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O indício e a prova no direito processual

Sérgio Cruz Arenhart


Procurador da República no Paraná. Mestre e doutor em direito processual civil pela Universidade Federal do Paraná.
Professor da Universidade Federal do Paraná e da Universidade Tuiuti do Paraná

1. INTRODUÇÃO
O tema da prova indiciária sempre constituiu questão controvertida na doutrina processual. Tanto na esfera cível,
como primordialmente no campo criminal, sempre se teve por delicado apoiar a decisão judicial exclusivamente em
elementos indiciários, sem o necessário respaldo de outros meios de prova — rectius, de meios de prova, já que os
indícios, em geral, não são considerados como tal pela doutrina.
Apenas para que se tome conta da ojeriza que apanha a ciência processual em relação aos indícios, observe-se
que o Código Criminal Brasileiro, do período imperial (1830), era enfático ao estabelecer que “nenhuma presunção, por
mais vehemente que seja, dará motivo para imposição de pena” 1. Efetivamente, o raciocínio implícito a semelhante
preceito é evidente: se a condenação de alguém por crime pressupõe o encontro da verdade real sobre o ocorrido, e se o
indício (por mais veemente que seja) jamais será apto a conduzir a um juízo de certeza, então não se pode tomar em
consideração o indício como único elemento para a condenação de alguém2.
Tal forma de pensar traduz, em excelência, a visão que, nos últimos três séculos, norteia a ideologia atual do
conhecimento. A visão racional cartesiana, que se impõe na atualidade, efetivamente, não pode conviver com o conceito
do provável, pois este contraria, frontalmente, toda a estrutura da lógica formal. 3 Demonstração maior desta
mentalidade vem exposta por DESCARTES, ao criticar a filosofia. Segundo o expoente maior da lógica formal, “je ne
dirai rien de la philosophie, sinon que, voyant qu’elle a été cultivée par les plus excellents esprits qui aient vécu depuis
plusieurs siècles, et que néanmoins il ne s’y trouve encore aucune chose dont on ne dispute, et par conséquent qui ne
soit douteuse, je n’avais point assez de présonmption pour espérer d’y rencontrer mieux que les autres; et que,
considérant combien il peut y avoir de diverses opinions, touchant une même matière, qui soient soutenues par des
gens doctes, sans qu’ils y en puisse avoir jamais plus d’une seule qui soit vraie, je réputais presque pour faux tout ce
qui n’était que vraisemblable” 4.

1
Também a jurisprudência pátria demonstra notórios sinais desta tendência, conforme demonstram os seguintes julgados do Pretório Excelso:
“Autoria de crime não reconhecida em razão de dúvida. Indícios. Inexistência de negativa de vigência do artigo 239 do C.P.P., o qual não impede que
o réu seja absolvido sob o fundamento de que os indícios existentes não são suficientes para a condenação. Impossibilidade do reexame de prova
(Súmula 279).
- Dissídio de jurisprudência não demonstrado.
Recurso extraordinário não conhecido” (STF, 2a Turma, RE 99.199/PE, rel. Min. Moreira Alves. DJU 27.04.84, p. 6.259).
“COMPETÊNCIA - HABEAS CORPUS - ATO DE TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
Na dicção da ilustrada maioria (seis votos a favor e cinco contra), entendimento em relação ao qual guardo reservas, compete ao Supremo Tribunal
Federal julgar habeas corpus impetrado contra ato de tribunal, tenha este, ou não, qualificação de superior.
TRÁFICO DE ENTORPECENTES - PROVA.
Toda e qualquer condenação criminal há de fazer-se alicerçada em prova robusta. Indícios e o fato de se ouvir dizer que o acusado seria um traficante
de drogas não respaldam pronunciamento judicial condenatório, o mesmo devendo ser dito em relação a depoimentos colhidos na fase policial e não
confirmados em juízo. A posse de pequena quantidade de droga resolve-se no sentido não do tráfico, mas do consumo de substância entorpecente pelo
agente” (STF, 2a Turma. HC 77.987/MG, rel. Min. Marco Aurélio. DJU 10.09.99, p. 2).
2
Também a doutrina brasileira não foge, ainda atualmente, desta mesma constatação. ADALBERTO JOSÉ Q. T. DE CARMARGO ARANHA,
embora admita o uso dos indícios, salienta que “na verdade, uma prova que exige cautelas especiais, já que, abstraídas as da razão, não leva à certeza”
(Da prova no processo penal. 3a ed., São Paulo: Saraiva, 1994, p. 170).
3
Neste sentido, é a crítica de CHAIM PERELMAN, que salienta que “conquanto não passe pela cabeça de ninguém negar que o poder de deliberar e
de argumentar seja um sinal distintivo do ser racional, faz três séculos que o estudo dos meios de prova utilizados para obter a adesão foi
completamente descurado pelos lógicos e teóricos do conhecimento. Esse fato deveu-se ao que há de não-coercitivo nos argumentos que vêm ao
apoio de uma tese. A própria natureza da deliberação e da argumentação se opõe à necessidade e à evidência, pois não se delibera quando a solução é
necessária e não se argumenta contra a evidência. O campo da argumentação é o do verossímil, do plausível, do provável, na medida em que este
último escapa às certezas do cálculo” (PERELMAN, Chaïm, OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação – a nova retórica. Trad.
Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 1).
4
DESCARTES, René. Discours de la méthode. Paris: GF-Flammarion, 1992, p. 29 – grifamos.
Em um campo como este, obviamente não há espaço para a prova meramente provável. Seria ela incompatível
com o pensamento natural deste paradigma. Insta, porém, retomar toda esta forma de pensar (e de conceber o
conhecimento), para verificar de sua atualidade e adequação. Este mal-estar que salpica a doutrina e a jurisprudência ao
tratar do tema da prova indiciária é a razão maior deste estudo. Tenta-se aqui revisar o conceito da prova indiciária,
especialmente frente aos novos paradigmas que a teoria do conhecimento oferece atualmente, buscando colocar o tema
em sua real posição, sem exageros ou menoscabos.

2. O RACIONALISMO LÓGICO E O MITO DA VERDADE SUBSTANCIAL

A idéia de prova evoca, naturalmente, e não apenas no processo, a racionalização da descoberta da verdade.
Realmente, a definição clássica de prova liga-se diretamente àquilo “que atesta a veracidade ou a autenticidade de
alguma coisa; demonstração evidente” 5. Tem-se esta idéia para a ampla maioria das ciências, e a ciência processual
clássica não foge à regra. Também o juiz, no processo (de conhecimento), tem por função precípua a reconstrução dos
fatos a ele narrados, aplicando sobre estes a regra jurídica abstrata contemplada pelo ordenamento positivo; feito este
juízo de concreção da regra aos fatos, extrai então o magistrado a conseqüência aplicável ao conflito, disciplinando-o na
forma como preconizado pelo legislador 6.
Ninguém duvida de que a função do real (e portanto, da prova) no processo é absolutamente essencial, razão
mesmo para que a investigação dos fatos, no processo de conhecimento, ocupe quase que a totalidade do procedimento
e das regras que disciplinam o tema nos diversos códigos processuais que se aplicam no direito brasileiro7. Se a regra
jurídica pode ser decomposta em uma hipótese fática (onde o legislador prevê uma conduta) e de uma sanção a ela
atrelada, não há dúvida de que o conhecimento dos fatos ocorridos na realidade é essencial para a aplicação do direito
positivo, sob pena de ficar inviabilizada a concretização da norma abstrata 8. Tamanha é a importância da verdade (e da
prova) no processo que CHIOVENDA ensinava que o processo de conhecimento trava-se entre dois termos (a demanda
e a sentença), por uma série de atos, sendo que “esses atos têm, todos, mais ou menos diretamente, por objeto, colocar o
juiz em condições de se pronunciar sobre a demanda e enquadram-se particularmente no domínio da execução das
provas” 9. Na mesma linha de pensamento, LIEBMAN, ao conceituar o termo “julgar”, assevera que tal consiste em
valorar determinado fato ocorrido no passado, valoração esta feita com base no direito vigente, determinando, como
conseqüência, a norma concreta que regerá o caso 10.

