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Inventando um país

1. A terra da magia
Even in our low-attention span, information
overload electronic age, there is no doubting
the power of the story to fire the imagination -
and no nation tells a story like the Irish

(Simon Evans – The Birmingham Post


September 2004)

Ouvir histórias bem contadas realmente incendeia a imaginação, pois além de se


deliciar com os detalhes narrados, cada ouvinte cria e apreende a narrativa de forma única e
individual. Talvez advenha daí o fascínio pela Irlanda, nação que sabe contar histórias, e o
faz muito bem. A profissão de contador de histórias ainda tem lugar na modernidade tardia
irlandesa, quer com características de performance ou mais tradicionais, tanto na República
da Irlanda quanto na Irlanda do Norte. A tradição dos bardos e contadores de história e
estórias está profundamente enraizada na cultura irlandesa e remonta aos tempos em que as
tribos celtas antigas habitavam a região1. A inexistência de uma escrita celta fez com que
fossem desenvolvidas as habilidades de memorização e transmissão oral do conhecimento
das tribos, fossem leis, lendas ou contos de fadas. Embora narrar seja parte do processo
cognitivo de todo ser humano, e ainda que os guerreiros narrassem suas batalhas e
provavelmente todos os membros das tribos narrassem suas experiências, a classe
legitimada para desempenhar esta tarefa nas sociedades celtas era a classe sacerdotal que
cumpria também funções religiosas, mágicas, científicas, jurídicas e políticas. De acordo
com os textos clássicos gregos e romanos, era preciso cerca de 20 anos para se formar um
druida, e certamente as técnicas de oratória e de memorização faziam parte do extenso
treinamento a que eram submetidos. Druidas, fili2 e bardos ocupavam papel central nas
sociedades celtas, principalmente na Irlanda, que não foi ocupada pelos romanos e, que,

1
A historiografia aponta como provável a data de 350 a.C para a chegada dos primeiros celtas (provavelmente da Gália) à
Irlanda.
2
Poetas irlandeses

1
portanto, preservou sua identidade celta até a cristianização, ocorrida no século V 3. O
processo de cristianização se deu através de missionários cristãos, dos quais destacamos
São Columba (521-597), Santa Brígida da Irlanda (451-525) e São Patrício (?-493), este
último patrono do país. Mesmo após a cristianização, a igreja irlandesa manteve
características celtas, sendo, portanto, denominada Igreja Céltica 4. Certos rituais, tradições
e práticas eram únicos, distintos daqueles da Igreja de Roma. A organização religiosa se
dava através dos mosteiros, verdadeiros centros de conhecimento e letramento na Idade
Média. Nos mosteiros viviam os monges, liderados por um abade de origem nobre que
estabelecia os monastérios em suas terras 5. Os monges irlandeses são considerados
sucessores dos fili (Chadwick,1966). Registraram em manuscritos dos séculos VI a XII, em
gaélico e em latim, as leis, contos e lendas da Irlanda que circulavam desde a era pré-cristã.
As lendas dos famosos ciclos: mitológico 6, de Ulster7 e de Finn8, e o antigo livro das leis
irlandesas9 (Bechbretha), bem como compilações de contos de fadas celtas são exemplos
dessa literatura ancestral até hoje estudados pelos pesquisadores do passado irlandês.
A literatura irlandesa reconhecida mundialmente por sua qualidade, guarda uma
herança muito antiga, fruto da tradição oral, que é contar histórias e estórias sobre o seu
povo e a sua terra. Esta tradição está tão arraigada na identidade cultural irlandesa e na
forma pela qual o país é representado, que podemos encontrar não só na literatura, mas
também no cotidiano irlandês, referências a mitos, lendas e heróis ancestrais. O próprio
nome do país em irlandês, Eire, em gaélico Éire está ligado à mitologia celta. Segundo a

3
O chamado mundo celta já se encontrava incorporado pelo império romano desde o século I d.C., com
exceção das tribos celtas da Irlanda, terras altas da Escócia e País de Gales.
4
A Igreja Céltica refere-se ao cristianismo praticado na Idade Média e que se desenvolveu ao redor do Mar da
Irlanda nos séculos V e VI.
5
No continente, a organização religiosa da Igreja de Roma previa um bispo para cada diocese. O bispo
deveria residir em uma cidade que pudesse comportar uma catedral.
6
O ciclo mitológico trata da origem dos povos que colonizaram a Irlanda. Deuses do bem e do mal são
retratados.
7
O ciclo de Ulster trata dos heróis e do desenvolvimento da civilização irlandesa. O período definido nas
narrativas se situa por volta do ano do nascimento de Cristo e seus personagens são muitas vezes seres
presentes no ciclo mitológico, semideuses e deuses incorporados em humanos. O herói central deste ciclo é
Cú Chulainn, que guarda semelhanças com Aquiles.
8
O ciclo de Finn retrata os séculos II e III, sendo o mais popular dos ciclos da antiga literatura irlandesa. O
personagem central é o guerreiro Fionn Mac Cunhail e sua milícia. Seu filho Oisin é o narrador das sagas e
considerado o maior poeta da Irlanda.
9
O livro das antigas leis irlandesas foi escrito entre os séculos VI e IX, em irlandês antigo (Old Irish) e
refletem as leis que circulavam no período pré-cristão embora se observem influências cristãs nos textos.
Trata de questões de hierarquia e propriedade. Seu estudo possibilita uma melhor compreensão da sociedade
irlandesa pré-cristã.

2
lenda, a deusa Éire, esposa de Mac Gréine 10 pediu ao líder dos invasores gauleses, Donn,
após ter seu marido assassinado, que pudesse dar seu nome à terra que lhe fora tomada. O
líder tratou-a com desprezo e ignorou seu pedido, provocando uma guerra entre os
invasores e os deuses e morrendo afogado no mar. Atribuindo este fato à recusa de Donn
em atender ao pedido de Éire, o druida Amairgen, assassino de seu marido, prometeu que
ela daria nome à terra invadida, e Eire permanece sendo o nome irlandês moderno para a
Irlanda (cf. Ellis, 1992). Outro exemplo marcante é o do herói mítico Cú Chulainn 11, figura
central do ciclo de Ulster, que entre outras re-apropriações, foi utilizado pelos nacionalistas
republicanos do início do século XX como símbolo de resistência de uma Irlanda livre. Sua
estátua em bronze imortaliza o momento em que o herói agoniza para demonstrar que nem
mesmo a morte poderia vencê-lo12. A estátua foi erguida em frente ao Correio Geral de
Dublin (GPO - General Post Office), local onde ocorreu o emblemático episódio
nacionalista conhecido como o levante de Páscoa de 1916. Naquela ocasião, os rebeldes
republicanos da organização militar Irish Volunteers (Voluntários Irlandeses) sob o
comando de Patrick Pearse se juntaram ao Irish Citizen Army (Exército de cidadãos
irlandeses) de James Connolly e cerca de 200 simpatizantes e membros de associações
militares e paramilitares; tomaram pontos-chave em Dublin, como o prédio do Correio
Geral, declararam a independência irlandesa e proclamaram a república em 24/04/1916 em
documento lido por Pearse. Por seis dias, até que o levante fosse sufocado pelo exército
britânico, a república irlandesa existiu. Curiosamente, o mesmo herói mitológico serve
também aos interesses unionistas13 da Irlanda do Norte. A figura do herói, aqui com postura
guerreira, relembra Cú Chulainn como um nativo de Ulster que defendeu a cidade de
ataques dos irlandeses do sul. Sua imagem está estampada em murais de Belfast como um
símbolo de apoio aos realistas. Outro símbolo nacional extremamente popular para os

10
Segundo a mitologia, Mac Gréine é filho de Ogma, deus da poesia. Foi esposo da deusa Éire, que nomeia a
Irlanda, e foi morto pelo druida gaulês Amairgen (cf. Ellis, 1992).
11
Seu nome significa “o cão do ferreiro”. Segundo a mitologia, o herói, filho de uma mortal e um deus, aos
sete anos matou o cão do ferreiro de Ulster. Este ferreiro, que forjava as armas do rei, era a encarnação do
principal rei dos mares, Manannán Mac Lir, em forma humana. O seu cão era o guardião de Ulster, e o
ferreiro ficou furioso com a criança por tê-lo matado. O herói prometeu ao ferreiro substituir o cão como
guardião, e teve seu nome mudando de Sétanta para Cú Chulainn. É o herói épico do ciclo de Ulster,
considerado nas lendas irlandesas o guardião do país (cf. Ellis, 1992).
12
Na lenda que narra a morte de Cú Chulainn o herói é atingido por uma flecha e pede a seus soldados que o
amarrem a uma árvore para que permaneça de pé.
13
Unionistas ou realistas são aqueles que apóiam a união da Irlanda do Norte ao Reino Unido e não aprovam
a integração desta com a República da Irlanda.

3
irlandeses é a mão vermelha de Ulster, símbolo que enfeita a bandeira do condado. Sua
origem reside em uma lenda associada à cultura gaélica, de que dois chefes de clã que de
barco avistaram Ulster, então sem um rei legítimo e concordaram que aquele cuja mão
primeiro tocasse a terra seria seu rei. Ao perceber que perderia a disputa, um deles cortou a
própria mão fazendo com que ela chegasse primeiro em terra firme, e assim pode ser o
soberano do local. Além da bandeira de Ulster, a mão vermelha enfeita a sede do partido
unionista de Belfast.
Ainda hoje, no século XXI, encontramos muitos autores irlandeses que escrevem
sobre a Irlanda medieval, como Morgan Llywelyn e Frank Delaney, cujos livros são
sucessos de vendas dentro e fora das fronteiras irlandesas, e muitos outros que escrevem
sobre outros temas e outras eras, mas suas narrativas, se observadas com cuidado, são
tecidas com os fios de tradição, da história antiga de seu país. Muito desta tradição é de
origem celta, mas as influências anglo-saxãs e vikings não devem ser descartadas já que se
encontram presentes nos relatos e textos provenientes da tradição oral e, muitas vezes
torna-se difícil determinar em que ponto começa uma e termina outra. Por esta razão,
preferimos nos referir neste trabalho à tradição irlandesa, com exceção de momentos em
que estejamos tratando diretamente de aspectos reconhecidamente pertencentes a cada uma
daquelas culturas individualmente. Como pudemos verificar nos exemplos acima, a
tradição irlandesa serviu a diversos propósitos na narrativa da nação, e ainda hoje
acreditamos estar presente na expressão literária, seja através de um forte sentido de lugar
ou de certa nostalgia em relação ao passado, ainda que recriado, reconstruído ou
reinventado. Não é por acaso que a profissão de contador de estórias ainda exista na
Irlanda, e que autores contemporâneos narrem o seu país levando em consideração o
aspecto mitológico trazendo à tona fantasmas do passado, tocando aqui e ali em aspectos do
que poderia se considerar uma Irlanda mítica e atemporal. Não temos dúvidas de que os
contextos sócio-econômico e político irlandeses exercem influência decisiva na construção
de uma representação da Irlanda, ou melhor, da representação de um país dividido em 1922
em sul e norte e consolidado em 1937 em República da Irlanda e Irlanda do Norte,
respectivamente. Trataremos mais adiante das representações de país após essa cisão
ocorrida na segunda década do século XX e de como os fatores políticos foram
determinantes para a representação de lugar na literatura dos dois lados da fronteira

