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Rodrigo Carreiro
Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM-UFPE).
Doutor e Mestre em Comunicação pela UFPE, e Bacharel em Jornalismo pela
Universidade Católica de Pernambuco.
Abstract: This paper makes an analysis of some images of one of the most important
films made about the Holocaust, Night and Fog (Alain Resnais, 1955), to insist on
the historical validity of the images of violence produced during the conflict. We
argue that even subsequent manipulations or minor historical inaccuracies in the
presentation of these images are not able to obscure, invalidate or depreciate the
use of photographs and moving images as historical documents.
Keywords: Documentary. File. Holocaust. Alain Resnais.
Résumé: Cet article analyse certaines images de l’un des films les plus importants
sur l’Holocauste, Nuit et Brouillard (Alain Resnais, 1955), en revenant sur la validité
historique des images de violence produite pendant la guerre. Nous soutenons
que même les manipulations ultérieures ou les petites imprécisions historiques
dans la présentation de ces images ne parviennent pas à masquer, à invalider ou la
valeur historique des documents photographiques et des images en mouvement du
génocide.
Mots-clés: Documentaire. Déposer. Holocauste. Alain Resnais.
78 Apontamentos sobre o uso de arquivos históricos / Rodrigo Carreiro e Ricardo Lessa Filho
Introdução: sobre o valor dos arquivos documentais
Apesar de terem sido lançados com trinta anos de intervalo
entre si, Noite e neblina (Nuit et brouillard, Alain Resnais, 1955) e
Shoah (Claude Lanzmann, 1985) são, sem duvida, os dois filmes
mais conhecidos e aclamados que tematizaram o Holocausto
contra o povo judeu. Apesar disso, eles compartilham pouco
mais do que o evento histórico que lhes serve de tema; são filmes
de estética completamente diferente, a começar mesmo pela
duração – 32 minutos da produção de Resnais contra 566 minutos
do titulo concebido pelo historiador Lanzmann. Mas a diferença
mais marcante, e também mais polêmica, reside provavelmente
no uso que ambos dão aos arquivos como documento histórico.
Como se sabe, Shoah está fundado sobre um hercúleo
trabalho de pesquisa, através da qual Claude Lanzmann localizou
testemunhas do Holocausto, persuadiu-as a lhe conceder
depoimentos (alguns muito longos e minuciosos) e construiu
a narrativa inteiramente sobre a palavra falada dessas pessoas,
a maioria sobreviventes de campos de concentração nazistas.
Lanzmann recusou quase que completamente o uso de arquivos
de imagens da Segunda Guerra Mundial.
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precisamente, a câmera move-se, ela é a única a mover-se, 2. La caméra ne bouge, en
ela é a única vida, não há nada a filmar, ninguém, só resta o lents travellings, que dans
cinema, não há nada de humano e de vivo a não ser o cinema, des décors vides, certes réels
diante de alguns vestígios insignificantes, derrisórios, e é este et vivants - légère agitation
des touffes d’herbe - mais
deserto que a câmera percorre, é sobre ele que ela inscreve o
vides de tout être, et d’une
rastro suplementar, rapidamente apagado, dos seus trajetos réalité presque irréelle à force
muito simples. (FLEISCHER, 1998: 33, trad. nossa)2 d’appartenir à un monde qui
est plus encore celui d’une
improbable, d’une impossible
survie. La caméra semble se
Durante a montagem do filme, neste raro momento em déplacer pour rien, à blanc,
que o homem pode controlar o nascimento da efígie, Resnais, dépossédée du drame, du
spectacle que ces mouvements
confrontado com a “nova” natureza daquelas imagens, foi semblent accompagner mais
acometido por uma vertigem insustentável: qui ne sont plus que ceux de
fantômes invisibles. Tout est
vide, immobile et silencieux, et
des photographies pourraient
Tinha certa impressão de irrealidade, porque pegar uma suffire. Mais précisément, la
dessas tomadas com outra, logo deslocá-la para obter certo caméra bouge, elle est seule
efeito... me dava má consciência, e ao mesmo tempo me à bouger, elle est la seule vie,
obrigava a refletir sobre a condição humana... fiz a montagem il n’y a rien à filmer, personne,
il n’y a que du cinéma, il
do filme em uma espécie de estado de vertigem. (RESNAIS
n’y a plus d’humain et de
apud LINDEPERG, 2009: 59 trad. nossa)3 vivant que le cinéma face à
quelques traces insignifiantes,
dérisoires, et c’est ce désert
que la caméra parcourt, c’est
Essa vertigem se apoderou de boa parte da equipe que sur lui qu’elle inscrit la trace
estava ajudando na montagem do filme, como aponta Sylvie supplémentaire, aussitôt
effacée, de ses trajets très
Lindeperg (2009: 59, trad. nossa) a partir da recordação de Henri simples.