5
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo aurélio século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3a ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1999, p. 1.656, vocábulo “prova”.
6
Note-se que esta visão clássica da dimensão do processo tem íntima ligação com a noção que tradicionalmente se tem do papel do juiz na solução da
causa. Ao magistrado não compete criar o Direito que deve reger certa situação de direito material; ao revés, cumpre-lhe apenas apontar a norma
jurídica específica, aplicável ao caso, sendo mero mediador entre a situação concreta e o direito material abstrato. É, nas palavras de
MONTESQUIEU, la bouche de la loi, cuja função é, exclusivamente, dizer a intenção da lei sobre o caso concreto.
7
Estranhamente, porém, embora a relevância do tema da prova (e dos fatos) no processo de conhecimento, observa-se nítido desdém da doutrina em
tratar desta matéria. Prefere-se outorgar mais tempo ao debate de questões de direito, do que a questões de fato. A propósito, WILLIAM TWINING
lembra das palavras de certo político, em um debate, que dizia que “certa vez foi sugerido que 90 por cento dos advogados gastam 90 por cento do seu
tempo lidando com fatos e que isto deveria ser refletido nos seus treinamentos. Se 81 por cento do tempo dos advogados é gasto em uma coisa, daí
decorre que 81 por cento da educação jurídica deveria ser devotada a isto. Existem alguns cursos isolados sobre descoberta dos fatos (fact-finding) e
congêneres, mas nenhum instituto tem tido um programa completo em que a principal ênfase seja em fatos. Eu proponho que nós centremos nosso
currículo neste princípio e que nós chamemos nosso grau um Bacharel de Fatos” (TWINING, William. Rethinking evidence – exploratory essays.
Evanston: Northwestern University Press, 1994, p. 12). Conquanto certamente exagerada a estatística, é fato inquestionável que o tempo do operador
do direito é gasto mais com a análise de fatos do que, propriamente, com a discussão de questões de direito. No entanto, dificilmente se observa uma
grande preocupação com a caracterização dos fatos ou com o estudo detido dos princípios que regem sua exposição no processo (sobre as causas
desse menosprezo, veja-se TWINING, William. Rethinking evidence – exploratory essays, ob. cit., p. 13 e ss.).
8
Isto porque, como se nota da doutrina clássica, sem saber como as coisas se passaram, não tem o magistrado condições de determinar qual a regra
abstrata que deve ser aplicada ao caso concreto. Como observa CHIOVENDA, “toda norma encerrada na lei representa uma vontade geral, abstrata,
hipotética, condicionada à verificação de determinados fatos, que, em regra, podem multiplicar-se indefinidamente. Toda vez que se verifica o fato ou
grupo de fatos previstos pela norma, forma-se uma vontade concreta da lei, ao tempo em que da vontade geral e abstrata nasce uma vontade particular
que tende a atuar no caso determinado” (CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil, vol. 1, trad. Paolo Capitanio, Campinas:
Bookseller, 1998, p. 18). É assim que surge, na ótica deste jurista, a sua célebre definição de jurisdição, como tendo por escopo a atuação da vontade
concreta da lei. V. tb., sobre a questão, LIEBMAN, Enrico Tullio. Manuale di diritto processuale civile, principi. 5ª ed., Milano: Giuffrè, 1992, p.
318.
9
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil, vol. 1. Ob. cit., p. 72.
10
LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil, tomo I, trad. de Cândido R. Dinamarco, Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 4.
Ora, partindo-se deste pressuposto, nada mais natural do que eleger, como um dos princípios essenciais do
processo — senão a função principal do processo de conhecimento — a busca da verdade substancial. No dizer de
MITTERMAYER, a verdade é a concordância entre um fato ocorrido na realidade sensível e a idéia que fazemos dele 11.
Esta visão, típica de uma filosofia vinculada ao paradigma do objeto 12, embora tenha todos os seus pressupostos já
superados pela filosofia moderna, ainda continua a guiar os estudos da maioria dos processualistas modernos. Não
obstante todas as lições da moderna filosofia, combatendo duramente esta visão do conhecimento, o Direito permanece
recorrendo a este paradigma para explicar sua função e o Processo continua apoiando-se nesta vetusta idéia, para
legitimar sua função.
Mantendo-se o direito atual ainda fiel à estrutura normativa herdada do racionalismo iluminista — e
compreendendo-se que a atribuição do magistrado é, exclusivamente, a de aplicar o direito objetivo ao caso concreto13
—, parece ser de evidência solar a constatação inexorável de ser imprescindível a reconstrução de tais fatos, a fim de
que a hipótese prevista na norma seja adequadamente aplicada, sendo certo que a medida desta adequação está na maior
ou menor aproximação da hipótese descrita na regra com a realidade descoberta 14. Cumpre lembrar, neste passo, o
genial CARNELUTTI, o qual, após declarar que o processo é um trabalho, assevera que “aquilo que é necessário saber,
antes de mais nada, é que o trabalho é união do homo com a res, sendo que esta coisa vimos estar em torno de um
homo: que o homo iudicans trabalhe sobre o homo iudicandus significa, no fundo, que deve unir-se com ele; somente
através da união ele conseguirá saber como se passaram as coisas [come sono andate le cose] e como deveriam passar-
se, a sua história e o seu valor; em uma palavra a sua verdade” 15. Eis a razão pela qual se tem a verdade material (ou
substancial) como escopo básico da atividade jurisdicional. Como dizem TARUFFO e MICHELI, no processo a
verdade não constitui um fim em si mesma, contudo insta buscá-la enquanto condição para que se dê qualidade à
justiça ofertada pelo Estado16. Assim, nota-se que a idéia (ou o ideal) de verdade no processo exerce verdadeiro papel
de controle da atividade do magistrado; é a busca incessante da verdade absoluta que legitima a função judicial e
também lhe serve de válvula regulatória de sua atividade, na medida em que a atuação do magistrado somente será
legítima dentro dos parâmetros fixados pela verdade por ele reconstruída no processo.
Não é preciso muito esforço mental para notar que o conceito de verdade no processo (e, subseqüentemente, dos
institutos processuais que com ela operam) não pode afastar-se da idéia de verdade que se tem nos demais ramos
científicos 17. Em outros termos, a questão da verdade (e, assim, da prova) deve orientar-se pelo estudo do mecanismo

11
MITTERMAIER, C.J.A. Tratado da prova em matéria criminal. 2ª ed., Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert Ed., 1879, p. 78.
12
Posição esta consagrada na visão de Aristóteles, com sua clássica noção de que “dizer daquilo que é, que é, e daquilo que não é, que não é, é
verdadeiro; dizer daquilo que não é, que é, e daquilo que é, que não é, é falso” (apud COSTA, Newton C. A. da. “Conjectura e quase-verdade” in
Direito Política Filosofia Poesia: estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale, em seu octogésimo aniversário, coord. Celso Lafer e Tércio
Sampaio Ferraz Jr.. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 78).
13
Significativas são, neste campo, as palavras de CHIOVENDA, que bem demonstram o espírito de sua época. Tratando da matéria e analisando a
questão da interpretação do direito, dizia o mestre que “quando se fala de interpretação admite-se na lei um pensamento que o juiz nada mais faz do
que aplicar”; e, logo a seguir, conclui que “a interpretação é obra da doutrina, não do juiz: e se a interpretação deve considerar-se como fonte do
direito, é evidente que o juiz não faz mais que formulá-la” (CHIOVENDA, Giuseppe. Principios de derecho procesal civil, vol. I, trad. de José Casais
y Santalo, Madrid: Reus, 1922, pp. 90/91). Também neste sentido manifesta-se MERRYMAN que, ao analisar o juiz do direito continental europeu,
salienta que “surge assim uma imagem do processo judicial como uma atividade bastante rotineira. O juiz converte-se em uma espécie de empregado
especializado. Apresenta-se-lhe uma situação de fato para a qual se encontrará à mão uma resposta legislativa em todos os casos, exceto os
extraordinários. Sua função consiste simplesmente em encontrar a disposição legislativa correta, compará-la com a situação legislativa correta,
compará-la com a situação de fato e consagrar a solução que produz a união de forma mais ou menos automática.(...)
A imagem clara do juiz é a do operador de uma máquina desenhada e construída pelos legisladores. Sua função é meramente mecânica. (...) O juiz do
direito civil não é um herói cultural nem uma figura paternal, como o que é freqüentemente entre nós. Sua imagem é a de um empregado público que
desempenha funções importantes mas que resultam essencialmente pouco criativas” (MERRYMAN, John Henry. La tradición jurídica romano-
canónica, trad. de Eduardo L. Suárez, México: Fondo de Cultura Económica, 1998, pp. 76/77).
14
Assim, aliás, acentua CARNELUTTI, ao ponderar que “noi sappiamo che il primo compito per giudicare è quello di ricostruire il fatto; non
potrebbe il giudice procedere al confronto del fatto con la fattispecie prima di averlo ricostruito” (Diritto e processo, Napoli: Morano, 1958, p. 94).
Da mesma forma, v. Carlo Furno, Contributo alla teoria della prova legale, Padova: CEDAM, 1940, p. 11.
15
CARNELUTTI, Francesco. Op. cit., p. 124.
16
MICHELI, Gian Antonio e TARUFFO, Michele. “A prova” in Revista de Processo, nº 16, São Paulo: Revista dos Tribunais, out/dez 1979, p. 168.
Não se nega, efetivamente, que a idéia de verdade, enquanto meta utópica do processo, exerce função importante na estrutura deste. É certo que o juiz
deve buscar – ainda que saiba, conscientemente, que não é capaz de encontrá-la – a verdade enquanto ideal; todavia, esta busca não pode, mesmo
porque constitui objeto ideal, impor restrições ao processo além do mínimo necessário, exatamente porque sua função é meramente mítica. Esta idéia
será melhor esclarecida posteriormente, quando se analisar a função que, segundo a opinião aqui apresentada, deve a prova desempenhar no processo.
17
Neste sentido, acentua MICHELE TARUFFO que “o jurista não consegue mais estabelecer que coisa seja a verdade dos fatos no processo, e a que
coisa servem as provas, sem defrontar-se com escolhas filosóficas e epistemológicas de ordem mais geral. A expressão ‘verdade material’, e as outras
expressões sinônimas, transformam-se em etiquetas privadas de significado se não se ligam ao problema geral da verdade. Deste ponto de vista, o
que regula o conhecimento humano dos fatos. E, voltando os olhos para o estágio atual das demais ciências, a conclusão
a que se chega é uma só: a noção de verdade é, hoje, tida como algo meramente utópico e ideal (enquanto fato
absoluto 18). Uma afirmação perigosa como esta exige, certamente, maiores esclarecimentos. Em essência, o que se
pretende dizer na realidade, é que, seja no processo, seja em outros campos científicos, jamais se poderá afirmar, com
segurança absoluta, que o produto encontrado efetivamente corresponde à verdade. 19 Realmente, a essência da verdade
é intangível (ou ao menos o é a certeza da aquisição desta)20. A constatação não é nova, e já foi alvo da consideração de
VOLTAIRE, ao afirmar que “les vérités historiques ne sont que des probabilités” 21. Assim também percebeu MIGUEL
REALE, ao estudar o problema, deduzindo, então, o conceito de quase-verdade, em substituição ao da verdade,
considerando que esta seria imprestável e inatingível 22.
Deveras, a reconstrução de um fato ocorrido no passado sempre vem influenciada por aspectos subjetivos das
pessoas que assistiram ao mesmo, ou ainda daquele que (como o juiz), há de receber e valorar a evidência concreta 23.
Sempre, o sujeito que percebe uma informação (seja presenciando diretamente o fato, ou conhecendo-o através de outro
meio) altera o seu real conteúdo, absorve-o à sua maneira, acrescentando-lhe um toque pessoal que distorce (se é que
esta palavra pode ser aqui utilizada) a realidade 24. Mais que isso, o julgador (ou o historiador, ou, enfim, quem quer que
deva tentar reconstruir fatos do passado) jamais poderá excluir, terminantemente, a possibilidade de que as coisas
tenham-se passado de forma diversa àquela a que suas conclusões o levaram.

