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CIDADES x PLANOS DIRETORES, UMA HISTÓRIA DE LUTAS

Romulo Krafta
UFRGS – Departamento de Urbanismo
krafta@ufrgs.br

“Cities have the capability of providing something for everybody, only because,
and only when they are created by everybody” J Jacobs, The death and live of great American
cities, NY, Random House, 1961

Introdução

Um plano diretor, dos tradicionalmente elaborados no país, contém três elementos básicos: a)
um manifesto, b) um masterplan e c) um conjunto de controles. O manifesto, que explicita os
valores, princípios e diretrizes gerais que supostamente justificariam e governariam os demais
elementos, aparece de duas formas simultâneas: numa exposição de motivos, ou apresentação
do plano, como um texto introdutório mais ou menos longo e discursivo, e em artigos ou
parágrafos do texto legal, na forma de ‘pílulas’ doutrinárias inseridas em meio às determinações
específicas da lei. Ambos tem pouca ou nenhuma efetividade, já que nem oferecem orientação
precisa a quem eventualmente queira compreender os motivos de determinadas prescrições
(veja que usuários não podem formular dentro do plano, mas apenas se ater às prescrições
estabelecidas, salvo exceções), no caso do texto introdutório, nem oferecem balizamento a
quem precisa usar o plano para propor suas iniciativas de transformação urbana, no caso das
‘pílulas’ doutrinárias. O conjunto de controles, chamado ‘regime urbanístico’ consiste de um
alguns indicadores que visam controlar o uso do solo e a densidade. O uso do solo é controlado
através da enumeração das atividades permitidas para cada fração do território urbano,
enquanto que a densidade é controlada através da forma construída, ou seja, por meio de
índices que controlam a quantidade de área construída por unidade de terreno e,
eventualmente, a área das unidades residenciais. Complementarmente a esses dois ou três
controles básicos, são ainda usados índices de altura e posição das edificações no lote, sua
projeção horizontal sobre o lote, a ainda prescrições quanto a dimensionamento de lotes,
quadras, ruas e áreas livres públicas. Finalmente, o masterplan é um projeto urbanístico de larga
escala e possui determinações quanto a uso e ocupação do solo, sistema viário e,
eventualmente, posição de elementos excepcionais. O masterplan se apresenta normalmente
na forma de um documento mais ou menos complexo, composto de um mapa de zoneamento,
no qual o território urbano e de expansão é dividido em frações homogêneas (e especiais), um

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mapa de sistema viário, onde se define os componentes de maior hierarquia, e finalmente um
conjunto de parâmetros, que fixam, ou estabelecem os índices do regime urbanístico, em cada
zona. Como resulta claro, o PD é uma construção intelectual que segue uma sequência
inexorável: geração de uma visão de futuro >>> produção de um projeto consistente com essa
visão >>> elaboração de um mecanismo de controle para garantir que as ações dos diferentes
agentes sociais convirjam para o projeto. Esse procedimento obedece a um sentido genérico de-
cima-para-baixo (top-down) quer se o examine desde o ponto de vista da escala geográfica (do
todo às zonas, cada vez menores, até o objeto arquitetônico particular), da hierarquia urbana
(os setores, os grandes agregados sendo mais importantes que os eventos individuais ou os
componentes básicos) ou do sistema decisório (decisões mais amplas e genéricas escravizam
decisões mais locais ou particulares).

Uma cidade, das tradicionalmente encontradas neste país, e no mundo, é composta a partir de
três elementos básicos: a) uma população, b) uma base material e espacial, e c) um processo de
interação entre pessoas, espaços e pessoas/espaços. A população é formada pelo conjunto de
pessoas que habitam a cidade e tem determinação local, ou seja, cada indivíduo conhece e se
relaciona com um número muito pequeno de outros indivíduos desse conjunto, sendo que esse
conhecimento ainda é apenas parcial (no sentido de ser fundado em apenas alguns aspectos da
vida de cada um). Cada indivíduo possui uma determinada e diferente circunstância na sua
inserção na cidade, o que resulta em uma multiplicidade de demandas, interpretações e visões
de futuro. Todo indivíduo nasce, já, numa cidade que o antecede e ‘aprende’, quer dizer, absorve
princípios de organização e funcionamento de um organismo necessariamente múltiplo e
diversificado. Essa condição de base pré-existente e prática urbana particular tende a conduzir
cada indivíduo a construir um ‘modelo’ particular de cidade; um esquema cognitivo que contém
componentes e mecanismos derivados de sua experiência de vida urbana e que serve como
referência para o seu comportamento urbano, seja na prática cotidiana de uso da cidade, seja
na prática de transformação e adaptação da cidade a suas conveniências e interesses
particulares. Toda ação de uso e/ou de transformação urbana tende a reproduzir, de forma
adaptada à condição local, o esquema cognitivo do autor. A base material/espacial é o conjunto
de objetos bi e tridimensionais (formas construídas e porções de superfície) dispostos
articuladamente sobre um território. A adição de componentes a uma cidade é incremental e,
via de regra, de muito pequena escala. Cada nova adição de fragmentos de superfície
(parcelamentos de terra) e de formas construídas (edificações) é feita localmente, isto é, sem o
conhecimento do todo, tanto no que diz respeito aos antecedentes quanto às consequências.
Cada nova adição de componentes materiais/espaciais gera externalidades, ou seja, interfere
na pré-existência de forma a criar efeitos múltiplos (um ou mais efeitos desejados e pretendidos,
simultâneos a outros efeitos não pretendidos e mesmo indesejáveis). Cada componente tem
uma vida útil específica e diferente dos demais, muitos componentes são descartados e
substituídos após vencimento de sua vida útil, resultando num conjunto composto de
componentes de diferentes idades. Cada adição de componente é feita segundo parâmetros de
utilidade e técnica de produção próprios de sua época e, ao serem produzidos, interferem e
mudam os parâmetros de eficiência dos componentes previamente existentes à sua volta.
Assim, todos os componentes existentes de uma cidade são passíveis de atualização mediante
ações externas a eles, como efeito da inserção ou supressão de componentes, localmente. O
processo de interação inclui três instâncias: a interação social, ou seja, entre indivíduos da
população, a interação configuracional, isto é, entre componentes do espaço urbano, e a
interação espacial, ou socioespacial, entre indivíduos e espaços. Interação social está na base de

