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FASCÍNIO PELA PERVERSÃO: Psicopatas validados pela sociedade – Parte 2

Estamos atravessando um período de profunda mudança nos valores


pessoais e sociais, onde muitas projeções sombrias estão sendo descortinadas,
vindo à tona de forma contundente.
O ódio, a vontade de destruir o outro, o desrespeito são vociferados nas
mídias, nas articulações políticas e na atitude social de modo geral, refletindo as
características perversas e sombrias de grupos que pretendem não apenas se
perpetuar no poder, mas utilizá-lo para coagir minorias, alienar a população do
pensamento crítico e impor valores distorcidos.
Esta perversidade pode ser sentida em qualquer rede social, nos
comentários dos meios eletrônicos, nas disseminações das fake news, nos grupos
de Whatsapp.
Em direção a isso, pessoas importantes e com características psicopáticas
estão não apenas fluindo em nossa sociedade, mas despertando identificação
coletiva e recebendo projeções sombrias de forma contundente, como se fossem
uma licença poética de validação da vontade de anular o outro.
Não é novidade que psicopatas sempre estiveram entre nós. Mas por que
temos a sensação que eles são validados pela sociedade?
Diferentemente do que pensa a crença popular, grande parte dos psicopatas
não são assassinos, mas pessoas que possuem Transtorno da Personalidade
Antissocial (DSM-5, 2014, p.659, critérios diagnósticos 301.7, F60.2) 1 e convivem
em nosso meio agindo de forma perniciosa sem sentir culpa ou remorso. A grosso
modo, psicopatas possuem narcisismo exacerbado, são embotados de emoções,
ausentes de empatia, desprezam e ignoram as regras sociais e fazem sofrer as
pessoas ao seu convívio.
Para pensarmos em psicopatia e sociedade, trago uma importante reflexão
do escritor e analista junguiano Adolf Guggenbühl-Craig, que retratou em seu livro
Eros de Muletas – Reflexões sobre Amoralidade e Psicopatia (1998) que os
psicopatas são pessoas que experienciam o arquétipo do inválido. Isso quer dizer
que os psicopatas possuem uma invalidez afetiva tão fortemente constituída que
seria como uma deficiência crônica e duradora, invalidez esta retratada pela
ausência de Eros em suas consciências. Porém é importante ressaltar que: 1) esta
ausência deve ser compreendida como dessensibilização e embotamento de Eros
e não sua completa inexistência; 2) Eros deve ser entendido em seu sentido
arquetípico, ou seja, um princípio criador e criativo, o amor relacional, o sagrado.
Conforme Guggenbühl-Craig (1998, p.53), “a falta de Eros se expressa nos
psicopatas nas dificuldades por eles encontradas no relacionamento interpessoal.
Ao invés de Eros, frequentemente encontra-se manipulação”.
1
DSM-5 (2014), link para consulta: https://drive.google.com/open?id=1gghqtUozM3gK-
Um2G1_kiejfMNx_7GZM

1
Sendo assim, com Eros ausente de libido, esta energia buscaria sua
contraposição na tensão entre contrários, tentando encontrar seu oposto na atitude
consciente. Mas qual seria a contraposição de Eros?
No livro Psicologia do Inconsciente, Jung aborda de forma brilhante sobre a
contraposição de Eros ser a vontade de poder:
(...) Pela lógica, o contrário do amor é o ódio; o contrário de Eros,
Phobos (o medo). Mas, psicologicamente, é a vontade de poder.
Onde impera o amor, não existe vontade de poder; e onde o
poder tem precedência, aí falta o amor. Um é a sombra do outro.
Quem se encontra do ponto de vista de Eros procura o contrário, que
o compensa, na vontade de poder. Mas quem põe a tônica no poder,
compensa-o com Eros.
(JUNG, 2016, p.65 §78 – grifos meus)