problema da verdade dos fatos no processo não é mais que uma variante específica deste problema mais geral” (TARUFFO, Michele. La prova dei
fatti giuridici, nozioni generali, Milano: Giuffrè, 1992, p. 5).
18
Como se pode inferir da lição de VILLEY, a verdade é um conceito absoluto; ou é ou não é. Uma verdade parcial, imperfeita ou meramente formal,
por simples questão de lógica, não pode ser verdade, já que este conceito (absoluto) apenas será atingido na base da verdade substancial (VILLEY,
Michel. Réflexions sur la philosophie et le droit, les carnets. Paris: PUF, 1995, p. 1).
19
Como bem ponderava CARNELUTTI, “na substância é realmente oportuno observar como a verdade não possa ser que uma, onde a verdade
formal ou jurídica ou coincide com a verdade material, e não é que verdade, ou diverge desta, e não é que uma não verdade, de forma que, tirante a
metáfora, o processo de busca sujeito a normas jurídicas, que lhe constrangem e lhe deformam a pureza lógica, não pode ser sinceramente
considerado como um meio de conhecimento da verdade dos fatos, mas sim como uma fixação ou determinação dos próprios fatos, que pode
coincidir ou não coincidir com a verdade destes e permanece, seja como for, independente deste” (CARNELUTTI, Francesco. La prova civile, 2a ed.,
Roma: Ateneo, 1947, pp. 29/30).
20
Em termos de direito, tem-se a insuspeita lição de CALAMANDREI sobre a questão. Dizia o mestre que “a querela entre os advogados e a verdade
é tão antiga quanto a que existe entre o diabo e a água benta. E, entre as facécias costumeiras que circulam sobre a mentira profissional dos
advogados, ouve-se fazer seriamente esta espécie de raciocínio: — Em todo processo há dois advogados, um que diz branco e outro que diz preto.
Verdadeiros, os dois não podem ser, já que sustentam teses contrárias; logo, um deles sustenta a mentira. Isso autorizaria considerar que cinqüenta por
cento dos advogados são uns mentirosos; mas, como o mesmo advogado que tem razão numa causa não tem em outra, isso quer dizer que não há um
só que não esteja disposto a sustentar no momento oportuno causas infundadas, ou seja, ora um ora outro, todos são mentirosos.
Esse raciocínio ignora que a verdade tem três dimensões e que ela poderá mostrar-se diferente a quem a observar de diferentes ângulos visuais.
No processo, os dois advogados, embora sustentando teses opostas, podem estar, e quase sempre estão, de boa-fé, pois cada um representa a verdade
como a vê, colocando-se no lugar do seu cliente” (CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado, trad. Eduardo Brandão, São
Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 121).
E, arrematando a idéia, o mesmo genial processualista florentino traz a seguinte imagem: “Ponham dois pintores diante de um mesma paisagem, um
ao lado do outro, cada um com seu cavalete, e voltem uma hora depois para ver o que cada um traçou em sua tela. Verão duas paisagens
absolutamente diferentes, a ponto de parecer impossível que o modelo tenha sido o mesmo.
Dir-se-ia, nesse caso, que um dos dois traiu a verdade?” (Ob. cit., p. 125). Realmente, é impossível fugir à “subjetivação” da realidade, razão pela qual
jamais se poderá dizer, com absoluta segurança, que a “reconstrução” operada dos fatos efetivamente condiz com a realidade verificada.
21
apud, CALAMANDREI, Piero. “Verità e verossimiglianza nel processo civile” in Rivista di diritto processuale, Padova: CEDAM, 1955, p. 165.
22
REALE, Miguel. Verdade e conjectura. Nova Fronteira, 1983. Desta obra, extrai-se a lição de que “se a verdade, numa síntese talvez insuficiente,
não é senão a expressão rigorosa do real, ou , por outras palavras, algo de logicamente redutível a uma correlação precisa entre ‘pensamento e
realidade’, tomando este segundo termo em seu mais amplo significado, e não apenas como ‘realidade fatual’, forçoso é reconhecer que a adequação
entre o mundo dos conceitos e o da realidade, mesmo nos domínios das ciências consideradas exatas, deixa-nos claros ou vazios que o homem não
pode deixar de pensar. No fundo é esta a distinção kantiana essencial entre ‘conhecer segundo conceitos’ e ‘pensar segundo idéias’, isto é, acrescento
eu com certa elasticidade, ‘pensar segundo conjecturas’. De mais a mais, discutem até hoje os filósofos e cientistas no que tange à definição de
verdade, e os conceitos que se digladiam não são mais do que conjecturas, o que demonstra que a conjectura habita no âmago da verdade, por mais
que nossa vaidade de homo sapiens pretenda sustentar o contrário” (Ob. cit., p. 17/18). E prossegue o genial jusfilósofo, afirmando que “não há nessa
atitude, porém, nenhum laivo de ceticismo ou de relativismo, pois quem conjetura, quando a verdade não se lhe impõe precisamente ao espírito, quer
lançar uma ponte sobre a dúvida que separa uma verdade da outra, para usarmos uma imagem feliz de Augusto Comte. É que o pensamento, tanto
como a natureza, tem horror ao vácuo, ao não-explicado ou compreendido. Vaihinger, afirmando que toda verdade se reduz a uma ‘ficção’, a um
como se (als ob) que o nosso espírito admite para compreender e dominar uma série de situações problemáticas, atendendo, assim, a exigências
biológicas, e, mais amplamente, existenciais. A teoria da verdade reduzir-se-ia, desse modo, a uma teoria das ficções conscientes e úteis, em função
dos esquemas ideais com que o homem encapsula o real e o ordena segundo os seus próprios fins vitais, constituindo, ao mesmo tempo, uma lógica
naturalista e operacional” (Ob. cit., p. 18).
23
Conforme atenta observação de GADAMER, “a interpretação não é um ato posterior e oportunamente complementar à compreensão, porém,
compreender é sempre interpretar, e, por conseguinte, a interpretação é a forma explícita da compreensão” (GADAMER, Hans-Georg. Verdade e
método – traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, 2ª ed., trad. Flávio Paulo Meurer, Petrópolis: Vozes, 1998, p. 459).
24
Neste sentido é a conclusão de RUI PORTANOVA (Motivações ideológicas da sentença, 2ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1994) que
expõe três ordens de motivação para a sentença judicial: probatória, pessoal e ideológica. Sobre as motivações pessoais, leciona o jurista que “as
contradições, os exageros ou as omissões das testemunhas podem embasar com alguma objetividade o convencimento judicial: fora disso, os motivos
pessoais do juiz para considerar um fato, uma prova ou um direito como relevantes para o provimento ou não da demanda são pouco perscrutáveis.
São motivações pessoais: interferências (psicológicas, sociais, culturais) personalidade, preparação jurídica, valores, sentimento de justiça, percepção
da função, ideologia, estresse, remorsos, intelectualização” (Ob. cit., p. 16).
Some-se a tudo isto o fato de que a relação da verdade com o processo (juiz e provas) vem permeado de certas
particularidades, as quais excluem, por si só, muitas vezes a possibilidade de que o magistrado efetivamente encontre a
verdade. É o que observa GIOVANNI VERDE 25, ao ponderar que, no processo, as regras sobre prova não regulam
apenas os meios de que o juiz pode servir-se para “descobrir a verdade”, mas também traçam limites à atividade
probatória, tornando inadmissíveis certos meios de prova, resguardando outros interesses (como a intimidade, o silêncio
etc.) ou ainda condicionando a eficácia do meio probatório à adoção de certas formalidades (como o uso do instrumento
público). Diante desta proteção legal (de forte intensidade) a outros interesses, ou ainda, da submissão do mecanismo de
“revelação da verdade” a certos requisitos, parece não ser difícil perceber que o compromisso que o direito (e, em
especial, o processo) tem com a verdade não é tão inexorável como aparenta ser.
Há, realmente, uma contradição neste aspecto, como bem demonstra SERGIO COTTA26. Quer-se um juiz que
seja justo e apto a desvendar a essência verdadeira do fato ocorrido no passado, mas reconhece-se que a falibilidade
humana e o condicionamento desta descoberta às formas legais não lhe permitem atingir este ideal.

