Você está na página 1de 32

A Questão da Justiça – uma abordagem preliminar

Márcio Pugliesi 1

Sumário

1. Contingência como princípio fundante das ciências sociais


2. A constituição das leis científicas 3. O princípio de
racionalidade como redutor da contingência 4.
Contingência, subjetivação, liberdade e felicidade 5.
Equidade e responsabilidade 6. Graus de responsabilidade
7. Juízos de valor, equidade, justiça e felicidade.

Abstract

1. Contingency as a founding principle of social sciences 2.


The establishment of scientific laws 3. The principle of
rationality as contingency reducer 4. Contingency,
subjectivity, freedom and happiness 5. Fairness and
responsibility 6. Responsibility 7. Degrees of Value
judgments, equity, justice and happiness.

Palavras Chave:

1
- Dout or e Li vre Docent e em Di rei t o pel a Uni versi dade de S ão P aul o; Dout or em
Fi l osofi a pel a Pont i fí ci a Uni versi dade C at ól i ca de S ão P aul o; Dout or em Educaç ão:
Currí cul o pel a Pont i fí ci a Uni versi dade C at ól i ca de S ão P aul o, P rofessor do P rogram a
St ri ct o S ensu de Est udos P ós-Graduados de Di rei t o e da F acul dade de Di rei t o da
P UC - SP .
Efetividade do Direito; Equidade; Responsabilidade;
Justiça; Contingência; Liberdade; Subjetivação;
Felicidade.
Key Words:

Effectiveness of law; Equity; Responsibility; Justice; Contingency;


Freedom; Subjectivation; Happiness.

... como é que a gente sabe certo como não deve de fazer
alguma coisa, mesmo os outros não estando vendo?2

1. Contingência como princípio fundante das ciências sociais

A Modernidade, uma vez instaurada, preocupou-se com a


redução de todos os problemas a um princípio de racionalidade, a luz
natural da Razão, a fim de dar segurança e favorecer o planejamento de
ações futuras.

Anteriormente, ao surgir do Racionalismo, Descartes havia


enunciado uma teoria de as verdades eternas dependerem da natureza
de Deus e ser o mundo por Ele criado a demonstração da natureza
consistente e necessária de tais verdades eternas.

2
- GUIMAR ÃES R OS A, João. Man u el zão e Mi gu el i m (corp o d e b ai l e). 11ª . ed.
(14ª . im pressão), Ri o de Janei ro: Nova F ront ei ra, 2001, p. 86.
Assim, seriam as verdades eternas contingentes pelo fato de
Deus haver criado o mundo livremente, sem qualquer coação ou
compulsão. Deus necessitaria ter perfeita liberdade para fazer e, portanto,
não haveria qualquer motivo para fazer ou deixar de fazer, nem qualquer
padrão de certo ou errado que pudesse, de qualquer maneira, afetar sua
vontade, vez que seria autocontraditório o ilimitado possuir limites e é,
ainda por isso, que não manifesta qualquer interesse pelo passado ou
pelo futuro: para Deus há possibilidades ilimitadas. Descartes afirma que
é necessário empregar as evidências empíricas para eliminar várias
dessas possibilidades e não apenas a razão.

Isso implica a liberdade de estabelecer conjecturas sobre elas, desde


que as consequências sejam referendadas pela experiência 3, no mesmo
rumo apresentado por Popper em seu encadeamento de problema,
tentativa de solução e retrodução. Basta ver:

<...> a matéria necessita assumir, sucessivamente, todas as


formas admissíveis e caso se considere tais formas em
ordem, pode-se, finalmente, chegar àquela em que é
encontrada neste universo.4
Após demonstrar a contingência do mundo por decorrência das condições
de liberdade de seu Criador, demonstraria que as leis pelas quais foi
estruturado são também contingentes tanto em suas Meditações5, quanto
em seu Discurso sobre o Método. Ao buscar um sólido fundamento para a
Filosofia, esse onipresente problema das fundações do saber,
encontrando um mundo contingente que poderia sequer ser, estabeleceu
o Cogito com via para demonstrar que se o mundo poderia ser irreal, ao
menos sua existência como subjetividade seria real e a suposição
contrária, i.e de sua inexistência, embora logicamente possível, não

3
- DESC AR TES , R ene. Pri n cip l es of Ph i l osop h y. P art 3, XLVI. In
ANS C OMB E, E. & GEAC H, P . T.. Descar tes: Ph il osop hi cal Wri ti n gs.
London: Nel son, 1969, p. 225.

4
- Tradução li vre, op. ci t ., p. 226.

5
- P art i cul arm ent e na Pri mei ra .
poderia ser assumida vez que para afirmar a própria inexistência,
precisaria existir.

Com isso, afirma a contingência de sua própria existência


segundo o mundo contingente em que existe e sua dúvida hiperbólica
conduz à aceitação de apenas aquilo que é clara e distintamente
percebido e isso, graças ao que de divino existe no Homem. A garantia da
verdade de nossas percepções repousa na perfeição de Deus, que não é
enganador, embora o pudesse ser, se não fora perfeito. As imperfeições
das percepções humanas advêm da imperfeição humana e não do
perceber ou do percebido. Todas idéias perfeitas se originam de Deus que
assegura a perfeição das percepções humanas e não devido à existência
necessária dessas coisas em si mesmas.

Mesmo as verdades matemáticas, que seriam insubsistentes por


si mesmas, não expressam relações eternas, porém são criaturas
contingentes como a própria mente humana. Em sua carta a Mesland
afirmou que Deus poderia fazer um triângulo cuja soma dos ângulos
internos fosse maior que dois retos e, muito depois, a geometria esférica
mostrou que poderia ser igual a três retos, demonstrando essa afirmativa.
Isto é, embora Deus escolha algumas verdades para necessárias, nem
por isso se pode afirmar que as escolha necessariamente.

Quanto às leis naturais, em sua primeira carta a Mersenne,


afirmou que tais leis são postas como aquelas que um rei dispõe em seu
reino: não são imutáveis, mas cambiáveis tanto quanto as do rei e,
conforme o afirmou no Discurso sobre o Método 6, são mantidas pela
benevolência divina apenas para que os homens se não confundam.

Ao estabelecer, livremente, as leis da natureza: as faz universais


e imutáveis, apenas porque é perfeitamente bom e porque a ordem que
estabeleceu assim o exige. Deus não é enganador e a verdade só seria
arbitrária por depender da Sua escolha livre e incondicionada, mas uma

6
- DES C AR TES , R ene. Di scu rso sob re o Métod o. 12ª . Ed., t rad. Márci o Pugl i esi e
Norbert o de P aul a Li m a, S ão P aul o: Hem us, 1999, part e V.
vez postas as leis naturais, pela benevolência divina, essas permanecem
válidas para todos demais atos de criação. Assim, embora contingentes,
em vista da onipotência, tornam-se necessárias por força da
benevolência. Sendo Deus a causa eficiente e total de toda criação, é
também a causa de todas verdades eternas que estabeleceu, se nada
houvesse criado: não haveria verdades eternas. Logo, estas padecem de
contingência.

Em Leibniz essa questão (aquela da contingência) ressurge em


sua forma lógica da tensão entre uma teoria analítica 7 da verdade
(continência do predicado no sujeito) e a contingência, in verbis8:

Em todos os juízos em que a relação de um sujeito ao


predicado é asseverada essa relação é possível segundo
duas diferentes vias. Ou o predicado B pertence ao sujeito A;
ou está fora do conceito A, embora esteja, de fato, em
conexão com ele. No primeiro caso chamo o juízo de
analítico, no outro sintético.

Apresenta-se desse modo a questão da contingência: a


necessidade repousa na estrutura lógica, no mundo dos fatos, estabelece-
se a necessidade do recurso ao sensório e, logo, da busca da conexão
sintética entre os fatos. Verdades contingentes não são necessárias,
poderiam não ser. O objetivo principal da teoria dos juízos de Leibniz é
compreender mesmo as veritates facti como identidades, como verdades
eternas atribuindo, também a elas um ideal de absoluta certeza e
verdade. Nessa teoria assimila-se, tanto quanto possível, as veritates facti
a verdades da razão e busca-se, é claro, um fundamento lógico para a
existência, ínsita no campo da ontologia.

7
- A l ógi ca l ei bni zi ana vê a proposi ção com o cat egóri c a, em bora não recubr a apenas
proposi ções anal í ti cas (em senti do kant i ano), em bora a defi ni ção de Kant para juí zo
anal í t i co corresponda ao que Lei bni z defi ne com o verdade.