Como vimos, nos psicopatas Eros está na sombra e por isso há uma
unilateralização da vontade do poder na consciência. Quanto mais primitivo for o
estágio da consciência, maior será a busca de poder.
Trazendo esta reflexão no âmbito social, somos convidados a pensar na
sombra coletiva e nos aspectos sombrios de uma sociedade, que são inúmeros: a
acentuada desigualdade social; o racismo; a violência contra a mulher; a
homofobia; a invisibilidade social dos idosos; a falta de condições dignas e básicas
da população carente; entre outros.
São incontáveis as características da sombra coletiva que permeiam o
inconsciente coletivo, porém gostaria de refletir sobre a sombra do poder, pois é
inevitável pensar em fluxos e dominações sociais sem pensar no poder.
Existem inúmeras formas de se atribuir o poder: classe social, status,
dinheiro, autoridade, tirania, apropriações (materiais, intelectuais, etc), punição,
influência, etc. Porém, como arquétipo, o poder engloba tudo e vai além.
De um modo sombrio, ao invés de ajudar o entorno social, os indivíduos
detentores do poder preferem ostentá-lo e demonstrá-lo através de hábitos de
consumo luxuosos, adquirindo itens supérfluos numa necessidade cada vez mais
crescente de status, prestígio e poder.
Os mais perversos buscarão manobrar a mídia, o mercado, a economia, o
conhecimento, as religiões, etc, para se perpetuarem, promovendo uma espécie de
alienação social para ter mais facilidade de manipulação popular. As leis de
mercado, os baixos investimentos na educação, a super fomentação do desejo de
consumo, a instigação de outras sombras populares (como preconceitos, medos,
mentiras, etc) faz com que as pessoas se distraiam e não percebam que são
manipuladas para finalidades sórdidas.
Numa falta de empatia, essas pessoas estão alheias ao sofrimento do outro
e não se sensibilizam com a fome, as necessidades primordiais, as carências
indispensáveis. Cito como exemplo o multibilionário sul-africano Elon Musk que,
segundo a Forbes (2018), é um dos 50 homens mais ricos do mundo e está mais

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preocupado em colonizar Marte do que auxiliar o desenvolvimento da África do Sul,
seu país de origem (fonte: O Globo, 2018).2
Aqueles perversos que almejam ou detém o poder buscarão de todas as
formas obter vantagens não se importando com o mal que causam nos indivíduos e
na sociedade. Esta falta de empatia, ausência de culpa, manipulações,
perversidades, necessidade de controle e domínio são marcas psicopáticas.
Com a sede de poder, os perversos não se intimidam em agir contra a
sociedade e se necessário, roubam, corrompem, mentem, matam e causam o mal
social.
Estendendo essa realidade social ao campo de reflexão do Guggenbühl-
Craig, quando o poder está em evidência o seu oposto “Eros social” está na
sombra. O mal está aderente ao poder perverso, e o poder está contraposto a
Eros.
A ausência do Eros social “dá um match” com a ausência de Eros dos
psicopatas, ou seja, a ausência de Eros em ambos se coincide. Os psicopatas
veem-se projetados e estimulados via predominância gananciosa pelo poder na
sociedade e a sociedade sente-se projetada via ações inescrupulosas dos
psicopatas.
Em outras palavras, os psicopatas veem a si próprio validados pela
sociedade e a parte sombria da sociedade sente-se representada pelos psicopatas.
Para ajudar na compreensão do exposto, apresentarei um fluxograma para
finalidade didática e meramente ilustrativa:

FLUXOGRAMA

2
Link para consulta: https://oglobo.globo.com/economia/tecnologia/elon-musk-avalia-em-70-as-
chances-de-se-mudar-para-marte-23260257.