3. A REDESCOBERTA DA DIALÉTICA

Após toda esta digressão, parece ser imperativo convir que não é objetivo concreto do juiz encontrar a verdade
(absoluta) no processo. Conquanto possa esta meta continuar como elemento mítico – e objetivo utópico – da atividade
jurisdicional (mesmo para que se possa assegurar a qualidade da pesquisa efetivada pelo magistrado e, em
conseqüência, do resultado obtido), não se pode acreditar que, concretamente, este ideal seja realizado no processo ou
mesmo que ele a isto se destina. Todavia, se isto é correto, qual seria então a função da prova no processo?
Constitui-se, ao que parece, em meio retórico, indispensável ao debate judiciário. O processo deve ser visto
como palco de discussões; a tópica é o método da atuação jurisdicional e o objetivo não é a reconstrução do fato, mas o
convencimento dos demais sujeitos processuais sobre ele.
O diálogo (comunicação) passa a ter a preponderância no sistema. Há um retorno à antiga idéia aristotélica da
tópica e da retórica. A razão centra-se na comunicação e não mais na reflexão isolada de um só sujeito. 27. Como bem
lembra FRANCO CORDERO, “da Aristotele a Quintiliano, le prove costituivano un capitolo della retorica, distinte
como ‘inartificiales’ e ‘artificiales’, o, formula meno ingannevole, ‘atecniche’ e ‘tecniche’. Qui ‘artificium’ significa
abilità dialettica: alcune esistono e valgono indipendentemente dall’oratore (testimonianze, confessioni sotto tortura,
autografi e simili); altre sono opera oratoria. (...). Quintiliano se ne accorge: costituendo un fenomeno fisico
indipendente dall’atto oratorio, i signa risultano contigui alle probationes inartificiales; ‘cruenta enim vestis et clamor
et livor et talia sunt instrumenta qualia tabulae, rumores, teste, nec inveniuntur ab oratore’; l’argomento lievita daí
fatti e il fatto vale in quanto dialetticamente elaborato” 28.
O discurso — conforme explica esta visão do conhecimento — assenta-se sobre pretensões, tendentes a permitir
o estabelecimento do diálogo. A propósito das pretensões de validade da comunicação, leciona HABERMAS que “o
25
“De resto, se a noção de prova devesse ser colocada coerentemente em relação com o escopo de consentir ao juiz de obter um pleno convencimento
da real existência (ou inexistência) dos fatos controvertidos, nenhum dos meios probatórios disciplinados pelo código poderia enquadrar-se
plenamente na noção. A formação do convencimento judicial é, de fato, condicionada não apenas pelas regras que lhe impõem valorar de um certo
modo as resultantes instrutórias, mas também por aquelas que fazem ter como inadmissíveis determinadas fontes de conhecimento (por exemplo, a
ciência privada, o testemunho etc.) ou mesmo que impõem o respeito de determinadas modalidades de assunção, de tal forma que as provas formadas
sem o respeito de tais limites ou modalidades devem compreender-se ilegítimas ou como conseqüência, segundo a opinião mais usual, ineficaz”
(VERDE, Giovanni. “Prova (diritto processuale civile)” in Enciclopedia del diritto, vol. XXXVII, Milano: Giuffrè, 1988, p. 590).
26
COTTA, Sérgio. “Quidquid latet apparebit: Le problème de la vérité du jugement” in Archives de philosophie du droit, tome 39, Paris: Dalloz,
1995, p. 219/228.
27
Vale ressaltar que este “diálogo” é prévio, necessariamente anterior a qualquer forma de conhecimento. Trata-se da busca de um consenso que
permita o conhecimento — e não um consenso do conhecimento. É algo que ocorre no mundo ideal, como um a priori — tal qual as formas a priori
kantianas — e não no mundo sensível. Este consenso importa a aceitação prévia dos critérios necessários para a realização de qualquer comunicação
(interação). Como explica HABERMAS, “a razão comunicativa distingue-se da razão prática por não estar adscrita a nenhum ator singular nem a um
macrossujeito sociopolítico. O que torna a razão comunicativa possível é o medium lingüístico, através do qual as interações se interligam e as formas
de vida se estruturam. Tal racionalidade está inscrita no telos lingüístico do entendimento, formando um ensemble de condições possibilitadoras e, ao
mesmo tempo, limitadoras” (HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia, entre facticidade e validade, vol. I, trad. Flávio Beno Siebeneichler, Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 20).
28
CORDERO, Franco. Procedura penale. 4a ed., Milano: Giuffrè, 1998, p. 564.
modo fundamental destas manifestações determina-se pelas pretensões de validade que implicitamente levam
associadas: a verdade, a retitude, a adequação ou a inteligibilidade (ou correção no uso dos meios de expressão). A estes
mesmos modos conduz também uma análise de enfoque semântico das formas de enunciados. As orações descritivas
que, no sentido mais lato, servem à constatação de fatos que podem ser asseverados ou negados sob o aspecto da
verdade de uma proposição; as orações normativas ou orações de dever que servem à justificação de ações, sob o
aspecto da retitude (ou da ‘justiça’) da sua forma de atuar; as orações valorativas (os juízos de valor) que servem à
valoração de algo, sob o aspecto da adequação dos standards de valor (ou sob o aspecto do ‘bom’), e as explicações de
regras geradoras que servem á explicação de operações tais como falar, classificar, calcular, deduzir, julgar etc., sob o
aspecto de inteligibilidade ou correção formal das expressões simbólicas” 29.
No discurso, todas as pretensões ficam suspensas, até que a assertiva seja confirmada ou refutada (em discurso
teórico) ou até que a norma seja considerada legítima ou ilegítima (através de discurso prático). Tomando-se como
adequada esta constatação, pode-se agora compreender a função da verdade no discurso jurídico: constitui ela uma das
pretensões de validade que autoriza o discurso. Se acaso os sujeitos processuais não acreditassem que a verdade tem
função no processo, não haveria motivo para a celebração do processo; este tornar-se-ia mera sucessão de atos, sem
nenhum objetivo útil. A busca da verdade, embora seja meio retórico, preenche axiologicamente o processo,
outorgando-lhe legitimidade e fundamentação.
Porém, se, de um lado, esta verdade pressuposta (fundamento para o estabelecimento do processo) está fincada
como antecedente ao processo, de outra parte também é o resultado do processo, que se atinge após o discurso. Se o
processo é concebido com o fito de obter-se verdade, então o resultado atingido será, necessariamente, ao menos para
aqueles que participaram do discurso, a verdade (agora tomada como conseqüente) 30.
Isto implica dizer que verdade e legitimidade não são conceitos absolutos, de validade plena e eterna. Ao
contrário, resultam do consenso discursivo. Há deslocamento da formulação da verdade em relação às proposições
fáticas e da legitimidade em relação às proposições normativas para a intersubjetividade. A verdade é algo
necessariamente provisório, apenas prevalecendo enquanto se verificar o consenso, e para uma situação específica e
concreta. 31
Tal, com efeito, é a garantia da universalidade do procedimento32. A verdade não mais é buscada no conteúdo da
assertiva, mas na forma pela qual ela é obtida (consenso). O conteúdo é evidentemente importante, mas nada tem que
ver com a verdade — pois para esta apenas interessa a forma pela qual a afirmação é obtida. O verdadeiro e o falso não
têm origem nas coisas, nem na razão individual, mas no procedimento.
Em sentido semelhante, tem-se a visão de ENRIQUE DUSSEL, o qual, embora criticando Habermas, conclui
que “não é simplesmente partindo de uma posição solipsista originária que se há de chegar ao ‘verdadeiro’, para depois

29
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa, tomo I, Madrid: Taurus, 1988, pp. 64/65.
30
Obviamente, a verdade a que aqui se alude não é mais a verdade absoluta, mas uma verdade criada e imaginária, resultante da satisfação para os
sujeitos do processo dos requisitos necessários do discurso e legitimada especificamente por ele. Se este resultado efetivamente corresponde ao
ocorrido concretamente, isto jamais se poderá dizer.
31
Neste sentido, pondera ALEXY que “isto teria de negar-se imediatamente, se para cada questão prática existisse uma única resposta correta, com
independência de se existe um procedimento para encontrá-la e para provar sua correção. Quem defende esta tese separa o conceito de correção dos
conceitos de fundamentabilidade e de possibilidade da prova. Desta maneira resulta um conceito absoluto de correção que tem um caráter não-
procedimental. O conceito absoluto e não-procedimental de correção excluiria de fato que se pudesse designar como ‘correto’ tanto N como ØN
[negação de N]. Seu defeito consiste em que parte de pressupostos demasiadamente fortes. A suposição da existência, independentemente do
procedimento, de uma única resposta correta para cada questão prática é uma tese ontológica que tem pouco em seu favor e contra a qual se pode
aduzir muito. O fato de contestar questões práticas se baseia (não apenas, mas essencialmente) em interpretações de interesses e em ponderações de
interesses. Não se pode aceitar que sobre esta base seja possível só justamente uma resposta para cada questão prática. (...) A única resposta correta
tem melhor o caráter de um fim ao que se deve aspirar. Os participantes de um discurso prático, com independência de se existe uma única resposta
correta, devem oferecer a pretensão de que sua resposta é a única correta. Em outro caso, careceriam de sentido suas afirmações e fundamentações.
Isto pressupõe somente que existem questões práticas às quais se pode atribuir no discurso uma resposta como a única correta, e que não há segurança
sobre quais sejam estas questões, de maneira que vale a pena procurar em toda questão uma única resposta correta. Por isso, a teoria do discurso tem
como base uma concepção absolutamente procedimental da correção” (ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica – la teoría del discurso
racional como teoría de la fundamentación jurídica. Trad. Manuel Atienza e Isabel Espejo. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1989, p.
302/303).
32
No dizer de HABERMAS, “uma norma só pode aspirar a ter validade quando todos os afetados conseguirem por-se de acordo enquanto
participantes de um discurso prático (ou podem por-se de acordo) em que essa norma é válida” (HABERMAS, Jürgen. Consciencia moral y acción
comunicativa. Madrid: Ediciones Península, 1985, p. 86).
procurar a ‘consensualidade’ por aceitação intersubjetiva, mas a posição da subjetividade na atualização do real como
verdadeiro (...) foi antes constituída a partir da intersubjetividade (tanto cerebral, lingüística, cultural como
historicamente) (...), mas de maneira formalmente diferenciada (e não confusa e identificada como no caso de
Habermas). Toda atualização do real (verdade) é já sempre intersubjetiva; e toda intersubjetividade (validade) tem
‘referência’ a um pressuposto veritativo. Mas são categorialmente diferentes. A verdade é o fruto do processo
monológico (ou enunciado tem assim pretensão de verdade); a validade é o fruto do processo de procurar que seja
aceito intersubjetivamente aquilo que se considera monologicamente (ou comunitariamente) como verdadeiro (o
enunciado tem assim pretensão de validade)” 33.
Daquilo que até aqui foi exposto, parece resultar evidente que a intenção deste discurso caminha para uma
avaliação da verdade sob a ótica do procedimento utilizado para chegar a ela. Em verdade, a idéia da interferência do
procedimento na avaliação da verdade não é nova. Já o processo germânico antigo era particularizado por buscar,
essencialmente, a verdade dos fatos (ainda calcado no paradigma do objeto) mas através de um rígido procedimento34.
Embora não se queira aqui retornar ao sistema germânico (nem à forma como aquele direito lidava com a prova no
processo), não há dúvida de que é o procedimento que atribui à reconstrução dos fatos sua capacidade de gerar verdade.
Já em Aristóteles se encontra a verdadeira semente desta idéia (não, obviamente, com a formulação dada pelo direito
germânico antigo, nem precisamente com aquela que aqui se advoga). Para ele, a busca do conhecimento verdadeiro
apenas se daria pela via da dialética35. O objeto do conhecimento deveria ser debatido pelos sujeitos — cada qual,
presumivelmente, com parcela do conhecimento — logrando-se, assim, aperfeiçoar a verdade de cada qual sobre o
objeto. A dialética aristotélica é, então, uma busca, uma tentativa de aproximação da verdade 36.
Este é precisamente o objetivo de HABERMAS. Segundo o autor, “real’ é o que pode ser representado em
proposições verdadeiras, ao passo que ‘verdadeiro’ pode ser explicado a partir da pretensão que é levantada por um em
relação ao outro no momento em que assevera uma proposição. Com o sentido assertórico de sua afirmação, um falante
levanta a pretensão, criticável, à validade da proposição proferida; e como ninguém dispõe diretamente de condições de
validade que não sejam interpretadas, a ‘validade’ (Gültigkeit) tem de ser entendida epistemologicamente como
‘validade que se mostra para nós’ (Geltung). A justificada pretensão de verdade de um proponente deve ser defensável,
através de argumentos, contra objeções de possíveis oponentes e, no final, deve poder contar com um acordo racional da
comunidade de interpretação em geral” 37. Fica, então, clara a idéia de diálogo, de argumentação e de persuasão, como
componentes indissociáveis da noção de verdade factível.
Como bem lembra CHAÏM PERELMAN 38, as provas sempre se referem a alguma proposição ou, como prefere
ele denominar, uma tese; ademais, é certo que esta proposição não pode ser fundamentada exclusivamente em um
critério metafísico ou intuitivo, sendo necessário que se expresse por via de uma linguagem. Partindo-se desta premissa,
“a escolha de uma linguagem ligada a uma teoria, e elemento indispensável para a descrição do real, é uma obra
humana, na qual as estruturas formais se combinam com motivações culturais, tanto emotivas quanto práticas. Como

