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Revista Signum, 2019, vol. 20, n. 1.

O LIVRO DOS DOZE SÁBIOS: BREVES APONTAMENTOS


ACERCA DOS ACONSELHAMENTOS POLÍTICO-MILITARES
CONTIDOS NO ESPELHO DE PRÍNCIPE CASTELHANO-
LEONÊS PRODUZIDO DURANTE O REINADO DE
FERNANDO III (1217-1252)

THE BOOK OF THE TWELVE SAGES: BRIEF NOTES ON THE POLITICO-


MILITARY ADVICE CONTAINED IN THE CASTILIAN-LEONESE
PRINCE'S MIRROR PRODUCED DURING THE REIGN OF FERDINAND III
(1217-1252)

Rafael Costa Prata


Universidade Federal do Mato Grosso

Resumen: No Ocidente Medieval, a Abstract: In the Medieval Occident, from


partir da segunda metade do século XIII, the second half of the thirteenth century,
a “literatura didática” começa a florescer "didactic literature" began to flourish
abundantemente e, por isso, a ser abundantly and, therefore, to be
produzida no seio das cortes medievais. produced in the midst of medieval courts.
Em Castela-Leão, estas obras sapienciais In Castile-Leon, these sapiential works
também encontraram grande espaço nos also found great space in the scriptoria,
scriptoria, sendo cada vez mais being increasingly sponsored by the
patrocinadas pelos monarcas a fim de monarchs in order to serve as
servirem como reflexões pedagógicas por pedagogical reflections on the part of the
parte dos futuros herdeiros do trono e do future heirs of the throne and the royal
cetro régio. Neste sucinto artigo, sceptre. In this succinct article, we will
contemplaremos os aconselhamentos de contemplate the political-military advice
natureza político-militar contidos no contained in the prince's mirror, The
espelho de príncipe, O Livro dos Doze Book of the Twelve Wise Men, produced
Sábios, produzido durante o reinado de during the reign of Fernando III (1217-
Fernando III (1217-1252), com o 1252), with the purpose of serving as a
propósito de servir como um singular unique reading manual during the
manual de leitura durante a formação do formation of the royal firstborn, Prince
primogênito régio, o príncipe Alfonso Alfonso (1221-1252), who would
(1221-1252), o qual se tornaria o become the monarch Alfonso X (1252-
monarca Alfonso X (1252-1284) do reino 1284) of the kingdom of Castile-Leon.
de Castela-Leão. Keywords: Book of the Twelve Sages,
Palavras-chave: Livro dos Doze Sábios, Ferdinand III (1217-1252), Prince
Fernando III (1217-1252), príncipe Alfonso (1221-1252)
Alfonso (1221-1252)

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Introdução
Determinado a rapidamente suprimir mais uma daquelas rebeliões
aristocráticas orquestradas nos confins do reino castelhano-leonês, o monarca
Fernando III marchara com as suas hostes em direção ao sul de Castela, onde se
encontravam os focos senhoriais de onde emanavam os conflitos encabeçados por
dom Gonçalo Pérez, o senhor de Molina.1 Em sua companhia se encontravam, além
dos mais poderosos aristocratas, que habitualmente engendravam as fileiras
militares das hostes régias, a princesa Beatriz da Suábia (1219-1235) e a rainha
Berenguela (1180-1246).2
Entretanto, esta imperativa marcha bélica fora subitamente interrompida
mediante a emergência de um episódio de enorme magnitude na órbita do reino: o
nascimento do primogênito régio. Ao entrar na cidade imperial de Toledo, o
monarca Fernando III postergara decisivamente o passo da expedição bélica para
que a sua esposa, a princesa Beatriz da Suábia, que se encontrava diante das
contrações do iminente parto, encontrasse o ambiente favorável para trazer à luz
dos súditos do reino castelhano-leonês, o primeiro dos herdeiros de Fernando III.
O infante Alfonso nascerá no dia 23 de novembro de 1221, em meio às
festividades do dia de São Clemente. Seu nome fora concedido por sua avó, a rainha

