados em relação ao vírus,
uma prova disso foi a ativação no Centro de Operações de Emergência nível 1 (COE) em janeiro.
Para título de esclarecimento: o COE é ativado quando uma secretaria chama outras da pasta,
secretarias de saúde estaduais e órgãos como a Anvisa para um trabalho em conjunto.
Inicialmente poderia ser um problema do Departamento de Vigilância em Saúde e Doenças
Infecto Parasitárias, mas a partir daquele momento passou a ser um problema de todos.

Não era histeria, era o trabalho profissional de preparação para a chegada iminente do
vírus que, enfim, chegou. Ao final de fevereiro, no dia 26, o MS confirmou o primeiro caso
brasileiro. Continuou analisando todas as notificações e trabalhando junto às secretarias
estaduais e municipais em uma força tarefa para conter a doença, até sugerir o isolamento
social, que se deu na segunda quinzena de março.

Eram sete horas da manhã de uma segunda-feira, dia 16 de março, e notei uma
aglomeração em uma parte do hospital universitário em que eu estava. Houve um problema
com o agendamento, o ambulatório geral tinha pegado fogo na última sexta-feira. Os pacientes
deveriam ter tido seus horários remarcados, o que evidentemente não havia ocorrido. Onde eu
estava havia um corredor com mais de 50 pessoas, a maioria de pé. Profissionais de saúde,
demais trabalhadores do hospital e acadêmicos, transitando e trabalhando por ali. A situação
foi, depois de algum tempo, regularizada. Mas aquilo já era um alerta: será que o nosso SUS
sucateado, com suas filas enormes, com falta de equipamento e mão de obra, aguentaria uma
pandemia avassaladora? Enquanto isso, os jornais do mesmo dia noticiavam 2158 mortes
confirmadas na Itália pelo novo coronavírus.

Não imaginava que já na terça-feira minha vida começaria a ficar diferente. De um dia
para o outro a faculdade de medicina pediu para os alunos não aparecerem no ambulatório na
manhã seguinte. Dia 17 já não fui mais à universidade, todas as federais fecharam suas portas.
Em sequência vieram as escolas estaduais e municipais. Nesse período a Itália mostrava ao
mundo o perigo de atrasar o isolamento social. Meus plantões na UPA e SAMU foram
cancelados; não podiam mais gastar EPIS com os alunos. Aquelas máscaras que usávamos, até
então despreocupadamente quanto ao seu número, de repente se mostraram um utensílio
muito valioso, fariam uma falta vital em nosso país. Evidentemente os internos (acadêmicos do
5º e 6º ano de medicina) não pararam, estavam mais avançados no curso, e um hospital precisa
de seus residentes e internos.

Dia 18 de março: já eram 2978 o número de mortos na Itália. A curva logarítmica, que
pensei ter esquecido lá nas aulas de matemática do ensino médio, apareceu. Para nossa
infelicidade sua ordenada significava vidas interrompidas. No dia do primeiro pronunciamento
oficial de Jair Bolsonaro sobre o tema, já tínhamos 6820 corpos desalmados, apenas na
península itálica. Antes do fim de março o rastro de destruição que passou por aquele país já
havia ceifado 12428 vidas. Assim, a Itália perplexa chorou. A nação se arrependeu de subestimar
a peste.

Por incrível que pareça, frente a essa dor da humanidade, frente a algo que nos atingiu
frontalmente, a autoridade maior brasileira referiu-se à peste como uma “gripezinha”. Ele, o
presidente, no dia 24 de março, já tinha suficiente informação para saber que o vírus não estava
para brincadeira. Era contagioso e vinha para testar nossos sistemas de saúde. Colapsando-os,
derrotando-os um por um, até a da mais rica metrópole estadunidense, Nova York. Todos se
ajoelharam: um simples pedaço de RNA nos havia vencido.

O Covid-19 é uma doença que pode matar por asfixia. Eis uma das razões pelas quais os
sistemas de saúde colapsaram. Eram necessário ventiladores mecânicos para uma parcela dos
pacientes sintomáticos graves.

Diga-se de passagem, os médicos sabem o protocolo, os medicamentos e


procedimentos que precisam seguir para casos de Síndrome do Desconforto Respiratório Agudo
(SDRA), ninguém estava deixando ninguém morrer. Porém, efetivamente, não existia – como
não existe até o momento em que escrevo – um remédio capaz de derrotar o vírus. Contudo,
nosso Capitão Corona6 tinha a solução, com o seu pseudodiploma de médico, passou a receitar.
Até o coronel Homero de Giorge Cerqueira, presidente do Instituto Chico Mendes, veio a público
informar que seguiu os conselhos do capitão. Tomou hidroxicloroquina. E o General Heleno,
ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) se deu alta do hospital depois do
pronunciamento do presidente, e foi infestar o mundo, cada vez que abria a boca, com novos
milhões de RNAs mortíferos.

