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São Paulo, sexta-feira, 14 de junho de 1996

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Estratégias para o próximo milênio


PETER PÁL PELBART

Cerca de dez anos separam a publicação na França dos dois tomos que
compõem "Capitalismo e Esquizofrenia", obra maior escrita a quatro mãos
pelo filósofo Gilles Deleuze e o psicanalista Félix Guattari. O primeiro
tomo teve uma carreira polêmica e fulgurante. Mais do que um acerto de
contas com a conturbada década dos 60 e o freudo-marxismo que parecia
animá-la, "O Anti-Édipo" constituía, segundo a bela definição de Michel
Foucault, uma "introdução à vida não-fascista". Ou seja, um livro de ética.
No prefácio à sua edição americana, Foucault resumia as linhas de força
daquele "guia da vida cotidiana" -contrário ao fascismo em todas as suas
formas- em sete consignas principais: liberar a ação política de toda forma
de paranóia unitária e totalizante; alastrar a ação, o pensamento e o desejo
por proliferação, justaposição e disjunção (e não por hierarquização
piramidal); liberar-se das velhas categorias do Negativo (a lei, o limite, a
castração, a falta), investindo o positivo, o múltiplo, o nômade; desvincular
a militância da tristeza (o desejo pode ser revolucionário); liberar a prática
política da noção de Verdade; recusar o indivíduo como fundamento para
reivindicações políticas (o próprio indivíduo é um produto do poder);
desconfiar do poder.
Ora, não podemos dizer que essas consignas perderam algo de sua
pertinência ou atualidade, muito pelo contrário. Curiosamente, no entanto,
o segundo tomo da obra, publicado em 1980, que a prolonga nas direções
as mais imprevistas e fecundas, passou praticamente desapercebido. O
que não impediu Gilles Deleuze de considerar "Mil Platôs" o melhor de
tudo o que já escrevera. Predileção premonitória ou não, o fato é que este
livro inclassificável começa lentamente a ser revisitado, numa época em
que alguns pregam sobranceiramente o fim da filosofia, ou mesmo da
história, enquanto outros buscam ferramentas teóricas para a travessia do
milênio.
Já a sua forma pede uma leitura inusitada, à maneira de "O Jogo da
Amarelinha", de Cortázar. São ao todo 14 platôs (e não capítulos), isto é,
regiões de intensidade contínua, "pedaços de imanência", que podem ser
lidos independentemente uns dos outros, mas que formam uma rede, ou,
como dizem os autores na introdução, um "rizoma". Num rizoma entra-se
por qualquer lado, cada ponto se conecta com qualquer outro, ele é feito
de direções móveis, sem início ou fim, mas apenas um meio, por onde ele
cresce e transborda, sem remeter a uma unidade ou dela derivar -em
suma, o rizoma é uma multiplicidade (como se vê, todas essas
características prenunciavam a geografia imaterial da Internet, para cuja
assimilação "filosófica" parecíamos tão pouco preparados). Se esta forma
rizomática convém tão bem a esse tomo é porque é precisamente esse o
seu objeto: a multiplicidade enquanto tal. "Mil Platôs" esboça uma teoria
das multiplicidades, "no ponto em que o múltiplo passa ao estado de
substantivo", dizem os autores, ultrapassando "a distinção entre consciente
e inconsciente, natureza e história, corpo e alma".
Tomemos um dos platôs desse terceiro volume, publicado recentemente
em cuidada tradução, e cujo título termina pela pergunta: "o que se
passou?" É sempre esta a questão, numa novela, na vida ou nas
revoluções: o que aconteceu, o que terá acontecido que de repente tudo
mudou, que já não nos reconhecemos no que ainda ontem constituía o
mais trivial cotidiano? Basta uma minúscula fissura para que uma vida se
embrenhe, como diz Henry James, num processo de demolição, arrastada
por uma "linha de fuga". Quantas e quão múltiplas linhas constituem uma
subjetividade, mas também uma situação, um acontecimento, um corpo
político, uma configuração social? Indivíduos ou grupos, somos
atravessados por linhas duras ou "molares" (distribuições binárias de sexo,
profissão, classe, partido, nossas "representações"), linhas flexíveis ou
"moleculares" (os processos capilares que investem a percepção, o
desejo, o corpo, as crenças), mas também por aquelas linhas de fuga, por
onde tudo ameaça vacilar. É o que mostra o platô "Micropolítica e
Segmentaridade": as sociedades definem-se menos por suas contradições