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toda atividade urbana, envolvendo grupos de diferentes portes, composições, frequências,
durações e propósito. Argumenta-se que interação social seria o propósito básico das cidades,
já que virtualmente todas as atividades, de produção econômica, de reprodução social,
culturais, afetivas, etc. tem por base algum tipo de interação entre pessoas. Interação social é
local (não significa que seja necessariamente restrita a um lugar geográfico), isto é, forma-se e
ocorre em qualquer lugar, envolve adesão e sempre se refere a parcelas da população. Interação
configuracional, ou simplesmente configuração, é um sistema de relações entre componentes
espaciais de uma cidade, que gera um padrão hierárquico. Unidades de espaço (espaços
internos de formas construídas, espaços abertos públicos) estão desigualmente distribuídos
sobre o território, e seletivamente conectados. Distância e posição relativa são elementos-chave
para a produção de uma configuração, resultando sempre em diferenciação espacial expressa
em distâncias e posições relativas. Dado que os componentes e relações espaciais se equiparam
a um sistema, a cidade depende de cada um deles, e cada um deles tem depositadas em si as
propriedades fundamentais da cidade. Configuração é incremental e emergente, isto é, é
produzida aos poucos mediante a adição de novos componentes e relações e seu estado macro
é sempre dependente da última adição discreta. Interação sócio espacial se refere ao conjunto
de relações entre pessoas e espaços urbanos. Pode ser descrita de forma genérica pelos usos do
solo (atividades estacionárias de diferentes tipos, e fluxos de diferentes tipos). Interação sócio
espacial também é local e incremental.

Como se conclui preliminarmente do descrito acima, de um lado, planos diretores urbanos são
essencialmente top-down, quer dizer, são concebidos de cima para baixo, a partir de uma visão
de futuro, de um resultado supostamente antevisto por quem o concebe. Sua implementação
visa, obviamente, alcançar esses resultados, mediante ações diretas sobre a cidade e
principalmente ações indiretas sobre os agentes sociais. De outro lado, e oposto a isso, cidades
são essencialmente bottom-up, isto é, são organismos que se formam e transformam a partir de
ações individuais, locais cumulativas, de baixo para cima, que são concebidas e levadas a cabo
por uma quantidade imensa de pequenos agentes descoordenados e com visão limitada do
organismo. Isso predispõe uma relação conflitiva e essencialmente problemática, visto que, PDs
forçam a natureza emergente das cidades ao lhes impor uma visão de futuro como objetivo e
consequentemente confiscar parte da liberdade e autonomia dos agentes. Cidades, na direção
oposta, desafiam a natureza impositiva e restritiva dos planos ao inventar configurações, formas
e interações novas e não previstas.

As seções subsequentes irão explorar algumas particularidades desse enfrentamento,


mostrando que apesar desse antagonismo de princípios há instâncias de convergência,
resultantes de soluções de conveniência dos Planos e leis gerais da cidade. Não obstante a
intenção é demonstrar que PDs, da forma que estão hoje conformados, são instrumentos
inadequados de gestão urbana.

Fundamentos dos Planos Diretores

O planejamento urbano em geral se sustenta sobre dois pilares éticos fundamentais: eficiência
e equidade. Por eficiência se entende a busca por uma melhor funcionalidade e economia de

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meios. Assume-se que as cidades, ao se desenvolverem, geram deseconomias, isto é, são vítimas
de perdas de eficiência, e o planejamento, então, seria uma forma de atacar essas ineficiências
e restaurar, ou manter níveis de funcionalidade razoáveis. Níveis razoáveis de funcionalidade
seriam obteníveis pela gestão dos recursos instalados e dos custos envolvidos. Por equidade se
entende a distribuição dos benefícios e custos de produção e operação das cidades entre seus
habitantes. Sendo a população grandemente diferenciada quanto à renda e sendo todos
dependentes da cidade, haveria como decorrência uma apropriação estratificada dos benefícios
urbanos, tais como localização, serviços, ou mobilidade. O planejamento se justificaria, então,
na busca de algum equilíbrio na distribuição desses custos e benefícios. Como naturalmente
decorre, o Estado seria a instância mais apropriada para exercitar planejamento. Governos são
essencialmente estruturas hierárquicas, cabendo a cada setor e nível responsabilidades
específicas. Planejamento urbano, sendo uma delas, tende a receber tratamento consistente
com essa divisão de poderes e competências.

Há consenso hoje sobre as virtudes do planejamento urbano, atribuindo-se qualquer má


formação ou mau funcionamento das cidades à falta de planejamento. Essa noção não é
verdadeira, na medida que a cidade é, sempre, plena de planejamentos. Cada indivíduo ou grupo
de indivíduos organizados em entidades planeja suas ações de uso e mudança da cidade o tempo
todo e as implementam segundo estratégias as mais diversas. O planejamento público,
tradicionalmente expresso em Planos Diretores, paradoxalmente diminuem, refreiam essa febril
atividade de planejamento mediante a supressão de níveis de liberdade e autonomia dos
agentes sociais. Com efeito, qualquer Plano Diretor toma para si a tarefa de definir rumos para
a sua cidade, bem como definir o que cada agente pode e não pode fazer na sua ação
transformadora.

Os Planos Diretores, tais como o de Porto Alegre, têm sua origem nos anos 50, quando foram
primeiramente formulados a partir de uma vaga noção de ciência aplicada. Segundo a visão
prevalente à época, a cidade assemelhar-se-ia a uma máquina – uma manufatura composta de
peças, cada uma obedecendo a um princípio formativo e funcional, isto é, possuindo uma
posição no desenho global e funcionando de uma determinada maneira para prover à máquina
os insumos parciais dela requeridos. As partes da grande máquina deveriam ser mono-
funcionais, voltadas a prover um insumo específico, como por exemplo o sistema viário, do qual
se requer condições de circulação, ou áreas residenciais, responsáveis por prover habitação.
Dentro desse grande desenho, a cidade teria um centro principal, de serviços (e de empregos),
áreas industriais (e de empregos), áreas residenciais, sistema viário e equipamentos diversos
para uso da população. Áreas residenciais demandariam centros de serviços locais. Uma
organização genérica como essa, acreditava-se, derivaria de uma leitura científica das cidades
existentes e representaria um padrão, a partir do qual cada plano buscaria elaborar, na busca
de eficiência e equidade. Um dos elementos-chave desse padrão é o gradiente de densidade a
partir do centro; densidade emergiu como um critério conveniente para o planejamento, eis que
através de um suposto controle de densidade seria possível estabelecer demandas por
infraestrutura e forma construída, podendo então derivar instrumentos de controle da
ocupação do solo. Uma derivação simples de forma urbana a partir de densidade é a mostrada