A prova que tínhamos uma família genocida na presidência se deu com uma propaganda
do Planalto divulgada em massa no dia 27 de março. O primogênito do clã, senador Flávio
Bolsonaro deu o chute inicial na campanha o #BrasilNaoPodeParar. Depois daquilo iniciou-se
algo bizarro. Bolsonaristas fanáticos organizaram carreatas e manifestações a favor do vírus, ou
melhor, pedindo o fim do isolamento social. Sendo que, até aquele momento, não havia
impedimento legal, por parte de ação dos governadores, quanto à circulação de cidadãos.

Tudo isso se fez mais ou menos em um espaço de uma semana. O tempo necessário
para desmanchar o trabalho de meses do MS e iniciar sua ruína. O último dos ministérios que
ainda tentava funcionar adequadamente estava com os dias contados. Foi suficiente esses
poucos dias para preparar o óleo no qual Mandetta seria frito nas semanas subsequentes.

Ocorreu um verdadeiro êxodo da equipe técnica do MS durante esse período. Começou


no dia 25 de março, Júlio Croda, diretor de departamento, deixou o ministério. Ele percebeu,
como outros depois dele, que a ideologia bolsonarista atrapalharia a luta contra a peste. É inútil
varrer papéis em uma ventania. É inútil lavar o carro na chuva. Assim como é inútil escrever
protocolos pedindo isolamento, quando em rede nacional o chefe do executivo fala contra seu
trabalho de especialista.

Atenção aqui ao fato de que é a ideologia e não a política que atrapalhou o trabalho
científico-médico. Sem política não há SUS, não há políticas públicas de saúde e nem há vida em
sociedade. Nossa civilização ocidental nasceu da polis, sendo impossível tirá-la do nosso
cotidiano. Uma política bem feita pode, a exemplo de outros país, ser a chave para achatar a
curva de infectados. Se política não é a mesma coisa que partido, então os médicos não precisam
ter medo de usar essa palavra. Devemos e podemos utilizá-la em favor da saúde pública. Dia 24
de março já lembrava, em meu canal “Todos pela Saúde”7, que os conselhos médicos de lavar
as mãos e de pedir a quarentena, não seriam suficientes para conter o avanço do vírus. Sem a

6
Vide explicação no capítulo tal
7
O canal “Todos pela Saúde” foi criado em 2019. Iniciado para servir ao proposito de educação em
saúde e divulgação científica. Não possuindo nenhuma relação com o banco Itaú que iniciou uma
campanha de mesmo nome.
atuação do Estado seria impossível conter a pandemia. Primeiro que são cerca de 35 milhões de
brasileiros sem acesso a água tratada. Metade da população não tem acesso aos serviços de
coleta de esgoto. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostram que
1.935 municípios brasileiros, ou 34,7% do total, ainda registram epidemias ou endemias
relacionadas à falta ou à deficiência de saneamento básico.

Será que preciso lembrar das favelas? É impossível uma família de sete pessoas ficar ao
mesmo tempo em um único cômodo. E Quando sua janela dá para o interior da casa do vizinho?
Que tipo de isolamento seria esse? Lembrando esses fatos, dia 25 de março, Drauzio Varella em
seu canal no Youtube, além de desmentir o discurso do presidente, salientando a importância
de ficar em casa, nos lembrou que os conselhos médicos seriam insuficientes. Ele disse que o
Brasil estava atrasadíssimo nas medidas de controle pandêmico. Expos que há semanas o Estado
já deveria estar na favela entregando cestas básicas e resolvendo o problema da água. Alguns
dias antes o filósofo Paulo Ghiraldelli8 nos lembrou também dos escritos de Byung Chul Han9.
Este filósofo sul-coreano escreveu como o país dele lidou com o novo vírus. Seria uma
interessante solução para o Brasil imitar algumas medidas tomadas na Coréia-Sul. Lá havia
regiões que se assemelhavam as condições de vida das favelas brasileiras. Se a quarentena é
difícil/impossível em uma favela, então, os moradores suspeitos e contaminados deveriam ser
retirados pelo poder público. Deveriam ter uma estadia a parte. Assim a mazela não acometeria
milhares de pessoas ao mesmo tempo.

Desse modo, o trabalho do MS seja qual for já era insuficiente em um país tão desigual
como nosso. Precisávamos, efetivamente, dos políticos, dos governadores, dos deputados, dos
vereadores e senadores, enfim, todos aqueles que são pagos com dinheiro público. Naquele
momento não poderiam faltar diante das necessidades da população. Então, qual a utilidade
de isenção política médica se uma pandemia é toda biopolítica³? Ah, Esqueci! Na verdade, de
isento o CFM não tinha nada quando aceitou a ideologia presidencial. Se nosso compromisso
primeiro é a saúde, qualquer um que tomasse uma postura anticientífica deveria receber uma
admoestação, no mínimo. O silêncio custa vidas.