33
DUSSEL, Enrique. Ética da libertação, na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 206). E, esclarecendo esta idéia,
conclui o genial filósofo dizendo que “na validade como consensualidade (formalidade do discurso), o argumento é aceito e produz acordos,
consenso. Trata-se do critério de intersubjetividade. A consensualidade se alcança a partir da verdade do argumento, mas a verdade do argumento é
impossível, por seu turno, sem a prévia consensualidade; além disso, a verdade, embora tenha em alguns casos empíricos uma origem monológica,
tem sempre uma pretensão ou uma busca do consenso para vir a ser um enunciado intersubjetivamente provado e, assim, tornar-se tradição histórica
(cotidiana ou científica). Isto é, intersubjetivamente (formal ou procedimentalmente) não há verdade em sentido pleno: a) ante festum, sem prévia
validade, já que a existência em forma de acordos intersubjetivos dos pontos a verificar é condição absoluta de sua possibilidade; b) in festum, sem a
dialogicidade na produção intrínseca de argumentos novos no próprio ato veritativo (nisto consiste o caráter assegurador do consenso); e c) post
festum, sem a aceitabilidade intersubjetiva que permite novos progressos veritativos” (DUSSEL, Enrique. Ob. cit., p. 206/207).
34
“O procedimento germânico conserva o caráter do processo primitivo, nascido historicamente como meio de pacificação social, encaminhado a
dirimir as contendas, mais que a decidi-las, fazendo depender sua solução, não do convencimento do juiz, mas pelo regular, do resultado de fórmulas
solenes, nas quais o povo descobre a expressão de um ato superior e imparcial de divindade. Tudo isso dá ao processo e à prova um aspecto
sumamente formal”. (CHIOVENDA, Giuseppe. Princípios de derecho procesal civil, vol. I, ob. cit., p. 1).
35
VILLEY, Michel. Philosophie du droit, II. Les moyens du droit. 2ª ed., Paris: Dalloz, 1984, p. 49.
36
VILLEY, Michel. Philosophie du droit, ob. cit., p. 48.
37
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia, entre facticidade e validade, ob. cit., p. 31.
38
PERELMAN, Chaïm. Retóricas, trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira, São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 164.
uma linguagem não é nem necessária, nem arbitrária, seu emprego é consecutivo a uma argumentação, às vezes
explícita, o mais das vezes implícita, quando seu uso parece tradicional” 39.
Nesta esteira, sendo necessária para a expressão de uma idéia ou de uma proposição a linguagem, a retórica
impõe-se como forma de estabelecer esta linguagem entre os sujeitos do diálogo, para o fim de lograr o objetivo
inicialmente concebido para a proposição (e também para a prova): o convencimento. “Um raciocínio, tradicional na
história da filosofia, faz qualquer conhecimento depender, em última instância, de uma evidência, intuitiva ou sensível:
ou a proposição é objeto de uma evidência imediata ou resulta, por meio de certo número de elos intermediários, de
outras proposições cuja evidência é imediata. Apenas a evidência forneceria a garantia suficiente às afirmações de uma
ciência que se opusesse, de maneira igualmente tradicional, às opiniões, variadas e instáveis, que se entrechocam em
controvérsias intermináveis e estéreis, que nenhuma prova reconhecida permite dirimir”40.
b) Este meio deve enquadrar-se nas prescrições legais atinentes à matéria (ainda que a lei autorize a liberdade
plena destas vias), sendo que estes comandos representam os critérios prévios, determinantes da possibilidade do
“diálogo”; assim é que estas determinações de lei podem regular tanto o modo de formação da prova, como sua
produção dentro do processo, como ainda podem condicional a sua força probante no limite do convencimento do
Estado-Jurisdição (prova legal).
O discurso judicial, isto é por todos reconhecido, apresenta particularidades especiais, na medida em que se
estabelece dentro de critérios fixados por lei. Deve, portanto, sempre considerar o Direito vigente como parâmetro para
o discurso 41, e é neste sentido que as prescrições do Direito devem ser considerados na formulação de uma definição de
prova. É evidente que sempre se pode questionar a validade da lei, em que alguém se apoia para formular seu
discurso42; ainda assim, a lei não deixa de manifestar-se como elemento a ser considerado na avaliação de qualquer
argumento jurídico.

4. A PROVA INDICIÁRIA NO DIREITO BRASILEIRO

Postas estas considerações, cabe agora ingressar diretamente no exame da prova indiciária, frente aos princípios
anteriormente expostos, observando de maneira crítica a atual visão da doutrina em relação a esta espécie de prova.
Inicialmente, vale ressaltar que, não raro, os únicos elementos de que dispõe o magistrado para julgar o caso que
se lhe põe a exame são elementos circunstanciais, que de modo algum apontam diretamente para o fato. Especialmente
em matéria criminal, tem-se inúmeros casos em que as únicas evidências de que o fato ilícito efetivamente ocorreu
apresentam-se sob forma indireta, sendo humanamente impossível exigir-se outros meios de prova do fato. Lembra, a
este respeito, JAIRO PARRA QUIJANO 43 que “quien realiza un acto lícito voluntariamente y como medida de
seguridad por imposición de la ley lo documenta, lo hace frente a testigos, o le es indiferente que se presencie su
realización, aún en el mismo acto de simular, los documentos o comportamientos que se fingen, son en cierta forma
realizaciones voluntarias que permiten descubrir el acto oculto o la no realización del acto. Por el contrario, quien
prepara la comisión de un delito procura hacerlo de tal manera que nadie lo presencie; sin embargo, por ser éste un
comportamiento humano que afecta en alguma forma la realidad, deja huellas produzidas en la comisión del mismo
que permiten descubrirlo e identificar a su autor”.
Apenas para exemplificar a questão, tome-se o exemplo do delito de moeda falsa (capitulado pelo art. 289 do
Código Penal): entende a doutrina que o fato somente é típico se a falsidade da moeda for de boa qualidade (caso