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na tabela 1; ali se vê a dedução da área residencial líquida, o cálculo da área construída total e
o seu controle através de dois parâmetros, índice de aproveitamento e taxa de ocupação.
Tabela 1: Dedução da área construível líquida residencial, bem como dos parâmetros de controle da forma
construída, a partir da densidade desejada.
USO PÚBLICO

RESIDENCIAL

CONSTRÍDA
DENSIDADE

EDIFICÁVEL

AREA/ HAB
CONSUMO

GABARITO
ALTURA
APROV.
INIDICE

OCUP.
ÁREA

AREA

TAXA
USO

A 2 3 4 5 6 7 8 9
100 25% 7500 90% 50 5000 0,75 40% 2
500 30% 7000 80% 30 15000 2,7 50% 6
1000 35% 6500 75% 20 20000 4,1 50% 8
... ... ... ... ... ... ... ... ...

O projeto de cidade cuja última determinação aparece nas três últimas colunas da tabela inicia-
se muito antes, com: a) um modelo espacial geral, baseado em centralidades e macro
distribuição da população, b) uma divisão do território urbano em zonas, c) um código de usos
do solo, d) uma distribuição de densidades, para finalmente e) um código de ocupação do solo.
Partes dessas determinações são prévias ao projeto, isto é, já são pré-existentes, enquanto
outras são projetadas, a partir de tendências adivinhadas e pura arbitrariedade. Qualquer uma
dessas determinações podem variar largamente, como bem exemplifica os sucessivos planos
urbanos de Porto Alegre. Seu modelo espacial geral já foi monocentral (primeiros planos de
melhoramentos urbanos), centro estendido (plano de 59), multipolar (plano de 79) e corredor
de centralidade (plano de 99); densidades já aumentaram e diminuíram, zonas foram criadas e
suprimidas, gabaritos de altura subiram e desceram, conforme a sucessão de governos, técnicos,
políticas e crenças a respeito da natureza da cidade.

Resta claro do exposto que o objetivo estratégico de um Plano Diretor é subordinar a ação dos
agentes sociais a um projeto global que, acredita-se, seja melhor para todos. Essa crença tem a
seguinte derivação: a) o Estado representa os agentes sociais, b) as autoridades públicas
materializam o estado, c) as agências de planejamento dessas autoridades públicas
representam, nesse seu âmbito particular, a sociedade, sendo capaz de identificar o que ela é,
o que ela quer e prescrever o que ela precisa, bem como de identificar as distorções e prescrever
a cura. Como se vê, um plano urbano, nesses termos, foca fundamentalmente no resultado (uma
cidade mais organizada, melhor), para o qual supõe que prescrições e controles tais como os
citados, são o caminho e a garantia. Planejamento, consequentemente, é altamente
centralizado e verticalizado segundo uma sequência de decisões hierárquicas a partir de cima
(projeto global >> desenho das partes >> controles locais). É relevante notar que os Planos
Diretores não regulam a ação dos agentes públicos, que seguem livres para realizar as ações que
julgam apropriadas e convenientes para cada momento, obedecendo a um outro planejamento,
de mais curto prazo, ou mesmo a planejamento algum.

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O Funcionamento das Cidades

As cidades são descritas pela ciência contemporânea como sistemas complexos, organismos
compostos de muitíssimos componentes, que interagem entre si segundo regras locais
conhecidas, mas cujo macroestado não pode ser pré-determinado, dada a simultaneidade
dessas interações, que interferem umas nas outras gerando propagações e instabilidade.
Cidades podem ser assim descritas porque apresentam comportamento compatível: são
organismos (evoluem, se transformam continuamente) compostos de muitas partes (uma
enorme quantidade de formas construídas e fragmentos de área, uma enorme quantidade de
agentes sociais, operando individualmente e em grupos) que interagem segundo regras locais
conhecidas (cada componente da estrutura física da cidade tem seu próprio projeto e se articula
com outros à sua volta segundo relações mais ou menos estabelecidas; cada indivíduo ou grupo
de indivíduos tem seu próprio interesse, interage com a estrutura física e com outros agentes
de forma local, quer dizer, sem conhecimento do todo). O resultado desse imenso processo, a
cada momento, é uma estrutura nova, isto é, não é decorrência direta de nenhuma das
interações anteriores isoladas, e sim do conjunto das operações dado naquele momento.

Fig. 1: Cada componente da forma urbana observada tem seu próprio projeto, obedece a intenções
precisas e conhecidas; cada componente se relaciona com outros à sua volta segundo regras
determinadas, entretanto o resultado no momento da foto, o macroestado, não tem projeto, não decorre
de uma sequência de operações concatenadas e não poderia ser previsto.

Uma característica notável desses sistemas é a de auto-organização; com efeito, a natureza


caótica de sua dinâmica pode sugerir um resultado aleatório e caótico, entretanto
surpreendentemente, de alguma forma há geração de ordem. Há diversas explicações para a
auto-organização, tais como dissipação, sinergética ou criticalidade. Todas elas têm aplicações
ao fenômeno das cidades, entretanto para fins desta explanação a sinergética oferece a melhor
perspectiva: segundo Haken (1978) sistemas complexos conteriam estados latentes, ou forças,

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que competem entre si, uma situação de equilíbrio momentâneo resultaria sempre da
predominância de um estado ou força sobre os demais que, entretanto, contribuem para a
instabilidade desse equilíbrio, podendo, em circunstâncias, mudar. Cidades são repetidamente
descritas como um fenômeno de concorrência entre duas grandes forças, uma de centralização
(centrípeta) e outra de dispersão (centrífuga), em constante concorrência. Nos períodos de
predominância da força centrípeta, as cidades se compactam, densificam; em períodos de
predominância da força centrífuga as cidades se dispersam e se fragmentam. Na maioria das
situações essas duas tendências podem ocorrer simultaneamente em partes do sistema, de
sorte que as cidade se concentram e densificam, em certos setores, ao mesmo tempo que se
dispersam e fragmentam, em outros.