8
- Tradução li vre de Necessary an d Con ti n gen t Tru t hs , i n LEIB NIZ, Got t fri ed
Wi l hel m F rei herr von. Ph i l osop h i cal Wri ti n gs of L ei b ni z . ed. G. H. R . P arki nson,
t rad. Mary Morri s & G. H. R . P arki nson, London: Dent , 1973, p. 96: “In al l
j udgm ent s i n whi ch the rel at i on of a subj ect t o t he predi cat e is t hought thi s rel at i on
is possi bl e i n t wo di fferent ways. Eit her the predi cat e B bel ongs t o t he subj ect A, as
som et hi ng (covert l y) cont ai ned i n t hi s concept A; or li es outsi de the concept A,
al t hough i t does i ndeed st and in connect i on wi t h i t . In t he one case I ent i t l e the
j udgm ent anal yt i c, i n the ot her synt het i c.”.
A questão se aprofunda em Kant, que motivado pelas
observações de Hume sobre a contingência do conhecimento humano,
acaba por escrever a sua Crítica da Razão Pura com o foco principal de
estabelecer os juízos sintéticos a priori como fundamento do
conhecimento confiável e afastado da contingência, conforme se pode ver
na Introdução dessa Crítica sob o título : O problema geral da Razão
Pura9:

Muito se ganha, antecipadamente, caso se puder realizar


certo número de investigações sob a formula de um único
problema. Pois não só iluminamos nossa própria tarefa
definindo-o acuradamente, mas tornamo-lo mais fácil para os
outros, que testarão nossos resultados, para julgar se
tivemos sucesso ou não na questão: Como são possíveis os
juízos sintéticos a priori?

Ora, que problemas teriam sido enfeixados sob essa questão


senão os decorrentes da contingência? Qual a novidade dessa
abordagem? Uma estrutura que secciona os juízos de uma parte e o
conhecimento de sua verdade de outra. O conhecimento dos juízos em a
priori e a posteriori e os juízos em analíticos e sintéticos. Nega-se, assim,
o vínculo interno entre posterioridade e sinteticidade e introduz-se a
contingência que permite possa ser um juízo sintético verdadeiro ou falso.

Em verdade, Kant estabelece três divisões segundo a forma; os


modos e as modalidades. A forma: analítico ou sintético; os modos: a
priori ou a posterior e as modalidades: necessário ou contingente. Sendo
certo que a analiticidade implica a necessidade, as demais condições não,
deixando largo espaço para o contingente.

9
- KANT, Imm anuel . Imman u el Kan t’s Cri ti qu e of Pu re Reason , t rad. S mi t h,
N. K., B edford, Bost on/ New York: St . Mart i n’s,1965, p. 4: “Much is al ready
gai ned i f we can bri ng a num ber of i nvesti gat i ons under t he form ul a of a si ngl e
probl em . For we not onl y li ght en our own t ask, by defi ni ng i t accurat el y, but
m ake it easi er for ot hers, who woul d t est our resul t s, t o j udge whet her or not
we have succeeded i n what we have set out t o do. Now the proper probl em of
pure reason i s cont ai ned in t he quest i on: How are a pri ori synt het i c j udgm ent s
possi bl e? “.
2. A constituição das leis científicas

Nas ciências da natureza torna-se necessário buscar


regularidades a partir da observação de fatos. Não será necessário repetir que
os fatos são descrições, mediante linguagem de ocorrências. Essas últimas,
percebidas com os recursos do aparato sensório humano, com suas extensões
por via de instrumentos (incluso de coleta), decorrem do percebido, mais
teorias, incluso as chamadas de senso comum, ou mais precisamente, as
estabelecidas a partir de representações sociais comuns.

Tais primeiras leis, as chamadas leis empíricas e muito presentes, em


particular na engenharia, mediante a introdução de constantes (também
resultantes de experimentação reiterada) tornam-se identidades, em lugar de
proporcionalidades, isto é, passam a ser entendidas como leis da natureza.
Não se deve confundir leis empíricas com juízos empíricos em sentido
kantiano, visto que as primeiras intentam capturar uma ordem, por reiteração,
percebida na natureza, ao passo que os juízos empíricos têm status de simples
generalização, não tendo cogência para estabelecer uma ordem natural. Leis
empíricas são entendidas como necessárias e generalizações empíricas são
meramente possíveis.

Entretanto, as leis empíricas que lidam com proporcionalidades são


ajustadas, pelas reiteradas aplicações e correções, por constantes que as
transformam em identidades. Uma constante física é dita fundamental, em
sentido estrito, se independente do sistema de unidades de medida, sendo um
número adimensional, embora algumas, dependentes dos sistemas de medida,
também recebam essa designação como, por exemplo a gravitacional.

Busca-se, sempre, tornar as teorias mais simples e mais elegantes,


reduzindo o emprego de constantes físicas nas fórmulas matemáticas. Para
tanto, definem-se as unidades de medida de tal modo que as constantes físicas
mais comuns, como a velocidade da luz, sejam normalizadas à unidade, num
sistema dito de unidades naturais e que visa reduzir a complexidade das
equações. Várias constantes físicas são, entretanto, números adimensionais
obtidos experimentalmente. Por essa razão, a pesquisa da possível variação
das constantes fundamentais da teoria física no tempo constitui área de relevo
na pesquisa contemporânea.

Além dessas constantes, há outras votadas à adequação de um sistema de


medidas10 a outro, em particular aquelas de adaptação do sistema inglês ao
métrico.

Dito isso, pode-se compreender de forma mais completa o sentido das


leis empíricas: nascem de um discurso academicamente unificado e unificador
a fim de representar regularidades postas, pelos homens, a partir da natureza.
Lembrando que esta, também, é conformada por discursos convencionais e
tradicionais.

Mesmo na esfera do ‘necessário’ subjaz a convenção e tudo se


conforma a partir do contingente.

2. O princípio de racionalidade como redutor da contingência

10
- Lem brando serem esses si st em as: convenci onai s. S ão m edi das adapt adas à escal a
hum ana de capt ação e i nt ervenção sobre a nat ureza. Os própri os padrões de m edi da
evol uem conform e a evol ução das ci ênci as e novos são cri ados pel a m ul t i pli cação e
di vi são dos padrões uni t ári os. Por exem pl o, para fal ar do padrão m ai s ut i l i zado: em
1960, a XI Conferên ci a Geral de P esos e Medi das m udou a ant i ga defi ni ção de m et ro:
m et ro é o com pri m ent o igual a 1 650 763,73 com pri m ent os de onda no vácuo da
radi ação correspondent e a t ransi ção ent re os ní vei s 2p 1 0 e 2d 5 do át om o de cri pt ôni o
86. A vel oci dade da luz no vácuo c é um a const ant e fí si ca m edi da há m ui t o t em po de
form a di ret a, m edi ant e vari ados experi m ent os. Medi ndo a frequênci a f e o
com pri m ent o de onda ë de radi ação de al t a frequên ci a e ut i l i zando a rel ação c=ëf é
det erm i nada a vel oci dade da l uz c de form a i ndi ret a. O val or obt i do em 1972,
m edi ndo a frequên ci a e o com pri m ent o de onda de um a radi ação i nfrave rm el ha, foi c
= 299 792 458 m / s com um erro de ± 1,2 m/ s. A XVII Conferên ci a Geral de P esos e
Medi das de 20 de Out ubro de 1983, abol i u a ant eri or defi ni ção de m et ro e adot ou a
segui nt e: O metro é o com pri m ent o da t raj et óri a percorri da no vácuo pel a l uz
durant e um t em po de 1/ 299 792 458 do segundo, a fi m de eli m i nar a refer ênci a a um a
part i cul ar ti po de onda.
Há um pressuposto de que as ciências se unificariam graças a um
princípio de racionalidade compartilhado por todas. O encaminhamento,
presente no início deste trabalho, e apresentado em sua versão popperiana de
que os diferentes ramos do saber humano operam por resolução de problemas
deflui dessa crença muito compartilhada.

Essa posição foi defendida por Popper11 em um artigo bastante discutido


e publicado pela primeira vez em 1967 que sustenta ser o princípio de
racionalidade o meio pelo qual as ciências sociais seriam capazes de
reproduzir o modelo epistemológico geral de explicação científica, segundo sua
concepção dedutivo-nomológica que impõe duas condições para a
cientificidade de um argumento: 1. a correção lógica e 2. a qualidade
epistêmica das premissas. Aceita, muito embora a enorme quantidade de
críticas que se a pode submeter, essa abordagem, aceita-se, implicitamente, a
racionalidade como pressuposto da mesma e no mencionado artigo de
Popper12, a primeira condição seria atendida pela ação conforme à situação
analisada e a segunda pela falibilidade, isto é, testabilidade negativa das
proposições decorrentes da situação analisada.

