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Artigo
Família, filiação, parentalidade: novos arranjos, novas questões
Mariana Ferreira Pombo *
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Resumo: Este artigo pretende analisar questões e desafios importantes e atuais que se colocam com
as transformações ocorridas no campo da família, filiação e parentalidade, e a maneira como autores
contemporâneos se posicionam em relação a eles. Para isso, serão explorados diversos campos do saber, como
psicanálise, sociologia, antropologia e filosofia. Primeiramente, apresentarei e criticarei as ideias de autores
que interpretam de modo negativo a emergência de novos arranjos familiares, alguns inclusive criticando as
demandas dos homossexuais de união e acesso à filiação. Em seguida, explorarei as propostas de autores que
positivam o novo, problematizam pontos e impasses surgidos no social e na clínica, e fazem propostas clínicas
para o acolhimento dos pacientes e suas famílias.
http://dx.doi.org/10.1590/0103-6564e180204
Mariana Ferreira Pombo
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crise do patriarcado. Se a mulher adquire maior controle é a união entre homem e mulher, por meio de casamento
da procriação, vemos que a família que aí se instaura se ou união estável, ou a comunidade formada por qualquer
afasta bastante do modelo patriarcal, no qual o pai decidia um dos pais e os filhos. Ou seja, ele exclui não só as
até sobre a amamentação dos filhos. Hoje o pai foi expulso uniões homossexuais, mas também outras alternativas
de seu sacerdócio familiar e doméstico, perdendo o controle de arranjos familiares. Afirma, ainda, que a “família
sobre as mulheres, as mães e a procriação, e a concepção natural”, “aberta à fecundidade”, isto é, a heterossexual,
dos laços familiares e da sexualidade passam a depender que pode gerar filhos “naturalmente”, merece proteção,
da vontade dos indivíduos. pois é a base da sociedade.
Também o movimento LGBT+ merece ser Levando em conta essas transformações importantes
citado nesse contexto das transformações familiares ocorridas nos campos da família e da sexualidade nos
contemporâneas e pode ser considerado, inclusive, um últimos cinquenta anos e as questões também fundamentais
dos atores sociais mais importantes das últimas décadas que elas suscitam no social e na clínica, este artigo pretende
do século XX (Arán, 2003). No final dos anos 1980, o analisar como autores de diversos campos do saber
movimento, ainda sem essa sigla mais recente e chamado (psicanálise, sociologia, antropologia e filosofia) vêm se
apenas de movimento gay, se organizou bastante em posicionando diante das mudanças, repensando ou não o
reação tanto ao preconceito social sofrido com a epidemia arsenal teórico disponível aos analistas para o acolhimento
da Aids como à fragilidade jurídica dos homossexuais, de pacientes e suas famílias.
que ficou evidenciada com a morte de alguns deles e a Começaremos nossa análise com autores que, de
impossibilidade de seus parceiros se beneficiarem de seus forma mais ou menos explícita, interpretam de maneira
bens e herança. A partir daí, surgiram então em vários negativa o surgimento de novos arranjos familiares na
países propostas para a instituição do reconhecimento atualidade, alguns inclusive se mostrando contrários
jurídico da união homoafetiva. ao reconhecimento jurídico da união homoafetiva e da
Na França, por exemplo, esse reconhecimento homoparentalidade. Veremos que se trata de discursos
se deu em 1999 com a aprovação do Pacto Civil de problemáticos, na medida em que ainda sustentam a
Solidariedade (Pacs, do francês Pacte Civil de Solidarité), heterossexualidade e o binarismo sexual e de gênero
que permite a união de duas pessoas, de mesmo sexo ou como normas imprescindíveis de subjetivação e de
de sexos diferentes, e estabelece entre elas certos direitos constituição de família. Embora para muitos de nós eles
e deveres legais, mas não confere ao casal o direito à pareçam já ultrapassados e passíveis de refutação por
filiação. Em 2013, foi aprovado o casamento civil entre uma série de argumentos, sua força e influência ainda é
pessoas do mesmo sexo e, assim, a adoção de crianças grande – daí a importância de tomarmos conhecimento
por casais homossexuais passa a também ser possível, de suas construções.
desde que casados. Em seguida, veremos as propostas de autores que,
Tanto o momento anterior à aprovação do Pacs ao contrário, positivam a emergência do novo e a partir
como esse intervalo de mais de 10 anos entre ela e a daí problematizam novas questões e impasses que podem
aprovação do casamento civil entre pessoas do mesmo surgir na clínica atual.