Vistas dessa forma, as cidades se assemelham a um campo de forças no interior do qual uma
infinidade de agentes operam seus pequenos planos urbanos, tentando interpretar e usar essas
forças em benefício próprio. Batty (2013) refere-se a ‘leis de escala da cidade’ (sete delas), das
quais algumas são particularmente de interesse aqui. Diz que, à medida que as cidades crescem,
4) o preço da terra e a densidade declinam não linearmente a partir de seu pronto de origem
(lei de Von Thunen), 5) interações entre elas crescem como um produto de seus tamanhos,
entretanto com custos de transporte crescentes com a distância (lei de Tobler), 6) seus centros
declinam em população e seus perfis de densidade se achatam (lei de Brussiere), 1) o número
de conexões possíveis aumenta na razão do quadrado da sua população (lei de Moore). Leis da
cidade como essas podem ser descritas como forças atuantes, e de alguma forma concorrentes
(von Thunen X Brussiere, Tobler X Moore, etc.), de maneira que em certas condições um agente
estaria mais vulnerável à ação de uma delas; mudando as condições poderia passar a ser
vulnerável a outra(s).

Forças ou leis das cidades começam a se tornar conhecidas e mapeadas, clareando o


entendimento a respeito do campo de tensões a que os agentes urbanos são submetidos e ao
qual reagem; entretanto quem são e como agem esses agentes? Os menores são indivíduos, em
grande quantidade; no que se refere ao uso da cidade, de suas decisões individuais agregadas
resultam os congestionamentos, as demandas por serviços, a pressão sobre os transportes. São
decisões cotidianas e infinitesimais, mas que agregadas e no longo prazo, contribuem para
mudar a cidade. No tocante à ação transformadora direta, indivíduos também são responsáveis
por instalação de serviços e produção de edificações, igualmente de microescala. Todos
autônomos (não coordenados e ignorantes em relação às ações dos demais), à mercê do campo
de tensões e consequentemente com pouca margem de escolha. Valores da terra (lei de von
Thunen), usos do solo dados (lei de Brussiere) representam sérias restrições à sua liberdade.
Estas também são ações de microescala e pouco impacto, mas que se acumulam e adquirem
relevância como processos espacialmente distribuídos de mais longo prazo.

Indivíduos organizados em grupos amealham maior capacidade de produzir transformações


qualitativas de maior amplitude e de mais curto prazo nas cidades. Organizações de indivíduos
incluem empresas, organizações civis de diferentes naturezas (culturais, esportivas, religiosas,
etc.), inclusive o próprio Estado e sua hierarquia de autoridade e poder. Empresas podem
contornar a lei von Thunen, por exemplo, criando valor imobiliário em lugares não esperados,

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através de investimentos concentrados; governos podem ignorar qualquer uma das leis da
cidade e agir discricionária e arbitrariamente na implantação de infraestruturas e equipamentos,
organizações podem contrariar a lei Brussiere ocupando vazios urbanos de forma intensa e
diferenciada do contexto1.

Olhando para tudo isso, se vê que a natureza mesmo das ações de produção e agenciamento
socioeconômico da cidade é pontual, local e baseada em conhecimento parcial e muitas vezes
precário do organismo como um todo. Os efeitos dessas ações é que são globais, isto é, afetam
o organismo como um todo, mesmo que de forma microscópica e incremental-acumulada. Isto
é nitidamente um processo bottom-up, embora as diversas formas de organização social
imprimam ao processo uma variedade de escalas, ou seja, os agentes não são equiparáveis, o
‘bottom’ de cada um pode variar com essa escala obtida através da cooperação entre agentes
individuais. Mesmo a ação do estado não parece fugir a isso; é importante notar que, embora
as autoridades públicas municipais desenhem os seus masterplans, quer dizer, projetem cidades
unitárias que pressupõem um processo coordenado de produção e uso, a produção real
continua sendo descoordenada e guiada por princípios e interesses individuais e conflitantes.
Mais ainda, a própria ação direta de produção e agenciamento das cidades levada a cabo pelas
autoridades públicas está longe de ser coordenada, harmônica e convergente aos seus
masterplans. Indícios dessa descoordenação são as divisões setoriais (transporte, habitação,
serviços, equipamentos, etc., programados e geridos separadamente), os programas
oportunistas (ações localizadas que obedecem a interesses de um particular governo, ou que
aproveitam linhas de financiamento existentes) e programas orgânicos (ações de atendimento
a demandas que foram geradas pelo desenvolvimento descoordenado da cidade, como por
exemplo transporte público). Ações dos agentes sociais, inclusive do estado, são, no máximo,
de-baixo-para-cima – diametralmente opostas à noção que preside os Planos Diretores, e no
mínimo, alheias a ela. Nessa perspectiva, a última coisa que um Plano Diretor faz é dirigir o
desenvolvimento da sua cidade.

O Campo de Disputas entre Cidades e Planos Diretores

O exposto até agora sugere que planos e cidades caminham em direções e sentidos distintos,
por causa de seguirem princípios opostos: enquanto cidades são formadas e transformadas a
partir de ações locais e decentralizadas, resultando em estados emergentes, planos usualmente
são pensados a partir de estados finais desejados, demandando processos consistentemente
coordenados para obtê-los. Ao submeter cidades a duas lógicas opostas, o planejamento urbano
tradicionalmente praticado no Brasil frequentemente obtém um desenvolvimento urbano
tensionado, que pode, ao invés de potencializar a energia própria dos agentes sociais, produzir

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Na verdade em todos esses casos, os respectivos empreendedores poderiam estar seguindo outras leis
do urbano: a criação de valor obedeceria à lei Smith, relativa ao desenvolvimento desigual, a ação
discricionária do estado convergiria à lei Lefebvre, relativa à equidade, a modificação de centralidade seria
conforme à lei Wheaton, relativa à produção da cidade.

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efeito inverso. A seguir se tenta identificar alguns dos principais focos de tensão entre planos
diretores e cidades, e, na sequência, desdobramentos possíveis.

1. Futuro: aberto ou fechado

A primeira disputa é sobre a maneira de olhar o futuro; aparentemente a ciência sugere um


futuro indeterminado, enquanto os PDs propõem-no previsível e consequentemente
determinado. O futuro aberto propugnado pela ciência do urbano baseia-se nos princípios de
equilíbrio instável, ações locais e macroestados emergentes, ou seja, resultados imprevisíveis a
qualquer momento. Não obstante, as chamadas leis da cidade demonstram que esses
macroestados, embora imprevisíveis, não seriam aleatórios; nesse sentido os processos de
mudança é que poderiam ser mapeados. Batty (2013) sugere que o fisicismo próprio das cidades
– o fato de haver distâncias, diferenças espaciais, hierarquias – é central na dinâmica urbana. Os
efeitos das distâncias, conexões e interações, tanto entre as localizações intra quanto
interurbanas seriam responsáveis por características básicas das cidades e de suas mudanças.
Como diferenças físicas adquirem rapidamente valor social e econômico, transferem para a
ordem social as diferenças e hierarquias espaciais; diferenças locacionais tornam-se privilégios,
distâncias crescentes redundam em custos crescentes, acessibilidade gera congestionamento,
etc. O avanço do conhecimento científico das cidades tem revelado algumas de suas
propriedades e relações fundamentais. Exemplo disso são os estudos de Bettencourt & West
(2010), Bettencourt (2014) sobre alometria, que demonstram haver relações de escala entre
população e infraestrutura, renda, produção de CO2, inovação, entre outros. Essa expansão do
conhecimento da estrutura profunda das cidades reforça, entretanto e de certa forma até
paradoxal, a imprevisibilidade, a sua condição de sistema aberto, dependente de cadeias de
ações. Nessa perspectiva, mesmo conhecendo mecanismos internos (leis da cidade) e relações
estruturais (alometria), não seria possível antever os estados macro (forma, distribuição espacial
dos componentes, estado evolutivo das partes) em qualquer momento do futuro.

Isso tudo não elimina a legitimidade e mesmo a necessidade dos contínuos esforços voltados a
reduzir os constrangimentos físicos que a cidade impõe aos seus usuários mediante o uso de
tecnologia, ou de reduzir os efeitos socioeconômicos desses constrangimentos mediante
políticas públicas. Não se deve confundir planejamento urbano com plano diretor; aquele é uma
estratégia de tratamento dos problemas das cidades, este é um dos instrumentos possíveis de
conduzir esse tratamento.

Nos PDs o futuro parece pré-determinado e expresso em razoável grau de detalhe nos
masterplans. Com efeito, a divisão do território em zonas perfeitamente delimitadas, cada uma
com seus códigos de uso do solo, são consistentes com a noção de predeterminação. As revisões
periódicas a que os planos são submetidos não parecem desfazer essa predeterminação, já que
apenas ajustam aspectos do masterplan ou, no limite, substituem-no por outro, igualmente
predeterminado. PDs concebem uma cidade ideal – claro que nessa cidade ideal está contida
componentes da cidade existente – tanto na sua forma geral (densidade, forma construída)

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quanto na distribuição de usos. A forma geral está prescrita nos parâmetros que controlam a
forma construída (índice de aproveitamento, taxa de ocupação e gabaritos), enquanto o uso do
solo está restrito ao zoneamento de usos. Nem o argumento de que os controles de definição
da forma construída permitiriam diferentes arranjos parece desfazer a determinação do futuro,
já que são efetivamente propostos para serem cumpridos nos seus respectivos limites.
Eventuais ocupações de lotes aquém do limite estabelecido podem ser vistos como falhas do
masteplan, já que a esses limites corresponderiam provisões de infraestrutura e serviços, que
então restariam subutilizados.

Sucessivas mudanças nos planos, tanto aquelas circunstanciais, devidas a demandas não
previstas originalmente, quanto as resultantes de revisões mais amplas e profundas,
demonstram que a cidade idealizada é uma miragem, que os processos de mudança são
contínuos e de natureza qualitativa. A presença de uma cidade pré-desenhada nos PDs parece
ter efeito sedativo na ansiedade que resulta da incerteza quanto ao futuro, bem como
supostamente simplificaria a atividade de planejamento e gestão, uma vez que bastaria todo
mundo cumprir as leis do plano e tudo estaria resolvido.

Uma suposta oposição entre ‘leis do plano x leis da cidade’ poderia levar a algumas
especulações: a) uma convergência entre as duas – uma eventual ‘obediência’ do plano à
dinâmica da cidade – tornaria o plano redundante, uma vez que a dinâmica urbana não seria
afetada; b) uma oposição diametral entre as duas – uma eventual ‘negação’ das leis da cidade
pelo plano – levaria a crises e abandono do plano, uma vez mais, redundante; c) uma divergência
entre as duas colocaria as leis do plano como mais um componente do conjunto de leis a que os
agentes sociais estariam submetidos, levando a resultados imprevisíveis da mesma forma que
ocorreria se não houvesse essas leis do plano. Há suporte na literatura científica para enunciados
que afirmam a suficiência das leis da cidade, afirmando que o livre jogo das forças urbanas é
capaz de prover uma boa alocação de recursos (Mieszkoswski, 1989) e que planejamento
deveria ser apenas suplementar.

Há ainda a considerar que nos planos diretores, a visão de futuro é, majoritariamente, baseada
no passado. Com efeito, normas de uso do solo são prescritas a partir do conjunto de atividades
conhecidas naquele momento; normas de ocupação do solo são prescritas a partir de tendências
observadas, quando não puramente arbitrárias. Não é preciso muita imaginação para concluir
que determinações desse tipo tem vida curtíssima, e demandam alterações constantes para
evitar que uma legislação cause constrangimentos ao desenvolvimento das cidades. A evolução
dos costumes e das técnicas provoca a emergência mais ou menos constante de novas formas
de produção e reprodução social que demandam, assim, emendas e reformulações dos
masterplans.