A regularidade decorrente da observação pode ser explicada em termos


nomológico-dedutivos segundo o princípio de racionalidade que, destarte,
acaba por funcionar como um super-princípio nessa forma de explicar, ou ainda
melhor, um princípio unificador do método das ciências sociais. O texto de
Hegenberg13 esclarece:

O homem nasce em uma ‘circunstância’ – o primariamente


dado – e a transforma em um ‘mundo’, um local em que
pode viver. Seu ajuste com o contorno é de ordem intelectual
e se efetua de várias maneiras, com auxílio da filosofia, da

11
- POP P ER , Karl . R . Th e rat i on al i t y prin ci pl e . In: MILLER , Davi d (Ed.). Pop p er
sel ecti on s . New Jersey: P ri ncet on Uni versi t y P ress, 1985.

12
- op. ci t . p. 144-146.

13
- HEGENB ER G, Leoni das. Defi n i ções – termos teóri cos e si gn i fi cad o. S ão P aul o:
Cul t ri x/ Edusp, 1974, p. 15.
religião, da ciência e da arte. A ciência, em especial, muito
contribui para que esse ajuste possa realizar-se.
Investigando, ou seja, observando, percebendo, medindo, o
homem chega a certas generalizações que lhe são
indispensáveis para explicar, predizer e retrodizer os
fenômenos que perdem, assim, o caráter ‘caótico’ de que se
revestem, a um primeiro exame, para se verem ‘integrados’
em sistemas criados precisamente com o objetivo de permitir
aquele ajuste intelectual com o meio.

Para efeito de reduzir a complexidade das circunstâncias (ou,


mais precisamente, das situações) excluem-se os aspectos de pouca
interferência na formação do modelo de realidade a adotar. As normas
jurídicas são um exemplo claro de que a redução da complexidade social
por via negativa (condutas interditas) repousa sobre um princípio de
racionalidade típico da era burguesa. Com isso se poderia afirmar que,
metodologicamente, seria possível pensar numa unidade das ciências
(sociais, pelo menos), embora jamais de objeto. Os problemas
enfrentados são diversos, mas a abordagem radicaria num princípio de
racionalidade resultante de algo como as três regras de Popper: o
problema; tentativas de soluções; a eliminação das pseudo-soluções.

Disso ressalta um fato incontroverso: as leis ‘da natureza’ são leis


humanas sobre a natureza e compõem, em geral, a identificação de
regularidades de interesse para a Humanidade. Assim, se o princípio de
racionalidade é pressuposto para as lógicas indutiva e dedutiva, em todos
os casos será de algum modo refutado, deixando, desde logo, de ter o
status de uma lei. Tendo em vista as ambiguidades
características das refutações14 poder-se-ia afirmar que não importa o
problema da veracidade para se aceitar esse princípio, mas, acredita-se
que é inafastável por permitir uma certa sensatez para as discussões
teóricas. Afastado ou negado, como alguns ditos pós-modernistas o
tentaram, a pesquisa será afetada e não se poderá manter a crença em

14
- Em F i l osofi a conheci do com o ‘probl em a de Duhem ’.
conjecturas enquanto se mantiverem aplicáveis, vez que a irracionalidade
se faria onipresente.

De toda sorte, o princípio de racionalidade pode ser encarado como um


preceito não testável, apenas compõe a estrutura rígida das crenças mais
fundamentais, mas não possui qualquer força explicativa. Essa
objeção repousa sobre o fato de que a maior parte das explicações de
estilo dedutivo presente nas ciências sociais têm premissas mais
específicas, que o princípio de racionalidade e, ademais, esse último
facilitaria a generalização de escolhas variantes dada a situação.

Caso se veja o princípio de racionalidade como metafísico – este


seria muito pouco confiável para a edificação de explicações de cunho
científico, por outra parte, se visto como nomológico seria anêmico para
suportar derivações mais específicas nos diferentes modelos da
economia, da sociologia e, por exemplo, da história. Seria, assim, um
princípio unificador muito fraco, pouco capaz de entretecer métodos
confiáveis. Para que serviria, então? Principalmente para uma primeira
redução da complexidade servindo, mais que tudo, para traçar um recorte
epistêmico que possa ser explicado no âmbito da teoria escolhida.

A origem histórica do emprego desse referencial parece situar-se


em Pareto, que o entrevia no que chamou de ‘ação lógica’, a mesma
‘ação racional instrumental’ ou ‘ação racional com vistas a fins’ de Weber,
no seu modo objetivo de compreender a racionalidade instrumental. Em
Pareto não se cogitava da racionalidade subjetiva de informações parciais
desigualmente compartilhada pelos agentes econômicos, levando-o a
considerar a presença de ‘ações não lógicas e, mesmo, ‘ações ilógicas’ de
tais agentes, levando à questão dos resíduos para justificar os
comportamentos e escolhas ‘irracionais’ em função de diferentes
utilidades. Mas, principalmente, para permitir a separação epistêmica
entre os objetos da sociologia e aqueles da economia (que, tão-só,
cuidaria das ações racionais instrumentais).
A busca de otimização, sempre presente no raciocínio de tipo
econômico, isto é o uso de relações minimax para efeito de selecionar
ações são, ainda, métodos de redução de complexidade ou, mais
precisamente, de diminuir a contingência. Ao afastar as escolhas (ações)
tendentes a aumentar o prejuízo numa dada situação, o que se faz é
reduzir a liberdade do ator e aumentar a previsibilidade possível para o
teórico.

As escolhas, dadas a finalidades do jogo (que podem ser


irracionais) se reduzem das contingências compossíveis para as
conducentes ao êxito. A compossibilidade já representa uma redução do
universo de possibilidades dada a situação que, por sua vez, já atua como
elemento redutor dadas as contingências. Uma abordagem acionalista a
la Touraine15 reduzirá ainda mais as variáveis a considerar na análise
sociológica ao definir, de modo muito mais restritivo que o princípio da
racionalidade, o objeto das ciências sociais como sendo aquele do estuda
das relações sociais, ou seja, o sentido de uma conduta determina-se pela
natureza das relações sociais em se situa o ator.

Nesse momento se percebe, de modo definido, que a liberdade só


é possível dada a contingência.

3. Contingência, subjetivação, liberdade e felicidade

Dado que o fado, se existente, deveria reduzir a ação de todos à


negação do livre arbítrio e impossibilitaria o Direito, vez que os atos
praticados seriam conformes a disposições superiores ou, pelo menos
inevitáveis – deve-se supor que a contingência reina no âmbito do social e da
natureza. O inevitável natural corresponde, tão-só, à expectativa forte de que
regularidade observada se cumpra.

15
- Em part i cul ar, TOUR AINE, Al ai n. Soci ol ogi e d e l ’acti on . P ari s: du S eui l , 1965.
A partir de a orientação de Touraine e de Marx, mas em sentido algo
diverso, supor-se-á que os atos humanos se dão em sociedade que, a partir
de seus modos de produção, estrutura relações sociais redutoras de
contingência a partir da interveniência de organizações; instituições; uma
constituição e relações de classe.

Uma organização é um conjunto de meios necessários para a ação.


Uma instituição são campos de decisões circunscritos mais a atividade das
forças de pressão. A constituição é a lei fundante e especificadora da
dominação de dada classe fixando limites ao jogo das instituições políticas e,
enfim, as relações de classe, gestadas entre os projetos da cultura e as
possibilidades da civilidade, definem uma redução das compossibilidades de
ação dos diferentes atores em situação. E, acresça-se, essa
compossibilidades são diversas pela diferença das condições de partida de
cada um desses atores.

Implicam-se nesse raciocínio, pelo menos, dois problemas principais: a


equidade e a orientação da ação dada a situação 16. Reservando o primeiro
deles para novo item, quanto ao segundo cabe observar que os teóricos
sempre submetem a orientação para a ação à otimização. Otimizar, lato
sensu, equivale a buscar a melhor ação estratégica tendo em vista os fins.
Uma ação só será estratégica se abrigar racionalidade, o que se não exige
dos fins.

Buscando um suporte técnico favorecedor dessas ações, foram


escolhidos diferentes referencias: estatísticos como a probabilidade subjetiva 17

16
- Lem brando a cara ct erí st i ca de l ocal i dade da si t uação, necessi t a- se ponderar que,
se essa últ i m a for ent endi da, t ão só, com o espaço geográfi co, ai nda assi m , deve- se
l em brar que esse é o resul t ado concret o da apropri ação, m edi ant e um processo
hist óri co de t ransform aç ão da nat ureza em espaço soci al const i t ui ndo- se no t opos de
reprodução das rel ações soci ai s de produção. C om i sso, m esm o na sua acepç ão m ai s
l at a, a si t uação com port a pressupost os i nafast ávei s em sua percepç ão.

