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FREI JOÃO SEM CUIDADOS

Primeiro acto

No palácio real, na sala do trono

Rei (falando só) — Um homem que não se aflige com coisa nenhuma deste mundo!
Sempre quero ver!… A receita vale um troco! Evitava-me rugas e cabelos brancos, olarila!
Oxalá não demore!
Pajem — Majestade, chegou Frei João Sem Cuidados…
Rei — Manda-o entrar, manda-o entrar, sem mais tardança!
Frei João (inclinando-se) — Real senhor!
Rei — Sabes porque te mandei chamar à minha presença?
Frei João — Eu não, real senhor! (Olhando pasmado para tudo) Não atino que
possa querer de mim, pobre fradinho humildoso, vossa majestade, mas eu estou às suas
ordens.
Rei — E vieste assim descuidado?… Sem aflições?
Frei João — Quem não deve, não teme, porque havia eu de afligir-me?!
Rei (à parte) — Começo a crer, começo a crer que temos homem! (Dirigindo-se a
Frei João) Então és tu o tal que não se aflige com coisa nenhuma, não é verdade?
Frei João — Bem… Não semeio, nem colho. Os filhos não me choram por pão…
Não tenho cuidados…
Rei — Homem feliz! Outro tanto não posso eu dizer…
Frei João — O quê?! Vossa majestade não é feliz?…
Rei — Aqui neste palácio sua-se aflição. A rainha aflige-se, porque engordou com a
idade e a moda não a favorece. Os meus ministros afligem-se, porque o povo não quer pagar
mais impostos. Aflijo-me eu sem saber a quem atenda: se ao povo, se aos ministros. Como
vês, estou entalado entre aflitos e aflições…
Frei João —Não era de crer, mas começo a dar-me conta…
Rei — Por isso te mandei chamar. Queria conhecer o homem que no meu reino se
não aflige com coisa nenhuma… Mas a ver vamos, a ver vamos. Preciso de tirar a prova dos
nove ao teu viver sem cuidados…
Frei João — A prova dos nove?!
Rei — Sim, a prova dos nove. Preciso de me certificar que isso não é só de boca, que
é de fundo e de raíz… E vou propor-te um enigma.
Frei João — Sou todo ouvidos, majestade!
Rei — Assim espero! Assim espero, porque se não mo souberes decifrar no prazo de
três dias, mando-te matar!
Frei João — Matar?!… A mim?!
Rei — Sim, a ti, se me não souberes quanto pesa a Lua, quanta água tem o mar e o
que é que eu penso.
Frei João (gaguejando) — S-sim, sim, majestade!
Rei — E, agora, podes retirar-te. Daqui a três dias espero-te com a resposta…
Lembra--te que o caso é de vida ou de morte! (Dirigindo-se ao pajem) Acompanha Frei
João!
Segundo acto

Num caminho da aldeia.


Ao longe branqueja o convento.