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2. Controle de Resultados x Controle de Processos

A segunda disputa é sobre onde estaria o foco da atividade de planejamento. Clara e


inequivocamente, os PDs elegem como foco o controle do resultado da atividade dos agentes
sociais agregada. Isto é simples decorrência da própria existência e consistência dos planos
diretores: iniciam por análises da cidade, que supostamente capturam e resumem o sentido de
sua evolução, seguem com produção de diretrizes, que supostamente corrigem os desvios dessa
evolução daquele momento à frente, prosseguem com a formulação do masterplan, que
supostamente prefiguram um ponto de chegada, uma nova configuração harmônica e livre dos
defeitos encontrados na análise e/ou antevistos na avaliação. Finalmente concluem com a
prescrição de normas e instrumentos de controle, que supostamente garantem a convergência
dos agentes sociais e com isso o final feliz. O epicentro de toda essa construção é evidentemente
o masterplan, que representa o futuro a ser buscado, o resultado antevisto.

É importante observar como a noção de resultado se instrumentaliza nos PDs, pois parece existir
um espaço de indefinição no processo de materialização da cidade idealizada. A sequência inicia
no manifesto, continua no masterplan e se conclui no instrumental de controle; os dois
primeiros são genéricos - o primeiro é vastamente genérico, o terceiro componente, ao
contrário, é muito específico ao procurar controlar o porte, a posição e o uso de cada edificação
da cidade. Ao saltar de delineamento genérico do masterplan para a especificidade das normas
de uso e ocupação do solo, os PDs usualmente perdem uma importante instância: a cidade pré-
existente. Veja que as provisões gerais de uso do solo e densidade contidas nos masterplans
tanto podem coincidir com o padrão verificado em cada zona (pouco provável), coisa que as
tornariam pouco efetivas, como podem sinalizar padrões muito diferentes, tanto na direção de
mais densidade quanto de menos. Qualquer dessas últimas provisões são potencialmente
prejudiciais ao tecido urbano, à vida cotidiana e à economia locais. Mudanças tipológicas,
estreitamente ligadas à mudança de densidade, são a principal causa da perda de qualidade de
vida, devido a perdas de insolação, privacidade, vista, aumento de tráfego, ruído, etc.

Limitações do sistema de controle normativo usual dos PDs impõem, em muitas situações, a
adoção de provisões adicionais, como são os clássicos casos de zonas especiais (áreas da cidade
em que os controles normativos são suspensos) que buscam preservar ou alcançar algum tipo
de qualidade não obtenível através dos instrumentos usuais: preservação de patrimônio
arquitetônico, áreas de interesse cultural, etc. Também é o caso dos recentemente adotados
estudos de impacto local. Situações como essas, tratadas como excepcionais, são, na verdade a
grande maioria das situações de transformação urbana que, ao mesmo tempo que buscam
atingir objetivos declarados, causam externalidades, impactam sua vizinhança imediata,
estendida e mesmo grandes áreas urbanas e atingem potencialmente grandes contingentes
populacionais.

Desde o ponto de vista científico, o desenvolvimento urbano é levado a cabo sob a influência
de forças concorrentes; nesse campo de forças, milhões de agentes sociais operam
constantemente de forma autônoma e descoordenada de tal forma que em situações em que
uma das forças desse campo é predominante, a ação desses agentes configura um padrão. Já

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em locais em que forças concorrentes tendem a algum equilíbrio, as ações de transformação
urbana seguem padrão instável. Agentes organizados em grupos obtém efeitos de escala
capazes de alterar o campo de forças, introduzindo elementos de polarização que reconfiguram
o campo. Todas essas ações produzem externalidades, oferecendo, assim, um moto para o
planejamento. Esse moto, ou foco, é identificado como situações de deseconomia, de falência
das partes, ou de elos fracos. Deseconomias são situações clássicas de efeitos de externalidade;
uma determinada ação de agenciamento urbano (adição de estruturas físicas e/ou de
atividades) produz efeitos colaterais prejudiciais ao sistema no qual se insere. Isso abrange
desde situações quase triviais como perda de insolação e privacidade causada pela inserção de
uma edificação nova em um quarteirão previamente ocupado, passando por casos de poluição
(sonora, de efluentes, aérea), até efeitos mais extensos como tráfego, sobrecarga de
infraestrutura e serviços, ou alteração de valores imobiliários. O caso de falência das partes são
casos em que o desenvolvimento urbano levado a cabo sob a influência do campo de forças
conduz à perda de funcionalidade e à decadência de partes da cidade; o caso mais flagrante
disso é a centralidade crescente que conduz à perda de acessibilidade, daí à perda de
centralidade e à degradação do centro. Mobilidade parece ser o elemento-chave deste
processo. Falência de partes da cidade, embora seja resultado esperado do processo urbano (lei
de Wheaton, destruição criativa), pode representar um drama real de grandes proporções para
partes da população envolvida, e mesmo para a cidade como um todo. Elos frágeis são situações
em que, por circunstâncias históricas, infra estruturais, conjunturais, externas ou o que seja, o
desenvolvimento urbano é constrangido por um ou mais de seus componentes sócio espaciais.

Todas essas situações podem ser caracterizadas como problemas derivados do processo mesmo
de desenvolvimento; não poderiam ser antecipados e menos ainda resolvidos no âmbito de um
plano diretor, senão que examinados no momento e contexto em que emergem. Para cada uma,
a eventual solução (eliminação da externalidade, minimização dos efeitos indesejáveis, reforço
dos elos frágeis, etc.) envolveria decisões locais e oportunas, para as quais o aporte de análise
específica e formulação de alternativas são centrais. O campo denominado de “sistemas de
suporte à decisão em planejamento urbano” é, não por acaso, um dos que mais se desenvolveu
nos últimos anos. Sistemas inteligentes de simular situações urbanas de maneira que efeitos
causados por mudanças sejam detectados e avaliados se multiplicam e se tornam disponíveis
para o uso acadêmico e aplicado.

A disputa entre controle de resultado e controle de processo é muito clara, pouco equilibrada,
e sinaliza um vencedor (Alexander et al, 2012); de estudos de impacto tão locais e imediatos
como a verificação dos efeitos de implantação de uma nova edificação no padrão de insolação
dos prédios vizinhos, à análise de efeitos de longo prazo derivados da implantação de grandes
equipamentos e infraestruturas urbanas, os sistemas de suporte à decisão em planejamento
urbano são cada vez menos dispensáveis. Suas vantagens, em relação às prescrições normativas,
são progressivamente evidentes. Na contramão dessa tendência estão as demandas por “um
projeto de cidade”, como se isso fosse possível, antes de apropriado. Clamar por um projeto de
cidade é uma posição arquitetocêntrica completamente injustificável frente à história das
cidades e à evolução do conhecimento.