4
irlandesa contemporânea. Antes disso, porém, seguindo uma cronologia histórica,
gostaríamos de comentar brevemente a história da Irlanda, principalmente no século XIX
com a re-apropriação da tradição irlandesa pelos românticos na formação da identidade
nacional.
Os nacionalistas buscaram na ancestralidade o argumento necessário para seus
propósitos separatistas, e se auto-identificaram como celtas. Cabe ressaltar que a identidade
celta foi uma escolha dentre tantas outras possíveis, como a saxã, a viking ou a normanda,
por exemplo, mas como aquelas foram comuns também à Inglaterra a identidade celta
mostrou-se mais adequada, sendo reforçada inclusive pelo idioma gaélico (celta) que
embora tivesse sofrido diversos apagamentos ainda resistia no país. Largamente utilizada
pelos nacionalistas como um traço distintivo da poderosa Inglaterra, cujo relacionamento
com a Irlanda se manteve conflituoso desde o século XII, a herança celta trazia em si a
legitimação para uma nação independente, de raízes mais nobres e mais antigas do que a
própria Inglaterra, não podendo, portanto, ser subjugada pela última. O papel do
movimento de renascimento da literatura irlandesa, conhecido como o Celtic Revival
(renascimento celta) do início do século XX foi um movimento bastante significativo para a
reafirmação daquela identidade e para o projeto nacionalista irlandês como um todo. O
movimento encorajava a criação de obras tipicamente irlandesas, de características distintas
das inglesas. Buscou-se resgatar e manter vivo o folclore, os mitos e o passado da Irlanda,
reavivar a literatura e a poesia irlandesas, além do ritmo nativo do gaélico-irlandês. Nomes
como William Butler Yeats, Lady Gregory, J.M. Synge e Sean O’Casey foram marcantes
para o movimento e escreveram muitas peças e artigos sobre a situação política da Irlanda
na época. Um grande símbolo do movimento foi o Abbey Theatre ou Teatro Nacional da
Irlanda, em cujo palco muitos autores e dramaturgos da época foram encenados.
Comentamos brevemente a importância da identidade celta para os nacionalistas
irlandeses do século XIX, mas não discutimos este fenômeno conhecido como
nacionalismo, que surgiu após o iluminismo europeu e a revolução industrial e literalmente
mudou o mapa mundial. Criou países, nações, estados nacionais, fez com que o Ocidente
entrasse na era moderna. Propomos então uma breve reflexão acerca deste movimento.

5
2. Comunidades Imaginadas

We need a new discourse for a new relationship


between our idea of human subject and our idea
of human communities.
Seamus Deane

Desde que nascemos absorvemos a noção de nacionalidade como parte de nossa


essência. Somos brasileiros, portanto assumimos com outras tantas pessoas a mesma
condição identitária, como algo que nos fosse intrínseco e inquestionável. Mas afinal, o que
significa ser brasileiro? A quem estamos nos referindo ao utilizarmos o vocábulo
brasileiro? Aos goianos, gaúchos, cariocas, paulistas, sergipanos, acreanos? Aos homens,
mulheres ou crianças - sejam eles letrados ou analfabetos; ricos ou pobres, empresários,
intelectuais, estudantes, donas-de-casa, empregados ou desempregados... O que é ser
brasileiro? Essa identidade nos parece tão natural, como se desde que o mundo passou a ser
habitado por seres humanos existisse um pedaço de terra chamado Brasil e o único povo a
habitá-lo fosse o povo brasileiro, ou nossos antepassados. De qualquer modo, não temos
condições de definir o que é ser brasileiro. Talvez possamos responder com meia dúzia de
estereótipos que não resistem a uma indagação mais profunda.Se iniciarmos nossa reflexão
sob essa perspectiva, reconheceremos claramente a falácia da essência da identidade
nacional. Torna-se evidente então, o caráter artificial da nacionalidade. Os conceitos de
nação e de nacionalidade são construções culturais, nascidas à custa de guerras, massacres e
apagamentos. Para exemplificar podemos mencionar o genocídio dos povos nativos dessa
porção de terra denominada Brasil. Quantas etnias indígenas aqui existiram? Quanto desses
povos reside em nós? Desde quando somos uma nação? De que maneira nós nos tornamos
uma? A nação não é atemporal ou inquestionável em si mesma por algo que lhe seja
próprio. Os indivíduos é que a consideram assim a partir de mecanismos criados pelo
sistema cultural e o momento histórico em que se inserem. Se hoje nós, sujeitos
fragmentados14 do século XXI podemos questionar e até desconstruir as noções de nação e
de nacionalidade surgidas nos séculos XVIII e XIX, é porque o sistema que as construiu,

14
O sujeito contemporâneo não é mais uno como o sujeito iluminista, mas sim múltiplo e fragmentado (cf.
Stuart Hall em A identidade cultural na pós-modernidade).

6
fortaleceu e legitimou já estava pronto quando nascemos, e através da investigação racional
podemos escrutiná-lo, questioná-lo e entendê-lo como fenômeno histórico e sociológico.
Partirei do início do século XIX, não muito tempo depois das rupturas revolucionárias de
1776 nos Estados Unidos e de 1789 na França, consideradas movimentos nacionalistas de
primeira geração, para comentar que as primeiras cátedras acadêmicas de História da
Europa foram criadas, em 1810 e 1812 nas universidades de Berlim e de Sorbonne,
respectivamente, para dizer que gradativamente iniciava-se o processo de leitura do
nacionalismo de forma genealógica – como a expressão de uma tradição histórica de
continuidade serial.
Segundo Georg Lukács em seu livro The Historical Novel, as guerras
revolucionárias americanas, a Revolução Francesa e a ascensão e queda de Napoleão
fizeram da história uma experiência de massa. As pessoas começaram a entender a história
como um processo ininterrupto de mudanças que têm reflexos sobre a vida de cada
indivíduo. Além disso, em períodos anteriores da história, as guerras eram mantidas, em
certa medida, à parte da vida dos cidadãos. Os exércitos eram mercenários e buscava-se
manter tanto quanto possível a normalidade da vida cotidiana das cidades. Nos eventos
supracitados o exército era formado por cidadãos comuns, que deveriam ser informados dos
propósitos da guerra através da propaganda oficial (Lukács 1969: 22). Essa propaganda
deveria justificar a guerra, conectá-la às possibilidades de desenvolvimento da nação. Os
primeiros movimentos nacionalistas ocidentais surgiram no fim do século XVIII, tanto no
chamado Novo Mundo, com a declaração de independência das Treze Colônias da América
do Norte (1776) quanto no Velho Mundo, na Europa, com a Revolução Francesa (1789).
Pouco tempo depois, diversos outros movimentos eclodiram, como por exemplo, no
México e na América do Sul. Naquele momento, fortemente influenciada pelos ideais
iluministas e humanistas, surgia algo de novo, uma consciência de direitos humanos
universais que se sobrepunham ao direito divino da monarquia. Foram essas idéias de
valorização do indivíduo que deram feição a esses movimentos revolucionários. Cabe
ressaltar que naquele momento histórico ainda não havia sido estabelecido o conceito de
identidade nacional, presente nos movimentos nacionalistas do século XIX. Como
exemplo, podemos observar que na Declaração da Independência das treze colônias
americanas usa-se a palavra povo, mas não nação. Esta última só se fará presente na

7
Constituição dos Estados Unidos da América no ano de 1789. Não é de se estranhar que
não existisse em um primeiro momento uma idéia de nação americana. Para Benedict
Anderson em seu livro Imagined Communities, há nos movimentos nacionalistas das Treze
Colônias um senso de paralelismo, já que no Novo Mundo os imigrantes europeus e seus
descendentes ascendiam sobre as populações nativas por seu desenvolvimento tecnológico,
e eles se percebiam como comunidades européias vivendo em terras distantes 15. Era
possível compartilhar-se a mesma língua, fé religiosa, costumes e tradições da metrópole,
sem maiores expectativas de vir a encontrar seus compatriotas, visto que a distância que
separava os dois grupos era significativa; no caso, a vasta extensão do oceano Atlântico (cf.
Anderson, 1991: 188). Essa grande distância e a numerosa migração européia para a
América até o final do século XVIII fortaleceram esse sentimento de os colonos
pertencerem a uma comunidade européia fora da Europa. O objetivo dos colonos, nas
palavras de Anderson, “não era fazer com que New London sucedesse ou derrubasse Old
London, mas sim salvaguardar a manutenção do paralelismo entre ambas” (ibid., p.191).
Não havia também uma noção de identidade nacional entre os habitantes do Novo Mundo.
Ao pensar nos habitantes das colônias inglesas da América naquela ocasião identificamos
os seguintes grupos: criollos16 (que se consideravam os americanos), negros, índios17 e
mestiços. O preconceito étnico existia tanto dos metropolitanos face aos criollos quanto
destes pelos outros habitantes das colônias. Se por um lado os ingleses da metrópole
consideravam os criollos inferiores a eles – em parte influenciados pelos escritos de
Rosseau (1712-1778) e Herder (1744-1803)18 – os próprios criollos se julgavam superiores
aos outros grupos étnicos citados.
Os criollos, protestantes e falantes do inglês, das diferentes colônias americanas
eram ligados entre si pelo comércio e por jornais que circulavam nas cidades americanas.
Movidos por interesses econômicos e pelo arsenal ideológico proveniente dos ideais
iluministas e liberais europeus, os criollos iniciaram os movimentos revolucionários. Por

15
Entre 1500 e 1800 um acúmulo de inovações tecnológicas nos campos de construção naval, navegação e
cartografia divulgadas pela mídia impressa tornava possível aos colonos imaginarem-se assim. (Anderson,
Imagined Communities, p. 188).
16
Denominação dada aos descendentes de europeus nascidos nas colônias inglesas
17
Povos nativos
18
Esses pensadores postulavam que o clima e a ecologia tinham impacto sobre a cultura e o caráter dos
homens. Para os ingleses da metrópole, o nascimento em um local selvagem fazia dos criollos naturalmente
inferiores.