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Sendo assim, como nos psicopatas a falta de Eros se expressa nas
dificuldades no relacionamento interpessoal, a ausência de Eros no nível social
também reflete a mesma premissa: ao invés de Eros, predominam a manipulação,
controle, domínio e intriga.
E como para os psicopatas as regras sociais são estranhas e até ridículas,
não veem razão para segui-las e podem quebrá-las facilmente.
Sendo assim, como uma provocação, existem certas vantagens em ser um
psicopata na sociedade. Por serem destituídos de escrúpulos e qualquer
moralidade, eles têm facilidade em se adaptar e substituem a ausência de Eros por
um amor ao poder, algo que podem alcançar sem muitas dificuldades. No fundo, a
sociedade os arrasta e, de forma projetiva, os tornam relativamente isentos de suas
responsabilidades individuais.
Prejudicando e punindo o indivíduo, o psicopata atinge seus objetivos
pérfidos para se promover socialmente. Com a ascensão social, eleva-se a
sensação do poder e de pertencimento a esta sociedade, cada vez mais
retroalimentada pela sombra.
E a sociedade projeta e (porque não dizer?) se utiliza das ações dos
psicopatas para que eles “resolvam problemas” onde ela, sociedade, faz vista
grossa.
Grupos de extermínio promovem a “higienização social”, a corrupção e os
desvios de verbas são os verdadeiros serial killers dos pobres nas filas dos
hospitais, o roubo do dinheiro da merenda escolar leva a fome para crianças que
às vezes fazem sua única refeição na escola...
Paradoxalmente, gostamos dos psicopatas e nos sentimos afetados por eles
porque, simbolicamente, servem como um espelho perverso da nossa própria
sombra individual e coletiva, pois ficamos satisfeitos por eles representarem a
“coragem” que não temos em punir aqueles que atrapalham a conquista dos
nossos desejos perversos.
Por isso, faz-se urgente olhar com honestidade para nossa sombra individual
e social e assumir que nós retroalimentamos a sombra dos psicopatas, ou seja, a
sombra deles é confirmada, alimentada e validada por nós e pela sociedade, pois a
ausência de Eros individual e social estão entrelaçadas, explicitando a necessidade
que alguns tem em buscar o poder custe o que custar.
E, enquanto houver a necessidade de poder perverso, a vida não florescerá
em sua plenitude.

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Daniela Euzebio, administradora, pós-graduada em Marketing pela
Universidade Anhembi Morumbi, pós graduada em Psicologia Organizacional e do
Trabalho pelo Mackenzie, pós graduada em Psicologia Junguiana pela FACIS e
analista em formação pelo IJEP.

(11) 99623-5529 daniela.euzebio@gmail.com


Atendimento: R. Domingos de Morais, 2781 - Vila Mariana, São Paulo (ao
lado do metrô Santa Cruz).

BIBLIOGRAFIA
JUNG, Carl Gustav. Psicologia do Inconsciente. Petrópolis: Vozes,
2016 (Obras completas de C.G.Jung, v. 7/1).
JUNG, Carl Gustav. A Natureza da Psique. Petrópolis: Vozes, 1986
(Obras completas de C.G.Jung, v. 8/2).
JUNG, Carl Gustav. Aion - Estudos sobre o simbolismo do si-mesmo.
Petrópolis: Vozes, 2013 (Obras completas de C.G.Jung, v. 9/2).
JUNG, Carl Gustav. Sobre sentimentos e a sombra: sessões de
perguntas de Winterthur. Petrópolis – Vozes, 2015
GUGGENBÜHL-CRAIG, Adolf – Eros de muletas – reflexões sobre
amoralidade e psicopatia. Curitiba – Corsária, 1998
SANFORD, John A. MAL – O Lado Sombrio da Realidade. São Paulo:
Paulinas, 1988
MANUAL Diagnóstico e Estatístico Transtornos Mentais–DSM-5. Porto
Alegre– 2014
FORBES (2018). Citações a referências eletrônicas. #40 Elon Musk - CEO
and Chairman, Tesla. https://www.forbes.com/profile/elon-musk/#35185f377999 .
Acesso em 21 abr 2019.

GLOBO, O (2018). Citações a referências eletrônicas. Elon Musk avalia em


70% as chances de se mudar para Marte. In Economia / Tecnologia.
https://oglobo.globo.com/economia/tecnologia/elon-musk-avalia-em-70-as-chances-
de-se-mudar-para-marte-23260257. Acesso em 21 abr 2019.

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