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3. Processo Decisório Excludente x Includente

Um terceiro ponto de disputa entre PDs e cidades é o processo decisório envolvendo o


desenvolvimento urbano. Um plano diretor tem, como limite mínimo, um autor, e no máximo
algumas dezenas que, somados às pessoas consultadas durante o processo de elaboração, pode
chegar a algumas centenas. Nesta melhor hipótese, apenas uma muito pequena minoria terá
alguma base racional e técnica para entender algumas implicações de um plano; a grande
maioria consultada opina sobre seu bairro, sem qualquer noção. Nos processos participativos
normalmente praticados, moradores são chamados a se manifestar sobre as propostas de
futuro de sua cidade, contidas no PD e expressas na forma de abstrações genéricas – densidades,
usos do solo, gabaritos de altura, basicamente. Não é difícil concluir que isso constitui um
simulacro de participação, um tipo de participacionismo de fachada, destinado a dar uma
aparência politicamente correta a um processo basicamente excludente. Após elaborados, os
PDs constituem conselhos de cidadãos, de representantes do governo e de entidades civis, para
deliberar sobre algumas questões previstas em lei, envolvendo interpretação de artigos,
omissões ou casos especiais. Conselhos tem, também, algumas dezenas de membros; clamores
por aumento de participação resultam, eventualmente, em consultas a associações de
moradores e de empresários, dificilmente chegando a questões reais com pessoas realmente
envolvidas nelas.

Quando participação nas decisões é posto em foco, a condição básica necessária seria a de que
as pessoas diretamente afetadas por uma proposta qualquer de agenciamento urbano sejam
ouvidas e tenham algum poder de decisão sobre ela. Propostas de agenciamento urbano, seja
na ocupação (edificações), seja no uso (atividades) constituem problemas reais e oportunos, ou
seja, caracterizam intenções de mudança iminente dos locais onde pretendem ocorrer e se
manifestam no momento imediatamente anterior à sua ocorrência real. Como tal, são situações
perfeitas para realizar participação de fato, com participantes reais envolvidos com problemas
reais que os afetam diretamente. O caráter includente inicial deste tipo de decisão está no fato
de que sempre será possível definir quem serão os decisores para cada situação; consultas
diretas a pessoas diretamente envolvidas tendem a impasses, já que consenso sobre questões
polêmicas e multifacetadas tais como as urbanas, é improvável. Impasses demandam
mecanismos de superação situados fora do limite restrito dos imediatamente interessados,
como demandam formas desenvolvidas de inferir consequências sociais e econômicas dos
agenciamentos propostos que conduziram ao impasse. A disputa, então, situa-se em quem
decide e, sequencialmente, como a decisão é tomada. Num PD em elaboração, algumas pessoas
decidem a partir de uma proposta técnica abrangente para a cidade toda, quando então podem
eventualmente ter algumas de suas preferências acolhidas. Problemas urbanos da vida real,
quando acontecem, não têm um mecanismo específico de resolução, visto que a maioria não
são considerados problemas à luz da lei do PD aprovada. É necessário que haja mobilização,
sensibilização de autoridades e opinião pública suficientemente fortes para mudar a lei, criando
precedentes e exceções. Numa cidade real, problemas ocorrem em função de ações propostas
em lugares e tempos específicos; como tal envolvem pessoas diretamente afetadas por essas

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ações, tendem a gerar impasses que precisam ser resolvidos mediante mecanismos
institucionais abertos e objetivos.

Planejamento urbano tem sido definido como um problema vicioso (wicked problem, Rittel &
Webber, 1973). Segundo definição dos autores, a busca por bases científicas para confrontar
problemas sociais está fadada ao fracasso, por causa de sua natureza viciosa. Problemas sociais
não podem ser definitivamente descritos, numa sociedade pluralística não existe o bem público
consensual, não há definição objetiva de equidade, políticas que respondem a problemas sociais
não podem ser classificadas simplesmente como certas ou erradas, a rigor não há soluções, no
sentido de respostas objetivas. A resolução de um problema vicioso conduz a outro problema,
ainda mais complicado, um círculo de interdependências contínuo. Essas definições são muito
adequadas à prática tradicional do planejamento urbano brasileiro; qualquer plano diretor inicia
com uma lei que contém as provisões do manifesto, do masterplan e dos instrumentos de
controle, e acumula, ao longo do tempo, uma coleção infindável de emendas, interpretações,
decretos, atos do executivo, etc., criando um emaranhado de determinações desconexas e
muitas vezes conflitantes.

Poucos discordam da ideia de que planejamento urbano tem âmbitos técnicos, políticos e
administrativos em proporções semelhantes. Isto significa que a sua natureza viciosa, de que
falam Rittel Webber, situa-se no fato que nem a definição dos problemas, nem as suas soluções
podem ser encontradas apenas num dos âmbitos. Qualquer encaminhamento produzido numa
das esferas precisa ser validado nas demais, entretanto qualquer definição, seja técnica, política
ou administrativa, ao ser transferida para uma outra esfera, recebe novos componentes, novas
definições que normalmente requerem a sua volta à esfera original, num círculo vicioso.
Qualquer definição produzida em qualquer das esferas do planejamento podem e normalmente
são (legitimamente) contestadas nas outras esferas. Os PDs iniciam sua existência e trajetória
com definições e afirmações técnicas (o plano propriamente dito), supostamente corroboradas
politicamente pela participação. Posteriormente, sua implementação deveria ocorrer mediante
procedimentos administrativos simples: a verificação da legalidade de qualquer proposta de
agenciamento urbano. A supremacia da esfera técnica, que, ao prescrever uma visão de futuro
à cidade, restringe os demais agentes sociais, põe em cheque a dimensão política. Esta
obviamente não se resolve na simples corroboração das propostas técnicas no momento de
formulação do plano, e se manifesta cotidianamente cada vez que uma intenção de
agenciamento urbano se choca com interesses locais específicos, mesmo seguinto as normas
urbanísticas. Deste choque resultam as emendas, as intepretações, as resoluções e as exceções
adicionadas ao plano original. Como consequência, a esfera administrativa, que se supunha
simples, torna-se na verdade um labirinto demorado e custoso de ser vencido.