8
mais amargas que fossem, diz Anderson, as guerras revolucionárias eram guerras entre
“parentes” assegurando que passado certo período de acrimônia os laços entre as antigas
metrópoles e as novas nações seriam reatados (ibid p.203). De fato, em 1783, o Império
Britânico reconheceu a soberania dos Estados Unidos da América através do tratado de paz
conhecido como Tratado de Paris, que fixava fronteiras entre os Estados Unidos da
América e a América do Norte Britânica, que compreendia as províncias inglesas
localizadas no Canadá. A Declaração de Independência das treze colônias e sua bem
sucedida defesa militar nos anos seguintes foi algo novo, e uma vez implantada, passou a
ser vista como absolutamente sensata. Estranhamente, diz Anderson, não se propõem
fundamentos históricos que justifiquem a independência. Não se faz qualquer referência a
Cristóvão Colombo ou aos Pilgrim Fathers19, nem se enfatiza o passado do povo
americano. Ao contrário, acreditava-se que o que estava acontecendo era uma ruptura
radical com o passado – a criação de uma república, os Estados Unidos da América,
independente do Império Britânico – o que era extremamente positivo e estava em
consonância com os ideais iluministas da época, “que demonstravam a necessidade de se
transformar a sociedade irracional do absolutismo feudal e criar uma sociedade racional”
(Lukács,1969, p.18). Podemos considerar “irracionais” o direito divino dos reis e a
legitimidade da linha de sucessão ao trono. Os súditos não tinham quaisquer direitos de
escolha em relação ao seu monarca. A república, por sua vez, daria oportunidade, pelo
menos em tese, aos mais preparados de assumirem o poder.
A mesma motivação de se criar uma sociedade racional e justa era o mote da
Revolução Francesa de 1789. Os revolucionários, de tanta confiança no novo propuseram a
inauguração de uma nova era para o mundo com a adoção do Ano I, que teria início com a
abolição do antigo regime e a proclamação da república em 22 de setembro de 1792. Sem
dúvida, a perspectiva dos primeiros revolucionários era a de romper com um passado
desonrado e inaugurar uma época inteiramente nova e livre de vícios. A substituição da
monarquia pela república representava a supremacia da razão humana sobre o que a Igreja
considerava os “desígnios de Deus”. Não muito tempo depois das revoluções, em 1810 e
1812 as primeiras cátedras acadêmicas de História foram criadas na Europa, nas
universidades de Berlim e de Sorbonne, respectivamente. As rupturas revolucionárias de

19
Pioneiros que estabeleceram a colônia de Plymouth, em Massachusetts no ano de 1620.

9
1776 e 1789 passaram a ser representadas como antecedentes históricos das sociedades
contemporâneas
Entendemos então o foco dos nacionalismos do século XIX: as guerras deveriam
ser justificadas historicamente como sendo importantes para o desenvolvimento da nação e,
consequentemente o passado deveria ser valorizado e percebido como uma etapa
importante em direção ao progresso. Além disso, a própria existência humana estava
historicamente condicionada. Como resultado, um sentimento de nacionalidade foi
experimentado indistintamente por todas as classes sociais. Lukács nos oferece como
exemplo as guerras napoleônicas, que “evocaram em diversos países europeus uma onda de
patriotismo, de resistência nacional às conquistas” (idem: 23). Os países resistiam para
preservar não somente o seu presente, mas também o seu passado, a sua tradição, que
ratificaria a soberania nacional. Sob essas perspectivas surgem na Europa do século XIX os
chamados movimentos nacionalistas de segunda geração, notadamente no período de 1815
a 1850. Não se pretendia mais descartar o passado e inaugurar uma nova era como nos
primeiros movimentos nacionalistas que mencionamos aqui. Os novos nacionalismos
imaginaram a si próprios como redentores de um passado heróico e glorioso de seus
ancestrais. É buscando esse passado que se justificaria no presente o sentimento de nação.
Passa-se a crer que o que une determinado grupo de pessoas é a herança de um passado
comum. Ernest Renan, pensador francês daquele século, em defesa do conceito romântico
de nação em voga na época, reforça a idéia do legado histórico e chama a atenção para a
importância do passado para a consolidação de uma identidade nacional. Para o homem do
século XIX, a essência de uma nação residia no fato de que todos os indivíduos tivessem
um passado comum. Como homem de seu tempo, mergulhado em valores românticos,
Renan definiu a nação como uma alma, um princípio espiritual. O povo se une por amor à
pátria. Esse amor entre as pessoas de uma mesma nação nasce da posse comum de um rico
legado de lembranças e do consentimento, do desejo de viver juntos, da vontade de fazer
valer a lembrança recebida do passado. Para Renan a nação é o resultado de um longo
passado de esforços, sacrifícios e devoções. “O culto aos ancestrais é entre todos o mais
legítimo; os ancestrais fizeram de nós o que somos. Um passado heróico, de grandes
homens, glória, eis o capital social sobre o qual se assenta uma idéia nacional” (Rouanet
1997: 39). Fica evidente nas palavras de Renan de qual passado deve-se lembrar: glorioso e

10
heróico, construído por grandes homens – provavelmente conquistadores europeus que
trouxeram com eles a “civilização”.
Em seu texto “O Que é a Nação?”, Renan argumenta que a tentativa de dominação
universal propagada pelos impérios medievais como o romano, por exemplo, não mais se
sustentaria na Europa moderna das nações. Essa colocação de Renan sugere uma crítica
explícita aos planos de seu conterrâneo Napoleão Bonaparte. Ele utiliza-se da história para
legitimar seu ponto de vista. O autor narra de forma linear os acontecimentos históricos a
fim de estabelecer uma continuidade entre o passado e o presente e investigar o que seria
uma nação. Renan argumenta que o que serviu de base para a existência das nacionalidades
européias foi a invasão germânica. Desde as grandes invasões do século V até as últimas
conquistas normandas do século XI, os germanos impuseram dinastias e uma aristocracia
militar a regiões do antigo império do ocidente, locais estes que tomaram o nome de seus
invasores. Daí a França, a Lombardia e a Normandia, por exemplo. Renan acrescenta que
“o tratado de Verdun traça divisões imutáveis e logo a França, a Alemanha, a Inglaterra, a
Itália, a Espanha rumam, por caminhos muitas vezes tortuosos e através de mil aventuras,
para sua existência nacional plena, tal como a vemos desabrochar hoje em dia”.
(ROUANET, 1997.p.37). Para Renan, “uma existência nacional plena” era algo que se
devia a um progresso histórico, ao desenvolvimento da história das nações para que se
chegasse àquela situação ideal de equilíbrio.Ao refletir sobre as nações, Renan defende que
o que as caracteriza é a fusão das populações que as compõem. Podemos pensar que nesse
ponto ele evidencia o preconceito europeu em relação ao Oriente ao utilizá-lo como modelo
negativo: “nos países que acabamos de enumerar (referindo-se às nações européias
modernas) não há nada de análogo ao que se encontrará na Turquia, onde o turco, o eslavo,
o grego, o armênio, o árabe, o sírio e o curdo continuam hoje tão distintos quanto no dia da
conquista” (ibid., p.39). E prossegue: “nas nações ocidentais, o que permitiu esse
resultado20 foram dois aspectos fundamentais: a adoção do cristianismo pelos povos
germânicos e o esquecimento, por parte dos conquistadores, de sua própria língua” (ibid.,
p.80). A questão do esquecimento foi abordada por Renan não só por parte dos
conquistadores em relação à língua, mas, principalmente, dos descendentes dos povos
conquistados face à violência sofrida por seus antepassados, como essencial ao
20
O uso da palavra resultado reflete a idéia de um ideal a ser atingido (progresso) e de superioridade européia
sobre o Oriente.

11
nacionalismo. É interessante notar como o francês considerava essa memória uma ameaça à
união nacional:

O esquecimento, diria até o erro histórico, é um fator essencial na criação de


uma nação, e é por isso que o progresso dos estudos históricos é muitas
vezes um perigo para a nacionalidade. Na verdade, a investigação histórica
traz de volta à luz fatos de violência ocorridos na origem de todas as
formações políticas, mesmo aqueles cujas conseqüências tenham sido as
mais benéficas. A unidade é sempre feita brutalmente. (ibid., p.19)

Para o homem do século XIX, aqui representado no texto de Renan, a essência de


uma nação reside no fato de que todos os indivíduos tenham muito em comum, e também
que todos tenham esquecido muitas coisas. É importante que tenham esquecido os
massacres, a barbárie cometida contra os povos nativos, toda a violência cometida em nome
de um processo civilizador. Quando o pensador se refere aos benefícios das formações
políticas citadas ele valoriza o modelo europeu. “Nações servem à obra comum da
civilização; todas contribuem com uma nota para este grande concerto da humanidade que
é em suma a mais alta realidade ideal que possamos atingir” (ibid., p.42). O texto de Renan
prossegue falando do amor à casa que construímos e transmitimos aos nossos descendentes.
Os sacrifícios e as honras passadas, o espírito sadio e o coração caloroso são fatores que
para ele, criam uma consciência moral que se chama nação. Essa consciência moral prova
sua força através dos sacrifícios exigidos pela abdicação do indivíduo em prol da
comunidade. Enquanto for dessa forma essa comunidade será legítima e terá o direito de
existir (ibid., p.43). Trata-se aqui de uma exaltação ao patriotismo como hoje o
concebemos. O indivíduo se sacrifica pela pátria e é possível até morrer por ela em nome
da salvação de todos os seus pares. O ensaio de Renan termina de forma passional:

Se surgirem dúvidas quanto às suas fronteiras, que consultem as populações


disputadas. Elas têm o direito efetivo de serem ouvidas nessa questão. Isto fará
sorrir os transcendentes da política, esses infalíveis que passam a vida
enganando-se e que, do alto de seus princípios superiores, tem pena do nosso
terra-a-terra. “Consultar as populações, ora essa, que ingenuidade! Aí estão
essas mesquinhas idéias francesas que pretendem substituir a diplomacia e a
guerra por meios de uma simplicidade infantil” - Esperemos senhores; deixemos
passar o reinado dos transcendentes; saibamos suportar o desdém dos fortes.
Quem sabe, depois de muito tatear em vão não voltemos a nossas modestas

12
soluções empíricas. A maneira de ter razão no futuro é, em certas horas, saber
resignar-se a estar fora de moda. (ibid., p.43)

