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UMA TARTARUGA CHAMADA DOSTOIEVSKI


(Une tortue nomée Dostoiëwsky)
FERNANDO ARRABAL - 1967

TRADUÇÃO E ADAPTAÇÃO: JORGE BANDEIRA DO AMARAL.

Personagens

MALIK 
LISKA, sua mulher.
PAPIRI, funcionário do zôo.
VOZ DE FIODOR, funcionário do zôo.

CENA 1

Escuro. De repente, ruídos de metal sendo amassado e rugidos de um leão. Lentamente,


aparece
com umauma enorme
espécie silhueta que
de murmúrio dominae sons
humano o palco
de todo. De novo,
campainhas. Umaruídos, terminando
fumaça colorida Agora
sai de
“algo”. Rugidos e tiro de canhão. Fumaça negra densa. Silêncio total. Aos poucos o palco
se ilumina e vemos uma tartaruga gigante, de mais ou menos dois metros, mexendo-se e
 parecendo feliz. Logo dorme profundamente, e só se nota a sua respiração. O seu território
é cercado por um fosso com uma grade de meio metro de altura. No cartaz lê-se: “Tartaruga
gigante com cabeça de leão que nasceu após a explosão nuclear. Dorme o dia todo só
acordando à noite. Cuidado! Animal radioativo! Não se aproximem!”.
Papiri desce do teto sentado num sofá velho. Joga pílulas de metal e de borracha ao animal.
Sempre mal humorado limpa o bicho com uma vassoura comprida, e com uma vara em cuja
  ponta existe uma rede recolhe a merda da tartaruga, que parecem bolinhas de metal
dourado.Liska
Entram Ele faz o seu serviço, e depois sobe no sofá velho e desaparece.
e Malik 

Liska (desapontada)- É esse o monstro que você queria me mostrar?


Malik-Não gostou?
Liska-Você disse que era uma coisa enorme, uma tartaruga gigantesca.
Malik-E não é?
Liska-Você já viu uma baleia?
Malik-E você nunca viu uma tartaruga comum? (faz com o polegar e o indicador o tamanho
que seria o de uma tartaruguinha)
Liska-E a tal cabeça de leão, onde está?
Malik-Lá está. (indica para o fundo do palco, mas a cabeça do bicho não é vista pelo
 público)
Liska-Aquilo ali é uma cabeça de leão?
Malik-É, e é um mistério, uma coisa que apaixona os cientistas.
Liska-Mas não apaixona as pessoas que aparecem aqui. Não tem ninguém Agora para ver 
esse bicho.
Malik-Foi depois da explosão nuclear que ela apareceu. É uma mistura fantástica de um
réptil com uma espécie de fauno mitológico.
Liska-Ela está viva?

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Malik-Mais é claro, ou você acha que no zoológico tem animal morto?