17
- B asi cam ent e, a t eori a de S avage part e de um conj unt o de est ados pri m i ti vos que
denot am os el em ent os que ori ent am o t om ador de deci sões dados por: S é o conj unt o
de est ados da nat ureza (est ados do mundo); A é um a ál gebra de subconj unt os de S ;
denot ando um a fam í li a de event os; X é o conj unt o de possí vei s consequênci as
fut uras para o t om ador de deci sões. Um at o, nessa acepção é um a apl i cação f : S →X
que especi fi ca para cada cont i ngênci a s ε S, um a consequên ci a f (s ) em X. Ou sej a,
o t om ador de deci sões deve real i zar um a escol ha i gnorando que event o nat ural
de Savage/Ramsey, a atitude de risco, bem assim, a utilidade esperada de Von
Neumann e Morgenstern baseadas na função de utilidade da pesquisa
operacional, ou a concepção de Simon da racionalidade limitada, todas,
entretanto, exagerando as posturas cotidianas dos sujeitos em suas escolhas.

Argumentar-se-á que, visando a instituição de um mundo mais


equânime, vez que a justiça corresponde a um ponto de equilíbrio decisional,
as decisões tomadas em contextos sociais deveriam levar a ações
conducentes a maior equidade, por motivos da adoção do princípio da
racionalidade: escolhas que sobrelevem excessivamente a vantagem individual
levam, no longo prazo, a crises sistêmicas, como a atualmente observada no
capitalismo financeiro, ou avançado.

5. Equidade e responsabilidade

A pesquisa na área de economia normativa dos últimos trinta anos, a


partir da obra seminal de John Rawls 18, conduziu à afirmação da existência de
uma justiça distributiva e, implicitamente, à equidade para referenciar a
distribuição e implicitamente, ao problema da responsabilidade 19 para efeito do
controle dessa distribuição, remetendo ao epicentro da organização da

ocorrer á, sabe apenas a consequênci a especi fi cad a por cada at o em cada


cont i ngênci a.

18
- R AWLS , John. A T h eory of Ju sti ce , C am bri dge : B el knap, 1971.

19
- A noção de responsabi l i dade, bem com o aquel a de equi dade, foram ext ensa e
i nt ensam ent e di scut i das na obra de seus sucessores com o, por exem pl o, em :
SC ANLON, T. M. R awl s’ Th eory of Ju sti ce . In: DANIELS , Norm an (Ed.) Read in g
Rawl s . St anford: St anford, 1989, p. 169- 205; AR NES ON , R i chard J. Equ al it y an d
equ al opport un i t y for w el fare , i n Ph i l osop h i cal S tu d i es 56, 1989, p. 77- 93; ______.
Li berali sm , di stri bu ti ve su bj ect i vi sm , an d equ al opportu ni t y for w el fare , i n
Ph i l osop h y and Pub l i c Affai rs 19, 1990, p.159- 194; ______. Lu ck egal i t ari an i sm
an d pri ori t ari an i sm , i n E th i cs , 110: 339-49, 2000; AUDAR D, C at héri ne. La
coh éren ce de l a th éori e de l a j ust i ce. In: AUDAR D, C at héri ne (C oord.). John
Rawl s: p oli ti q u e et métap h ysiq u e . P ari s: PUF , 2004, p. 15-38; S EN, Am art i a K.
Equ al it y of Wh at ? i n MC MUR R IN, S. (ed.), T ann er l ectu res on hu man valu es. vol .
1, Uni versi t y of Ut ah P ress, 1980, p. 195-220; ______. Wel fare, freedom an d soci al
ch oi ce: a R epl y . In Rech er ch es E con omiq u es d e L ou vai n . 56, 451-485, 1990.
sociedade e do direito burguês: como uma sociedade justa pode equalizar as
condições de seus cidadãos? Como estabelecer as melhores condições para
proporcionar bem estar?

A resposta de Rawls presente em seu A Theory of Justice, citado há


pouco, implicava um problema de distribuição, seus seguidores Amartya Sen 20
e John Roemer21 aprofundaram suas idéias a partir da intensa crítica
deflagrada por seu posicionamento e deram como fundamento para suas
próprias teorias, nascidas desse solo comum, o primeiro tendo como
mecanismo de calibração da distribuição equitativa a capacidade dos sujeitos
(capability approach) e o segundo, aparentemente apoiado nos referenciais do
primeiro, de acordo com um princípio de igualdade de oportunidades (Equality
of Opportunity Principle), sendo certo que a concepção de responsabilidade de
ambos têm profunda semelhança.

Há, de fato, dois critérios principais que permitem categorizar as teorias


da justiça: o método da compensação e o corte de justiça 22. A leitura de Sen
conduziria a uma retomada de Rawls e não produziria uma teoria da igualdade
de oportunidades, mas segundo seu artigo de 1985 a uma teoria da igualdade
de possibilidades, ou a partir daquele de 1996, a uma teoria da igualdade de
recursos.

20
- SEN, Am art ya K. Commod i ti es an d Cap abi l i ti es. Am st erdam : Nort h-Hol l and,
1985; ______. O n E th i cs and E con omi cs. Oxford: B asil B l ackwel l , 1987; ______.
In eq u ali ty Reexami n ed . C l arendon P ress, 1992; ______. A i d éi a d e Ju sti ça. Trad.
Deni se B ot t m ann e Ri cardo Doni nel l i Mendes, S ão P aul o: Com panhi a das Let ras,
2011;S EN, Am art ya K. & WILLIA NS , B . (eds.) Uti l i tari sm an d B eyon d . C am bri dge,
Massachuset t s: C am bri dge, 1982.

21
- R OEMER , J. E. Th eori es of Di stri b u ti ve Ju sti ce . Harvard, 1996; ______.
Eq u al i ty of Op p ortu ni ty. Harvard, 1998; ______. Equ al it y of Tal en t , i n E con omi cs
an d Phi l osoph y 1, 1985, p. 151- 181; ______. Egal i t ari an i sm , respon si bil i t y an d
in form at i on . i n E con omi cs an d Phi l osoph y 3. 1987, p. 215- 244; ______. A
Pragm at i c Th eory of R espon si bil i t y for th e E gal i t ari an Pl an n er , i n Ph i l osop h y an d
Pu b l i c Affai rs 22, 1993,p. 146- 166; ______. E qu al i t y of opport un i t y: A progress
report , i n Soci al C h oi ce an d Wel fare 19, 2002, p. 455- 471.

22
- Essenci al m ent e, o cort e de j ust i ça ( j ust i ce cut ) corresponde a di scri m i nar as
com ponent es sit uaci onai s pel as quai s o suj ei t o é responsável e pel as quai s não é. Já
o m ét odo de com pensação exi ge a escol ha ent re igual dade de recursos, igual dade das
condi ções de part i da, i gual dade de oport uni dades et c. Esse é o pont o de part i da para
a const rução do concei t o de responsabi l i dade.
Do ponto de vista de Rawls, bem estar e utilitarismo implicam a questão
da responsabilidade. Considera a posição dos sujeitos na sociedade como
alheia a suas responsabilidades, vez que se essas dependerem do esforço de
cada um, os mais talentosos são, em geral, os mais capazes de esforço
extraordinário. As habilidades naturais são distribuídas aleatoriamente aos
seres humanos. Em suas palavras23:

none of the precepts of justice aims at rewarding virtue. The


premiums earned by scarce natural talents, for example, are
to cover the costs of training and to encourage the efforts of
learning, as well as to direct ability to where it best furthers
the common interest. The distributive shares that result do
not correlate with moral worth, since the initial endowment of
natural assets and the contingencies of their growth and
nurture in early life are arbitrary from a moral point of view.