Renan inclui em seu texto as verdades trazidas pelo Romantismo. Renan é um


reflexo de sua época. A Europa do século XIX encontrava-se imersa nos ideais românticos
que sucederam a razão e a lógica do Iluminismo. Os românticos privilegiavam a intuição, a
estética da emoção, da imaginação e da liberdade individual. Esse movimento, que na arte e
na literatura rompeu não só com as formas rígidas do classicismo, também valorizou
sobremaneira o passado, tomou a Idade Média como idílica, percebeu a natureza como algo
sublime e transcendente ao homem, e elegeu como símbolo o nobre selvagem – o homem
ainda muito ligado à suas origens naturais e não corrompido pela sociedade -, ou, por
extensão, pela civilização. A partir do movimento romântico, como nos aponta Guinsberg
em seu livro O Romantismo, o discurso histórico sofre mudança revolucionária. “Ele deixa
de ser meramente descritivo e torna-se interpretativo e formativo. É a história que produz a
civilização. Ela aglutina as sociedades em mundos, comunidades, nações, raças, que tem
antes culturas do que civilizações” (Guinsberg 2002: 15). É possível vislumbrar de que
forma a narrativa da história é desenvolvida na época, a partir de um passado comum a
cada grupo de indivíduos que o diferencia de outros. Esse passado mitológico comum
justifica a identidade nacional. O culto ao passado e a restauração das tradições antigas nos
leva a refletir a respeito do peso dessas tradições, quer reais ou inventadas, total ou
parcialmente, como mecanismo de fortalecimento da nacionalidade. Eric Hobsbawm em A
invenção das tradições trata deste assunto de forma muito precisa. A definição oferecida
pelo autor para tradição inventada é digna de destaque:

Por tradição inventada entende-se um conjunto de práticas, normalmente


reguladas por regras tácita e abertamente aceitas; tais práticas, de natureza
ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de
comportamento através da repetição, o que implica automaticamente uma
continuidade com o passado. Aliás, sempre que possível tenta-se estabelecer
continuidade com um passado histórico apropriado. (Hobsbawm 2006: 9)

A criação de um passado histórico apropriado é algo que nos interessa discutir e investigar.
As tradições criam continuidade com um passado memorável e permitem que se utilize a
história como legitimadora de ações e alicerce para a coesão de um povo. Podemos citar
algumas tradições inventadas, como por exemplo, os feriados, as comemorações cívicas, os

13
símbolos e os heróis nacionais. A história oficial é apresentada conforme seja conveniente
para a legitimação do Estado, e atribui-se valor também aos simbolismos, aos rituais,
cerimoniais e mitos. Obviamente as interpretações históricas norteiam a criação das
tradições e permitem que o cidadão se sinta parte de um contexto não vivenciado por ele. A
compreensão desse fenômeno é importante para que possamos entender como determinadas
identidades são escolhidas como representativas de uma nação. E é justamente essa escolha
de identidades que reforçará o Estado e atuará como resistência cultural no caso de povos
que tiveram parte de seu passado apagado, quer por guerras e conquistas ou em nome de
uma suposta modernização.
O século XIX nos assegurou que cada povo é uma nação com território, cultura e
história. Já os pensadores modernos assumem claramente que as identidades nacionais
foram forjadas, manipuladas, inventadas. Esta tese da invenção é posta assim pelo filósofo
francês Ernest Gellner (1925-1995): "O nacionalismo não é o despertar da auto-consciência
das nações. O nacionalismo inventa nações onde elas não existem"(Gellner, 1964). Eric
Hobsbawm trilha o mesmo caminho:

Tal como Gellner realço os elementos de artefato, invenção e engenharia


social presentes na construção das nações. Em síntese, o nacionalismo vem
antes das nações. Não são as nações que engendram os Estados e os
nacionalismos, mas exatamente o contrário. (Hobsbawm, 1990).

Naturalmente, este trabalho de criação e lapidação de tradições e identidades


nacionais responde diretamente aos interesses do estado-nação. Elites dirigentes e
intelectuais projetam suas construções compondo uma etnografia, resgatando símbolos,
mitos, heróis e altares nacionais e instituindo rituais de exaltações dos valores patrióticos. A
primeira metade do século XX assistiu à luta feroz de alguns povos por cada pedaço de sua
terra legítima e cada gota de seu sangue ancestral. Após a segunda grande guerra (1939-
1945), porém, o mundo configurou-se em dois blocos geo-político-econômicos: o capitalista
e o socialista, contando com a cooperação entre as nações através de organizações como a
ONU. O século XX assistiu a uma proliferação de nações, não apenas as velhas nações da
Europa ocidental e das Américas, mas por todo o mundo, devido à descolonização e à
importação do modelo ocidental. No final do século XX, porém, após acontecimentos
marcantes para a humanidade, como por exemplo, o desenvolvimento da psicanálise e da

14
filosofia, o avanço do capitalismo e o fracasso dos regimes totalitários, a experiência de
duas guerras mundiais, entre outros, fizeram com que o homem questionasse convicções e
crenças antes inabaláveis. A ciência, Deus, a razão humana, a evolução da humanidade
rumo ao progresso, são verdades que se dissolveram em uma época cujo desenvolvimento
tecnológico e econômico atingiu níveis nunca vistos. A noção de estado-nação já não se
sustenta na contemporaneidade, pois diversos aspectos problemáticos de uma pretensa
homogeneidade cultural foram levantados pelos estudos culturais e, sem pretender nos
aprofundarmos nesse assunto, comentaremos brevemente por que os conceitos de nação e
identidade nacional estão sendo desarticulados em nossa era. O sujeito contemporâneo vive
uma crise de valores humanos e um senso de esvaziamento histórico. As chamadas grandes
narrativas do mundo ocidental como o patriarcado, o marxismo, o feminismo e as narrativas
que formam as nações são desarticulados, pois se consegue reconhecer a impossibilidade da
hegemonia cultural e também o processo de naturalização a que essas narrativas foram
submetidas em nome do chamado evolucionismo histórico. Os estudos antropológicos nas
populações da África e Ásia em meados do século XX foram de notável importância para a
desarticulação do evolucionismo histórico e também para os estudos culturais “por conta da
emergência de um debate crítico acerca “das relações de autoridade envolvidas nos
encontros travados entre os cientistas sociais e os chamados grupamentos nativos”
(TEIXEIRA, 2005, p.2). Segundo Teixeira, a experiência da colonização ao ser incorporada
criticamente pelos pesquisadores que a vivenciaram permitiu o surgimento de novos pontos
de vista, até então impossíveis, já que os primeiros tratados antropológicos pressupunham
um distanciamento necessário entre observador e objeto.
Passou-se a questionar a idéia de que a cultura de determinado grupamento étnico
pudesse ser definida a partir da investigação de categorias bem definidas capazes de dar
conta de um discurso coletivo coeso. Foi então a partir das experiências híbridas e
fronteiriças das vivências em condição neocolonial que se tornou possível visualizar a
artificialidade de construções como nação e identidade nacional, uma vez que a unidade e a
coerência exigidas da nação como narrativa não encontravam território propício no
sincretismo das mediações culturais em espaço cultural híbrido (TEIXEIRA, 2005 passim 2-
6). A partir do estudo daquelas populações pôde-se claramente observar que não é possível
tomar como pertinente o sentido de progresso das populações a partir de um modelo

15
europeu, que apresentou uma continuidade desde a fase tribal inicial, seguida de uma fase
agrária e por fim industrializada. As falácias da hegemonia cultural das nações e da
identidade nacional são facilmente postas em xeque quando se propõe um estudo das
populações habitantes das fronteiras, por exemplo. Nesses locais percebe-se certo
hibridismo, certa mistura de narrativas nacionais. O fenômeno da globalização, por sua vez,
também fratura os pilares das culturas nacionais hegemônicas. O modelo ocidental de
nações não é único, não é superior a outros modelos de sociedade, não representa a
evolução da humanidade como queriam os românticos nacionalistas do século XIX. A
sociedade ocidental, dominada pela mídia, pelo espetáculo e pelo capital, interconectada
globalmente, não tem mais a utopia de que marcha para o progresso. A experiência da
violência, do terrorismo, o medo do outro21 povoa as mentes ocidentais e suas múltiplas
subjetividades e faz-nos a todos sentir certo “mal-estar” próprio da era moderna. Anthony
Giddens em seu livro As Conseqüências da Modernidade, enfatiza que o fenômeno da
globalização é uma das conseqüências da modernidade. Este fenômeno constitui “um
processo de desenvolvimento desigual, que tanto fragmenta quanto coordena – introduz
novas formas de interdependência mundial, nas quais, não há outros, mas sim grandes
desigualdades de riqueza e poder dentro de um sistema global que abarca tanto cenários
ocidentais quanto não ocidentais” (Giddens, 1990: p.174).
As novas formas de interdependência mundial que foram levantadas por Giddens
estabelecem uma consciência planetária que vislumbra riscos e abordam questões que
afetam a segurança global, como por exemplo, as questões ambientais. Acreditamos que
hoje desconstruímos as noções de história, nações, crenças e grandes narrativas para, como
em um quebra-cabeças reorganizá-las de outro modo, que venha possibilitar relações
humanas mais justas. Essa concepção é influenciada pelo conceito de realismo utópico
proposto por Giddens. Para ele “a história não está do nosso lado” (ibid., p.154) e não nos
proporciona garantias, mas o pensamento reflexivo da modernidade nos permite buscar
alternativas futuras possíveis cuja propagação pode ajudá-las a se realizar. Uma teoria
crítica do realismo utópico deve compreender alguns pressupostos: ser sensível
sociologicamente – atenta às transformações da modernidade; geopoliticamente tática, no
sentido de criar modelos de uma sociedade boa para os seres humanos, que não se limitem à

21
O outro é o não europeu, não homem, não branco, não letrado... não civilizado?

16
esfera do estado-nação nem às dimensões institucionais da modernidade; e deve reconhecer
que a política emancipatória – relacionada à liberação das desigualdades e da servidão – tem
que estar vinculada à política da vida, ou, em outras palavras, a uma política de auto-
realização (ibid., pp. 154-155). Por política da vida Giddens se refere a uma política que
possibilite uma vida satisfatória para todos e para a qual não existam outros. Tanto a política
emancipatória quanto a política da vida precisam se articular com as conexões entre o local
e o global. A coordenação do benefício individual e da organização planetária deve ser o
foco da preocupação a fim de minimizar os altos riscos a que toda a humanidade está
sujeita, tais como o crescimento dos poderes totalitários, conflito nuclear ou guerra em
grande escala, colapso dos mecanismos de crescimento econômico e deterioração ou
desastre ecológico. Gostaria de finalizar nossa reflexão com as palavras de Giddens, que
vaõ além das fronteiras do nacionalismo e têm alcance global:

Do outro lado da modernidade, como virtualmente ninguém na Terra pode


continuar sem perceber, pode não haver nada além de uma “república de
insetos e grama”, ou um punhado de comunidades humanas danificadas e
traumatizadas. Nenhuma força providencial vai intervir inevitavelmente para
nos salvar. O apocalipse tornou-se corriqueiro, de tão familiar que é como
um contrafatual da vida cotidiana; e, como todos os parâmetros de risco, ele
pode tornar-se real. (Giddens, 1990: p.32)

Embora concordemos que estejamos vivendo a era das transnacionalidades e das


culturas globais, observamos que, em pleno século XXI, muitos países ainda não resolveram
suas questões nacionais. A Irlanda é um desses casos embora esteja situada na Europa e faça
parte do mundo desenvolvido, além de oferecer excelentes condições de vida a seus
habitantes (em termos sociais, econômicos e de tecnologia). Estamos falando de um país
dividido, composto por 32 condados, dos quais 26 fazem parte da República da Irlanda e 6
da Irlanda do Norte. A República da Irlanda atingiu excelentes índices de crescimento nos
idos de 1990, entrou para o mercado comum europeu e se mantém em situação
economicamente privilegiada ainda hoje. A Irlanda do Norte, por sua vez, faz parte do
Reino Unido e do Commonwealth e pode ser vista, de modo muito simplificado, como uma
colônia inglesa no mundo atual. Sua participação no mercado comum europeu se dá via
Reino Unido, e seu grau de autonomia é menor do que os outros países do bloco, como
Escócia e País de Gales. Soma-se a isto o fato de a Irlanda do Norte apresentar gravíssimos

17
conflitos de ordem sectária que levam a efeito freqüentes ações terroristas. Os conflitos se
estendem desde a cisão do país em 1922. A época mais crítica da violência se deu nas
décadas de 70 e 80, e desde o final da década de 90 vive-se o dia-a-dia de um processo de
paz com seus avanços e recuos. Para entendermos melhor do que estamos tratando faz-se
necessária uma breve exposição do conflito anglo-irlandês, que se estabeleceu desde o
século XII com a chegada à Irlanda dos normandos, em 1169.

