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24.1 DEFINIÇÃO
A doença diarreica na infância é um importante e extenso capítulo
das afecções pediátricas. Segundo a Organização Mundial da
Saúde (OMS), a diarreia pode ser definida como o aumento do
número de evacuações, sendo no mínimo três, em um período de
24 horas, com diminuição da consistência das fezes.
Em recém-nascidos e lactentes jovens, o conceito de diarreia
deve ser aplicado com muito cuidado. Nessa população,
amamentada exclusivamente ao seio, fezes amolecidas e,
eventualmente líquidas, e evacuações após cada mamada são
eventos normais e esperados. Esses bebês podem chegar a
evacuar de 8 a 10 vezes por dia, sem que isso signifique diarreia.
Portanto, é importante saber o hábito intestinal normal da criança.
24.2 CLASSIFICAÇÃO QUANTO À
DURAÇÃO
24.2.1 Diarreia aguda
É
É definida como diarreia que pode durar até 14 dias e determina a
perda de volumes e fluidos, podendo levar à desidratação. Pode
ser causada por bactérias, protozoários ou, na maioria das vezes,
vírus, com má absorção e/ou secreção de água e eletrólitos.
Grande parte dos casos tem evolução autolimitada e benigna.
24.2.2 Diarreia aguda com sangue — Disenteria
É caracterizada pela presença de sangue nas fezes. Representa
lesão na mucosa intestinal e pode associar-se com infecção
sistêmica e outras complicações, incluindo desidratação.
Bactérias do gênero Shigella são os principais agentes
etiológicos.
24.2.3 Diarreia persistente
É definida como aquela que se origina de episódio de diarreia
aguda, de etiologia presumivelmente infecciosa, prolongando-se
por mais de 14 dias, levando à instabilidade hidroeletrolítica e ao
comprometimento do estado geral e nutricional, principalmente
em lactentes.
24.2.3 Diarreia crônica
É a diarreia com duração superior a 30 dias ou a ocorrência de
três episódios no período de 60 dias, consequente ao maior
conteúdo de água fecal, associada ou não à síndrome de má
absorção.
24.3 DIARREIA AGUDA
24.3.1 Epidemiologia
A Doença Diarreica Aguda (DDA) continua a ser uma das
principais causas de morbimortalidade infantil nos países em
desenvolvimento, além de estar intimamente ligada a más
condições econômicas, culturais, higiênicas e de saneamento
básico. São reportados, anualmente, 1 bilhão de casos da doença
e cerca de 3 a 5 milhões de mortes em menores de 5 anos, de
acordo com as estimativas da OMS. Em países em
desenvolvimento, crianças menores de 5 anos podem apresentar
de três a cinco episódios diarreicos por ano.
No Brasil, acomete 16 milhões de indivíduos menores de 5 anos. A
taxa de mortalidade é de aproximadamente 20 para cada 1.000
nascidos vivos, e há grande variação desses índices de acordo
com as regiões do país. No Norte e no Nordeste, a taxa de
mortalidade infantil anual por DDA situa-se em torno de 30%; no
Sul e no Sudeste, entre 2,7 e 5%.
Embora a doença diarreica ocorra em todas as idades, atinge
principalmente os menores de 5 anos, sendo este também o
grupo de maior risco. Os lactentes jovens, precocemente
desmamados, com quadros graves que requerem hospitalização,
constituem o principal grupo de risco para o desenvolvimento de
complicações — distúrbios hidroeletrolíticos e acidobásicos,
intolerância alimentar, diarreia persistente, agravo nutricional e
infecções extraintestinais. Crianças menores de 5 anos,
desnutridos ou em situação nutricional de risco, populações de
periferia, que habitam áreas sem saneamento básico ou moradias
insalubres, completam o grupo de maior risco para as
complicações da DDA. Diarreia mata por desidratação e causa
morbidade considerável por desnutrição.
Diante das elevadas taxas de mortalidade determinadas pela
DDA, estudos epidemiológicos elegeram os principais agravantes,
que são fatores de risco para a mortalidade.
▶ Fatores agravantes:
▶ Baixo peso ao nascer;
▶ Desidratação grave;
▶ Desnutrição grave;
▶ Lactente jovem;
▶ Febre elevada;
▶ Pneumonia;
▶ Pais com baixo grau de instrução.