Liska (Malik toca o animal com uma vara)- Ela não se mexe.
Malik-Na certa está dormindo.
Liska-Você parece uma criança, qualquer coisa te entusiasma.
Malik-Vou acordá-la (cutuca-a com a vara)
Liska-Cuidado
(beijam-se) é perigoso! (pausa) Você é a razão da minha vida, o meu verbo essencial.
Malik-Olha só o tamanho dessa bocarra!
Liska-Enorme.
Malik-Dá para comer um homem inteirinho.
Liska-Se ela acordasse.
Malik-Que linda! (toca outra vez na tartaruga)
Liska-Linda? Ela é horrível, parece com os teus pesadelos!
Malik-Olha só o que ela come: pílulas de metal!
Liska-Você queria que fosse sorvete de flocos?
Malik-Eu adoraria Ter um animal desses lá em casa. Vesti-la não deve ser muito difícil.
Que num
três, felicidade seria acordar
aconchegante ninho com ela. Bonita como você é, ela faria amor com você. Nós
do amor!
Liska-Eu teria de dormir de carapaça.
Malik (inquieto)- Querida, você não gosta de animais?
Liska-E você, está com vontade de ser papai?
Malik (amistoso)- Por que, por um acaso está achando que eu quero Ter um filho desse
 jeito?
Liska-Ontem à noite você sonhou com o quê?
Malik-Sonhei que tinha na cabeça uns peixinhos compridos, como se fossem poraquês, uma
cabeleira de poraquês cobria meu corpo todo. Eu estava do teu lado, pegava então tua
cabeça e fazia com uma faca uma brecha na tua testa. Com a ponta da faca eu arrancava de
lá de dentroé,uma
Liska-Pois vocêervilha murcha,
quer ser parecendo
pai, todas com
as noites um rosto
sonha de uma
com umas velha.
coisas assim.
Malik-Eu?
Liska-Tua cabeça, essa cabeleira de poraquês...Você é uma medusa de muitos sexos, eles
saem da tua cabeça, da tua inteligência. Para me penetrar você usou uma imagem fálica e
com ela retirou da minha cabeça o teu filho.
Malik-Meu filho seria por um acaso aquela ervilha murcha, com uma cara de velha?
Liska-Nos teus sonhos há imagens imorais e impossíveis, sem nenhum bom gosto ou
elegância. São todos de matéria bruta, pássaros selvagens, barulhos da escuridão.
Malik-Você não sonha não?
Liska-Não. Só te amo, me enrosco em você como num novelo de linha, é o paraíso
terrestre.
Malik-Eu também te amo, eu beijo o teu sexo e ele cria uma luz, com sons de flauta e vôo
de pluma no ar.
Liska-Você é um poeta e um revoltado, qualquer coisa te encanta, com tudo você quer 
 brincar. Mesmo esse animal um pouquinho maior que o normal, para você é um monstro
enorme e gigantesco.
Malik-Que maldade, pílulas de metal como comida! Por isso que ela caga bolinhas
douradas. Um animal desses devia comer é amendoim...Vai comprar alguma coisa pra
coitadinha, vai.

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Liska-Ovo cozido?
Malik-Ali atrás vendem salgadinhos. Traz um saco de amendoim, ela vai comer e acordar.
Liska-Olha só o tamanho daquela fila...(sai)

CENA 2

Malik (olhando comovido para a tartaruga, debruça-se sobre a grade e toca no bicho. Dá-
lhe uns tapinhas amistosos, faz carinho. Coloca-se na frente da boca invisível do bicho)
Que boca enorme, meu Deus! Como ela é grande, parece a de um leão. (toca na bocarra da
tartaruga. De repente, o animal se agita e vai engolindo Malik, que grita e se debate, tenta
escapar, mas termina por ser devorado. Liska chega e assiste ao final da trágica cena,
horrorizada).
Liska-Malik! Malik!(chora e agita-se não sabendo o que fazer) Socorro!
Papiri (descendo no sofá velho)- O que foi que aconteceu? Por que toda essa algazarra?
Liska-Por favor, faça alguma coisa!
Papiri-Calma. O que foi?
Liska-A tartarugaComeu?
Papiri-Engoliu? gigante engoliu o meu marido.
Liska-Foi.
Papiri-Já era.
Liska (chorando)- Oh, meu Deus...
Papiri-Que responsabilidade a minha agora!
Liska-Coitadinho dele!
Papiri-É dela que estou falando, a danada vai explodir.
Liska-Pense no meu marido, a gente tinha acabado de se casar.
Papiri-Pense no meu trabalho. Quando o diretor souber!
Liska-Faça alguma coisa.
Papiri-O quê? alguém!
Liska-Chame
Papiri-Já vou chamar. Tomara que ela aguente até o engenheiro chegar.
Liska-Vá chamar logo esse tal de engenheiro, eu não quero o meu marido enterrado para
sempre dentro de uma tartaruga monstruosa.
Papiri-Como você é egoísta! Pense um pouco no animal. Ela está acostumada a comer 
 pílulas, e, de repente...Ela não vai aguentar, vai morrer! É a maior atração aqui do
zoológico, eu vou ser despedido.
Liska-E o meu marido? Você é um monstro!
Papiri-Ninguém conhece o teu marido, mas dessa tartaruga todo mundo já ouviu falar.
(pausa) Bem, vou chamar o engenheiro. (puxa uma das cordas do sofá velho e sobe,
desaparecendo do palco).