3. Irlanda Sangrenta

A fim de melhor entendermos o conflito anglo-irlandês que se estende já por nove


séculos, traçaremos um breve e simplificado panorama histórico da relação entre os dois
países desde o século XII, quando a Irlanda foi colonizada pela Inglaterra. Antes disso,
porém, cabe comentar um pouco sobre a Irlanda medieval e como esta se encontrava nos
aspectos políticos, econômicos e religiosos no período pré-colonização. Desde o século V,
na chamada era de ouro, ou era dos santos22, a estrutura de poder na Irlanda era dividida
entre cinco grandes províncias, a saber: Ulaid (Ulster), Midhe (Meath), Laigin (Leinster),
Muma (Munster) e Connacht. Os seus líderes eram considerados reis supremos (High
Kings), que exerciam influência sobre os pequenos reinos, cerca de uma centena, existentes
nas cinco províncias. Embora saibamos que, por vezes alguns lendários reis supremos
tenham exercido autoridade sobre as cinco províncias, o mais comum era que o poder fosse
dividido entre os cinco reis. Aquela estrutura monárquica demonstra que a Irlanda não
chegou a desenvolver um poder central e, por conseguinte, não desenvolveu o senso de
unidade em toda extensão do país. Este fato, e o modelo colonial adotado séculos depois
pela Inglaterra explicam grande parte dos conflitos sectários ainda existentes na Irlanda. A
unidade irlandesa medieval deu-se por força da cultura, na utilização de um mesmo idioma
(gaélico), leis (Brehon laws) e religião. A falta de comando centralizado tornou a resistência
irlandesa difícil quando em 1169 os anglo-normandos desembarcaram no país e o rei inglês
Henry II, apoiado pela igreja e pelo papa Adriano IV - que entendia a submissão da Irlanda

22
No século V todo o continente europeu encontrava-se sob o domínio dos bárbaros. A Irlanda encontrava-se
preservada, e os mosteiros abrigavam religiosos e literatos de regiões continentais. O termo santos da igreja
céltica era utilizado para se referir aos missionários e professores que alcançavam distinção (cf. Ellis, 1992:
62).

18
à Inglaterra como um retorno da igreja irlandesa ao poder de Roma 23 - tentou interferir nas
questões políticas irlandesas conquistando a cidade de Dublin e arredores. O domínio anglo-
normando na Irlanda se intensificou após 1171 quando o rei Henry II foi acusado de ser o
mandante do assassinato do arcebispo Thomas a Becket24, morto na catedral de Canterbury.
O rei foi banido da igreja até que a acusação fosse considerada improcedente. Buscando
melhorar sua imagem junto à igreja e ser inocentado da grave acusação recebida, Henry
reuniu um conselho da igreja irlandesa em Cashel e conseguiu, com o apoio dos líderes
locais alterar a hierarquia da igreja irlandesa para que esta se reportasse a Canterbury e, por
conseguinte, se alinhasse aos preceitos da igreja de Roma. A colonização da Irlanda se
provou bem sucedida na época de Henry II, que conseguiu aprovação da maioria dos nativos
e estabeleceu um clima de paz no país. No entanto, ao retornar à Inglaterra deixando como
representante do poder real um oficial, Hugh de Lacy, e não estabelecendo claramente uma
política para a colônia - atitudes que foram seguidas pelos monarcas ingleses que o
sucederam, muitos deles mais interessados nos assuntos continentais e envolvidos em
guerras contra outros reinos - deram origem a quatrocentos anos de lutas pelo poder e a
reafirmação de um modo de vida irlandês distinto do inglês. Sobre este assunto Barker
esclarece que as leis reais inglesas predominavam apenas nas cidades costeiras e em suas
redondezas (the Pale). Fora delas eram os barões anglo-normandos que exerciam sua
autoridade, e nas regiões mais selvagens e inóspitas, de difícil acesso, os chefes nativos e os
camponeses seguiam suas próprias leis. Com o passar do tempo os barões normandos
estabeleceram laços com os chefes de distritos distantes, muitas vezes através de casamentos
consangüíneos (Barker, 1979). Com o período de paz que se seguiu ao fim da Guerra das
Rosas (1413-1485), Henry VII e os seus sucessores puderam voltar sua atenção para os
assuntos da colônia irlandesa, mas as tentativas de se implantar as leis inglesas na Irlanda
geraram conflitos com a população local, como por exemplo, o sistema de transferência de
propriedade, que na Inglaterra baseava-se na primogenitura e no sistema irlandês tradicional
obedecia a outros princípios.

23
A igreja da Irlanda, subordinada a Canterbury desde a época de Santo Agostinho (século V) tornou-se independente e
afastou-se do poder de Roma quando o Conselho de Kells foi preferido à Canterbury desde a cristianização dos vikings
que se estabeleceram na Irlanda a partir do século IX.
24
Thomas à Becket é considerado um mártir da igreja católica. Geoffrey Chaucer em Os Contos da Cantuária (The
Canterbury Tales) conta histórias de peregrinos a caminho de Canterbury para visitação à tumba de Becket.

19
Apenas no século XVI o rei inglês Henry VIII tomou o controle da situação e
passou a controlar diretamente a colônia irlandesa. A submissão da Irlanda tornara-se
imperiosa após a reforma protestante inglesa, pois “a Irlanda Católica Romana era um canal
aberto à aproximação da Espanha, sua arquiinimiga” (Barker, 1979). Unida à Inglaterra
desde 1541 quando o parlamento irlandês aceitou oficialmente Henry VIII como rei da
Irlanda, o país passou a ser firmemente controlado pela Inglaterra, e um processo intenso de
anglicização teve lugar, a despeito das profundas diferenças culturais e principalmente
religiosas existentes, já que a Irlanda era um país católico e a Inglaterra protestante
(anglicana). A identidade inglesa nos séculos XVI e XVII se configurava como protestante.
O catolicismo era odiado, associado ao terrorismo, à traição e aos reinos inimigos da
Inglaterra, especialmente a Espanha, muito poderosa na época. Para utilizarmos um
conceito da teoria pós-colonial25 podemos dizer que a Igreja Católica Romana representava
para a Inglaterra o outro, o diferente. Muitos conflitos ocorreram desde então,
principalmente porque, aos olhos de muitos irlandeses, o rompimento com Roma por parte
de Henry VIII invalidaria a Bula Papal26 pela qual a Coroa Inglesa exercia jurisdição sobre
a Irlanda. A opção religiosa desde o início do relacionamento anglo-irlandês mostrava-se
complexa, e a situação tornou-se mais desafiadora em função do modelo de colonização
adotado pela Inglaterra, como veremos a seguir. Sucessivas expedições militares inglesas
foram enviadas ao país a fim de pacificá-lo, mas a decidida resistência liderada no norte por
Hugh O’Neill27 estimulou a resistência em outras partes do país. A resistência irlandesa se
intensificou, pois contou com o apoio da Espanha, que em 1601, enviou uma pequena força
militar ao país. Esta desembarcou perto de Kinsale para dar apoio a uma revolta geral.
Barker nos conta que a Inglaterra enviou para a Irlanda no mesmo ano o “implacável Lorde
Mountjoy, a fim de cuidar de O’Neill. Em três anos Mountjoy causou ali tal devastação,
que a fome que se estabeleceu logo depois, reduziu os irlandeses à virtual impotência”
(1979). Naquela ocasião, tudo o que era tipicamente irlandês deveria ser destruído sob o

25
Utilizaremos conceitos da teoria pós-colonial nesta pesquisa por entendermos que a Irlanda foi a primeira
colônia inglesa e que ainda hoje sofre um processo de colonização interna no caso da Irlanda do Norte.
Sabemos, porém que há restrições ao uso desta teoria no contexto de um país europeu que fez parte do
império britânico. A Irlanda é ao mesmo tempo, centro e margem, oprimido e opressor, próprio e outro.
Trataremos com cuidado das premissas da teoria pós-colonial, pois dela faremos uso neste trabalho quando
julgarmos necessário.
26
Bula papal
27
O’Neill