Frei João (pensativo e falando alto) — Vivia eu feliz sem querer saber de rei nem
roque e agora uma destas! Ora a minha vida! Eu sei lá quanto pesa a Lua e o que é que ele
pensa. Pensa em dar-me cabo do canastro, pelos vistos! Ai, Frei João, Frei João, chegam-te
os cuidados e com eles o fim dos teus dias!
Moleiro (prazenteiro) — Boas tardes, senhor Frei João! Mas… que é isso? Que tem
vossa senhoria que, não estando nós na Quaresma, o vejo com cara de Sexta-Feira Santa?!
Frei João — Se lhe parece! Nascem-me aflições debaixo dos pés!
Moleiro — Boa te vai! Então, como é isso, senhor Frei João, já desdiz do nome?
Que lhe aconteceu?
Frei João — Ai deixe-me cá, homem! Imagine que o rei me mandou chamar para
me propor um enigma… e se no prazo de três dias lho não adivinho vai este cristão dar
contas da vida, porque me manda matar!
Moleiro — Ora, ora, senhor Frei João, o mundo é uma bola, em três dias dá muita
volta… Mas afinal qual é o enigma?
Frei João — Olhe, eu nem sei se é enigma se é sentença de morte…
Moleiro — Pelos vistos o caso é sério e está metido em trabalhos!
Frei João — Mas que trabalhos! Piores do que os de Nosso Senhor que tinha a
glória certa!… Como é que eu hei-de saber, se não sou sábio nem bruxo, quanto pesa a Lua,
quanta água tem o mar e o que é que ele pensa?!
Moleiro (dando uma gargalhada) — Ah! Ah! Ah! Deixa-me rir!… E com isso se
aflige, senhor Frei João?! Ah! Ah! Ah!
Frei João — Então não me havia de afligir, homem de Deus?! (Agastado) Pare lá
com a mangação, porque a mim o caso não me parece para rir, mas para chorar!
Moleiro — Qual chorar, nem meio chorar! Toque-me à aleluia! E deite-me as
aflições para trás das costas que chegado o prazo quem vai ao palácio sou eu! Daqui a três
dias só tem que me emprestar a pele do hábito, já que a farda faz o soldado.
Frei João (incrédulo) —Homem, mas você sabe ao que se arrisca?! (Decidido) Não,
não posso consentir!
Moleiro — Não arrisco coisa nenhuma. Tenha confiança! Vá à sua vida, vá à sua
vida, senhor Frei João, que eu mais o burro vamos à nossa!
Frei João (atalhando) — Mas…
Moleiro — Aqui não há mas, nem meio mas. E nada de aflições que a mim de
contente se me ri o dente, salvo seja, como ao asno quando vê palha! Santas tardes, senhor
Frei João, santas tardes!

Terceiro acto

No palácio real, na sala do trono, passados três dias.

Rei (impaciente e dirigindo-se ao pajem) — Então, ainda não chegou Frei João Sem
Cuidados?!
Pajem — Ainda não, Majestade!
Rei — Já tarda… já tarda! E queria eu uma receita para aflições! Se calhar a esta
hora está encolhido a um canto, cheio de medo, como um coelho na toca!… Um homem
que não se aflija é coisa que nunca se viu…
Pajem (introduzindo o moleiro disfarçado de frade) — Está aqui Frei João, real
senhor!
Rei — Ah!… Que entre! Que entre! (Dirigindo-se ao moleiro) Folgo em ver-te com
ar tão prazenteiro! Vejo que não te dei quebreiras de cabeça!
Moleiro — Real senhor, toda a meada tem uma ponta… a questão é saber-lha
encontrar…
Rei — Bem, bem… Já vejo que não deixas créditos por mãos alheias! Lábia tens
tu… Mas vamos ao que importa. Vamos lá a saber quanto pesa a Lua…
Moleiro — Mais do que um arrátel, real senhor, não poderá pesar, pois todos sabem
que tem quatro quartos.
Rei — Boa resposta, sim senhor! Mas… não estás ainda livre de trabalhos. Quero,
agora, que me digas quanta água tem o mar.
Moleiro — Isso é muito fácil de saber. Mas como vossa majestade só está
interessado na água salgada tem que primeiro mandar tapar todos os rios, porque sem isso
nada feito.
Rei — Pardal, finório, me saíste, Frei João! Mas não está ainda despida a
camisa--de-onze-varas! Não me digas que a última pergunta não te deu cuidados?!
Moleiro — Cuidados?! Não me deu cuidados nenhuns. Na ponta da língua tenho a
resposta!
Rei — Ai sim? Bazófia não te falta… Pois sempre quero ver isso! Vamos lá então a
saber o que é que eu penso?
Moleiro (rindo) — Ora que há-de vossa majestade pensar?!… Pensa que tem estado
a falar com Frei João Sem Cuidados (deixando cair o hábito de frade) … e tem estado a
falar com o seu moleiro!

Luísa Dacosta, Teatrinho do Romão

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