CENA 3

(Liska chora. Tempo. Ela fica impaciente, anda de um lado para o outro. Acaba
descobrindo uma porta que vai dar numa prancha cheia de polvos que não se sabe se são
verdadeiros ou não. Fecha a porta, e continua a sua busca).

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Liska (falando a alguém lá em cima) – Ei! Passa para cá este telefone, quero falar com
Malik. (ninguém responde. Ela continua olhando para cima. Puxa um fio que estava no
chão e aparecem no outro lado do fio, pendurados numa barra, alguns animais mortos:
ratos, morcegos, sapos. Liska solta o fio e todos os bichos desaparecem. Ela chora).
Malik (fala de dentro do animal, sem emoção na voz)- Dois seios cortados...(Liska
emocionada aproxima-se
agora com a voz cuidadosamente
normal)...Numa bandeja dedoprata.
animal, dando a volta ao redor dele. Malik,
Liska-Malik, você está vivo?
Malik-Claro. Um raio poderia cair em cima de mim e não me aconteceria absolutamente
nada.
Liska-Mas...Você está dentro da tartaruga.
Malik (sem emoção)- Ela me comeu inteiro.
Liska-Está sofrendo?
Malik-Estou ótimo.
Liska-Você tem de sair daí rápido.
Malik-Espera!
Liska-O quê?
Malik-Está fazendo um lindo dia aqui.
Liska-É tudo escuro aí. Como é que você enxerga?
Malik-Enxergo com as mãos, pelo tato, como fazem os cegos.
Liska-Você falou em seios. Sentiu eles pelo tato?
Malik-Não.
Liska-Como então?
Malik-De vez em quando acende uma luz verde psicodélica.
Liska-E esses peitos?
Malik-Um belo quadro.
Liska-Descreva eles para mim.
Malik-Oh!(silêncio)
Liska-Malik?(com medo) Fala! Diz alguma coisa, eu te amo muito! Moço, vem logo,
rápido.
Malik-É maravilhoso!
Liska-O quê?
Malik-É tão lindo!
Liska-É?
Malik-A luz continua acesa.
Liska-Está vendo o quê neste momento?
Malik-A Revolução Francesa!
Liska-Numa pintura?
Malik-Numa projeção.
Liska-Todinha?
Malik-Não, só um resumo: a extinção dos privilégios, a declaração dos direitos do homem,
Robespierre, Saint-Just. Um resumo rápido, com a mesma intensidade de um sonho.
Liska-Eu não acredito.
Malik-Às vezes, quando um fato fora do comum vai acontecer, por exemplo, quando vamos
 bater num obstáculo, a gente não chega a ver as conseqüências dessa batida antes mesmo
que ela aconteça?
Liska-Você está mesmo no escuro?

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Malik-Estou na maior escuridão, os meus pés...


Liska-Cuidado!
Malik-Tudo aqui é duro, dourado.
Liska-E eu não fiquei nem com uma foto tua.
Malik-Basta a lembrança do meu sorriso. Não se encha de coisas materiais. Você é a
salvação deste novo
rosto vai aparecer na século, com sua mão inocente e sábia. Quando menos esperar, o meu
tua memória.
Liska-De verdade?
Malik-É.
Liska-Eu tinha certeza de que um dia ia te acontecer algo assim. Você vivia falando de
coisas absurdas, da imaginação no poder...(é interrompida pela voz de Papiri)
Papiri-Acabou de chegar a resposta do engenheiro. As máquinas do deserto chegarão. Só
elas poderão retirar o teu marido de dentro da tartaruga sem o risco de contaminar todo o
zoológico. Fique longe da bocarra deste animal. As máquinas vão chegar logo, daqui a três
semanas ou um mês. Não toque na tartaruga! Sendo realista, posso dizer que dificilmente o
seu marido saíra de lá de dentro.
Liska-Nãoque
 possível é possível!(para Papiri)
meu marido fique todoEscuta, ouve!(silêncio)
esse tempo O senhor
dentro desse me ouve? Não
bicho, precisamos é
fazer 
alguma coisa.(chora)
Malik (com calma)- Eu não acredito, tem uma máquina de costura aqui dentro!
Liska-Você escutou o alto-falante?
Malik-Daqui se ouve tudo.
Liska-Dá para comer aí dentro?
Malik-Eu tenho um apetite incrível.
Liska-E para mijar, fazer cocô...
Malik-Igualzinho à tartaruga, eu cago bolinhas douradas. (escuro. Tempo. Devagar, a luz
retorna. Liska adormece num carrinho de mão. Barulho de sinos. A tartaruga se balança ao
ritmo do som.
tartaruga) Assobio
Fantástico! de Malik. Silêncio,
Maravilhoso! Você estáduas luzes
vendo verdes
Liska? aparecem,
(Liska são os
adormece. olhos da
A tartaruga
se balança. Sinos. Luzes coloridas. Malik ri com prazer) Vejo minha infância, o tocador de
harpa, a velha estradinha... Vejo o meu passado e os meus sonhos, com monstros e
sombras. (grita) Liska! Liska!

CENA 4

Papiri-Que barulho é esse? Silêncio!(desce no sofá. A tartaruga para de brilhar e fica


imóvel, de vez em quando se ouve Malik exclamando “maravilhoso!” Papiri vai até Liska.
Olha-a com ternura. Cobre-a com cuidado).
Malik-Liska, agora estou no hospital dos indefesos...Viajando na Lua...Nas peças de
Shakespeare...Voando no passado dos meus ancestrais...
Papiri-Está doente?
Malik-E minha mulher?
Papiri-Meu Deus, não seja malvado, como ela poderia estar de pé depois de tudo que fez
durante o dia todo enquanto você ficou aí, de pernas pro ar, coçando o saco?
Malik-Ela está dormindo?
Papiri-Como uma pedra, nem um bombardeio acordaria ela.
Malik-Coitadinha.

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Papiri-Ontem, quando ela me chamou, fui grosseiro com ela. Sinto muito, é a minha
 profissão. Às vezes não enxergo nada além do serviço e me esqueço das coisas mais
simples.(pausa) Tua mulher é maravilhosa.
Malik-Escutei toda a conversa de vocês.
Papiri-Aumentamos o preço do ingresso para visitar o zoológico.
Malik-O público
Papiri-Uma lotou
grande o zoológico.
vitória para o nosso povo. O mundo todo está de olho na gente.
Malik-sabe o que eu vejo daqui de dentro?
Papiri-Nada do que você vê me espanta. Você está prestando um enorme serviço ao turismo
de nosso país, acho que poderia até pedir um salário como pagamento.
Malik-Estou pouco me importando com o dinheiro.
Papiri-Acho que deveriam te pagar como um funcionário público.
Malik-Por quê?
Papiri-Ora, você aí dentro...Seria bom para tua esposa.
Malik-Só penso nela.
Papiri-Eu também.(olha Liska com ternura) Não deve ser muito confortável dormir aí
dentro.
Malik-Tudo aqui é confortável.
Papiri-Você não se sente numa prisão?
Malik-É um verdadeiro conto de fadas. Estou são e salvo, nunca estive tão bem como estou
agora.
Papiri-Ótimo. Você é um homem corajoso, eu não consigo suportar covardes.
Malik-É como o azul do silêncio batendo na água.
Papiri-...................................
Malik-Aqui eu consigo vencer até o mal, os meus instintos animalescos tornam-se doces.
Papiri-E sobre a tua mulher, o que é que você vai fazer?
Malik-Tenho alguns projetos para ela.
Papiri-Você
seja só tua. vai ficar famoso, ela deveria lucrar com isso também, não é certo que a fama
Malik-Estou tranqüilo.
Papiri-Personalidades virão te ver, anotarão as tuas palavras, comprarão as tuas memórias,
falarão que foi injusto alguém como você ter sido comido por uma tartaruga. Claro, em
qualquer outro país você já seria ministro ou teria ganhado uma medalha de honra ao
mérito.
Malik-Eu e minha mulher, nós somos muito diferentes, nós nos completamos, somos como
a água e o fogo, o ar e a terra.
Papiri-Você é o talento, ela, a beleza. (pausa) Está se sentido bem?
Malik-Muito bem.
Papiri-Como é aí dentro?
Malik-Oco.
Papiri-Oco?
Malik-É.
Papiri-E os pulmões, o ventre, os intestinos desse bicho?
Malik-Ainda não os vi.
Papiri (pega as pílulas)- Por falar nisso, eu posso?
Malik-O quê?
Papiri-Dar a comida dela, já ta na hora. (chama) Fiodor!

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CENA 5

Fiodor (só a voz)- O que é? O jornal ainda não chegou.


Papiri-Não foi pra isso que eu te chamei, mas fez bem lembrar. Logo que chegarem manda
 pra cá, quero saber o que dizem disso tudo.(pausa) Joga mais pílulas, já são três horas.
Fiodor-Quais?
Papiri (olha a sua agenda)- A rosa e a azul.
Fiodor-Toma lá!(joga-as. São duas, e provocam grandes buracos no chão, Papiri tem muita
dificuldade em pegar) Ei!
Papiri-Sim?
Fiodor-Ela já cagou hoje?
Papiri-Vou ver.(inspeciona o bicho e não encontra nada)
Fiodor-Olha bem.
Papiri-Não tem nada aqui.
Fiodor-Nem mesmo uma bolinha de prata?
Papiri-Nada.
dourada (continua
de dentro dela)procurando comencontrei
Uma pequena, a ajuda de uma rede. Finalmente, tira uma bolinha
uma!
Fiodor-É prateada?
Papiri-É dourada! Lá vai, pega.(levanta a rede e lá em cima pegam a bolinha)
Fiodor-Maravilha de cocô! Muito bom!
Papiri-Como é que é?
Fiodor-Radioatividade 3,5.
Papiri-3,5?
Fiodor-É.
Papiri-Só quero ver o que os engenheiros vão falar quando chegarem aqui!
(Silêncio)

CENA 6

Papiri (para Malik)- Você ouviu?


Malik-Ouvi.
Papiri-Tudo mudou depois da tua chegada. Creio que a tua colaboração científica será
fundamental. Daqui para frente, quando perguntarem nas escolas qual a principal função
das tartarugas, a resposta será: engolir os homens.
Malik-Vou trazer Liska pra cá para dentro.
Papiri-Tua mulher?
Malik-Faço algum mal?
Papiri-Não sei, essa é uma pergunta muito pessoal.
Malik-Eu e ela estamos eternamente juntos, para o que der e vier.
Papiri-Você está com febre? Quer tirar sangue para análise?
Malik-Aqui?
Papiri-Oh...Mas diga-me, o que foi que você comeu hoje?
Malik-Não tem aquelas mulheres que colocam uns pedaços de carne no rosto para ficarem
com a pele bonita e sedutora? Pois então, é isso que acontece aqui, a tartaruga me alimenta
 pelo contato da sua pele, eu recebo tudo de que preciso dela.
Papiri-Nesse caso, ela também se alimenta de você.

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Malik-Lógico.
Papiri-Não se mexa muito, faz mal pro bicho.
Malik-Estou parado.
Papiri-Que vida boa essa! São esses que não fazem nada que criam as mais brilhantes
teorias, são eles os responsáveis por toda a evolução intelectual da humanidade.
Malik-Vejo tudo daqui
Papiri-Que cheiro tem aídedentro?
dentro com a mais absoluta transparência.
Malik-Um cheiro ótimo, de bateria de carro velho.
Papiri-Pensei que cheirasse a sapato velho.
Malik-Nem o café da manhã eu preciso tomar.
Papiri-Você é um sortudo. Esta tartaruga tem fama de viver mil anos, você vai viver 
séculos é séculos aí dentro.
Malik-Será uma aventura maravilhosa!
Papiri-Está se sentindo bem mesmo? De verdade?
Malik-Nunca me senti tão bem em toda minha vida.
Papiri-E sobre a tua mulher, o que é que as pessoas vão pensar, sabendo que ela vai estar aí
entro com você?
Malik-Elas irão compreender.
Papiri-Mas ela vai comer o quê aí dentro? Não faz sentido. Além disso, esse cheiro de
 bateria de carro velho...
Fiodor-Papiri!
Papiri-fala.
Fiodor-Chegaram os jornais.
Papiri-Jogue-os para cá (caem dois jornais) Certamente falam de você.
Malik-Acredita?
Papiri-(Depois de percorrer com os olhos algumas páginas) Olha, aqui tem um artigo, eu
vou ler...
Malik (sem
Papiri entusiasmo)
(na medida em queLeialê vai e indignando)- Estranhos rumores circulam em nossa
cidade: um famoso gastrônomo, sem dúvida cansado e freqüentar os restaurantes chiques
de nossa cidade, comeu a tartaruga gigante do zoológico, sem nenhuma dúvida depois de
haver subornado o funcionário encarregado de tomar conta dela. O pobre animal
desapareceu completamente nessa fossa abissal que é o estômago do gastrônomo guloso.
 Nosso jornal, evidentemente, não alimenta qualquer tipo de preconceito contra essa espécie
de iguaria que é a tartaruga, inclusive apreciada em outros países mais civilizados que o
nosso. Achamos mesmo que um dia essa iguaria exótica chegará por aqui. Mas achamos
que foi um pecado da gula! Era preciso que um só homem devore todo o animal, correndo
inclusive o risco de ter a maior das indigestões? Esse banquete deveria acontecer com toda
a comunidade, pois somente assim o nosso país chegará a igualar o renome turístico que
 possuem hoje os nossos vizinhos! Ouviu isso?
Malik-Ouvi.
Papiri-Não é possível! Tem um outro artigo aqui.(lê e fica indignado outra vez)
Desejaríamos manter todo o nosso sangue frio ao relatar o que aconteceu. Ontem, logo
depois que o zoológico abriu, um homem enorme e completamente bêbado foi ao local
onde esta presa a nossa tartaruga gigante, um exemplar único que orgulha profundamente
nosso país. O bêbado colocou-se em frente à boca do animal, que não teve outro remédio
senão engoli-lo. E uma vez dentro da barriga da tartaruga, o homem caiu no mais profundo

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sono. Mais tarde, acordado, começou a rir sem parar, exigindo que o tirassem de lá,
enquanto o quelônio descomunal sofria horrores por ter sido obrigado a ingerir um prato tão
indigesto. Nossos leitores podem imaginar a cena! Há muitos anos os tribunais estrangeiros
condenam a pesadas multas ou mesmo a prisão aos que maltratam os animais. Neste caso, o
que é que está esperando a Sociedade Protetora dos Animais para tomar as suas
 providências?É um absurdo!(abatido) O que é que tudo isso significa?
Malik-Não se preocupe.
Papiri-Como assim?
Malik-Minha mulher e eu viveremos muito bem aqui, distantes da vã agitação deste mundo
cão.
Papiri-Tem certeza de que vocês dois vão caber aí dentro?
Malik-Claro.
Papiri-Certeza absoluta?
Malik-Cabe nós dois e mais dois, tranqüilo.
Papiri-É verdade que nem nos conhecemos pessoalmente, mas, apesar disso, você me
considera como sendo seu amigo?
Malik-Um amigão.
Papiri-Mas então, como amigo íntimo, eu não poderia viver aí dentro com vocês?
Malik-Nós três? Juntos?
Papiri-E porque não? Se nos respeitarmos poderemos viver os três muito bem aí dentro.
Malik-Sem nenhuma dúvida.
Papiri-Acho que seremos felizes, nas segundas-feiras, com o zoológico fechado, poderemos
até receber nossos convidados na maior das intimidades.
Malik-Ótima idéia.
Papiri-Espero que a tua dignidade não seja ferida com esta minha proposta.
Malik-Certamente que não.
Papiri-Então eu vou me aprontar e volto já, aguarde-me. (sobe com o seu sofá. Escuro. Os
olhos da tartaruga
contentamento. brilham.
Escuta-se, de Volta
dentroedameia malik uma
tartaruga, soltamúsica
exclamações demonstrando
suave. Projeções o seu
de quadros
de Hyeronimus Bosch e de ilustrações do livro de Lewis Carrol “Alice no País das
Maravilhas”, feitas por John Tenniel, as imagens projetadas parecem que saem diretamente
dos olhos do animal, que se balança com um ar de felicidade. Risos de Malik. Liska
continua dormindo. Finalmente ele se acorda e levanta. Olha para os lados e vê
deslumbrada as imagens projetadas, a tartaruga dançando com suas luzes oculares, escuta
também as risadas de Malik e a música suave, e então é tomada por esta atmosfera
fantástica que durará até o final da encenação.

CENA 7

Liska- Malik, Malik!


Malik (em êxtase)- É você que está aí?
Liska-Que lindo o que eu estou vendo!
Malik-O quê?
Liska-Luzes, quadros estranhos, a tartaruga dançando!
Malik-Aqui dentro eu vejo coisas ainda mais lindas, como se tivesse novos olhos!
Liska-Ah...
Malik-Vejo toda a história da evolução do mundo e do homem.

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Liska-Não acredito!
Malik-Tenho a impressão de haver renascido.
Liska-Escutei tuas risadas.
Malik-Assisti à minha existência desde o momento em que nasci, como se fosse a vida de
uma outra pessoa. Ouvi toda a conversa de meus pais. A visão era vertiginosa, mas pude
ver todos osDeus!
Liska-Meu detalhes.
Malik-Tudo isso em alguns segundos apenas.
Liska-Viu de novo a tudo e a todos?
Malik-Sim, vertiginosamente. Revi o começo do nosso amor.
Liska-Verdade?
Malik-Graças ao nosso amor, quando dou ordens às montanhas, elas andam, os rios voltam
aos seus cursos normais e os peixes voam e caem em minhas mãos.
Liska-Te amo.
Malik-Sinto calor e frio, mas nunca solidão. O meu coração está protegido dentro de um
ovo, e quando eu entro na água não me molho.
Liska-Eu preciso
Malik-Eu de você.
tenho mãos de pedra, a cabeça de água e as pernas de mercúrio, as portas abrem
 para o nada e o meu sangue ferve. De repente, tudo fica azul e negro, e em seguida verde,
amarelo, azul e branco ou vermelho, e depois tudo isso some.
Liska-Estou tendo um troço!
Malik-Mil mãos acariciam o meu rosto e o meu corpo, como se viessem de dentro de mim.
Eu te amo loucamente.
Liska (chorando de alegria)- Malik!
Malik-Eu não sonho nem penso, esqueço que existo. Meu rosto se reflete num espelho e
esse espelho só reflete a tua face.
Liska-Sou você, minhas mãos são as tuas mãos.
Malik-Felicidade!
Liska-Amor!
Malik-Tudo se transformou desde que estou aqui dentro, é uma viagem sem fim, eterna.
Liska-E agora, onde você está?
Malik-O meu corpo voa para o futuro a uma velocidade espantosa, como um raio eu chego
no passado, eu vejo e sinto tudo, os anos são segundos, os séculos minutos.
Liska-Não me deixe só.
Malik-Eu conheço todo o universo e a minha memória é eterna, vejo o pássaro que todo
ano suga do oceano uma gota de água, eu sou esse pássaro! Compreendo o sentido da vida,
sou ao mesmo tempo um felino e uma fênix, um cisne e um elefante, a criança e o velho.
Estou só e ao mesmo tempo acompanhado, eu amo e sou amado, é o Éden, estou ao mesmo
tempo em todos os lugares, tenho o selo de todos os selos, e na medida em que encontro o
futuro um êxtase toma conta de mim para sempre.
Liska-Vou contigo, serei uma Eva!
Malik-Vem!
(Liska fica nua e entra na tartaruga. Escuro. Tempo).
Papiri (chegando)- Senhor Malik, já estou pronto, vou acompanhá-lo!
(Luz fantástica em torno da tartaruga. Escutamos as vozes de Liska e Malik cantando um
aleluia. Papiri entra em cena correndo vestido de Dom Quixote de La Mancha)
PANO

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