20
poder do fogo e da espada. Granjas, plantações e áreas de criação de gado foram
completamente arrasadas. Para garantir a submissão irlandesa, a fase seguinte à destruição
consistiu na implantação de colonos ingleses e escoceses no país. Em 1610 iniciou-se no
norte da Irlanda, na área de Ulster, a mais concentrada das muitas colonizações, conhecidas
como Plantações (plantations). Na ocasião, o rei James I confiscou dos irlandeses cerca de
quatro milhões de acres de solo fértil e os dividiu entre protestantes ingleses e escoceses.
Os colonos tinham permissão de explorar a terra como melhor lhes conviesse, mas foram
orientados a admitirem em suas terras somente trabalhadores ingleses, escoceses e
irlandeses não católicos. Devido a esta discriminação religiosa, uma grande quantidade de
ingleses e escoceses migrou para a Irlanda para trabalhar nas terras confiscadas. Os
escoceses eram em geral presbiterianos, e os outros trabalhadores tornaram-se membros da
pequena Igreja Oficial da Irlanda (protestante). Como conseqüência verificamos a
diminuição do número de católicos na região de Ulster durante o século XVII. Para se
protegerem de ataques de nativos descontentes, muitos deles antigos donos de terra que
foram expropriados, os colonos ingleses e escoceses construíam casas fortificadas e
mantinham em suas propriedades homens armados.
A herança católica nas primeiras décadas do século XVII ligava-se às tradições
gaélico-irlandesas (celtas) e do inglês antigo (anglo-saxãs). Embora distintas aquelas
tradições uniam-se na representação de uma história e cultura comuns: a história da Irlanda
católica. É interessante perceber como os textos produzidos na Irlanda na época
representavam os ingleses como invasores e os irlandeses católicos como legítimos
soberanos das terras irlandesas. Podemos citar os Anais dos Quatro Mestres (Annals of the
Four Masters)28 compilados no período de 1632 a 1636 por monges franciscanos da região
de Donegal, e A Origem do Conhecimento sobre a Irlanda (Foundation of Knowledge on
Ireland – Foras Feasa ar Eirinn)29 que pode ser considerada uma auto-etnografia irlandesa.
A discriminação aos católicos por parte da elite protestante de novos latifundiários ingleses
acirrou a rivalidade entre antigos e novos donos de terra, e entre católicos e protestantes.
Por volta de 1641 a situação em Ulster tornara-se bastante tensa, com uma nova geração de
irlandeses fervilhando de descontentamento e contando com aliados e simpatizantes de
outras regiões do país. No ano seguinte, os irlandeses atacaram seus opressores a fim de
28
Annals of the Four Masters
29

21
reaver as terras que lhes haviam sido tomadas no processo inicial de colonização. Muitos
colonos foram massacrados e com a extensão do movimento entre a população, ambos os
lados cometeram atrocidades. Na ocasião era possível identificar claramente quatro grupos
distintos: os “velhos irlandeses” – católicos oprimidos que queriam a total separação da
Inglaterra, os “velhos anglo-irlandeses” – católicos, porém leais ao rei da Inglaterra,
Charles I, os “puritanos” – presbiterianos e escoceses da Irlanda do norte, inimigos tanto do
catolicismo quanto do rei inglês Charles I, e os realistas – em sua maioria, dublinenses e
protestantes da igreja irlandesa leais a Charles I. Nenhum desses grupos confiava em
outros, e todos se encontravam em plena desordem durante a rebelião. Naquela ocasião, a
Inglaterra encontrava-se mergulhada em uma guerra civil 30 ocasionada pela acusação de
que o rei, que fechara o parlamento por duas vezes, governando de forma ditatorial e
aumentando os impostos para sustentar as ofensivas à Escócia católica havia traído a
Inglaterra. As forças da monarquia lutaram contra as do parlamento e foram derrotadas em
1649. O rei foi decapitado e entrou para a história como o único rei inglês a ser condenado
à morte. Este episódio marcou o fim da monarquia inglesa e o estabelecimento do
protetorado sob o comando do puritano Oliver Cromwell, líder do parlamento.
A colônia irlandesa foi tratada com rigidez e crueldade pelo Lord Protector31. As
terras de Munster, Ulster e Leinster, na parte norte da ilha foram confiscadas e distribuídas
entre os soldados ingleses. Como podemos inferir essas desapropriações não se efetivaram
senão pela violência. Na ocasião, as tropas inglesas mataram cerca de 2.000 homens, e os
donos de terra católicos foram exilados na região de Connaught, a mais pobre e árida da
Irlanda.O objetivo era empobrecer todos os católicos e liberar terras para a “plantação” de
mais colonos ingleses. Surgiu então uma classe dominante de senhores de terra britânicos e
protestantes que considerava inferiores os irlandeses nativos, “símios, negros brancos32”
bem como a cultura gaélica. Esta tensão entre católicos e protestantes se manteve por todo
o século XVII, e, por exemplo, verificamos que, no ano de1656 cerca de 60.000 irlandeses
católicos foram enviados como escravos para Barbados e outras ilhas do Caribe. A
população irlandesa, cerca de 1.500.000 habitantes antes da chegada de Cromwell,
30
A guerra civil inglesa teve lugar entre 1642 e 1649. Foi um embate entre a monarquia e o parlamento e
culminou com a vitória do último, a decapitação do rei Charles I e a extinção da monarquia. Oliver Cromwell,
líder das forças do parlamento, estabeleceu o protetorado na Inglaterra, Escócia e Irlanda, então colônia
inglesa.
31
Título assumido por Cromwell
32
Referencia do historiador britanico que cunhou o termo (bookshelf questia)

22
encontrava-se reduzida a aproximadamente 500.000 habitantes quando de sua morte em
1658. Com a restauração da monarquia em 1660, sob o comando do rei Charles II e nos
anos seguintes a triste situação colonial da Irlanda continuou a mesma, e há registros de que
em 1672 mais de 6.000 mulheres e crianças irlandesas foram vendidos como escravos
desde que a Inglaterra ganhou o controle da Jamaica 33. Com a morte de Charles II em
xxxx, o trono britânico foi assumido por seu irmão católico James II. Como era de se
esperar, o rei mostrou favoritismo para com os súditos da mesma religião que a sua. As leis
anti-católicas foram suspensas e católicos começaram a substituir os protestantes em postos
governamentais e judiciários na Irlanda. Quando o filho de James II nasceu em 1688, o
processo de catolização parecia assegurado e constituía uma ameaça ao anglicanismo da
Inglaterra. No entanto, os ingleses depuseram o rei católico em favor do protestante
William de Orange. A coroa britânica foi oferecida ao casal Mary e William de Orange,
respectivamente filha e genro de James II. Este episódio ficou conhecido como a Revolução
Gloriosa, em que nenhuma gota de sangue foi derramada e a coroa foi ofertada, por vontade
do povo inglês, a um casal e não apenas a um deles.
Aquela revolução despertou paixões violentas na Irlanda. Os católicos no sul do
país favoreciam a causa do rei deposto e formavam um exército, enquanto que no norte os
protestantes declaravam-se fiéis a William e preparavam-se para a guerra. Quando William
de Orange desembarcou na Irlanda, seu exército poliglota contava com regimentos ingleses,
escoceses, holandeses, dinamarqueses, suecos e soldados irlandeses do norte. As tropas
eram bem treinadas, bem equipadas e superiores em número e em recursos ao exército
irlandês de James II. A Batalha do Rio Boyne foi vencida pelas forças do rei William. Até
hoje, anualmente, a 12 de julho, os Orangistas 34 de Ulster celebram a vitória de William no
Boyne com desfiles e festas. Após ser derrotado naquela batalha James fugiu para a França,
mas a guerra prosseguiu até 1691 quando a resistência irlandesa entrou em colapso.
Seguiram-se novos confiscos de terra e um parlamento irlandês protestante aprovou uma
série de leis anti-católicas conhecidas como “Código Penal” (penal laws) para manter a
população católica em permanente condição de inferioridade. A este respeito Barker nos
apresenta algumas leis da época:

33
Inserir nota sobre a conquista da jamaica
34
Assim denominados por serem protestantes e apoiarem William de Orange

23
“Nenhum católico poderá ter assento no parlamento irlandês”
“Nenhum católico pode ser procurador, policial ou guarda-caça”
“Nenhum católico pode possuir um cavalo de valor superior a 5 libras.
Qualquer protestante que disponha dessa soma pode apossar-se do cavalo de
caça ou de tração do seu vizinho católico romano”
“Nenhum católico pode freqüentar universidade, ter escola ou enviar seus
filhos para serem educados no exterior. Oferece-se 10 libras pela descoberta
de um mestre-escola católico romano”
“Nenhum católico pode morar em Limerick e Galway ou adquirir
propriedade dentro dos limites de suas muralhas”
“Nenhum católico pode comprar terra ou recebê-la como presente de um
protestante”
“Nenhum católico pode ser tutor de criança. Os filhos órfãos de católicos têm
de ser criados como protestantes”(Barker, 1979: 20)

Podemos perceber o quão cruéis foram essas leis e como o conflito entre católicos e
protestantes na Irlanda tem suas origens em épocas remotas, ainda no século XVI, desde
que a Inglaterra se tornou protestante e a Irlanda, devido a sua posição geográfica e ao fato
de ser colônia inglesa passou a representar uma ameaça à Coroa. Percebemos também
como a população nativa foi empobrecida através de leis discriminatórias e como a cultura
gaélica foi perdendo o seu valor e o processo de assimilação da cultura anglo se tornando
cada vez mais necessário para a vida da colônia. Outro ponto que merece destaque em
relação à Irlanda é o fato de que o país permaneceu predominantemente rural e agrário até a
metade do século XIX, o que dificultou o desenvolvimento econômico do país, como
veremos adiante.
A dificuldade econômica dos irlandeses, que se estendia desde a época das
primeiras “plantações” do século XVI, agravou-se ao longo do século XVIII, e as colheitas
ruins devidas ao frio intenso e ao tempo chuvoso levaram à grande fome de 1740,
conhecida historicamente como “a fome esquecida” (the forgotten famine) já que a “grande
fome irlandesa” usualmente comentada é a de 1845, quando grande parte de população
emigrou para o “Novo Mundo”, a saber: os Estados Unidos, o Canadá e a Austrália. Não
menos séria, porém, foi a grande fome de 1740, que vitimou cerca de 250.000 irlandeses e
levou a Irlanda a reivindicar um grau maior de autonomia para o país. porque? comentar..
Em 1782, o Reino Unido outorgou à Irlanda o direito ao livre comércio e a
independência legislativa. O final do século XVIII assistiu à ascensão de movimentos
contrários ao controle inglês na Irlanda, como a rebelião de 179835, inspirada nos ideais
35
O Levante de Wexford (Wexford Rising) que tentou estabelecer a república no país.