do que por suas linhas de fuga. E estas não indicam escapes do mundo,
mas o movimento pelo qual um mundo arrebenta (como um cano), de
modo que a pergunta deveria ser sempre esta: "A cada momento, o que
foge em uma sociedade? É nas linhas de fuga que se inventam armas
novas, para opô-las às armas pesadas do Estado". É onde intervém a
exigência de um exercício cartográfico de uma fineza extrema, em que as
linhas não são apenas descritas, mas traçadas, inventadas, selecionadas,
agenciadas, numa prática imanente de guerrilha e prudência.
"Mil Platôs" é um livro de Estratégia. Antes mesmo do ser há a política -e
toda política já é simultaneamente macropolítica e micropolítica, com as
interferências recíprocas, ressonâncias, mas também disjunções,
dissonâncias. Por exemplo, o fascismo como inseparável de focos
moleculares, que tomam o corpo, a percepção, o desejo, os bandos, as
gangues, antes de ressoarem todos juntos no Estado nacional-socialista
transformado numa imensa máquina de guerra. Ou o capitalismo como
grande desterritorializador (de fluxos de capital, de trabalho, de
informação, de signos, de máquinas, de velocidades, de tempo)
convivendo com reterritorializações as mais brutais, raciais,
tecnoburocráticas, desejantes, com seus efeitos de estancamento ou
serialização subjetiva.
É nesse sentido que a Estratégia é inseparável do Desejo. Pois os
agenciamentos de desejo extrapolam tanto o domínio familialista quanto a
fantasmática privada, sendo coextensivos ao campo social. É toda uma
pragmática que se vê aí esboçada, em que o desejo é retirado da tríplice
maldição que pesa sobre ele: a falta, o gozo impossível, ou seu atrelamento
ao prazer-descarga. Contra os sacerdócios interpretativos, o inconsciente
é concebido como meio de exploração ativa, plural e positiva -
construtivismo. A própria forma do eu se vê constantemente questionada
em proveito de outras configurações não identitárias, devires singulares
(devir-animal, devir-mulher, devir-molecular): desejos não figurativos. O
inconsciente como um protocolo de experimentações (Henry Miller), cujo
exemplo extremo, sem dúvida, está em Artaud. Seu "Corpo-sem-Órgãos"
(título de um dos platôs) se apresenta como uma matéria intensa não-
estratificada, superfície aberta a conexões e limiares que a significância e a
subjetivação hegemônicas proscrevem.
Mas nada aqui é festa ingênua. Os autores multiplicam as advertências
sobre os riscos, e insistem nos cuidados e prudências necessários, como
quem chama a atenção para a importância de uma arte de vida, mesmo na
mais cruenta das guerras, a ser construída pouco a pouco ("É necessário
guardar o suficiente do organismo para que ele se recomponha a cada
aurora; pequenas provisões de significância e de interpretação... pequenas
rações de subjetividade").
Tudo isso é visível no mais privado, íntimo, pessoal -o Rosto, ao qual é
dedicado um dos platôs mais intrigantes deste volume. O rosto como uma
"paisagem" (já era um tema predileto de alguns críticos do cinema no início
do século, Epstein ou Balász, impactados com a "geografia" do rosto no
primeiro plano cinematográfico), mas uma paisagem fabricada segundo um
certo regime de subjetivação, uma tecnologia corporal, uma "máquina
abstrata de rostidade", em detrimento das semióticas primitivas, polívocas,
heterogêneas -é o rosto do Homem branco. Não podemos aprofundar as
implicações desse platô intitulado "Ano Zero - Rostidade" na análise
atualíssima do racismo sob todas as suas formas, e da pergunta curiosa
que lhe dá fecho: como desfazer o Rosto do Homem branco, bem como a
subjetividade, a paixão, a consciência e a memória que o acompanham?
Toda uma política do rosto!
Devolvido ao rizoma material e imaterial que o constitui (biopsíquico,
tecno-social, semiótico), o atual rosto do homem é pensado em função
dos territórios que ele cria e que o recriam incessantemente. Não há aí
nem determinismo nem teleologia, mas um plano em que Estratégia e
Ontologia se pressupõem mutuamente, num jogo que revela as muitas
maneiras de ser possíveis -ou todavia impensáveis- do animal-homem, à
luz de uma Etologia mutante e complexa. "Mil Platôs" mostra as múltiplas
forças que estão em vias de desfazer esse Rosto humano, demasiado
humano, sem descuidar das estratégias para composições vindouras.

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