39
PERELMAN, Chaïm. Retóricas, ob. cit., p. 164/165.
40
PERELMAN, Chaïm. Retóricas, ob. cit., p. 154.
41
Cf. ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica – la teoría del discurso racional como teoría de la fundamentación jurídica. Ob. cit., p.
206.
42
Cf. crítica procedente lançada a ALEXY por MANUEL ATIENZA (Las razones del derecho – teorías de la argumentación jurídica. Madrid:
Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 237).
43
“Prueba indiciaria en el codigo de procedimiento penal brasilero y codigo de procedimiento penal italiano y su complementación con paises
europeos y americanos”. Revista de processo, n. 99. São Paulo: RT, julho-setembro/2000, p. 234.
contrário, o fato poderá constituir crime de estelionato); todavia, se a adulteração efetivamente é de boa qualidade, pode
acontecer que também ela tenha enganado a própria pessoa que pôs em circulação a moeda (e é este o mais freqüente
argumento utilizado em defesa dos autores desta espécie de ilícito). Ora, em casos como este, ou se admite a prova
indiciária, para a comprovação do dolo do agente (e de sua prévia ciência da falsidade), ou então ter-se-á sempre como
impossível a caracterização do crime44.
Este exemplo, tomado ao acaso, bem demonstra a importância que pode assumir a prova indiciária dentro de um
sistema. A autorização de sua utilização (ou sua negação) pode trazer relevantes reflexos no que atine a incidência das
regras jurídicas, evitando o recurso (às vezes exagerado) à técnica da presunção legal, em casos em que a prova de certo
fato seja extremamente difícil. Com efeito, a restrição contida em um sistema quanto à admissão da prova meramente
indiciária como supedâneo para a formação da convicção do juiz leva, muitas vezes, o legislador a criar uma presunção
legal, a fim de suprir a deficiência natural da prova em relação àquele específico caso 45. É esta, por exemplo, a situação
da comoriência em Direito Civil (art. 8o do Código Civil); diante da dificuldade concreta em se indicar qual pessoa teria
morrido antes (em um evento em que ambos faleceram), impõe a lei que se suponha que todos morreram no mesmo
instante. O mesmo se há de dizer — mas com gravidade muito maior — em relação à presunção constante do art. 28, da
Lei nº 5.250/67, que supõe que o escrito anônimo, publicado em jornal presume-se redigido pelas pessoas ali
capituladas, ainda que não exista qualquer evidência desta origem.
De toda sorte, vedando-se o uso da prova indiciária e também sem recorrer às presunções legais, corre-se o risco
de sempre cair na vala comum da absolvição de instância por falta de prova. Como sabido, embora este recurso seja
usual no processo penal – tendo ainda incidência em algumas situações do processo civil (como nas ações coletivas) –
representa ela a maior demonstração da falha no desenvolvimento da atuação judicial. CARNELUTTI, com efeito,
veementemente critica esta figura, considerando que “entende-se até que o juiz possa ter esta tentação; entende-se, ao
contrário, menos que, no campo do processo penal o legislador lhe autorize a ceder à tentação. A assim chamada
absolvição por insuficiência de provas, com efeito, não é que uma rejeição de escolher; e portanto denuncia, como disse
várias vezes, o insucesso da administração da justiça. Entre o sim e o não, o juiz, quando absolve por insuficiência de
provas, confessa a sua incapacidade de superar a dúvida e deixa o acusado na condição em que se encontrava antes do
processo: acusado por toda a vida” 46.
Impõe-se, assim, exame detido da matéria aqui versada, pois constitui ela verdadeira pedra de toque, divisor de
águas entre o uso indiscriminado das presunções legais e da prova (direta) impossível. A idéia das presunções judiciais
parte do exame de que o conhecimento de certos fatos pode ser induzido da verificação de um outro fato, ao qual,
normalmente, aquele primeiro está associado 47. Ou seja, partindo-se da convicção de ocorrência de um certo fato
(indício), pode-se, por raciocínio lógico, inferir a existência de outro fato (objeto a ser provado), já que, comumente, um
decorre do outro ou devem, ambos, acontecer simultaneamente. Com base nesta raiz (que, será visto adiante, nem
sempre estará na origem de todas as presunções) é que se admite a utilização de um fato para a prova de outro.
E, a partir daí, deste conceito elementar, cria-se em direito uma rica doutrina a respeito desta “prova crítica”,
capaz de facilitar — em situações particulares — os mecanismos de prova de que se serve a parte para trazer sua

44
A respeito, pondera GERHARD WALTER que “también son muchas las sentencias en las cuales evidentemente no se está criticando la duda del
juez, que el tribunal de casación comparte, sino que se están haciendo bastar ciertas verosimilitudes, con el auxilio de la prueba por presunción simple
para evitar ‘que exigencias demasiado severas en materia de prueba restrinjan desmesuradamente la tutela jurídica’” (WALTER, Gerhard. Libre
apreciación de la prueba. Bogotá: Temis, 1985, p. 230).
45
Informa LEO ROSENBERG, sobre esta questão, que muitos autores efetivamente consideram ser esta a função da presunção: distribuir o ônus da
prova de maneira tal a permitir o mais fácil trato dos fatos. Como leciona o processualista, “hoy todavía se encuentra la opinión de que toda
distribución de la carga de la prueba tiene su fundamento en la existencia o inexistencia de una presunción” (ROSENBERG, Leo. La carga de la
prueba. Trad. Ernesto Krotoschin. Buenos Aires: EJEA, 1956, p. 180).
46
CARNELUTTI, Francesco. “Verità, dubbio, certeza” in Rivista di diritto processuale, vol. XX (II Série). Padova: CEDAM, 1965, p. 7.
47
O Código de Processo Penal brasileiro expressamente define a prova indiciária, dizendo, em seu art. 239, que “considera-se indício a circunstância
conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias”. Conquanto o
Código de Processo Civil brasileiro não conte com noção semelhante, o direito comparado fornece elementos capazes de apontar para o mesmo
sentido acima transcrito. Assim, também a lei civil italiana, neste passo, assim define a idéia de presunção (aí incluindo-se a noção de presunção
judicial e legal): “Art. 2727. As presunções são as conseqüências que a lei ou o juiz extrai de um fato conhecido para remontar a um fato ignorado"
("le presunzioni sono le conseguenze che la legge o il giudice trae da un fatto noto per risalire a un fatto ignorato").
pretensão em juízo. É importante notar, de fato, que as presunções assumem papel relevante neste campo, prestando-se
por vezes como uma espécie de “redução do módulo de prova” 48, aplicando técnica de diminuição das exigências legais
e judiciais sobre a solidez das provas apresentadas que se tem como necessário para assumir um fato como verossímil.
Por outras palavras: verificando o legislador ou o magistrado que a prova de certo fato é muito difícil ou especialmente
sacrificante, poderá servir-se da idéia de presunção (seja legal ou judicial) para montar um raciocínio capaz de conduzi-
lo à conclusão da ocorrência do fato, pela verificação do contexto em que normalmente ele incidiria 49. Este poderoso
instrumento, como se observa, é importante aliado do processo para a prova de fatos de difícil verificação ou de incerta
ocorrência (como os fatos futuros, no caso de ações inibitórias).
Conforme a inferência do fato probando através do fato provado se dê pelo juiz ou pelo legislador, costuma-se
falar em presunções judiciais e presunções legais. Esta última categoria comporta, ainda, uma subdivisão, estabelecida
entre as presunções relativas (iuris tantum) e absolutas (iuris et de iure). Aos objetivos deste estudo, interessam
exclusivamente as presunções judiciais, razão pela qual não se dará maior importância às legais, já que o que aqui se
objetiva é, precisamente, demonstrar como a utilização da prova indiciária pode prestar-se para afastar o recurso normal
(adotado por várias legislações) às presunções e ficções legais.
Determinado o ponto central desta investigação, é oportuno lembrar que as presunções judiciais também são
chamadas, por alguns, de presunções simples ou ainda de præsumptiones hominis. Como visto, tem-se aqui a dedução
da ocorrência de um fato pela verificação (prova) de outro fato, através de raciocínio executado, exclusivamente, pelo
juiz — sem qualquer interferência apriorística do legislador. Recorrendo às palavras de PROTO PISANI, estas
presunções “consistem no raciocínio pelo juiz, uma vez adquirido através de fontes materiais de prova (ou mesmo
através do notório ou em seqüência da não contestação) o conhecimento de um fato secundário, dirigido a deduzir deste
a existência ou não do fato principal ignorado” 50.
O conhecimento do fato probando resulta de uma inferência lógica, formulada pelo magistrado a quem é
submetida a causa, a partir do conhecimento de outro fato — que se prova nos autos — e ao qual, normalmente, a
ocorrência daquele primeiro está ligada. Há, então, um fato “secundário” (externo à causa de pedir, não pertencente ao
material fático da demanda) provado e, por sua ocorrência, se extrai a conseqüente existência (ou inexistência) do fato
“primário” (pertencente à causa de pedir e cuja afirmação efetivamente consubstancia objeto de prova), em que se tinha,
efetivamente, interesse. Este juízo é possível diante de um critério racional indutivo de normalidade ou de probabilidade
lógica da coexistência de ambos os fatos. Ou seja, tem-se, no cerne da figura, uma idéia de silogismo: ocorrendo o fato
A, sempre deve ocorrer o fato B; verificada a ocorrência do fato A, então também ocorreu o fato B. Ou, com maior
apuração, na explicação de COMOGLIO, FERRI e TARUFFO, “existe um fato F, conhecido pelo juiz, que pode ser
tido como premissa de uma inferência I, fundada sob um critério C (solidamente constituído por máximas da
experiência: [...]), a qual consente a atribui um grau G de correção à asserção pela qual o fato a prova FP é verdadeiro
ou falso” 51.
Como fica claro da análise dos esquemas apresentados, a adequação ou não da inferência lógica está calcada na
maior ou menor precisão das premissas utilizadas para subsidiar a conclusão, ou seja, no grau de “certeza” que se tem
da efetiva ocorrência do fato secundário e no grau de vinculação que existe entre a verificação deste e a conseqüente e
necessária existência do fato primário (ou, utilizando o esquema de COMOGLIO, FERRI e TARUFFO, na consistência