24
republicanos estadunidenses e franceses. O grupo de rebeldes, chamado de Sociedade dos
Irlandeses Unidos, fora formado em Belfast no ano de 1791 como uma sociedade de
debates da classe média. Todos os membros do grupo, excetuando-se dois de seus
fundadores, Theobald Wolfe Tone e Thomas Russell, eram presbiterianos. Os objetivos da
sociedade eram equivalentes aos de igualdade, liberdade e fraternidade da Revolução
Francesa. Pouco a pouco católicos foram sendo admitidos em suas fileiras e o movimento
pela independência irlandesa ganhou força. Desorganizados e mal coordenados, porém, os
rebeldes foram esmagados assim que se mostravam. “Terminada a luta, a maioria dos que
escaparam à forca fugiu para a América”(Barker, 1979). Cabe destacar que pela primeira
vez patriotas das classes média e baixa protestantes e católicos, foram parceiros contra o
domínio inglês na Irlanda. A ameaça da independência da colônia, porém, fez com que a o
Primeiro-Ministro britânico, William Pitt, decidisse reverter a autonomia irlandesa,
tornando o parlamento irlandês extinto com o ato de união de 1800, que agregou o país a
um novo estado denominado Reino Unido da Grã Bretanha e Irlanda. Em 1º de janeiro de
1801 cem representantes irlandeses (protestantes) tomaram lugar na Câmara dos Comuns,
todos os cidadãos irlandeses passaram, por decreto, a ser cidadãos britânicos e a economia
da Irlanda uniu-se à da Grã-Bretanha. Podemos inferir os problemas advindos dessa união,
certamente pouco natural, tanto em termos religiosos quanto culturais. A Irlanda
representava a alteridade: era predominantemente católica e rural, falava gaélico e era
aliada à França e à Espanha - países inimigos da Inglaterra. Além disso, apenas o norte do
país, industrializado, se beneficiou economicamente da união e as diferenças sectárias
apareceram com mais violência do que antes. A relação colonizador/colonizado fora
conflituosa e complexa, e não menores foram os problemas a partir da união com o país
vizinho, rico e poderoso. Os conflitos se estendem por séculos, tendo-se acirrado o seu
amargor nas primeiras décadas do século XX, em grande parte decorrente da grande fome
de 1845. Nos idos de 1840, 2/3 da população irlandesa vivia no campo e era dependente da
agricultura, especialmente do cultivo da batata. Com a perda de sucessivas colheitas
atacadas por um fungo (de 1845 a 1848), a população foi dizimada pela fome, miséria e
doenças. O governo britânico na época era o mais rico do planeta e os latifundiários da
Irlanda continuaram exportando grãos e lã para a Inglaterra, gerando volumosos lucros para
si e para os mercadores ingleses enquanto os camponeses morriam de fome. Houve a

25
emigração massiva de irlandeses (cerca de 250.000) e de acordo com estatísticas do ano de
1851, a população irlandesa havia sido reduzida à metade (de seis para três milhões). As
medidas adotadas pelo governo britânico através dos empregos públicos, especialmente na
construção de estradas desnecessárias, não foi suficiente para atender ao número de
necessitados, e provou-se de fato extremamente ineficaz para a solução do problema. O
país recebeu ajuda internacional, tanto financeira quanto de alimentos, vinda
principalmente dos Estados Unidos, que chegou a importar grão indiano para enviar à
Irlanda, mas o que se recebia em um ano era menor do que o que se exportava em um
mês36. Os irlandeses acusaram os ingleses de genocídio, e, certamente, esse episódio ajudou
a fomentar a discórdia entre a Irlanda e a Inglaterra e a fortalecer os ideais separatistas
irlandeses.
Além da redução drástica da população irlandesa após a Grande Fome, outra
questão que merece destaque é a lingüística, com o enfraquecimento do idioma gaélico
após a tragédia. Este enfraquecimento deveu-se principalmente ao fato de que as famílias
pobres, em sua maioria composta por camponeses eram aquelas falantes apenas do gaélico.
Para elas não era necessário o domínio da língua inglesa, pois, sua área de atuação era
bastante reduzida e localizada. O idioma então permanecia vivo no campo, e a língua
inglesa não conseguia penetrar naquela região. Por ocasião da Grande Fome, aquelas
famílias camponesas, em sua maioria, morreram ou emigraram. Na Irlanda, a classe
dominante já era bastante familiarizada com a língua inglesa, já que esta era o idioma dos
negócios e dos documentos oficiais, desde que passara a ser a língua oficial do país em
1801 com a criação do Reino Unido da Grã Bretanha e Irlanda. Dois anos após a Grande
Fome, em 1851, apenas 25% da população falava em gaélico 37. Portanto, a língua nativa já
passara a ser minoritária. O apagamento do idioma gaélico vinha ocorrendo desde os
tempos coloniais, já que não se estimulava o ensino do idioma, e a sua utilização se
restringia ao âmbito familiar. Algumas iniciativas de preservação do idioma nativo
emergiram no calor dos movimentos nacionalistas e da celtomania38 que invadiu a Europa,
especialmente a Escócia e a Irlanda no século XIX. Em 1877 a Sociedade para a
36
The Great Calamity, The Irish Famine 1845-1852 by Christine Kineally;published by Roberts Rinehart Publishers,
Boulder, Colorado ISBN 1-57098-140-X

37
Antes de 1845 x% da população falava o gaélico
38
Ao escolher a identidade celta como típica, original, fundadora de suas nações, a Escócia e a Irlanda buscaram resgatar
em seu passado muito da mitologia e cultura celtas que pudessem fundamentar e justificar a soberania de suas nações.

26
Preservação da Língua Irlandesa foi fundada, mas a despeito dela, no ano de 1891 o
número de falantes do gaélico reduzira-se ainda mais, somando apenas 14,4% da população
irlandesa. No ano de 1893 foi criada a Liga Gaélica (Gaelic League) por Eoin Mac Neill,
editor do jornal Irisleabhar na Gaedhilge39, para a preservação da “legítima” língua
irlandesa. O termo“legítima” refere-se diretamente ao projeto nacionalista irlandês que
buscou a justificativa da ancestralidade para a soberania irlandesa. Toda a cultura gaélica
deveria ser resgatada e preservada, pois a identidade irlandesa residia naquela cultura nativa
que remetia a eras pré-cristãs de uma sociedade ainda tribal. A liga e os sindicatos
apoiavam um grupo extremista da época conhecido como os Fenianos, ou Irmandade
Republicana Irlandesa, fundada em Dublin em 1958. No parlamento em Westminster o
anglo-irlandês Charles Stuart Parnell, latifundiário protestante, liderava o grupo que
defendia um acordo que permitisse a autonomia irlandesa. O primeiro-ministro britânico,
do Partido Liberal, Gladstone, introduziu o primeiro dos seus projetos de lei da autonomia
(Home Rule) no parlamento em 1856, mas o projeto foi rejeitado. O Tory, partido
conservador inglês, por sua vez, prometeu apoio aos Unionistas da Irlanda do Norte. Estes
acreditavam que deveriam estar preparados para se tornarem responsáveis pelo governo da
província protestante da Irlanda do Norte no caso da autonomia, já que não aceitariam ser
governados de Dublin e seu parlamento dominado por católicos.
Em 1912 meio milhão de irlandeses do norte assinaram, muitos com seu próprio
sangue, um juramento em que se comprometiam em derrotar a autonomia “usando todos os
meios considerados necessários” (Barker, 1979). Em 1914 100.000 homens armados
estavam decididos a rejeitar a autonomia; eram os Voluntários da Irlanda do Norte. No sul
os patriotas queriam a independência irlandesa, quer por meios pacíficos ou pela força. A
demora em conceder a lei da autonomia fez com que muitos perdessem a fé nas boas
intenções da Grã-Bretanha e acreditassem que a força seria o único caminho para a
independência. Assim foi criado o movimento denominado Voluntários da Autonomia
Irlandesa. A situação política irlandesa estava tensa. Unionistas e Republicanos estavam
contra o governo britânico – os voluntários da Irlanda do Norte se preparavam para lutar
pela manutenção da união da Grã-Bretanha e Irlanda, e os voluntários irlandeses estavam

39
O jornal circulou de 1882 a 1909.

27
exigindo o fim da união. A primeira guerra mundial adiou a questão da autonomia e
milhares de irlandeses do norte e do sul ingressaram nas forças britânicas.
Em 1916 os Voluntários Irlandeses da Autonomia, chefiados por Eoin MacNeill,
haviam crescido e se tornado uma facção que congregava nacionalistas de todas as opiniões
– desde os de extrema direita, que apoiavam o esforço de guerra da Grã-Bretanha até a
Irmandade Republicana Irlandesa, liderada por Patrick Pearse, cujo conselho militar
planejava uma insurreição (Barker, 1979). Havia ainda outros grupos nacionalistas, como o
Sinn Féin, fundado em 1908, e o Exército de Cidadãos Irlandeses, dirigido por James
Connolly. No início do ano, a Irmandade Republicana Irlandesa aprovara um plano para um
levante conjunto dos Voluntários e do Exército de Cidadãos, que ocorreria na Páscoa.
MacNeill acreditava ser suicídio para os Voluntários entrarem em ação, mas a Irmandade
de Pearse estava decidida a lutar. Sob seu comando os voluntários que atenderam ao seu
chamado e o pequeno Exército de Cidadãos Irlandeses (cerca de uma centena de homens)
ocuparam prédios importantes da cidade. Os britânicos esmagaram a revolta
metodicamente: reforços foram trazidos até que Pearse ficasse em grande inferioridade
numérica. Dezesseis líderes da rebelião foram executados e uma onda de revolta se
propagou pela Irlanda. O Sinn Féin recebeu a adesão da maioria dos irlandeses, e os
rebeldes que sobreviveram foram aceitos como heróis e líderes de uma nova Irlanda. Os
membros do partido com assentos no parlamento de Westminster recusaram-se a tomar
seus lugares e criaram a sua própria Assembléia Nacional, a Dail Eireann, em Dublin, que
se reuniu em janeiro de 1919 e ratificou a República Irlandesa proclamada por Pearse em
1916.
Nos anos de 1919 a 1921 ocorreram as guerras anglo-irlandesas de independência,
em que os voluntários atacavam repetidamente a administração britânica na Irlanda. Para
fortalecer a Real Polícia Irlandesa, reforços britânicos foram trazidos, e o país entrou em
uma guerra de guerrilhas. Canhões tomaram as ruas da Irlanda do sul, e houve muito
derramamento de sangue, tanto de tropas do exército e policiais quanto da população civil.
Como as autoridades não conseguiam enfrentar os problemas de segurança interna, os
postos policiais do interior foram abandonados para reforçar a segurança nas cidades. Em
conseqüência, grandes áreas do interior foram tomadas por oficiais do governo Dail e pela