Colpi, ao relatar o momento de pânico de Anne Sarraute, assistente
de direção, quando foi deixada sozinha por alguns minutos na sala de 3. Lenía cierta impresión de
irrealidad, porque pegar
montagem: “[ela] enlouqueceu quando viu na moviola uma tomada una de esas tomas com
que nunca havia visto, e que era um horror. Teve medo, saiu correndo otra, luego desplazarla para
obtener cierto efecto... daba
e veio nos buscar, com o coração batendo desesperadamente”.4 mala conciencia, y al mismo
Esta vertigem que é também um malaise, no sentido proposto por tiempo lo obligaba a uno a
reflexionar sobre la condición
Danielle Quinodoz (1997), como aquilo que pode causar uma humana... Se hizo el montaje
fraqueza, uma perda dos poderes mentais e físicos, sudorese fria, del film en una especie de
estado de vértigo.
náusea etc. A destruição absoluta a partir de uma montagem nos faz
sim compreender a profunda vertigem da equipe que trabalhava na 4. Enloqueció cuando vio
Rue de Poissy; afinal, como suportar tais imagens? Assim, en la moviola una toma que
nunca había visto, y que era
un horror. Tuvo miedo, salió
corriendo y vino a buscarnos,
[...] a vertigem não exclui o rigor, e o risco de cair, con el corazón latiendo
intencionalmente, na “má consciência”, cada tomada de Noite desaforadamente.
e neblina está colocada com uma precisão e uma maestria que
5. El vértigo no excluye el
provam o excepcional talento de um montador que dava a esta
rigor, y a riesgo de caer,
etapa do trabalho uma função equivalente a uma encenação. sabiéndolo, en la “mala
Este confronto da arte com a dor e o trágico foi produzido na conciencia”, cada toma de
Rue de Poissy. (LINDEPERG, 2009: 59, trad. nossa)5 Noche y niebla está colocada
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sejam logo após a liberação), mas o cineasta francês também
recorre a imagens da genealogia do cinema para compor o
conjunto de arquivos que é o seu filme. Nos primeiros planos
de Noite e neblina, Resnais utiliza fotogramas de O triunfo da
vontade (1934) (fig. 1), de Leni Riefenstahl, assim como um
plano de A última etapa (1948) (fig. 2), de Wanda Jakubowska,
quando um grupo de soldados, cobertos por uma névoa que
amplifica a obscuridade da paisagem, vigia os deportados que
estão saindo dos vagões de um trem.
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As imagens de arquivo utilizadas em Noite e neblina que os vestígios de parte
fundamental da história
exibem um excerto fundamental da história dos campos nazistas,
sejam reavaliados, estudados
momentos desoladores e assombrosos, onde a natureza do novamente como um esforço,
testemunho e do arquivo reivindicam tanto as suas partes corroídas por mais frágil que ele seja,
de tentar compreender um
quanto seus papeis históricos e imprescindíveis. No panorama pouco mais dessa cesura
arquivista que Resnais monta, há um espectro de abandono, de legada à humanidade.
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a silhueta da escuridão foi cúmplice essencial do gesto heroico,
passível de punição com morte imediata. Tal sombra ameaçadora
está presente na foto original (fig. 4).
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[...] o sonho que o acometia anos antes, durante sua estadia
no campo: ele está em casa entre seus familiares, e lhes conta
a vida no campo, a cama dura, a fome, o controle dos piolhos,
o soco do kapo, mas ninguém escuta, continuam conversando
entre si, indiferentes. Este sonho era comum a muitos de seus
companheiros de infortúnio. (PELBART, 2000: 171)
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Didi-Huberman (2012: 91), sendo na verdade “mal vistas [...]: mal
descritas, mal legendadas, mal classificadas, mal reproduzidas, mal
utilizadas pela historiografia da Shoah”. Essas imagens ausentes
(essas imagens que não nos chegam, que não nos tocam, que não
a vemos e que não nos vê) não legitimam a ausência, mas antes
uma falta, e neste sentido a definição de Godard sobre as imagens
registradas da Shoah é exemplar: antes que por imagens ausentes, a
Shoah é composta por imagens faltantes.