48
A respeito, consulte-se as considerações formuladas no capítulo precedente. V. tb. WALTER, Gerhard. Libre apreciación de la prueba, ob. cit., p.
229 e ss. (com ampla análise do tema em relação às presunções e perfilhamento de inúmeros exemplos, ligados ao direito alemão).
49
Como assevera GERHARD WALTER, citando Musielak, “MUSIELAK comprovou, em um estudo recente em que ele analisa diversos julgados da
Corte Federal de Justiça, que na prova por presunção simples o módulo de prova se reduz a uma preponderância da verossimilhança” (WALTER,
Gerhard. Libre apreciación de la prueba, ob. cit., p. 229).
50
PROTO PISANI, Andrea. Lezioni di diritto processuale civile, Napoli: Jovene, 1994, p. 484.
51
COMOGLIO, FERRI e TARUFFO. Lezioni sul processo civile, 2a ed., Bologna: il Mulino, 1995, p. 652.
do critério C e, por via lógica, do grau G). É, então, a convicção que se tenha na inexorabilidade da procedência da
ilação formulada que repousa o grau de credibilidade da presunção judicial 52.
Desta necessidade de um juízo intermediário, entre a prova do fato ocorrido e a conclusão da existência do outro
fato, questiona a doutrina a efetiva natureza probatória das presunções. Como atesta BARBOSA MOREIRA, “parece
bastante claro que tal presunção não constitui, a rigor, meio de prova, ao menos no sentido que se dá a semelhante
locução quando se afirma que é meio de prova, v.g., um documento ou o depoimento de uma testemunha. O processo
mental que, a partir da afirmação do fato x, permite ao juiz concluir pela afirmação também do fato y, não se afigura
assimilável à atitude da instrução, em que se visa a colher elementos para a formação do convencimento judicial.
Quando o juiz passa da premissa à conclusão, através do raciocínio ‘se ocorreu x, deve ter ocorrido y’, nada de novo
surge no plano material, concreto, sensível: a novidade emerge exclusivamente em nível intelectual, in mente iudicis.
Seria de todo impróprio dizer que, nesse momento, se adquire mais uma prova: o que se adquire é um novo
conhecimento, coisa bem diferente”53. De fato, o raciocínio, por si só, não pode constituir-se em meio de prova. E, o
que se tem na presunção é a prova — através de um meio de prova próprio (como o documento, o testemunho etc.) —
de um fato e um raciocínio que conduz à conclusão de que outro fato, ligado àquele, também ocorreu 54. Parece claro,
aqui, que quando se fala em presunção se pretende designar, em verdade, e como bem observou CARNELUTTI55, uma
fonte de presunção; isto porque, realmente, a presunção é o resultado do raciocínio e não o mecanismo que o admite56.
Por esta mesma razão, a sistemática de “produção” das presunções em juízo não difere, em nada, da produção de
qualquer prova: será necessário produzir-se uma prova57, com a ressalva de que esta prova não incidirá sobre fato da
causa, mas sobre fato externo a esta, que se liga a algum fato da causa por um raciocínio indutivo lógico.
Elemento indissociável da idéia desta presunção (judicial) é a noção de indício. Como visto, o princípio do
raciocínio presuntivo calca-se na verificação concreta de outro fato (do qual se extrairá a ocorrência do fato principal).
Este fato secundário, cuja verificação é possível pelos meios probatórios normais, é que se chama de indício (razão pela
qual também se denomina as presunções de provas indiciárias, e isto com maior propriedade, já que a presunção, como
visto, representa o raciocínio e não a prova em si) 58. Como lembra SCHÖNKE, “fala-se em prova imediata se está
dirigida ao fato de cuja demonstração se trata; assim, por exemplo, no litígio sobre a celebração de um contrato, o
interrogatório de uma testemunha que presenciou as negociações contratuais. Uma prova indiciária existe, ao contrário,
quando se provam diretamente fatos dos quais se deduzam os de significação imediata para a prova. Assim, por
exemplo, trata-se de uma prova indiciária se para provar que entre as partes concluiu-se um contrato, interroga-se
pessoas às quais aquelas referiram algo sobre a celebração do mesmo” 59.
Também a natureza específica do indício é objeto de controvérsias na doutrina. BARBOSA MOREIRA critica a
equiparação do indício aos demais meios de prova. Segundo afirma, com invejável clareza, “o que o indício tem em
comum com um documento ou com o depoimento de uma testemunha é a circunstância de que todos são pontos de
partida. Enquanto, porém, o documento ou o testemunho são unicamente pontos de partida, o indício, repita-se, já é, ao
mesmo tempo, um ponto de chegada. Não, ainda, o ponto final; mas um ponto, sem dúvida, a que o juiz chega mediante
o exame e a valoração do documento ou do depoimento da testemunha. O indício, para resumir, é ponto de partida em
52
Neste passo, diz o art. 1.253 do Código Civil espanhol que “para que as presunções não estabelecidas pela lei sejam apreciáveis como meio de
prova, é indispensável que entre o fato demonstrado e aquele que se trate de deduzir exista um enlace preciso e direto”. Aliás, assim já ensinava
PAULA BAPTISTA, dizendo que presunções comuns (judiciais) são “as que o homem tira daquilo que ordinariamente acontece. Podem ser
violentas, graves e leves, segundo é necessária, natural, ou assaz falível a ligação do fato sabido com o que se procura saber” (PAULA BAPTISTA,
Francisco de. Teoria e prática do processo civil e comercial, São Paulo: Saraiva, 1988, p. 103). V. tb., para o direito anglo-americano, JAMES Jr.,
Fleming, HAZARD Jr., Geoffrey C., LEUBSDORF, John. Civil procedure, 4ª ed., Boston: Little, Brown and Company, 1992, p. 346 e ss.
53
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. “As presunções e a prova”, Temas de direito processual. 1a série, 2a ed., São Paulo: Saraiva, 1988, p. 57.
54
Vale ponderar, todavia, que em se considerando como meio de prova um argumento, destinado ao convencimento do magistrado sobre a
atendibilidade ou não da pretensão inicialmente exposta (v. capítulo 2 desta introdução) então não haverá dificuldade em considerar as presunções,
como argumentos que são, também como meio de prova.
55
CARNELUTTI, Francesco. La prova civile, ob. cit., p. 235.
56
Cf. GUASP, Jaime. Derecho procesal civil, tomo I, 4ª ed., Madrid: Civitas, 1998, p. 382.
57
Salvo no caso em que este fato conhecido (fato secundário) possa ser extraído pela via do conhecimento vulgar ou pelas máximas da experiência.
58
Em sentido semelhante, v. ALSINA, Hugo. Tratado teorico practico de derecho procesal civil y comercial, tomo III, 2ª ed., Buenos Aires: Ediar,
1961, p. 683.
59
SCHÖNKE, Adolfo. Derecho procesal civil, Barcelona: Bosch, 1950, p. 198.
confronto com a presunção, e é ponto de chegada em confronto com a prova documental ou testemunhal. Tanto basta,
ao nosso ver, para que seja impróprio colocá-lo no mesmo nível destas” 60.
Em essência, seria possível dizer que o que difere, em termos claros, o indício da prova não é propriamente
algum aspecto intrínseco a cada uma destas figuras ou à sua estrutura própria. Isto porque também o indício deve ser
provado; também haverá prova sobre o fato secundário, que se destina a permitir a conclusão da existência do fato
primário. Ao que parece, a distinção básica está na afirmação de fato a que se destina comprovar 61. Como visto,
somente há sentido em falar-se de prova no âmbito das afirmações de fato que suportam o thema decidendum ou, mais
precisamente, no espaço criado pelos argumentos do autor, que embasam seu pedido, e pelos argumentos do réu, que
conformam as exceções apresentadas para a rejeição daquele pedido (ou seja, somente no espaço das afirmações de fato
controvertidas no processo). O indício, contudo, representa situação diversa, em que tais considerações não procedem:
aqui, o objeto da “prova” que será realizada não é um fato do conteúdo do conflito, mas um fato externo, sequer alegado
pelas partes em seus petitórios (e, portanto, não controvertido). A parte interessada na presunção produzirá uma prova
sobre um fato inusitado ao material dos autos, a fim de tentar, com esta prova, conduzir o julgador à conclusão de que
outro fato também existiu.
Em vista destas colocações, pode-se dizer que algumas peculiaridades interferem na matéria de prova indiciária,
e que merecem alguma atenção. Inicialmente, conforme pondera GUASP, em virtude da natureza de processo mental
lógico que conforma a presunção, não se cogita de aplicar-lhes as regras normais sobre lugar, tempo e forma para a sua
produção62. Além disso, como já observado, para o exame do cabimento ou não da prova (documental, testemunhal
etc.) do indício (do fato secundário), o juiz não poderá basear-se na presença desta alegação de fato dentre os
argumentos da petição inicial ou da resposta do réu ou, mesmo, na ausência de controvérsia específica sobre este fato
(não impugnação específica); como visto, porque este fato secundário é fato externo à demanda, é certo que tais
situações sempre podem apresentar-se (sendo mesmo da essência do instituto que ocorram) razão pelo que não podem
constituir-se em óbice à produção desta prova. De outra parte, poderá o juiz indeferir a produção da prova do indício
(do qual se pretende obter a presunção) se verificar que ainda que se tenha aquele fato como existente, a conclusão de
existência do fato primário não lhe segue como conseqüência natural 63; a inidoneidade da ponte mental hipotética para a
certeza do fato que se pretende efetivamente ter como existente é elemento, como já visto, imprescindível para a
garantia do raciocínio. Enfim, também pode o magistrado indeferir a produção da prova do indício quando o meio que a
parte pretende utilizar para tanto for inadequado (por exemplo, quando se exija, para a prova do indício, certo meio
específico, como o documental, e a parte pretenda comprová-lo por outra via); neste caso, o silogismo de inferência será
inadequado porque há vício na prova do fato-origem (secundário) do raciocínio.
Finalmente, e ainda tratando das presunções judiciais, releva ponderar que o valor e a força desta ilação assenta-
se na capacidade que esta tenha de satisfazer os seus aspectos intensivo e extensivo 64. Pelo segundo critério (extensivo),
é imprescindível que a presunção seja apta a demonstrar a totalidade do fato probando (daquele fato principal, que se
pretende provar). E, para satisfazer ao outro critério (intensivo), depende o indício da demonstração de que daquele fato
(indiciário) não pode decorrer outro fato que não seja aquele que se deseja provar. Sucede, então, que a demonstração,
pela parte contrária, de que o indício não cobre a totalidade do fato probando ou ainda de que daquele fato secundário
podem advir outros fatos que não apenas o fato principal, é elemento suficiente para abalar a credibilidade da presunção
formada 65 — e quanto mais forte se torna esta demonstração, menos razoável se apresenta a presunção. Prosseguindo

60
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. “As presunções e a prova”, ob. cit., p. 59. Em sentido contrário, v. GUASP, Jaime. Derecho procesal civil,
tomo I, ob. cit., p. 383.
61
Cf. GUASP, Jaime. Derecho procesal civil, tomo I, ob. cit., p. 382.
62
GUASP, Jaime. Derecho procesal civil, tomo I, ob. cit., p. 384. Como diz o autor, “a parte normalmente formulará as suas presunções quanto
exponha as alegações em que aquelas se embasam; o juiz as recolherá, com a valoração que mereçam, na decisão final do litígio” (ob. cit., p. 384).
63
Seja porque do fato provado (indício) podem, segundo as máximas da experiência, resultar inúmeros outros fatos (e não apenas aquele que se
pretende ter como conclusão lógica), seja porque o fato provado de forma alguma gera a elaboração mental indutiva pretendida.
64
A denominação é oriunda do direito americano (v. JAMES Jr., Fleming, HAZARD Jr., Geoffrey C., LEUBSDORF, John. Civil procedure, ob. cit.,
p. 349).
65
JAMES Jr., Fleming, HAZARD Jr., Geoffrey C., LEUBSDORF, John. Civil procedure, ob. cit., p. 349.
ainda neste raciocínio, é possível concluir que, por outro lado, os indícios podem somar-se — quando todos convergem
para a mesma conclusão — para reafirmar a adequação da ilação formulada.