Já que o assunto é a aceitação da ideologia bolsonariana, Mandetta deveria ter sido


firme e no dia 25 não poderia ter amenizado seu discurso. Será que ele não conhecia realmente
o chefe para quem trabalhava? Será que ele não percebeu que um homem, no qual o “guru” é
um tipo como Olavo de Carvalho, não poderia conciliar com argumentos racionais? Será que não
percebia a impossibilidade de tentar qualquer diálogo lógico com o chefe? Olavo dizia que o
vírus não existia, e isso em meio a pandemia. O próprio Youtube retirou alguns vídeos dele, pois
ameaçavam a vida. Nem é preciso lembrar que o bastião da pseudociência e do anti-
intelectualismo, o desescolarizado Olavo de Carvalho, fazia ataques ao Drauzio Varella, lutava
em favor do câncer – defendendo os interesses da indústria tabagista e falava em favor do lucro
de caixões infantis, uma vez que defendia campanhas antivacinação. Mas não era de se espantar
que o Capitão Corona escutasse esse tipo de discurso.

Muitos acharam que seria o fim de Bolsonaro, quando ele atacou mais diretamente o
ministério mais popular e importante do momento. O presidente prometeu, dia 24/03, que
conversaria com Mandetta e iria “dobrá-lo”. O Capitão conseguiu o que queria. Longe de ser seu
fim, ele interferiu quanto quis no trabalho do MS. Como um “imperadorzinho” ia as reuniões
para dizer seus gostos à pasta da Saúde. Nas reuniões, concordava com algumas pautas e no dia

8
9
Escreveu entre outros a “Sociedade do cansaço”
seguinte discordava publicamente. Fez o ministério engolir sua cloroquina. Assim, saiu um
protocolo estapafúrdio do MS no dia 7 de abril. Na ocasião, os únicos dois estudos sobre a droga
eram inconclusivos, aliás, um deles era evidentemente uma fraude científica 10.Depois que fritou
e dourou bem Henrique Mandetta, Bolsonaro o exonerou dia 15 abril. Nós estávamos, a essa
altura, com uma equipe técnica impedida de trabalhar corretamente. Era como se tivéssemos
soldados lutando uma guerra, só que com os braços presos para trás e de olhos vendados.
Parece que era o próprio coronavírus que tinha a caneta no Brasil.

O “segundo maior tosco” do Brasil não parou com seus pronunciamentos oficiais
criminosos. Além disso, em meio ao isolamento social, o presidente começou a sair às ruas,
causando aglomerações e as incentivando. Desprezava as máscaras e falava contra as
orientações do MS sempre que podia. No momento em que escrevo, Jair Bolsonaro continua
com as mesmas práticas de produção de aglomerações. Enfim, uma série de crimes contra a
humanidade foi cometido em pouco tempo por esse homem. Nenhum júri e nenhuma sentença
seriam suficientes para reverter o mal que foi feito. Nada irá devolver as vidas que foram
ceifadas com sua política de extermínio. Mas, certamente, isso não tira a necessidade de um
julgamento, inclusive, em tribunal internacional.

Nenhuma exceção ou tentativa de racionalização podia ser feita daqueles discursos do


presidente. O papel da política é fundamental para que a saúde possa se desenvolver. Aos que
achavam que de um lado estava a área técnica e de outro a política, esse vírus nos ensinou
algumas lições: a lição de que cada política pública assumida implicaria em um número diferente
de internações e de mortes; a lição que precisamos de mais “Drauzios” lutando pelo SUS, falando
dos problemas decorrentes da desigualdade social e como isso interfere no trabalho médico.
Enquanto ficarmos curando doenças em consultórios e hospitais vamos falhar miseravelmente.
Talvez tenha passado da hora de ouvirmos mais os sanitaristas.

Já que deixei claro a importância da política em uma pandemia, tenho de imputar ao


Governo Federal a responsabilidade para com as mortes que viriam em abril. Elas efetivamente
vieram.

Dia 28/04: tínhamos 72.899 casos confirmados e mais de 5 mil indivíduos mortos. Nesse
dia os jornalistas confrontaram o chefe do Executivo sobre os dados do país. E tivemos mais uma
amostra do sarcasmo de Bolsonaro e sua desconsideração para com a vida da nação. A resposta
foi: “O que eu tenho a ver com isso?” “E daí!?” “Sou Messias, mas não faço milagre”. Realmente,
o que poderia um presidente ter a ver com o seu país?

Não teremos chances contra a peste enquanto tivermos um Capitão Corona no governo
do Brasil. Como diria o neurologista Miguel Nicollelis, não dá para nós lutarmos contra uma
pandemia e um pandemônio ao mesmo tempo!

Mariangela Cabelo 22 anos, medicina UFMS - 29 de Abril de 2020

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