1 PCG 1035: “El capítulo de la rebeldia de unos grandes omnes de Castiella, et de la muerte del
conde dom Gonçaluo: Et despues de cabo, pasado un anno, Gonçalo Perez, sennor de Molina, por
conseio del contra el rey dom Fernando commo non deuie; et la parte del reyno de Castiella que era
vezina et frontera de Molina corriegela et robauagela et parauagela mal. Et enbio dezir el rey
sobresto a Gonçaluo Perez de Molina que se dexa se daquellos fechos tales et se castigase, et
emendase los males que auie fechos; et el non quiso fazer. E el rey dom Fernando saco su hueste
sobrel.”. ALFONSO X. PRIMERA CRÓNICA GENERAL DE ESPAÑA QUE MANDÓ COMPONER ALFONSO X
EL SABIO Y SE CONTINUABA BAJO SANCHO IV EN 1289. Ed. Ramón Menéndez Pidal. Tomo II.
Madrid: Bailly-Bailliere é Hijos, 1906, p.719.
2 A princesa Beatriz da Suábia (1219-1235) “era hija del duque de Suabia y rey de Alemania, Felipe,

que había disputado sin éxito el título imperial a Otón IV de Brunswick, y nieta, por tanto, del gran
Federico I Barbarroja. Su madre Irene era hermana del emperador bizantino Alejo IV. Nacida
probablemente en 1198, Beatriz era tres años mayor que Femando III”. GONZÁLEZ JIMÉNEZ,
Manuel. Alfonso X el Sabio. Barcelona: Ariel, 2004, p.15; A rainha Berenguela (1180-1246) era “filha
de Alfonso VIII (1155-1214, rei de Castela desde 1158) e de Leonor Plantageneta (1162-1214,
rainha consorte de Castela desde 1176) além de infanta, regente e posteriormente rainha de
Castela, Berenguela foi também rainha consorte de Leão em função do seu casamento com o rei
Alfonso IX (1171-1230, rei de Leão desde 1188)”. RUI, Adailson José. Berenguela: de instrumento
de aliança e paz a rainha e articuladora política dos interesses do reino de Castela. Revista Diálogos
Mediterrânicos, n. 10, p.174-188, 2016, p.175. Disponível em:
<http://www.dialogosmediterranicos.com.br/index.php/RevistaDM/article/view/196/207>.
Acesso em: 05 jun. 2020.

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Berenguela, em expressa homenagem ao monarca Alfonso VIII (1158-1214), o


Nobre, aclamado por seu protagonismo na vitoriosa Batalha de Las Navas de
Tolosa (1212).
Poucos dias após o seu nascimento, seguindo o costume secularmente
praticado pelos monarcas medievais, o primogênito Alfonso fora entregue aos
cuidados de uma reputada família aristocrática, encabeçada por Gárcia Alvarez e
Urraca Pérez, a fim de que esta aristocrata exercesse o solene papel de ama de leite
durante os seus primeiros meses de existência. 3
Em meio a estes cuidados iniciais, inclusive, o infante Alfonso receberá, no
dia 21 de março de 1222, na cidade de Burgos, as esperadas homenagens por parte
do corpo político do reino, nas quais se efetuaram os juramentos de lealdade e
fidelidade a sua figura enquanto herdeiro do trono castelhano-leonês.
Não se deve estranhar a velocidade com que estes cerimoniais de
homenagem eram orquestrados em direção aos primogênitos régios. Tratava-se de
um mecanismo habitual de reprodução e fortalecimento da fidelidade do corpo
político frente ao poder monárquico, a fim de se consolidar os fundamentos
simbólicos e políticos que engendrariam as complexas relações de poder firmadas
entre os segmentos do reino. Como destacara Bloch:

A Homenagem era o verdadeiro criador da relação vassálica, sob o


seu duplo aspecto de dependência e de proteção. O núcleo
formado deste modo girava, em príncipio, o tempo que duravam
as duas vidas que ele unia.4

Seguindo o curso destas singulares incumbências outorgadas às dignidades


aristocráticas, o monarca Fernando III entregará então a educação do infante
Alfonso a um aio, Dom García Fernández de Villamayor, e a sua esposa, Mayor
Arias, para que aquele fosse devidamente educado distante do caloroso clima das

3 Os juristas alfonsinos sublinhariam a importância da concessão dos cuidados iniciais dos


primogênitos as amas de leite. Segunda Partida, VII, III: “En que manera deuen ser guardados los
fijos de los Reyes: E esto es, en darles amas sanas, e bien acostumbradas, e de buen linage: ca bien
assi como el niño se gouierna e se cria en el cuerpo de la madre fasta que nasce; otrosi se gouierna y
se cria del arpa, desde que le da la teta fasta que gela tuelle...”. LAS SIETE PARTIDAS DEL REY DON
ALFONSO EL SABIO, cotejadas con varios codices antiguos por la Real Academia de la Historia. Tomo
II. Madrid: En la Imprenta Real, 1807, p.45.
4 BLOCH, Marc. A sociedade feudal. Lisboa: Edições 70, 1979, p.170.