Por outro lado, assim que os bens primários são distribuídos passam, os
sujeitos, a ter total responsabilidade por suas escolhas e pela busca de seus
fins e, principalmente, pela adequação de seus fins a seus meios.
Naturalmente essa posição recebeu críticas e a mais frequente referiu ao fato
de que Rawls desconsiderou talentos e falhas individuais para efeito da
distribuição dos bens primários. Sen desenvolveu sua abordagem da
capacidade24 para remediar essa questão e abarcar a diversidade humana no
modelo. Outras críticas apontam para o fato de que o esforço individual é
anulado como fator de recompensa sistêmica conduzindo a um paradoxo, visto
que o princípio da diferença assume que os cidadãos jamais são responsáveis
por seus atos para efeito da distribuição dos bens primários, por outro lado, são

23
- R AWLS , John. A T h eory of Ju sti ce . C am bri dge: B el knap, 1971, p. 274. Em
t radução li vre: “ nenhum dos precei t os da j ust i ça al mej a vi rt ude grat i fi cant e. O
prêmi o ganho pel os escassos tal ent os nat urai s, por exempl o, servem para cobri r
cust os de t rei nament o e encoraj ar os esf orços de aprendi zagem, bem como para
diri gi r a habil i dade aonde mel hor se promove o int eresse comum. As ações
dist ri buti vas resul t ant es não se correl aci onam com val or moral , vez que a
dist ri bui ção ini ci al de recursos nat urai s e as conti ngênci as para seu cresci ment o e
sust ent o no íni ci o da vi da são arbi t rári as do pont o de vi st a moral . ”

24
- SEN, Am art ya K. Commod i ti es an d Cap abi l i ti es. Am st erdam : Nort h-Hol l and,
1985, em part i cul ar, P art e I.
plenamente responsáveis por suas escolhas (preferências), bem assim, pela
adequação de seus fins dados seus meios25.

A correlação entre determinismo e responsabilidade afeta


profundamente a visada teórica rawlsiana (justice as fairness) e indica a
relevância de cuidadosa revisão26 desses conceitos para efeito de se construir
uma teoria da justiça. Em sua revisão teórica, Rawls27 assume as seguintes
contingências:

Justice as fairness focuses on inequalities in citizens life-


prospects - their prospects over a complete life (as specified
by an appropriate index of primary goods) - as these
prospects are affected by three kinds of contingencies:

(a) their social class of origin: the class into which they are
born and develop before the age of reason;

(b) their native endowments (as opposed to their realized


endowments); and their opportunities to develop these
endowments as affected by their social class of origin;

25
- A respei t o, vej a- se: C OHEN , Geral d Al l an. On th e cu rren cy of egal i t ari an
ju st i ce , Et hi cs 99, n. 4, C hi cago: C hi cago, 1989, p. 906-944, p. 915; ______.
Equ al it y of w hat ? On w el fare, goods an d capabi l i t i es , i n Rech er ch es É con omi q u es
d e L ou vai n 56, 1990, p. 357-382, p. 360 e GUILLAR ME, B ert rand, Rawl s et
l ’égal i té d émocrati q u e . P ari s  : P . U. F., 1999, p. 132.

26
- Ent re as mui t as crí t i cas i ndi cam - se: R AMOS , C esar August o. A crí t i ca
com un i t ari st a de Wal zer à t eori a da j ust i ça de Joh n R aw l s. In: F ELIP E, Sôni a.
(Org.). Ju sti ça como Eq üi d ad e . Fl ori anópol i s: Insul ar, 1998, p. 231-243 e
R IC OEUR , P aul . On John Raw l s’ A Th eory of Ju st i ce : is a pu re procedu ral t h eory
of ju sti ce possi bl e? i n In tern ati on al S oci al S ci en ce Jou rn al 42 (1990): p. 553-564,
com o rel evant es para o pont o de vi st a aqui esposado.

27
R AWLS , John. Ju sti ce as fai rn ess. C am bri dge (Massachuset t s)/ London: B el knap,
2001, p. 55. Em t radução li vre: A Just i ça com o equi dade se concent ra sobre as
desi gual dades na vi da dos ci dadãos, suas perspect i vas sobre um a vi da pl ena
(conform e as possi bi l i dades de um í ndex apropri ado de bens pri m ári os), vez que
essas perspect i vas são afet adas por t rês ti pos de cont i ngênci as: (a) sua cl asse soci al
de ori gem : a cl asse em que nasce e se desenvol ve ant es da i dade da razão; (b) seus
dot es de nascenç a (em oposi ção a seus dot es real i zados) e suas oport uni dades para
desenvol ver esses dons segundo a afet ação de sua cl asse de ori gem ; (c) sua boa ou
m á fort una, ou boa ou m á sort e, ao l ongo da vi da ( com o são afet ados por doença ou
aci dent es e, di gam os, por perí odos de desem prego i nvol unt ári o e decl í ni o econôm i co
regi onal ).
(c) their good or ill fortune, or good or bad luck, over the
course of life (how they are affected by illness and accident;
and, say, by periods of involuntary unemployment and
regional economic decline).

Como se pode notar, as circunstâncias de uma sociedade organizada são


incorporadas à teoria e possibilitam a estruturação de outras questões de
economia normativa. Primeiramente, desfaz-se a idéia de um igualitarismo
radical e se visa um que beneficie o mais infortunado; segundo, mantém-se a
possibilidade de sua opção por uma boa vida e sua autonomia e, terceiro, opta-
se por um igualitarismo seletivo. Naturalmente, todas essas posturas têm como
referência a sociedade americana, muito embora o autor 28 argumente que:

28
R AWLS , John Ju st i ce as Fai rn ess: Pol i t i cal n ot Met aph ysi cal , i n Ph il osop h y and
Pu b l i c Affai rs , Vol . 14, No. 3. (S um m er, 1985), p. 223-251. Em t radução li vre: Em
Just i ce as Fai rness , com o se verá na próxi m a seção, sua i déi a m ai s fundam ent al é a
de que a soci edade sej a um si st em a de cooperaç ão soci al just a ent re pessoas l i vres e
i guai s. Est a seção se preocupa com a busca de um a base públ i ca de acordo pol í ti co.
Um a concepç ão de just i ça só será capaz de at i ngi r t al obj et i vo se apresent ar um a
form a razoáv el de est rut urar em um a vi são coerent e as bases m ai s profundas de
acordo i ncorporadas na cul t ura pol í t i ca públ i ca de um regi m e consti t uci onal e
acei t ável para as m ai s bem enrai zad as convi cções. Suponha, agora, que a just i ça
com o equi dade t enha al cançado seu obj et i vo e um a publi cam ent e acei t ável concepç ão
polí t i ca de j ust i ça foi encont rada. Ent ão, essa concepção provê um pont o de vi st a
publi cam ent e reconheci do a part i r do qual , ant es de qual quer out ro, t odos os
ci dadãos podem exam i nar se suas i nst i t ui ções polí t i cas e soci ai s são just as. Isso lhes
é facul t ado pel a assunção de t ai s razões vál i das e sufi ci ent es defl uent es da própri a
concepção. As pri nci pai s i nst i t ui ções da soci edade e o m odo pel o qual se concat en am
em um esquem a de coopera ção soci al podem ser exam i nados segundo essa m esm a
base pel os ci dadãos, de qual quer posi ção soci al ou de i nt eresses m ai s part i cul ares.
Deve- se observar que, sob est a aspecç ão, a just i fi cação não é ti da por argum ent o
vál i do const ruí do a part i r de um a l i st a de prem i ssas, m esm o que essas prem i ssas
sej am verdadei r as. Ant es, a j ust i fi cação se dest i na a quem di ssent e de nós e por i sso
preci sa l ast rear - se em al gum consenso, i st o é, em prem i ssas reconheci das,
publi cam ent e, por nós e pel os out ros com o verdadei ras, a fi m de est abel ecer um
acordo cogent e sobre as quest ões fundam ent ai s da j ust i ça pol í t i ca. Nem é preci so
di zer que esse acordo deve ser est abel eci do, sem coação, e form ado por ci dadãos
segundo procedi m ent os consi st ent es com suas vi sões de pessoas li vres e i guai s.
Dessart e, o obj et i vo de j usti ça com o equi dade segundo um a concep ção pol ít i ca é
prát i co e não m et afí si co ou epi st em ol ógi ca. Ist o é, apresent a- se não com o um a
concepção de j usti ça que é verdadei r a, m as base de um acordo consci ent e e
i nt enci onado acordo pol í ti co ent re os ci dadãos vi st os com o pessoas li vres e i guai s.
Tal acordo quando seguram ent e fundado em at i t udes pol í ti cas e soci ai s públ i cas
garant e os bens de t odas pessoas e associ açõ es em um regi m e dem ocrát i co j ust o.” (p.
229-230)
In justice as fairness, as we shall see in the next section, this
more fundamental idea is that of society as a system of fair
social cooperation between free and equal persons. The
concern of this section is how we might find a public basis of
political agreement. The point is that a conception of justice
will only be able to achieve this aim if it provides a
reasonable way of shaping into one coherent view the
deeper bases of agreement embedded in the public political
culture of a constitutional regime and acceptable to its most
firmly held considered convictions.