28
Irmandade, então liderada por Michael Collins40. As forças republicanas se estabeleceram
nos campos – seus tribunais e sua polícia substituíram as forças britânicas e a população
passou a utilizá-los. Em setembro de 1920 o parlamento britânico aprovou um projeto de lei
de Autonomia que previa a criação de dois parlamentos irlandeses: um em Belfast, para
governar seis dos nove condados da Irlanda do Norte, e um em Dublin, para governar o
resto da Irlanda. Além disso, a Irlanda teria membros no parlamento britânico em
Westminster, e um Conselho Federal da Irlanda administraria os serviços comuns e
coordenaria as atividades legislativas de Belfast e Dublin. O Sinn Féin votou pela rejeição
integral da lei, pois apenas o desligamento total do país, sul e norte, da tutela do Reino
Unido era de seu interesse. Conciliar esta exigência com os Unionistas do norte era
impossível, então podemos dizer que a Lei de 1920 marcou a divisão do país em norte e
sul, de interesses políticos diversos. A lei entrou em vigor, embora o Conselho Federal da
Irlanda nunca tenha sido criado. Em 1921 foi assinado o tratado anglo-irlandês, com a
separação do país em dois, o Estado Livre da Irlanda (Irlanda do Sul) e a Irlanda do Norte.
O primeiro era republicano, católico e independente e a segunda monárquica, parte do reino
Unido, de maioria protestante (anglicana). As tropas britânicas deixaram a Irlanda do Sul
em janeiro de 1922, e placas escritas em gaélico com sua tradução inglesa foram colocadas
nas ruas de Dublin. Durante a retirada das tropas o governo provisório realizou uma eleição
que resultou na ratificação do tratado. No entanto, os deputados republicanos do Dail,
liderados por Eamon de Valera recusavam-se a aceitar o tratado. O sul enfrentou uma
guerra civil entre os partidários do estado livre e os que o repudiaram. O norte também não
estava nada tranqüilo. Oito mil membros armados do IRA 41, a ala militar do Sinn Féin,
haviam cruzado suas fronteiras numa ofensiva republicana contra a união do norte com a
Grã-Bretanha. Além disso, a violência sectária, entre católicos e protestantes, continuava
com muitos tiroteios e incêndios, principalmente em Belfast e Derry. Houve muitos
confrontos também entre a Real Polícia Irlandesa e o IRA.
No Estado Livre a guerra civil terminou em 1923 sob a administração de William
Cosgrave, que buscou resolver os problemas econômicos do país e criou a Guarda Cívica,
nova polícia civil desarmada. O IRA foi proscrito e muitos extremistas foram presos. No
norte os problemas continuavam, e economicamente o país não era viável, pois se ressentia
40
Michael Collins
41
IRA

29
muito do período pós-primeira guerra mundial, já que a sua indústria era concentrada na
produção de navios e de linho, mercadorias suscetíveis a flutuações no mercado mundial.
Dependia-se inteiramente do Tesouro Britânico para o desenvolvimento da nação. Houve
muito desemprego, as taxas de mortalidade infantil e materna eram as mais altas do Reino
Unido e a população vivia em casas inadequadas. Muitos jovens nacionalistas ingressaram
nas fileiras do IRA em busca de um futuro melhor para seu país, enquanto unionistas
desempregados viviam com subsídios do governo britânico. A violência crescia
assustadoramente, e em 1935 as paradas e demonstrações foram proibidas. No sul o partido
Fianna Fail, liderado por de Valera, subiu ao poder e começou a cortar os laços ainda
existentes com a Grã-Bretanha como pagamentos territoriais. Em 1937 o sul se declarou
“estado soberano, independente e democrático. De Valera garantiu a devolução de três
portos controlados pela Grã-Bretanha desde 1921e passou a utilizá-los como bases navais”
(Barker, 1979). A eclosão da Segunda Guerra Mundial realçou ainda mais as diferenças
entre o sul e o norte. A Irlanda do Sul adotou postura neutra durante a guerra, o que foi mal
visto pela Grã –Bretanha, já que legações alemãs, japonesas e italianas continuaram em
funcionamento em Dublin e em ampla comunicação com seus governos. A Irlanda do
Norte, por sua vez não contava com muita proteção durante a guerra tendo sido duramente
bombardeada, principalmente em Belfast. Após a guerra, no entanto, o governo britânico
promoveu grandes melhorias sociais no país, tanto em termos de moradia quanto saúde e
educação. As atividades do IRA, por sua vez, reiniciaram nos anos 50 no norte, com
ataques a quartéis para a obtenção de armas e explosivos. Os Estados Unidos enviavam
dinheiro e também coletas feitas no sul rendiam grandes somas à organização. A campanha
contra a fronteira norte-sul da Irlanda se acirrou após 1956. O governo de Dublin introduziu
a Lei de Crime contra o Estado, criou campos de detenção para internar os extremistas e
por considerar o IRA uma organização ilegal proibiu o uso do termo nos jornais. As
relações norte-sul estavam bastante danificadas,muitos inocentes foram mortos e qualquer
viagem ao norte, especialmente em áreas de fronteira se tornou extremamente perigosa. As
estradas eram fechadas e todos os veículos detidos para rigorosa inspeção. O cessar-fogo do
IRA deu-se em 1962 e muitos de seus membros se envolveram em reclamações sociais
pacíficas, organizando demonstrações de protesto contra as más condições de moradia,
emprego e direito de voto entre católicos e protestantes. A ala radical da organização,

30
porém, defendia o uso da violência e apoiava uma “Irlanda unida pela força física” (Bartes,
1979). Em 1969 a violência recrusdeceu, houve uma cisão no IRA e formou-se o IRA
provisório (ilegal). Os conflitos persistiram entre unionistas e separatistas, tendo o início da
década de 1970 representado, na Irlanda do Norte, a época “dos problemas” (“The
Troubles”) Ressaltamos aqui a questão problemática da área de Ulster, fronteira entre as
duas Irlandas, pois dos nove condados que a formam, seis passaram a constituir a Irlanda
do Norte e três pertencem à República da Irlanda. Devido aos graves conflitos entre
católicos e protestantes na Irlanda do Norte, em 1972 a Inglaterra suprimiu a autonomia
política norte-irlandesa ao dissolver a sua assembléia, vigente desde 1921 (Home Rule)42 e
governando diretamente o país.

4. Narrando a nação...

As tradições inventadas e os mitos que perpassam as estratégias e atitudes políticas


no país nos reporta a Benedict Anderson em seu livro Comunidades Imaginadas (Imagined
Communities), em que o autor afirma que as nações são inventadas e que suas diferenças
residem nas diversas formas que elas assumem ao serem imaginadas, e não a partir de uma
legitimidade ou falsidade intrínseca a elas (1983, p.6). Utilizando-nos do conceito de
Anderson podemos dizer que a forma assumida pela nação irlandesa ao ser imaginada no
século XIX foi a de uma nação celta. Além das tradições inventadas, o papel dos escritores
irlandeses foi fundamental para a preservação da cultura do país. O Celtic Revival...
Se para Stuart Hall “a cultura nacional pode ser entendida como uma narrativa composta
pelas histórias e literaturas nacionais, pela mídia e pela cultura popular” (2002, p.52) e
concordamos com esta afirmação, podemos dizer que as obras do Celtic Revival...
O teórico indiano Homi Bhabha na introdução de seu livro Nação e Narração (Nation and
Narration) aprofunda a idéia da criação textual das nações ao dizer que “a partir das
tradições do pensamento político e da linguagem literária a nação surge no Ocidente como
uma poderosa idéia histórica” (1990, p.5). Na perspectiva de Bhabha, como toda narrativa,
o alicerce político de uma nação contém estratégias textuais, deslocamentos metafóricos,
subtextos e artifícios figurativos. Ao estudarmos a nação através de seu discurso narrativo

42
Home-Rule

31
estamos tentando alterar o próprio objeto conceitual do estudo. A partir da desarticulação
dos elementos da narrativa sob a qual a nação foi inventada podemos identificar os
interesses que a originaram e legitimaram, bem como os mecanismos que a naturalizaram,
o que contribui para entendermos a “impossibilidade da unidade da nação como força
simbólica” (Bhabha, 1990). Para o teórico, embora os historiadores utilizem a nação como
signo de modernidade social, a temporalidade cultural da nação implica uma realidade
social em transição. Na narrativa da Irlanda independente podemos traçar uma seqüência
linear de acontecimentos desde o levante de Wexford em 1798, o levante de Páscoa de
1916 e as guerras anglo-irlandesas de 1919-1922 até as barricadas e o terrorismo do IRA
que perdura de 1969 a 1974 e depois, em ações nos anos 70 e 80 até 1990 e a demanda pela
paz.
Não podemos hoje, no entanto encerrar aqui a discussão do nacional. A noção de
estado-nação já não se sustenta na contemporaneidade, pois diversos aspectos problemáticos
de uma pretensa homogeneidade cultural foram levantados pelos estudos culturais e, sem
pretender nos aprofundarmos nesse assunto afirmamos que os conceitos de nação e de
identidade nacional estão sendo desarticulados em nossa era. No entanto, na Irlanda do
Norte muito há que se refletir e agir acerca da nação.

5. A Irlanda hoje

A questão nacional não foi ainda resolvida na Irlanda do Norte, embora o


processo de paz venha se desenrolando desde os anos 90 e alguns acordos de “cessar-fogo”
tenham sido cumpridos e tenha até mesmo havido, recentemente, a “devolução” legislativa
ao país com o acordo de Belfast em 199843. Através deste acordo, que previa a presença no
governo de representantes das diferentes comunidades norte-irlandesas, a Assembléia da
Irlanda do Norte foi re-estabelecida. Esta assembléia, no entanto, seria novamente
dissolvida em 2002 com a interrupção do processo de paz, e só retornaria em outubro de
2006, para legislar de fato a partir de março de 2007. Em 26 de março de 2007 o líder do
Partido Democrata Unionista (Democratic Unionist Party), Ian Paisley, pela primeira vez
43
Assinado a 10/04/1998 e também conhecido como Good Friday Agreement. A maioria dos partidos políticos apoiou o
acordo, com exceção do DUP (Democratic Unionist Party), maior partido político da Irlanda do Norte e quarto maior na
casa dos comuns britânica.

32
junto ao líder do partido republicano do Sinn Féin, Gerry Adams, anunciaram publicamente
a devolução do governo à Irlanda do Norte. O poder compartilhado teve início em 08 de
maio de 2007, demonstrando a viabilidade de um governo conjunto para o país. Teóricos
comentam a importância da política externa inglesa e a atuação firme do ex-primeiro-
ministro Tony Blair para o sucesso do processo de paz na Irlanda do Norte. Pensa-se que a
política de Blair em relação à Irlanda do Norte seja seguida e que a intervenção britânica no
país seja reduzida dia-a-dia. Em 01 de agosto de 2007 o jornal O Globo noticiou: “Exército
britânico se retira da Irlanda do Norte”. As tropas britânicas, que de acordo com o jornal
chegaram a contar com 27.000 homens no país no auge dos confrontos entre unionistas e
republicanos, foram retiradas e os ingleses deixaram o controle da ordem a cargo da polícia
norte-irlandesa. Mesmo após a retirada das tropas, uma guarnição de 5.000 homens
permanecerá baseada na Irlanda do Norte. Pensamos que ainda acompanharemos
significativas mudanças na trajetória política do país, que a nosso ver, segue rumo à
autonomia em relação à Inglaterra. Esta separação, porém, não significa necessariamente
uma “devolução” dos seis condados norte-irlandeses para a República da Irlanda. Existem
outras opções, como a de uma Irlanda do Norte independente ou a anexação dos condados à
República da Irlanda ou ao Reino Unido dependendo de sua maioria ser republicana ou
unionista. Aspectos econômicos, de política internacional, religiosos e culturais serão
levados em consideração para que se chegue a uma definição. Certamente há espaço para
muito debate antes que uma solução definitiva seja encontrada para o país.

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