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cortes, em questão, nos senhorios possuídos por esta família aristocrática em


Celada e Villaldemiro,5 nas proximidades de Burgos. Este aristocrata havia
ocupado a posição de mayordomo6 da rainha Berenguela, a avó paterna de Alfonso,
tendo sido escolhido para esta tarefa precisamente porque “Doña Berenguela tenía
una gran estima y confianza en este noble castellano, al cual encomendó la
educación caballeresca de su nieto y futuro rey”.7
Sob a tutela de García Fernández de Villamayor, o infante Alfonso receberá
uma formação de base humanística, composta pelas chamadas artes liberais que
engendravam o trivium (Gramática, Retórica, Dialética) e o quadrivium
(Aritmética, Geometria, Música e Astronomia).8 Estes blocos educacionais
sucessivos e complementares, que se encontravam plenamente destinados aos
entes aristocráticos, tomaram esta forma:

Por volta do ano oitocentos, quando se inaugurou o império de


Carlos Magno, primeira tentativa de reorganizar o Império
Romano, e são o resultado de lenta maturação a partir de fontes

5 O próprio monarca Alfonso X, ao conceber uma gama de isenções a população de Celada del
Camino em 1255, recordaria com grande satisfação e agradecimento os anos de sua infância que
passara sob os cuidados de seu ayo Dom García Fernández de Villamayor, e a sua esposa, Mayor
Arias, ao mencionar que concedera todas aquelas isenções “porque dom García Fernandez e su
muger domna Mayor Arias me criaron e me fizieron muchos seruicios e sennaladamiente porque
me criaron en Villaldemiro e en Celada”. MARTÍNEZ DÍEZ, G. Y GONZÁLEZ SÁNCHEZ, V. Monasterio
cisterciense de Santa María la Real, Villamayor de los Montes: colección diplomática. Burgos:
Monasterio de Santa María la Real de Villamayor de los Montes, 2000, documento 65.
6 Tratavam-se das dignidades aristocráticas nomeadas pela casa monárquica para administrarem

“las rentas pertenecientes a los derechos reales; a ellos debían rendir cuentas tanto de los oficiales de
Casa del Rey como los otros del reino (adviértase que su función trascendía el ámbito puramente
doméstico)”. VÁZQUEZ CAMPOS, Braulio. “A los grandes debe poner en los grandes ofícios”:
Nobleza, Administración y Política en el reinado de Alfonso X. Alcanate: Revista de Estudios
Alfonsíes, 9, 211-259, 2014/2015, p. 223. Disponível em:
<https://idus.us.es/handle/11441/81970;jsessionid=F7049854AB5F6482A09276BDD8714864?>.
Acesso em: 05 jun. 2020.
7 SALVADOR MARTÍNEZ, H. Alfonso X, el Sabio: una biografía. Madrid: Ediciones Polifemo, 2003, p.

27.
8 Dom Manuel, sobrinho de Alfonso X, mencionaria este costume praticado pelos monarcas

castelhano-leoneses em relação à educação dos herdeiros em seu Libro de las Armas. Conforme
este: “Et porque estonce non era costumbre de criar los fijos de los reyes con tan grand locura nin
con tand ufañia como agora, toviendo que las grandes costas que las debian poner en servicio de
Dios et en acrecentamiento de la santa fe et del regno, et que lo que se podia excusar de la costa que
lo debian guardar para esto, criaban sus fijos guardando la salud de sus cuerpos lo mas
simplemente que podian; así que, luego que los podian sacar de aquel logar que nascian, luego los
daban á alguno que los criase en su casa”. DOM JUAN MANUEL apud BLECUA. Pedagogos cristianos
y sus escritos sobre educación. In: BARTOLOMÉ MARTÍNEZ, