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Moisés Maimônides, “Guia para os Perplexos”.

Capítulo XXXVI

A profecia é, na verdade, uma emanação enviada pelo Ser Divino, por meio do Intelecto Ativo, em
primeiro lugar para a faculdade racional do homem, e em seguida para a sua faculdade
imaginativa; é o maior grau e a maior perfeição que o homem pode atingir; ela consiste no
desenvolvimento mais perfeito da faculdade imaginativa.

A profecia é uma faculdade que não pode, de forma alguma, ser encontrada em uma pessoa, ou
adquirida pelo homem, pelo cultivo de suas faculdades mentais e morais; pois, mesmo se estas
últimas fossem tão boas e perfeitas quanto possível, elas não teriam utilidade, a menos que fossem
combinadas com a mais alta excelência natural da faculdade imaginativa.

Sabes que o desenvolvimento perfeito de qualquer faculdade corporal, como a imaginação,


depende da condição do órgão pelo qual a faculdade age. Esta deve ser a melhor possível, com
relação ao seu temperamento e seu tamanho, e também com relação à pureza da sua substância.
Nenhum defeito, a este respeito, pode ser suprido ou remediado pelo simples treinamento, pois,
quando algum órgão tem algum defeito no seu temperamento, o treinamento adequado pode, na
melhor hipótese, restaurar, em alguma medida, uma condição saudável, mas não pode tornar o
órgão perfeito. Mas, se o órgão tiver algum defeito com relação a seu tamanho, posição, ou com
relação à substância e a matéria da qual o órgão é formado, não há remédio. Sabes tudo isto, e não
preciso explicar-te em detalhes.

Parte das funções da faculdade imaginativa é, como sabes bem, reter as impressões dos sentidos,
para combiná-las, e, principalmente, formar imagens. A função principal e mais elevada é realizada
quando os sentidos estão em repouso e na pausa de sua ação, pois então ela recebe, em algum grau,
a inspiração divina, na medida em que está predisposta para esta influência. Esta é a natureza dos
sonhos que são reais, e também da profecia; a diferença é quantitativa, não qualitativa. É por isso
que nossos Sábios dizem que o sonho é a sexagésima parte da profecia; não se poderia fazer uma
comparação destas entre duas coisas de tipos diferentes, pois não podemos dizer que a perfeição do
homem é tantas vezes a perfeição de um cavalo.

No Bereshit Rabba (seção xvii), aparece a seguinte afirmação de nossos Sábios: “O sonho é o
nobelet (fruta ainda não madura) da profecia”. Esta comparação é excleente, pois a fruta ainda não
madura (nobelet) é, na verdade, em alguma medida, a fruta, embora tenha caído da árvore antes de
estar perfeitamente desenvolvida e madura.

Da mesma forma, a ação da faculdade imaginativa durante o sono é a mesma que no momento em
que recebe uma profecia; só que no, no primeiro caso, ela não está totalmente desenvolvida, e ainda
não atingiu seu grau mais alto. Mas não preciso citar as palavras dos nossos Sábios quando posso
indicar esta passagem da Escritura: “Se entre vós houver profeta, eu, o Senhor, em visão a
ele me farei conhecer, ou em sonhos falarei com ele. ” (Num 12:6). Aqui, o Senhor nos diz
qual é a essência real da profecia; que ela é uma perfeição adquirida em um sonho ou em uma visão
(o original mareh é um substantivo derivado do vergom raah); a faculdade imaginativa adquire
uma eficiência tamanha em sua ação, que ela vê a coisa como se viesse de fora, e a percebe como se
fosse através dos sentidos corporais.

Estes dois modelos de profecia, visão e sonho, incluem todos os seus diferentes graus. É um fato
bem-conhecido que a coisa que envolve de modo forte e sincero a atenção do homem enquanto ele
está desperto e de posse perfeita de seus sentidos forma, durante seu sono, o objeto da ação da sua
faculdade imaginativa. A imaginação é, então, influenciada apenas pelo intelecto na medida em
que está predisposta para tal influência. Seria únítil ilustrar isso por meio de um símile, ou explicar
em detalhes, pois é algo claro e todo mundo o sabe. É como a ação dos sentidos, cuja existência
nenhuma pessoa de bom senso jamais negaria.

Depois destes comentários introdutórios, entenderás que uma pessoa deve satisfazer as seguintes
condições antes de se tornar um profeta.

A substância do cérebro deve, desde o princípio, estar na condição mais perfeita com relação à
pureza da matéria, a composição de suas diferentes partes, tamanho e posição; nenhuma parte de
seu corpo pode estar sofrendo de doença; ele deve ter, além disso, estudado e adquirido sabedoria,
para que sua faculdade racional passe de um estado de potencialidade para um estado de atualidade
[Nota: ele está usando os conceitos aristotélicos de ato e potência]; seu intelecto deve ser o mais
desenvolvido e perfeito possível para um intelecto humano; suas paixões devem ser puras e
igualmente equilibradas; todos os seus desejos devem se orientar a obter um conhecimento das leis
e causas ocultas que atuam no Universo; seus pensamentos devem estar envolvidos em assuntos
elevados; sua atenção, direcionada ao conhecimento de Deus, da consideração de Suas obras, e do
que ele deve acreditar a este respeito. Deve haver uma ausência dos desejos e apetites mais baixos,
da procura do prazer no comer, no beber e na coabitação; e, em suma, de qualquer prazer conectado
com o sentido do toque (Aristóteles diz, corretamente, que este sentido é uma desgraça para nós,
uma vez que o possuímos apenas em virtude de sermos animais; e ele não inclui nenhum elemento
especificamente humano, enquanto que os divertimentos conectados com os outros sentidos, como
o olfato, a audição e a visão, embora também sejam, da mesma forma, de natureza material, podem
às vezes incluir prazer [intelectual], atraente ao homem enquanto homem, de acordo com
Aristóteles. Este comentário, embora não seja parte do nosso assunto, não é supérfluo, pois os
pensamentos dos homens sábios mais renomados são, em grande medida, afetados pelos prazeres
deste sentido, e preenchidos por um desejo por eles. E, no entanto, as pessoas ainda se surpreendem
de estes eruditos não profetizarem, como se a profecia não fosse nada além de um certo grau no
desenvolvimento do homem). É, além disso, necessário suprimir todo pensamento ou desejo de
poder e domínio irreais; ou seja, de vitória, aumento de seguidores, aquisição de honra, e serviço
das pessoas sem nenhum objetivo ulterior. Ao contrário, a multidão deve ser considerada de acordo
com seu valor real; alguns deles são, sem dúvidas, como gado doméstico, e outros como bestas
selvagens, e este só recebem a atenção da mente do homem perfeito e distinto na medida em que ele
deseja se proteger de danos, no caso do contato com eles, e obter algum benefício deles, quando
necessário.

Um homem que satisfaça estas condições, enquanto sua imaginação, perfeitamente desenvolvida,
estiver em ação, influenciada pelo Intelecto Ativo, de acordo com seu treinamento mental – uma tal
pessoa perceberá, sem dúvida, nada além de coisas muito extraordinárias e divinas, e verá nada
além de Deus e Seus anjos. Seu conhecimento incluirá apenas o que for conhecimento real, e seu
pensamento será direcionado apenas para os princípios gerais que tendem a aumentar as relações
sociais entre homem e homem.

Descrevemos, até agora, três tipos de perfeição: perfeição mental, adquirida pelo treinamento;
perfeição da constituição natural da faculdade imaginativa; e perfeição moral, produzida pela
supressão de todo pensamento de prazeres corporais e de todo tipo de tolice ou ambição má.

Estas qualidades são, como é bem conhecido, possuídas pelos homens sábios em graus diferentes, e
os graus da faculdade profética variam de acordo com esta diferença.

As faculdades do corpo são, como sabes, em um momento fracas, cansadas, e corrompidas, e em


outros em estado saudável. A imaginação é, certamente, uma das faculdades do corpo.
Perceberás, portanto, que os profetas são privados da faculdade de profetizar quando estão de luto,
irritados, ou afetados de forma semelhante. Nossos Sábios dizem que a Inspiração não vem a um
profeta quando ele está triste ou lânguido. Esta é a razão pela qual Jacó não recebeu nenhuma
revelação durante o seu tempo de luto, quando sua imaginação estava envolvida com a perda de
José. O mesmo caso se deu com Moisés, quando ele estava em estado de depressão por causa da
miríade de suas tribulações, que iam das murmurações dos israelitas em consequência dos relatórios
maus dos espiões, até a morte dos guerreiros daquela geração. Ele não recebeu nenhuma mensagem
de Deus, como costumava, mesmo embora ele não recebesse inspiração profética por meio da
faculdade imaginativa, mas diretamente pelo intelecto.

Mencionamos diversas vezes que Moisés, ao contrário de outros profetas, não falava em símiles.
Isto será explicado mais à frente (capítulo XLV), mas não é o assunto do presente capítulo. Também
havia pessoas que profetizaram por um determinado tempo e depois cessaram por completo, tendo
ocorrido algo que os fez descontinuar o profetizar.

A mesma circunstância, a prevalência da tristeza e do embotamento, foi sem dúvida a causa direta
da interrupção da profecia durante o exílio, pois, pode haver maior infortúnio para o homem do que
este, de ser um escravo comprado por dinheiro a serviço de mestres ignorantes e voluptuosos, e
estar impotente contra eles, enquanto eles reúnem em si a ausência de conhecimento verdadeiro e a
força de todos os desejos animais? Um estado mau como este foi profetizado para nós nas palavras
“E irão errantes de um mar até outro mar, e do norte até ao oriente; correrão por toda
a parte, buscando a palavra do Senhor, mas não a acharão. ” (Amós 8:12); “[...] o seu rei
e os seus príncipes estão entre os gentios, onde não há lei, nem os seus profetas
acham visão alguma do Senhor.” (Lamentações 11:9). Este é um fato real, e a causa é evidente;
os pré-requisitos [da profecia] foram perdidos. No período messiânico – que ele comece em breve –
a profecia estará novamente em nosso meio, conforme prometido por Deus.

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