O equilíbrio entre as esferas técnica, política e administrativa envolve basicamente: a) aceitar a


existência de agentes sociais com diferentes visões de cidade, demandas, preferências e
interesses, bem como considerar suas propostas de agenciamento urbano tão legítimas quanto
qualquer outra, inclusive aquelas formuladas pelas autoridades públicas (esfera política), b)
construir procedimentos transparentes capazes de propiciar a consideração de qualquer
proposta de agenciamento urbano por todos os demais agentes afetados por ela, de maneira

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adequada (esfera administrativa), e c) produzir meios de avaliar propostas de agenciamento
urbano desde o ponto de vista de seus impactos sobre a cidade pré-existente e sobre os
moradores e usuários afetados (esfera técnica). Como se pode ver, a missão principal da esfera
técnica é prover meios de entender, interpretar e avaliar propostas de transformação urbana,
vindas de todo e qualquer agente social. Isso não significa que a autoridade pública deveria
renunciar à sua capacidade de formular, pelo contrário, ela é um agente social, talvez o mais
poderoso dentre todos que atuam sobre a cidade, mas significa que sua primeira missão é
instrumentar tecnicamente os demais agentes.

4. Observações Finais

Foi dito aqui que os Planos Diretores, desses tradicionalmente utilizados no planejamento
urbano brasileiro, são feitos de três partes, um manifesto, um masterplan e um código de
normas e controles. Esse aparato técnico é construído de-cima-para-baixo, por uma equipe
técnica, contrariando a natureza intrínseca das cidades, que são construídas de-baixo-para-cima
por meio de adições pontuais discretas, levadas a cabo por inúmeros agentes atuando isolados
e descoordenadamente. Dessa oposição emergem tensões capazes de comprometer a eficácia
desses planos. Resumidamente, essas tensões abrangem, em primeiro lugar, uma supremacia
dos aspectos técnicos sobre os demais aspectos políticos e administrativos. A omissão política
dos PDs, causa de mais tensão, está aparente não apenas no participacionismo de fachada
normalmente utilizado, que serve apenas para corroborar as decisões técnicas anteriormente
tomadas, mas também no alijamento dos agentes sociais das decisões concretas sobre
problemas reais que os afetam. Finalmente, como decorrência da má acomodação política nos
mecanismos de resolução dos problemas urbanos, os procedimentos administrativos,
usualmente desdenhados nos planos, emergem como um labirinto de ações erráticas causadas
pelas sucessivas emendas e mudanças das normas e mesmo dos masterplans.

Foi sugerido, em sequência, que o planejamento urbano deveria equilibrar os aspectos políticos,
técnicos e administrativos, de forma que um sistema inclusivo de decisões, envolvendo os reais
interessados nos momentos oportunos, apoiado em procedimentos administrativos objetivos e
transparentes, possa ocorrer. Nessa visão, a técnica de planejamento deveria mudar de foco e
migrar da formulação de um masterplan geral, para um sistema de apoio às decisões capaz de
informar os decisores a respeito dos impactos que qualquer proposta de transformação da
cidade poderá determinar. Isso não significa diminuir a importância do componente técnico na
composição do processo de planejamento, ao contrário, significa exigir dele a capacidade de
iluminar cada problema específico de planejamento, desde os diferentes pontos de vista dos
envolvidos. Esta é uma missão formidável tecnicamente e altamente meritória social e
economicamente. O componente político, hoje praticamente informal, deveria garantir o direito
de qualquer agente social de propor agenciamento urbano segundo seus valores e interesses,
bem como garantir, de outro lado, que todos os interessados, particularmente aqueles afetados
por esse agenciamento, participem da decisão a respeito de sua viabilidade. Finalmente o
componente administrativo deveria se constituir num conjunto de regras decisórias, espécie de

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regras do jogo, onde o foco é posto nos procedimentos. Isso envolve determinar como qualquer
agente social submete sua proposta, como ela é levada ao conhecimento público, como se
determina o colégio decisório, ou seja, como se identifica os agentes afetados pela proposta,
como se verifica os seus impactos, como se elimina aqueles considerados inaceitáveis, se
minimiza aqueles considerados indesejáveis e se maximiza os demais considerados desejáveis,
e finalmente como se decide.

Visto dessa forma, o planejamento urbano prescindiria de um plano diretor, visto que o
masterplan não faria mais sentido, e as normas, dele dependentes tornar-se-iam irrelevantes.
Isso não significa que as autoridades públicas deveriam deixar de formular e propor ações de
transformação das cidades, ao contrário, autoridades públicas municipais ou metropolitanas são
agentes sociais encarregados da gestão das cidades, o que inclui essas ações voltadas a melhorar
a eficiência, a equidade, a qualidade espacial e a condição de vida das cidades e seus habitantes.
Como tal, autoridades públicas deveriam se comportar exatamente como qualquer outro agente
social, formulando seus projetos, propondo-os e submetendo-se ao mesmo procedimento de
decisão.

Referências

Alexander, E. R., Mazza, L., Moroni, S., 2012, Planning Without Plans? Nomocracy or Teleocracy
for Social-Spatial Ordering, Progress in Planning 77, 37-87
Batty, M., 2013, The new Science of Cities, MIT Press
Bettencourt, L, 2014, The Origins of Scaling in Cities, Science 340, 1438-1441
Bettencourt, L., West, J., 2010, A Unified Theory of Urban Living, Nature 467, 912-913
Haken, H., 1978, Synergetics, an Introduction, Springer
Mieszkoswski, P., 1989, Urban economics, in The Palgrave dictionary of economy, McMillan
Rittel, H W J., Webber, M., 1973, Dilemmas in a General Theory of Planning, Policy Science 4,
155-169

Nota

Na seção dedicada ao exame do funcionamento das cidades, em nota de rodapé, há referência


a três leis da cidade ausentes no texto do autor citado. Elas se referem aos seguintes autores e
obras:
Lefebvre, H., 1968, Le Droit à la Ville, Anthropos
Smith, N., 1984, Uneven Development: Capital and the Production of Space, Blackwells
Wheaton, W., 1982, Urban Spatial Development with Durable but Replaceable Capital, Journal
of Urban Economics 12, 53-67

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