A imagem-arquivo capturada pelo judeu grego Alex (fig.
3 e 4) e usada por Resnais em Noite e neblina tem o seu valor
irrefutável porque é uma imagem que prova e testemunha um
momento real a partir do congelamento de um gesto genocidário,
e mesmo que a imagem não nos diga tudo (a sua falta), ela nos
permite pensar um excerto possível daquele tempo por ela retido:
fagulhas, chamas e fumaça do extermínio do homem, cujos
cadáveres amontoados amplificam a noção terrível do horror que a 13. No tienen solamente el
valor de ser una prueba,
imagem instaura. E sobretudo, porque uma foto como essa não foi sino que son también
feita a partir do ponto de vista nazista, senão antes dos deportados, documentos. No son de
ninguna manera inútiles,
e “não tem somente o valor de ser uma prova, senão que são ni se puede pensar en
também documentos” e que “não são de nenhuma maneira inúteis, destruirlas; simplemente
hay que analizarlas como
nem se pode pensar em destruí-las”; assim simplesmente temos de documentos históricos
“analisá-las como documentos históricos que permitem aprofundar que permiten profundizar
nuestro conocimiento de
nosso conhecimento dos acontecimentos que representam” los acontecimientos que
(LINDEPERG, 2009: 68, trad. nossa).13 representan.
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Figura 10 e 11: Registros de soldados norte-americanos
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Deste renascimento do qual fala Rancière,16 desta 16. Essa presença do
renascimento na fusão
fusão cinematográfica em que a morte da morte nos campos é
de Godard, apontada por
emergida anos depois pela efígie de Elizabeth Taylor e de sua Rancière, é criticada por
efêmera “felicidade sombria”, impossível não lembrarmos das Didi-Huberman: “Não há
ressurreição, no sentido
ruínas da história da qual fala Walter Benjamin (2012: 17) a teológico do termo, porque
partir do quadro Angelus Novus de Klee, este anjo que “parece não há conclusão dialéctica.
Neste momento, o filme
preparar-se para se afastar de qualquer coisa que olha fixamente” acaba de começar. E logo
(Taylor olhando para Clift), e que “tem os olhos esbugalhados” depois de Liz Taylor surgir,
qual vénus, do meio das
(os olhos dos deportados filmados por Stevens em Buchenwald águas - sobre o fundo de
e Dachau) e cuja “cadeia de fatos que aparece diante dos nossos uma tradição iconográfica
facilmente reconhecível
olhos é para ele uma catástrofe sem fim, que incessantemente - surge, por sua vez,
acumula ruínas e lhas lança aos pés” (a inferência de Godard após uma imagem dilacerada,
resistente a qualquer leitura
descobrir que Stevens tinha filmado a liberação17 dos prisioneiros imediata. Algumas letras são
em 1945). Ruínas, a impossibilidade de ir ao futuro com a aí sobreimpressas: lemos
primeiro End, como no fim
imagem da catástrofe cravada nos riscos do rosto de Taylor, a
de todos os clássicos de
“felicidade sombria” da personagem eclipsada pela imagem da Hollywood. Mas percebemos
morte fundida por Godard: “ele gostaria de parar para acordar que a palavra - tal como as
História(s), como a própria
os mortos e reconstruir, a partir dos seus fragmentos, aquilo que história e como a dialéctica
foi destruído” (BENJAMIN, 2012: 17). É, por fim, esta espécie de segundo Godard - não
acabou por causa disso.
torpor que consome toda a presença de Elizabeth Taylor, onde a Não será endlos (‘sem fim’,
memória da catástrofe corromperá toda a sua felicidade possível, ‘interminável’), e Endlösung
(‘Solução final’), que
o seu lugar ao sol. devemos ler aqui? Não será
o sem fim da destruição do
homem pelo homem que
Godard quer sublinhar com
esta história e com essa
prática de montagem?” (DIDI-
HUBERMAN, 2012: 190).
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RANCIÈRE, Jacques. Film fables. Oxford e Nova Iorque: Berg
Publishers, 2006.
TODOROV, Tzvetan. Em face do extremo. Campinas: Papirus,
1995.
Data do recebimento:
15 de junho de 2015
Data da aceitação:
14 de setembro de 2015