Now suppose justice as fairness were to achieve its aim and


a publicly acceptable political conception of justice is found.
Then this conception provides a publicly recognized point of
view from which all citizens can examine before one another
whether or not their political and social institutions are just. It
enables them to do this by citing what are recognized among
them as valid and sufficient reasons singled out by that
conception itself. Society's main institutions and how they fit
together into one scheme of social cooperation can be
examined on the same basis by each citizen, whatever that
citizen's social position or more particular interests. It should
be observed that, on this view, justification is not regarded
simply as valid argument from listed premises, even should
these premises be true. Rather, justification is addressed to
others who disagree with us, and therefore it must always
proceed from some consensus, that is, from premises that
we and others publicly recognize as true; or better, publicly
recognize as acceptable to us for the purpose of establishing
a worthing agreement on the fundamental questions of
political justice. It goes without saying that this agreement
must be formed and uncoerced, and reached by citizens in
ways consistent with their being viewed as free and equal
persons.

Thus, the aim of justice as fairness as a political conception


is practical, and not metaphysical or epistemological. That is,
it presents itself not as a conception of justice that is true, but
one that can serve as a basis of informed and willing political
agreement between citizens viewed as free and equal
persons. This agreement when securely founded in public
political and social attitudes sustains the goods of all persons
and associations within a just democratic regime.

numa clara busca de generalizar seu paradigma.


A obra de Rawls lastreia as de Sen que utiliza o conceito de liberdade
como fundamento daquele de justiça e, também a de Roemer, que influenciado
pela obra de Dworkin, buscará esse fulcro na responsabilidade. Essa última
posição tem recebido as mais variadas críticas, entre as quais a de que a
introdução da responsabilidade individual reduziria o grau de igualdade.
Fleurbaey29 resume:

… economists have long since understood that, unless one is


willing to accept big efficiency losses, equality cannot be
achieved because the agents have some influence over their
own outcomes.

But political philosophers argue that equality is not desirable


in the first place, for exactly the same reason. Equality would
remove most of the expression of agency by free agents;
and/or it would unduly relieve them from the burden of the
consequences of their choices. In brief, full equality would
deny responsibility.

O igualitarismo seletivo de Rawls conduz, também, à extirpação da


responsabilidade. Mas, esta, costuma ser definida a partir de três fatores
capazes de influenciar os resultados dos indivíduos: os recursos de um
indivíduo que as instituições sociais e o governo podem controlar diretamente;
a responsabilidade ou livre arbítrio e, enfim, os talentos e deficiências desse
mesmo indivíduo.

Conjugando essas três variáveis, as teorias liberais da justiça tentam


desenvolver uma concepção satisfatória de igualdade conducente à justiça
como equidade. As teorias de Rawls e Dworkin preocupam-se com as
preferências individuais a fim de definir responsabilidade e aquelas de Sen e

29
- FLEUR B AEY, Marc. Equ al it y an d respon si bil i t y. i n E u rop ean E con omi c
Revi ew 39, 1995, p. 683-689: “os econom i st as com preender am , há m uit o, que, a
m enos que se acei t e perder m ui t o da efi ci ênci a, a igual dade não pode ser
est abel eci da porque os agent es t êm al gum a i nfl uênci a sobre seus própri os resul t ados.
Mas, os fi l ósofos pol í ti cos afi rm am que a i gual dade não é desej ável , em pri m ei ro
l ugar, exat am ent e pel a m esm a raz ão, A i gual dade rem overi a m ui t o da expressão de
agênci a de agent es l i vres, e/ ou reduzi ri a, i ndevi dam ent e, a carga das consequênci as
de suas escol has. Em resum o, a i gual dade pl ena negari a a responsabi l i dade.“, p.683.
Roemer combinam determinismo e responsabilidade com o fito de enfatizar
que os indivíduos nem sempre podem ser responsabilizados por suas
preferências ou objetivos.

Se isso vale para o ‘corte’, para o método da compensação a diferença


se mantém: a igualdade de recursos é sustentada por Rawls e Dworkin e os
dois outros teóricos pensam na igualdade de oportunidades. É fácil ver que
aqui se trata de questão central para qualquer teoria da justiça, vez que a
responsabilidade pessoal necessita ser considerada à luz de seu
condicionamento social.

Numa análise interessante, mas ao mesmo tempo limitada, Roemer


intentou separar o condicionamento social de a responsabilidade pessoal,
argumentando que os erros são inevitáveis e podem levar a equívocos numa
atribuição de ‘tipos’ e na detecção de responsabilidades pessoais. Além disso,
desconsidera se a situação em que se dão os atos do indivíduo (e incluso sua
formação) é cooperativa, competitiva – assumindo-a neutra, além de não se
referir aos tipos de incentivo mais apropriados para a formação de sua
identidade.

Ademais, em todas as teorias sob análise, não se leva em conta que a


responsabilidade se dá em relação e, por isso mesmo, pode-se ser
responsável quanto a si mesmo e irresponsável quanto ao Outro, ou,
inversamente. A rigor, como se vê, essa visão contábil da responsabilidade é
pouco precisa e pode levar a grandes equívocos na distribuição de justiça.
Prefere-se pensar que a responsabilidade, dada a natureza contingente dos
cenários em que circulam os sujeitos, seja decorrência da aplicação do poder
disponível para o ator em sua circunstância ao tomar suas decisões, bem como
a reação social diante de suas atitudes proporcionando-lhe resultados como
cuidados de saúde, padrão de vida, educação, enfim: prêmios civilizatórios.

O conceito aqui adotado apresenta, como qualquer outro, seus


problemas. Não estabelece, esse conceito, uma clara definição dos âmbitos
público e privado para efeito dos resultados obtidos, vez que alguns deles
dependem da ação de instituições sociais em resposta às ações do sujeito.
Assevera-se, no entanto, que as instituições fazem o que podem, não o que
delas se espera. Isso significa: os atos do sujeito serão tendentes a obter o
resultado esperado e a instituição responderá conforme lhe for possível,
gerando sua própria parcela de responsabilidade pelos eventos. Pondera-se,
ainda, que além do valor instrumental das escolhas há, ademais, seu
significado intrínseco.

Além disso, uma solidariedade social bem desenvolvida poderá ajudar


na eficiência e dignidade pessoais.

4. Graus de responsabilidade

Um dos principais próceres do neoliberalismo, Ludwig von Mises 30,


referindo-se à desigualdade assim se expressa:

A desigualdade de renda e de riqueza é uma característica


inerente à economia de mercado. Sua eliminação a
destruiria completamente.

O que as pessoas que propõem a igualdade têm em mira é


sempre um aumento de seu próprio poder de consumir. Ao
apoiar o princípio da igualdade como um postulado político,
ninguém pensa em repartir sua renda com os que têm
menos. Quando os assalariados americanos falam em
igualdade estão querendo dizer que os dividendos dos
acionistas deveriam ser distribuídos entre eles. Não estão
propondo uma redução de sua própria renda em benefício
dos 95% da população da Terra cuja renda é menor que a
sua.

Essa visão que faz da desigualdade de distribuição dos prêmios


civilizacionais o próprio motor da sociedade que, por sua vez, se lastrearia no
egoísmo – faz do homem uma caricatura de si mesmo. Sem dúvida, o
poupador, aquele que decide adiar seu consumo a fim de alcançar novos
patamares de capacidade aquisitiva – acaba por colaborar com a formação do
capital, em larga parte dispendido pelo Governo em gastos e despesas

30
- MISES, Ludwig von. Ação Humana: um tratado de economia. 2ª. Ed., trad. Donald Stewart Jr.,
Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1995, p. 845.
correntes. Mas, por outra parte, essa decisão oferece a oportunidade de
planejar mais livremente seu futuro. As decisões tomadas levam em conta as
condições existentes e os objetivos perseguidos e engendram consequências
sistêmicas compatíveis.

Põe-se, de imediato, outra questão – como determinar, para sujeitos em


diferentes situações, seu grau de responsabilidade para suas consequências?
Em geral, argumenta-se por recurso ao esforço individual (o bom combate) e a
escolha de seu tipo. Assim, pode-se, diante de uma dada dificuldade, dispor de
uma determinada forma de esforço: adaptar-se; orar; buscar auxílio; fazer
frente (com trabalho) aos novos reclamos etc. em resumo, escolher o tipo de
esforço para lidar com as dificuldades surgidas: escolher uma estratégia, isto é,
um conjunto de ações racionais com vistas a fins.

Roemer31 constrói uma resposta sugestiva: a quantidade de esforço


livremente fornecida por um indivíduo seria um quantil dos níveis de
distribuição de esforço e esse quantil corresponde à proporção de indivíduos
de mesmo tipo para os quais a quantidade de esforço é igual ou inferior à sua.
Tal proporção refletiria o nível de esforço do indivíduo e permitiria a
comparação com aquele dos demais.

Em outra obra32 aperfeiçoa essa posição:

… the quantile of the effort distribution of one’s type provides


a meaningful intertype comparison of the degree of effort
expended in the sense that the level of effort does not.

Uma política que pretenda equalizar as oportunidades deveria, então,


considerar o grau e não a quantidade de esforço despendido, para efeito de
recompensar o sujeito. É fácil ver que essa postura é insatisfatória vez que as
diferenças das distribuições dos níveis de esforço são atribuídas às

31
- R OEMER , J. E. A Pragm at i c Th eory of R espon si bi l i t y for t h e Egal it ari an
Pl an n er , i n Ph il osop h y an d Pu b li c Affai rs 22, 1993, p. 146-166.

32
- R OEMER , J.E. E qu al i ty of O pp ortu n i ty. Harva rd, 1998.
circunstâncias e não às escolhas dos indivíduos – afastando a
responsabilidade. Roemer33 busca estabelecer uma política pela qual as
recompensas civilizatórias serão distribuídas igualmente para os que
desempenharem o mesmo grau de esforço. O nível de desempenho individual
depende de seu tipo e seu livre arbítrio que é determinado por seu grau de
esforço. A responsabilidade de um indivíduo, então, corresponde ao seu
esforço despendido, em particular, por superar sua fraqueza de vontade a fim
de obter os fins pretendidos.

Quando há igual oportunidade de bem estar, qualquer desigualdade


existente seria devida a fatores controláveis pelos indivíduos e, assim, tal
desigualdade não seria um problema para efeito de uma igualdade distributiva.
As doutrinas igualitárias liberal e radical distinguir-se-iam, em larga medida,
pelos diferentes graus de responsabilidade atribuídos aos indivíduos na busca
de seu bem estar. A liberal consideraria o nível de esforço para efeito de
responsabilização e a radical não veria responsabilidade do indivíduo pelas
desigualdades. A mais liberal pensa em igualdade de oportunidades: dada a
igualdade dos pontos de partida (a ‘starting gate equality’ de Dworkin) o
resultado final está justificado, desde que certas regras sejam observadas. A
mais radical exige igualdade de bem estar e entre ambas radicam as propostas
igualitárias dos mais diversos matizes.

7. Juízos de valor, equidade, justiça e felicidade.

As diferentes teorias sobre a justiça distinguem-se segundo os juízos de


valor e a apreciação do funcionamento dos sistemas sociais e do próprio ator
nesses sistemas (numa abordagem socioeconômica, biológica, etc.) e isso

33
- Não se deve pensar que R oem er assum a a i dent i dade ent re os seres hum anos,
l onge di sso, a di versi dade é rel evant e em seu m odel o e é apresent ada pel a noção de
ti pos. A paral el a t eori a de S en, por out ro l ado, acol he a di versi dade hum ana m ercê
de um conj unt o de funções de uti l i zação (F i ) do i ndi ví duo i frent e a suas
ci rcunst ânci as. As funções de uti l i zação com põem o conj unt o de qual i dades de i :
saúde, inserção soci al et c.
significa que as tentativas de tratar o problema da Justiça como independente
daquela da Ética introduziram novas e mais difíceis questões, vez que a
distribuição também requer critérios que estabeleçam, no mínimo, a igualdade
entre os administrados. Mesmo porque, as teorias éticas, em sua maioria,
tendem a exigir igualdade, no contexto da modernidade, para garantir
plausibilidade e aceitação social.

Mas, o que seria essa equidade? Ao responder, preparando sua crítica a


Rawls, Amartya Sen34 assim se manifesta:

O que é então a equidade? Essa idéia fundamental pode ser


conformada de várias maneiras, mas em seu centro deve
estar uma exigência de evitar vieses em nossas avaliações
levando em conta os interesses e as preocupações dos
outros também e, em particular, a necessidade de evitarmos
ser influenciados por nossos respectivos interesses pelo
próprio benefício, ou por nossas prioridades pessoais ou
preconceitos.

Dessa forma, após entronizar a necessária santidade, em sentido


levinasiano, para que se possa obter equidade, lança simultaneamente vários
outros vieses e problemas oriundos dessa particular teorização da justiça. Há
um ponto de partida determinante para se observar o que seria o equitativo.
Esse consenso originário, presente em Rawls, será uma das dificuldades
intransponíveis para essa abordagem, conforme vimos acima. A simples
alegação de que35

... tal posição original é o status quo inicial apropriado que


garante que os acordos fundamentais nela alcançados
sejam justos. Esse fato gera o nome “justiça como equidade”
(justice as fairness). É claro, então, que quero dizer que uma

34
- SEN, Amartya. A idéia de Justiça, São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 84.

35
- R awl s, John. A th eory of ju sti ce. Massachuset t s: Harva rd, 1971, p. 17.
concepção de justiça é mais razoável do que outra, ou
justificável em relação a outra, se pessoas racionais, na
situação inicial, escolhessem seus princípios em vez dos
princípios da outra concepção para o papel de justiça. As
concepções de justiça devem ser classificadas por sua
aceitabilidade por pessoas situadas desse modo.

não é suficiente para assegurar a racionalidade desses processos, mesmo


porque essa posição pressupõe uma transcendentalização dos sujeitos em
relação, o que se demonstrou, acima, não pode acontecer senão num quadro
de um idealismo exacerbado. As diferenças de situação originária, não
atribuíveis a escolhas dos sujeitos, a aquisição originária de linguagem, as
diversas concepções de mundo – impedem que esse consenso originário seja
possível. Não bastasse isso, cabe lembrar Forsé36:

Face a toda situação complexa desse tipo, o individualismo


apaga sempre a diversidade e as particularidades. Os
indivíduos reais, com tudo o que eles comportam de
monádico, já não existem. Só subsistem indivíduos médios
e, portanto, nominais a que se confere o atributo de
racionalidade. A racionalidade não é pois o que qualifica o
indivíduo real. Ela se aplica a uma construção do sociólogo.

E, de fato, mesmo em Pareto e Weber, essa racionalidade se manifesta


como um construto teórico: no primeiro aparece como resultado de um cálculo
e no segundo tem em vista fins, com frequência, derrisórios ou irracionais. A
escolha de fins decorre da contingência que permite a liberdade e, por sua vez,
essa faculta a decisão entre compossíveis conduzindo a liberdade, vez que
essa, como vista ao longo da história da Filosofia, deve satisfazer o desejo e
isso só se torna possível com o abrigo da própria insânia, posto que 37:

36
- FOR S É, Mi chel . A ord em i mp rovável . Trad. Adri ano F onseca, P ort o: R és, s.d.,
p. 19.

37
- C OMTE- SP ONVILLE, André. Uma edu cação fi l osófi ca. Trad. Eduardo B randão,
S ão P aul o: Mart i ns F ont es, 2001, p. 429.
A phronesis por isso é ‘mais preciosa até que a filosofia’, que
ela permite e não a substitui. No entanto a felicidade
continua a ser o objetivo, que a phronesis não consegue
atingir e que justifica filosofar. Quem se contentaria com o
prazer sem felicidade? ‘É necessário, portanto’, anuncia
Epicuro, ‘meditar sobre o que proporciona o prazer, já que,
estando ele presente, temos tudo e, estando ele ausente,
fazemos tudo para tê-lo. (Carta a Meneceu, 122). Algo como
uma ascensão aparece aqui, onde o hedonismo e o
eudemonismo se encontram: o prazer é o bem primeiro, a
felicidade é o bem soberano.’

Esse o conteúdo escamoteado nas abordagens da justiça como


equidade: o que se objetiva com a vida em sociedade é o aumento da
felicidade individual e coletiva. Deve o bem geral preponderar sobre o particular
e esse é o mais basilar princípio constitucional de qualquer sociedade
burguesa: a preponderância inegociável do interesse público. Mesmo na
Constituição brasileira, em que esse princípio é pressuposto e não posto, todos
os requisitos dos atos administrativos repousam sobre seu suposto.

Seja esperando a felicidade quando não podemos querê-la e, em


consequência produzi-la, seja em pleno processo de escolha, no âmbito da
contingência, para materializá-la – sempre está o ser humano insatisfeito,
almejando outra distribuição e outra equidade. Como já se disse em outro
trabalho38:

acredita-se que dada a decisão de um conflito (o que não


implica a justiça) só haverá justiça quando as partes em
litígio, diante da decisão apresentada, não puderem exigir,
cada uma delas, mais que o obtido, segundo os limites da
situação decidida. Esse mesmo sentimento, ou consenso,
igualmente compartilhado pelos litigantes, significa, a rigor,
que se obteve o limite do, razoavelmente, exigível. Esse
“razoavelmente” implica, nesta conjectura, que a decisão foi
obtida nos limites de Pareto, isto é, segundo uma
distribuição de probabilidades que contempla os pontos de
possível acordo entre as partes em face dos limites da
situação conflitiva enfrentada.

38
- PUGLIES I, Márci o. T eori a d o Di rei to. 2ª . Ed., S ão P aul o: S arai va, 2009, p. 195.
Se essa é a justiça possível para os tribunais, para a vida resta, nos
lindes da liberdade, por sua vez só possível pela contingência, estabelecer as
escolhas que conduzam aos objetivos pessoais com o mínimo de dano para
aqueles sociais. Compartilha-se a posição, já antiga, de Hayek 39, quanto à
equidade: em primeiro lugar, nenhum homem possui, de modo conclusivo, a
capacidade de determinar as potencialidades de outro ser humano e que,
jamais, se pode delegar essa competência seja a quem for; ademais a
aquisição de novas habilidades pelos membros da sociedade sempre será vista
como um ganho para a mesma. Assim, os incentivos materiais e a pressão
para ocupar postos de destaque na sociedade conduzem a ações que são
recompensadas pela civilização a que pertence o ator, vez que
corresponderiam aos interesses gerais.

Deve-se sublinhar, ainda, que a necessidade de se assegurar para os


conceitos éticos, como o de justiça, credibilidade no segmento que se pretende
convencer ou influenciar, é intrínseca a essa categoria de enunciados e adotar
nessa acepção um ponto de vista a ser considerado ‘justo’ significa adotar
aquele que possa ser justificável para a maior parte dos destinatários. A
credibilidade não implica unanimidade, tendo em vista a anisotropia do tecido
social, porém deve assegurar uma aceitação tácita, pelo menos, das
posições/decisões assumidas em dada situação.

Por outra parte, sempre é conveniente lembrar que a inovação, também,


dependente da contingência, decorre da diversidade e, em consequência da
desigualdade e, como a inovação é incentivada quando produz benefícios ao
sistema – terminará por, no mínimo, remover alguns fatores limitantes à
formação de capital cultural, de ensino, pesquisa, desenvolvimento e de
financiamento.

Para encerrar essa tentativa de demonstração de que o critério de


equidade só remotamente perfaz o significado de justiça deve-se indicar, na

39
- HAYEK, F ri edri ch A. Th e con sti tu ti on of l ib erty , Chi cago, The Uni versi t y of
Chi cago P ress, 1960, p. 42 e 60.
linha seguida pelo próprio Rawls, que os diferentes resultados individualmente
alcançados tem como fatores, entre outros, os dons de cada sujeito, isto é,
seus talentos e defeitos de nascimento; a influência de instituições sociais,
recursos materiais, informações alcançáveis e disponíveis, inserção social e
preferências; diferenças devidas à responsabilidade: cuidado, esforço pessoal,
determinação etc.

Desse modo, tendo em vista a contingência de todos esses fatores,


apenas a liberdade de escolha entre as compossíveis situações futuras, o que
conduz à felicidade no sentido assumido acima, pode conduzir à justiça. A
análise da ação humana, empreendida no item a ela referente neste mesmo
trabalho, indica a estrutura da ação virtuosa e conducente ao menos prejudicial
cenário para uma sociedade norteada pelo êxito e pelas recompensas
civilizatórias. De tal modo, a rigor apenas a produção do menor prejuízo pelas
ações conduzirá ao virtuoso exercício da cidadania e à preservação da
promessa implícita no conjunto dos textos normativos de dada cultura e nas
normas concretizadas dessa civilização.

Fontes e Bibliografia

ARNESON, Richard J. Equality and equal opportunity for welfare, in


Philosophical Studies 56, 1989, p. 77-93.

______. Liberalism, distributive subjectivism, and equal opportunity for


welfare, in Philosophy and Public Affairs 19, 1990, p.159-194.

______. Luck egalitarianism and prioritarianism, in Ethics, 110: 339-49,


2000.

AUDARD, Cathérine. La cohérence de la théorie de la justice. In: AUDARD,


Cathérine (Coord.). John Rawls: politique et métaphysique. Paris: PUF,
2004, p. 15-38.
COHEN, Gerald Allan. On the currency of egalitarian justice, Ethics 99, n. 4,
Chicago: Chicago, 1989, p. 906-944, p. 915.

______. Equality of what? On welfare, goods and capabilities, in


Recherches Économiques de Louvain 56, 1990, p. 357-382.

COMTE-SPONVILLE, André. Uma educação filosófica. Trad. Eduardo


Brandão, São Paulo: Martins Fontes, 2001.

DESCARTES, Rene. Discurso sobre o Método. 12ª. Ed., trad. Márcio Pugliesi
e Norberto de Paula Lima, São Paulo: Hemus, 1999

______. Principles of Philosophy. Part 3, XLVI. In ANSCOMBE, E. &


GEACH, P. T.. Descartes: Philosophical Writings. London: Nelson, 1969.

FLEURBAEY, Marc. Equality and responsibility. in European Economic


Review 39, 1995, p. 683-689.

FORSÉ, Michel. A ordem improvável. Trad. Adriano Fonseca, Porto: Rés, s.d.

GUILLARME, Bertrand, Rawls et l’égalité démocratique. Paris : P. U. F.,


1999.

GUIMARÃES ROSA, João. Manuelzão e Miguelim (corpo de baile). 11ª. ed.


(14ª. impressão), Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

HAYEK, Friedrich A. The constitution of liberty, Chicago, The University of


Chicago Press, 1960.

HEGENBERG, Leonidas. Definições – termos teóricos e significado. São


Paulo: Cultrix/Edusp.

KANT, Immanuel. Immanuel Kant’s Critique of Pure Reason, trad. Smith, N.


K., Bedford, Boston/New York: St. Martin’s,1965

LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm Freiherr von. Philosophical Writings of Leibniz.


ed. G. H. R. Parkinson, trad. Mary Morris & G. H. R. Parkinson, London: Dent,
1973
MILLER, David (Ed.). Popper selections. New Jersey: Princeton University
Press, 1985.

MISES, Ludwig von. Ação Humana: um tratado de economia. 2ª. Ed., trad.
Donald Stewart Jr., Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1995.

PUGLIESI, Márcio. Teoria do Direito. 2ª. Ed., São Paulo: Saraiva, 2009.

______. Teoria do Direito: aspectos macrossistêmicos. Rio de Janeiro/


Seattle: Sapere Aude/Amazon, 2015.

RAMOS, Cesar Augusto. A crítica comunitarista de Walzer à teoria da


justiça de John Rawls. In: FELIPE, Sônia. (Org.). Justiça como Eqüidade.
Florianópolis: Insular, 1998, p. 231-243.

RAWLS, John. A Theory of Justice, Cambridge: Belknap, 1971.

______. Justice as fairness. Cambridge (Massachusetts)/ London: Belknap,


2001.

RICOEUR, Paul. On John Rawls’ A Theory of Justice: is a pure procedural


theory of justice possible? in International Social Science Journal 42
(1990): p. 553-564.

ROEMER, J. E. Theories of Distributive Justice. Harvard, 1996.

______. Equality of Opportunity. Harvard, 1998.

______. Equality of Talent, in Economics and Philosophy 1, 1985, p. 151-


181.

______. Egalitarianism, responsibility and information. in Economics and


Philosophy 3. 1987, p. 215-244.

______. A Pragmatic Theory of Responsibility for the Egalitarian Planner,


in Philosophy and Public Affairs 22, 1993, p. 146-166.

______. Equality of opportunity: A progress report, in Social Choice and


Welfare 19, 2002, p. 455-471.

SCANLON, T. M. Rawls’ Theory of Justice. In: DANIELS, Norman (Ed.)


Reading Rawls. Stanford: Stanford, 1989, p. 169-205.

SEN, Amartia K. Equality of What? in MCMURRIN, S. (ed.), Tanner lectures


on human values. vol. 1, University of Utah Press, 1980, p. 195-220.
______. Welfare, freedom and social choice: a Reply. In Recherches
Economiques de Louvain. 56, 1990, 451-485.

______. Commodities and Capabilities. Amsterdam: North-Holland, 1985.

______. On Ethics and Economics. Oxford: Basil Blackwell, 1987.

______. Inequality Reexamined. Clarendon Press, 1992.

______. A idéia de Justiça. Trad. Denise Bottmann e Ricardo Doninelli


Mendes, São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

SEN, Amartya K. & WILLIANS, B. (eds.) Utilitarism and Beyond. Cambridge,


Massachusetts: Cambridge, 1982.

TOURAINE, Alain. Sociologie de l’action. Paris : du Seuil, 1965.

Você também pode gostar