5. O INDÍCIO COMO MEIO RETÓRICO

Da exposição sucinta sobre o regime oferecido pelo direito à prova indiciária, pode-se convir que este meio de
prova é aquele que mais se aproxima do conceito de retórica que anteriormente se alinhavou. Com efeito, é a prova
indiciária aquela que mais autoriza o intérprete (e os demais sujeitos do discurso judicial) a exercitarem sua capacidade
argumentativa, a fim de que se estabeleça o necessário vínculo de dependência entre o fato principal e o fato provado —
entre a concordância existente entre o fato trazido aos autos (indício) e aquele outro que se pretendia demonstrar e, mais
que isto, entre o nexo de dependência que liga estes fatos no plano concreto.
Efetivamente, não obstante se tenha dito, linhas acima, que a força dos indícios reside na vinculação que é capaz
de oferecer em referência à ocorrência do fato a ser provado 66, é certo que esta determinação está na direta vinculação
ao conhecimento que o magistrado (ou aquela pessoa a quem se destina o uso do indício) do mundo que o cerca, das
circunstâncias que ligam o indício ao fato a ser provado e das relações naturalmente estabelecidas entre as coisas 67.
A afirmação pode chocar, em princípio, mas resulta da pura essência da figura em exame. Com efeito, todo o
indício pode ser considerado como forte ou fraco, como inexorável em relação ao fato probando ou não, segundo o
sistema em que se insere o instituto. Apenas a título de exemplo, recorde-se que, na Idade Média, o fato de alguém
sobreviver aos suplícios da tortura era sinal de que esta pessoa tinha razão — daí decorre que este indício, para aquele
sistema, era perfeitamente condizente com a conclusão de que, quem sucumbisse aos tormentos da tortura não se
encontrava na proteção divina e, portanto, mentia.
Inexoravelmente, portanto, a avaliação do indício decorre da sua inserção em determinado sistema, e é aí que a
retórica mostra sua força. O mesmo fato pode, segundo certas condições, autorizar certas conclusões e, sob condições
distintas, conduzir a resposta antagonicamente distinta. De outra parte, sistemas diferentes podem chegar à mesma
conclusão, a partir de princípios distintos. De tudo isto, uma idéia essencial pode ser extraída: os indícios podem,
sempre, gerar inúmeras conclusões, dependendo tudo do grau de convencimento que o magistrado adquire a partir do
exame da ilação; e, este grau de convencimento está na relação direta com infinitas convicções íntimas que o juiz
guarda em sua conformação pessoal. 68

66
Neste sentido, “requisito primordial da prova indiciária ‘é a certeza da circunstância indicante’” (TOURINHO FILHO, Fernando da Costa.
Processo penal, vol. 3. 15a ed., São Paulo: Saraiva, 1994, p. 309). Também assim entende a jurisprudência, como se tem do seguinte acórdão do
Supremo Tribunal Federal:
"HABEAS-CORPUS". Trafico de entorpecente. Indícios. Inexistência de causa para condenação. Arts. 157 e 239 do CPP.
Os indícios, dado ao livre convencimento do Juiz, são equivalentes a qualquer outro meio de prova, pois a certeza pode provir deles. Entretanto,
seu uso requer cautela e exige que o nexo com o fato a ser provado seja lógico e próximo.
O crime de tráfico ilícito de entorpecente não exige o dolo específico, contentando-se, entre outras, com a conduta típica de "ter em deposito, sem
autorização".
O rito especial e sumário do "habeas-corpus" não o habilita para simples reexame de provas.
"Habeas-corpus" conhecido, mas indeferido.” (STF, 2a Turma. HC nº 70.344/RJ, rel. Min. Paulo Brossard, DJU 22.10.93, p. 22.253).
No mesmo sentido:
HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. CONDENAÇÃO. INDÍCIO. SIMPLES RESIDÊNCIA EM REPÚBLICA ESTUDANTIL ONDE
APREENDIDA MACONHA.
1. A simples residência na casa (república) onde apreendida droga, isoladamente, não oferece base segura a uma condenação, máxime quando nada
foi encontrado pelos agentes da autoridade policial em poder da paciente ou entre seus pertences ou em seu quarto. A condenação com base em
indícios somente terá lugar, conforme advertência da doutrina, quando a relação entre o fato demonstrado (residência na república de estudantes) e o
fato que se infere (tráfico de drogas), "seja tão certo e evidente de modo a não ser possível uma conclusão diversa daquela a que se chega".
2. Ordem concedida” (STJ, 6a Turma. HC nº 8.928/SP, DJU, 24.05.99, p. 205).
67
A propósito, confira-se a lição de FRANCO CORDERO, que diz que “ogni prova non classificabile così appartiene alla seconda classe: funzione
induttive. I vecchi retori le chiamavano ‘probationes artificiales’, perché esigono abilità dialettica le elabora l’oratore): qui mancano comunicante e
texto; ci sono dei segni, non trasparenti la cui valenza ‘indicativa’ dipende da quanto sappiamo de rebus mundi. (...) L’argomento induttivo rende
al massimo sui cosiddetti ‘signa necessaria’: dove, rilevato x, sai inferibile solo y; ma più spesso risultano formulabili ipotesi alternative, da vagliare
singolaremente, finché ne resti solo una” (CORDERO, Franco. Procedura penale. Ob. cit., p. 548).
68
Calha trazer à baila, neste momento, a crítica de FRANCO CORDERO, a dizer que “sul piano logico-formale tutti i sistemi, purché coerenti, sono
egualmente validi: Pasteur e i suoi antagonisti deducono bene ma uno usa modelli sperimentali, mentre i luminari della medicina ripetono dogmi
falsificabili” (Procedura penale, ob. cit., p. 569/570).
Tome-se o exemplo de Lombroso e seus experimentos a respeito do homem delinqüente. Conquanto se possa
tomar as idéias do estudioso como perfeitamente coerentes com sua época — e com os valores, crenças e preconceitos
(“pré-conceitos”) daquele tempo) — notoriamente tais conceitos hoje não têm mais aplicação. Se, portanto, o perfil
lombrosiano poderia significar, para aquela época, indício de autoria de algum fato criminoso, na atualidade este mesmo
raciocínio seria totalmente rechaçado, sendo de todo incompatível com o pensamento moderno.
Mesmo o avanço científico pode alterar a vinculação existente entre o indício e o fato a ser provado, seja para
estabelecer este vínculo, seja para negá-lo. Isto porque as novas conclusões científicas podem criar vínculos entre fatos
antes inexistentes, ou destrui-los, ante a evidência de que a antiga suposição (de implicação) existente era inválida.
Obviamente, porém, todos estes dados podem estar mais acessíveis a algumas pessoas, do que a outras. O
magistrado pode ser pessoa culta e instruída a respeito das novidades tecnológicas, ou não. Precisamente por isso é que
se deve emprestar — especialmente em tema de prova indiciária — força à retórica no processo. A presença de um
indício (por mais forte, grave e preciso que seja), por si só — ou mesmo de outro qualquer meio de prova — pouca
coisa acrescentará ao convencimento judicial, se não vier acompanhada de um trabalho árduo, dos sujeitos do processo,
no sentido de analisar a prova e considerar sobre ela.
Com efeito, se todas as provas são componentes da argumentação judicial, como se disse anteriormente, todas
elas são apenas pontos de apoio do discurso e elementos iniciais, que permitem o desenvolvimento do debate. O
ingresso de uma prova (aí incluído o indício) no processo não é um fim, mas antes o princípio da ação dirigida ao
convencimento do magistrado. E este trabalho de retórica — seja no que pertine aos indícios, seja mesmo no que diz
aos demais meios de prova — é tanto mais árduo quanto mais resistentes são os preconceitos judiciais.
Como pondera PERELMAN, a fim de que se possa estabelecer a argumentação e o diálogo, é preciso que o
auditório que assiste ao discurso esteja disposto a ser convencido, sob pena de inviabilizar-se a função do discurso e,
mais que isto, frustrar, mesmo a priori, a intenção e a motivação do locutor.
Por isso, em conclusão, insta que se veja com novos olhos a prova indiciária no sistema processual brasileiro.
Somente esta alteração na visão clássica sobre o instituto é que permitirá o recurso (necessário, muitas vezes) a este
meio de prova, autorizando-se a redução dos casos em que o legislador, para a prova de certos fatos, recorre à via da
fixação das presunções legais.
Indubitavelmente, o sistema dos indícios é muito superior ao das presunções impostas abstrata e genericamente
pelo legislador. Mas, para que este sistema tenha condições operacionais, insta confiar na figura do magistrado e
auxiliá-lo a desvencilhar-se de vetustos preconceitos que carrega, ao examinar um indício e, especialmente, ao
considerar a argumentação que se trava sobre este.

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Texto inserido em 22/3/2005.


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De acordo com o que estabelece a NBR 6023:2002 (ago/2002) da ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas, a referência total ou parcial a este texto (documento
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