24.3.2 Epidemiologia
A desidratação tem especial importância nos primeiros meses de
vida porque o corpo humano é mais suscetível às perdas hídricas
nessa faixa etária. Isso pode ser observado considerando que a
proporção de água corpórea no período neonatal é de 80%,
permanecendo 50% no espaço extracelular.
No adulto, a proporção de água corpórea situa-se em torno de
60%, e 20% permanece no espaço extracelular. O balanço
hidroeletrolítico é mantido pelo equilíbrio entre ingestão e perdas.
As perdas podem ser:
▶ Insensíveis: pele, respiração e metabolismo fisiológicos — 50
mL/100 kcal metabolizados;
▶ Renais: variam conforme o volume de solutos a serem
excretados — concentração urinária;
▶ Fecais: desprezíveis em condições normais — 10 g/kg/d.
Entretanto, quando ocorre processo diarreico, a perda fecal de
água e de eletrólitos pode ser muito intensa; nos casos graves,
chega a volumes fecais de até 200 g/kg/d com perdas de sódio
de 100 mEq/kg/d. A hipernatremia subestima a desidratação,
enquanto na hiponatremia os sinais de desidratação são
evidentes precocemente. O cálculo da osmolaridade plasmática é
realizado por meio da fórmula (2x Na) + (glicose/18), e o valor
normal varia entre 285 e 295 mOsm/kg.
Figura 24.1 Comparação da distribuição dos eletrólitos no plasma, no meio
intersticial e no meio intracelular de uma célula muscular
24.3.3.3 Parasitas
#importante
De acordo com a OMS, o paciente com
diarreia pode ser classificado quanto a
seu grau de hidratação em hidratado,
desidratado e desidratado grave. Deverá
receber como plano de tratamento,
respectivamente, o plano A, B e C.
#importante
São duas as recomendações da
Organização Mundial da Saúde para a
TRO: prevenção da desidratação e
correção da desidratação.
#importante
Deve-se suspender a dieta, exceto o
aleitamento materno, durante as horas
de reidratação oral.
Regra de Holliday-Segar:
▶ Até 10 kg — 100 kcal/kg/d;
▶ 10 a 20 kg — 1.000 kcal + 50 kcal/kg acima de 10 kg;
▶ 20 kg a 1.500 kcal + 20 kcal/kg acima de 20 kg.
Para cada 100 kcal, utilizam-se:
▶ 100 mL de água;
▶ Sódio de 3 a 3,5 mEq;
▶ Potássio de 2,5 mEq;
▶ 8 g de glicose.
Para a fase de manutenção, em nenhuma diretriz analisada para a
composição do documento científico de diarreia aguda da
Sociedade Brasileira de Pediatria foi recomendado o uso de
solução isotônica com 154 mmol/L de sódio.
É importante ressaltar, no entanto, que várias instituições no
Brasil consideram o soro isotônico como o padrão-ouro para
compor o soro de manutenção.
24.5.2.3 Fase de reposição
Acrescenta-se, ainda, um volume que visa cobrir as perdas
gastrintestinais. Reposição das perdas — em 24 horas — volume
de água.
▶ De 20 a 30 mL/kg representa perda leve;
▶ De 40 a 60 mL/kg representa perda moderada;
▶ De 70 a 100 mL/kg representa perda grave.
Nas perdas moderada e grave, o sódio deve ser ofertado em
maior quantidade para evitar a hiponatremia.
▶ Nas perdas moderadas, utilizar Na = 5 mEq/kcal;
▶ Nas perdas graves, utilizar Na = 7 mEq/kcal.
24.5.3 Alimentação
▶ Manter a alimentação habitual da criança, que poderá ter menor
ingesta por causa do quadro;
▶ Não realizar dieta durante a diarreia;
▶ Não diluir alimentos — inclusive o leite de vaca;
▶ Não restringir gordura — alto teor calórico;
▶ Não oferecer líquidos como bebidas à base de cola, chás, suco
de maçã, caldo de galinha e bebidas isotônicas, pois podem piorar
a diarreia por carga osmótica;
▶ O aleitamento materno deve ser mantido e incentivado no caso
dos lactentes amamentados ao seio materno.
