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Diálogos Latinoamericanos 7

Bosi, Alfredo. Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das Letras,


2002. 297 pp. ISBN 85-359-0283-X

Jaime Ginzburg*

Em Literatura e resistência, Alfredo Bosi apresenta um conjunto de


estudos, contemplando uma ampla pauta de investigações. Os leitores que
acompanham a trajetória do pesquisador, que vem publicando há mais de
três décadas, encontrarão nesse livro novas elaborações para temas
anteriormente tratados. Essa trajetória é marcada por profunda e rara
coerência. É possível encontrar, ao longo do livro, várias marcas de campos
de interesse do autor. Sua vasta formação em Letras Italianas percorre o
livro, expressa em observações e citações.
No entanto, essa publicação traz algo novo na trajetória do autor.
Dentre todos os seus livros, este é o que mais longe foi, em grau de
profundidade e autoconsciência, na inserção política do discurso crítico. A
unidade dos trabalhos, escritos em diferentes momentos, é observada por
sua inclinação para um pensamento crítico que contraria despotismos,
regimes autoritários, políticas violentas, e mostra indignação perante os
efeitos perversos do avanço do capitalismo no século XX. O fato de um
livro com essa conformação ser publicado em 2002 no Brasil está
diretamente associado à perspectiva de necessidade de renovação,
fortemente disseminada no campo da política, com as campanhas eleitorais
e as expectativas de transformações nas estruturas de poder. Em um
momento em que a sociedade brasileira manifestou, em suas contradições,
necessidade de agudas transformações, Alfredo Bosi expressou, em
Literatura e resistência, uma séria determinação em pensar os parâmetros
do exercício da atividade crítica no Brasil.
A sustentação teórica do livro retoma alguns dos referenciais mais
importantes do autor – Croce, Hegel, Gramsci, Carpeaux. É nítida, e
fundamentalmente importante nesse livro, a determinação em dialogar com
a Escola de Frankfurt, em especial com a concepção de dialética negativa
de Theodor W. Adorno.
A noção de resistência, apresentada no título do livro, remete a um
célebre trabalho do autor, O ser e o tempo da poesia, que centra um de seus
capítulos no mesmo conceito. Nesse livro publicado durante a ditadura
militar, o autor apresenta uma reflexão teórica referente aos elementos que,
articulando uma contrariedade a forças repressivas de dominação
ideológica, poderiam ser encontrados em um texto poético. Discutir temas
como o pensamento utópico, em 1977, consistiu em uma iniciativa de força
política, que foi exercida com a necessária seriedade.
A retomada dessa discussão em 2002, explicitada no quarto capítulo
de Literatura e resistência, indica uma afinidade entre o pensamento
construído como crítica ao regime dentro do autoritarismo militar, e o
pensamento renovador, na transição do país para novas perspectivas de
ação política. A sociedade brasileira ainda não sabe com clareza quais os
resultados, em termos de mudanças sociais, que o governo de Luis Inacio
Lula da Silva, sustentado por uma história de militância de esquerda, pode
trazer. É muito importante, nessa situação de incerteza, que a pesquisa
literária, calcada em sua capacidade de autocrítica, estabeleça, com a
máxima clareza possível, seus pressupostos e critérios de valor. O livro de
Alfredo Bosi é fundamental para a viabilidade desse estabelecimento.
Entre os autores examinados no livro, estão Padre Antonio Vieira,
Lima Barreto, Euclides da Cunha e Graciliano Ramos. Continuando a
adotar uma orientação metodológica encontrada em Dialética da
colonização (1992), o autor situa as condições de produção no contexto
histórico. Dentro do contexto, são observadas tensões entre diferentes
valores, conflitos entre forças sociais. A abordagem das obras permite
verificar, no cerne do trabalho da escrita, um enfrentamento de pressões
externas.
Em alguns capítulos, Bosi desenvolve em termos teóricos os critérios
de avaliação que emprega nos estudos de crítica. Em um capítulo intitulado
Narrativa e resistência, o autor elabora conceitualmente a presença de
tensões em obras de ficção. Enumerando vários exemplos, Bosi motiva o
leitor a observar, no sistema literário brasileiro, a constância e força com
que tensões aparecem e atribui a necessária relevância a elas.
Uma das marcas de atualidade do livro está na capacidade de situar
os problemas propriamente literários, dentro de um quadro amplo e
complexo, a produção cultural em escala industrial. Mídia e mercadoria
aparecem no décimo-terceiro capítulo do livro, e o leitor de Literatura e
resistência poderá dimensionar, com as idéias do autor, a dificuldade de
especificar o objeto da reflexão literária em um mundo dominado pelos
interesses de circulação de capital.
A conformação política do livro, que constantemente é apontada
pelas inquietações ideológicas que surgem com a leitura de obras
fundamentais, não se restringe à atividade teórico-crítica. Em uma das
passagens mais fortes da obra, Bosi registra um depoimento. Na década de

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1970, o autor realizou uma experiência de formação de leitores, junto a
trabalhadores em Osasco (SP), abrindo um caminho de aproximação das
Letras para pessoas para quem o sistema escolar e acadêmico é inacessível.
O relato sensível, elaboração de um resgate de memória, referente a
sua experiência individual e seu impacto coletivo, aproxima o pesquisador
do professor, e expõe a preocupação do autor em diminuir o campo que
separa a cultura erudita das classes populares. A perspectiva de Bosi,
construída a partir de Gramsci, contraria a convencional hierarquia que
mantém os intelectuais em um espaço à parte da população em geral. Ao
fomentar uma vontade de saber no grupo com que trabalhou, o autor
observa a formação de competências intelectuais, longe do sistema
acadêmico. A vontade de saber, no caso, é impregnada por necessidades
sociais.
Neste relato encontramos uma espécie de núcleo geral de orientação
do livro. Assim como o saber que surge nas classes populares, diante dos
olhos do autor, todo o livro é impregnado por necessidades de mudanças
sociais. Como fica claro especificamente em seu estudo sobre Graciliano
Ramos, Bosi sustenta nesse livro uma concepção de escrita em que a
consciência tem um papel fundamental e constitutivo. Estar ciente dos
conflitos reais em que a escrita se envolve permite elaborar com
determinação um olhar crítico voltado para necessidades de mudanças
sociais.

* Professor de Literatura – Universidade Federal de Santa Maria. Doutor em Letras

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