sexo foram marcados na França por muitos debates,
inclusive com divulgação midiática. Como veremos Paixão de dessimbolização
neste artigo, houve, diante dessas novas leis, uma
reação bastante conservadora de alguns psicanalistas e A socióloga Irène Théry (1997) é um dos autores
sociólogos franceses, cuja preocupação maior diz respeito que se posicionaram contra o reconhecimento da união
à legitimidade da filiação homossexual. Em defesa da homoafetiva e contra o direito à filiação dos casais
moral familiar e de uma suposta “preservação simbólica” homossexuais, ainda se referindo a uma demanda de
da sociedade, eles desempenharam uma importante contrato de união social (CUS) feito em 1996 pelo Orgulho
resistência à aprovação de ambas as leis. gay e lésbico na França, anterior ao projeto do Pacs.
No Brasil, a união estável homoafetiva foi tornada O CUS, como o Pacs, visava permitir a união de duas
juridicamente possível em todo o país em 2011. Em 2013, pessoas quaisquer, de mesmo sexo ou de sexos diferentes.
o Conselho Nacional de Justiça emitiu uma Resolução A autora afirma que o problema do CUS, e das
que possibilita a conversão da união estável homoafetiva reivindicações do movimento LGBT+ de modo geral,
em casamento e determina que os cartórios realizem é a confusão entre a luta contra a discriminação e a
casamentos entre pessoas do mesmo sexo. aspiração à indistinção, que remeteria a uma “paixão
Também em nosso país há reações conservadoras de dessimbolização”, característica da sociedade
em relação à união homoafetiva e à homoparentalidade. contemporânea.
Um exemplo recente é o Estatuto da Família, projeto Recorrendo às ideias de Marie-Thèrese Meulders-
de lei criado em 2013 por um deputado da bancada Klein, Théry (1997) defende que dizer que o casal
evangélica, que define o que pode ser considerado homossexual não é semelhante ao heterossexual não
família e trata dos seus direitos e das políticas públicas revela uma atitude de discriminação, e sim uma operação
voltadas para atendê-la. Segundo esse estatuto, família de distinção. Dessa perspectiva, o não-acesso dos
Abstract: In this article we analyze important and current questions and challenges caused by changes occurring in the field of
family, filiation, and parenthood, and the way contemporaneous authors place themselves regarding them. For this purpose,
several fields of knowledge were analyzed such as psychoanalysis, sociology, anthropology, and philosophy. First, the ideas of
authors who negatively interpret the emergence of new family arrangements shall be introduced and criticized, with some of
them being against the demands made by homosexuals of union and access to filiation. Then, proposals of authors who value
new scenarios and problematize points and impasses that emerge in society, as well as in the clinic, will be discussed, and
clinical propositions for welcoming patients and their families are proposed.
Résumé: Cet article vise à analyser les questions et les défis importants et actuels qui se posent avec les transformations
produites dans le domaine de la famille, la filiation et la parentalité, et comment des auteurs contemporains se positionnent
par rapport à eux. Pour cela, des différents domaines de connaissance seront explorés, comme la psychanalyse, la sociologie,
l’anthropologie et la philosophie. D’abord, nous allons présenter et critiquer les idées d’auteurs qui interprètent de manière
négative l’émergence de nouveaux arrangements familiaux, certains même critiquant les revendications des homosexuels
d’union et d’accès à la filiation. Ensuite, nous allons explorer les propositions d’auteurs qui positivent le nouveau, problématisent
des points et des impasses survenus dans le social et dans la clinique, et font des propositions cliniques pour l’accueil des
patients et de leurs familles.
Resumen: Este artículo pretende analizar cuestiones y desafíos importantes y actuales que se plantean con las transformaciones
ocurridas en el campo de la familia, de la filiación y de la parentalidad, y de qué forma los autores contemporáneos se posicionan
con relación a ellos. Para ello, se explorarán diversos campos del saber, como el psicoanálisis, la sociología, la antropología y
la filosofía. En primer lugar, presentaré y criticaré las ideas de autores que interpretan de modo negativo la emergencia de
nuevas composiciones familiares, algunos incluso criticando las demandas de los homosexuales de unión y acceso a la filiación.
A continuación, exploraré las propuestas de autores que positivan lo nuevo, problematizan puntos e impasses surgidos en el
social y en la clínica, y hacen propuestas clínicas para la acogida de los pacientes y sus familias.
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