24.5.4 Antieméticos
A utilização deve ser parcimoniosa e restrita, pois, na maioria dos
casos, a hidratação por si melhora a intensidade dos vômitos. No
Atenção Integrada às Doenças Prevalentes na Infância (AIDPI,
2017), já consta a indicação do uso de ondansetrona na dose de
0,15 mg/kg nos casos de desidratação leve ou moderada com
vômitos durante o plano B.
24.5.5 Antiespasmódicos e antidiarreicos
O uso é contraindicado, pois, além de não oferecer benefícios na
evolução do processo, pode causar complicações.
Antiespasmódicos e drogas que interferem na motilidade
intestinal são contraindicadas a crianças, já que inibem o
peristaltismo, prejudicando a remoção do enteropatógeno e
predispondo a complicações como íleo paralítico, distensão
abdominal e perfuração intestinal. Os adstringentes atuam
apenas como cosméticos sobre as fezes, aumentando sua
consistência, mas podem aumentar a perda fecal de sódio e
potássio.
24.5.6 Probióticos e zinco
O uso de probióticos tem mostrado efeito mais promissor
mediante melhor balanço microbiano intestinal. Entre eles, os
probióticos com grau de evidência I-A para redução de tempo,
gravidade e recorrência da diarreia são Saccharomyces boulardii
e Lactobacillus rhamnosus GG. Diversos estudos têm mostrado
que a suplementação de zinco diminui a gravidade e a duração do
quadro diarreico, bem como a ocorrência de novos episódios nos
meses subsequentes. Dessa forma, a OMS e o Ministério de
Saúde recomendam o uso de zinco para crianças com diarreia, na
dose de 10, em lactentes menores de 6 meses, a 20 mg/d, em
lactentes a partir de 6 meses de idade até os 5 anos.
24.5.7 Antibioticoterapia
O uso de antibióticos restringe-se a situações especiais, como:
▶ Diarreia causada pelo Vibrio cholerae;
▶ Evolução para quadro séptico;
▶ Imunodeprimidos;
▶ Doença prolongada e debilitante.
O uso indiscriminado de antibióticos pode alterar a flora intestinal,
determinando a evolução para diarreia prolongada ou colite
pseudomembranosa. De acordo com o documento científico do
Departamento de Gastroenterologia da Sociedade Brasileira de
Pediatria, publicado em março de 2017, os seguintes antibióticos
são indicados:
▶ A primeira escolha é o ciprofloxacino, com dose em crianças em
15 mg/kg, 2x/d, por três dias; em adultos, 500 mg 2x/d por três
dias;
▶ Como segunda escolha, pode ser adotada a recomendação da
ESPGHAN11, com azitromicina, 10 a 12 mg/kg no primeiro dia e 5
a 6 mg/kg por mais quatro dias, via oral, para o tratamento dos
casos de diarreia por Shigella — casos suspeitos ou comprovados;
▶ Ceftriaxona, 50 a 100 mg/kg IV por dia por três a cinco dias nos
casos graves que requerem hospitalização. Outra opção é a
cefotaxima, 100 mg/kg dividida em quatro doses.
Já no AIDPI (2017), manual adotado pelo Ministério da Saúde para
tratamento das doenças mais comuns em crianças menores de 5
anos, a orientação é que a primeira opção de antibiótico seja a
ceftriaxona na dose de 50 mg/kg/d IM por três dias, e a segunda
opção, sulfametoxazol-trimetoprima, 40 mg/kg/d durante cinco
dias. No mesmo texto, recomenda-se checar o perfil de
resistência da Shigella da região antes de escolher o melhor
antibiótico, pois um levantamento da literatura mostrou que, em
algumas regiões do Brasil, as amostras de Shigella testadas
apresentaram alta taxa de resistência ao sulfametoxazol-
trimetoprima e apresentam boa sensibilidade ao ciprofloxacino e
à ceftriaxona.
Lembrar-se do uso de metronidazol, de 15 a 30 mg/kg/d, a cada
12 horas, durante cinco dias, na suspeita de giardíase ou de
amebíase.
24.5.8 Avaliação laboratorial
Habitualmente, as desidratações leves e moderadas submetidas
à TRO com sucesso não necessitam de exames laboratoriais.
Naquelas em que houve insucesso da TRO ou nas desidratações
graves, a investigação laboratorial torna-se necessária para
determinar a estratégia terapêutica. O objetivo da avaliação
laboratorial é definir a natureza e quantificar a intensidade dos
distúrbios eletrolíticos.
Em casos graves de desidratação, os exames que devem ser
solicitados em uma primeira abordagem são dosagem de
eletrólitos —s ódio, potássio, cloro —, gasometria arterial ou
venosa — para avaliar se há acidose metabólica — e dosagem de
ureia e creatinina. Outros exames podem ser solicitados de
acordo com cada caso. A prioridade inicial é análise de gasometria
e eletrólitos e não de hemograma e Proteína C-Reativa (PCR).
24.5.9 Profilaxia
Hábitos de higiene pessoal, aleitamento materno, educação e
saneamento básico ainda são as melhores armas contra a DDA.
A partir de 2006, foi implantada no Brasil a vacina antirrotavírus.
Trata-se de uma vacina composta por vírus atenuado com
cobertura para o sorotipo G1P[8]. É administrada por via oral em
duas doses, a primeira aos 2 e a segunda aos 4 meses, devendo
ser mantido um intervalo mínimo de 30 dias entre elas. É
contraindicada a crianças com imunodepressão severa ou
histórico de invaginação intestinal ou ainda alguma malformação
congênita não corrigida do trato gastrintestinal.
Quadro 24.5 Resumo das principais etiologias, quadro clínico e tratamento
24.6 DESIDRATAÇÃO HIPONATRÊMICA E
HIPERNATRÊMICA
O quadro clínico das desidratações hiponatrêmicas e
hipernatrêmicas difere, em alguns aspectos, em função de suas
diferenças fisiopatológicas. Da mesma forma, o tratamento
diverge e deve ser seguido criteriosamente, sob o risco de
complicações graves, principalmente relacionadas ao sistema
nervoso central.
24.6.1 Hiponatrêmica
A desidratação hiponatrêmica corresponde de 10 a 20% dos
casos, com valores de Na sérico abaixo de 135 mEq/L.
É frequente seu aparecimento secundariamente a diarreias
secretoras, com grandes perdas de sódio, ou em pacientes que
recebem reposição de sódio a proporção menor que as perdas.
Pode também estar associada a perdas não fecais, como na
fibrose cística, nas tubulopatias etc. Inicialmente, ocorre perda do
sódio do compartimento extracelular, diminuindo a osmolaridade
sérica. A seguir, a água do compartimento extracelular migra para
o intracelular, cuja osmolaridade está preservada, contribuindo
ainda mais para a depleção do intravascular. Por essa razão, os
sinais clínicos da desidratação são mais evidentes, e a diurese que
está presente é diluída.
Pelo fato de o sistema nervoso central apresentar-se
edemaciado, o paciente com desidratação hiponatrêmica pode
apresentar, de acordo com a gravidade, letargia, hipotonia, crises
convulsivas e até coma.
O tratamento na fase inicial não difere do preconizado para a
desidratação isonatrêmica. Entretanto, a presença de
hiponatremia pode dificultar a hidratação ou a sua manutenção
por várias razões, entre elas, a dificuldade em concentrar a urina.
Dessa forma, deve-se corrigir a hiponatremia utilizando a fórmula,
em que o sódio inicial é o dosado, e o sódio final não deve
ultrapassar 135 mEq.
#importante
O volume encontrado por meio da
fórmula de correção da hiponatremia
deve ser administrado sob a forma de
NaCl a 3% e não deve ultrapassar a
velocidade de 0,5 mEq/h.
Quais os mecanismos da
diarreia e quais são as
principais causas?
O mecanismo da diarreia pode ser osmolar, secretor e
inflamatório, e em grande parte das vezes os
mecanismos podem estar combinados. A diarreia
osmolar é causada por exemplo pela intolerância a
lactose, a infecção pelo vibrio cholerae causa diarreia
secretora e as doenças inflamatórias intestinais levam a
diarreia inflamatória.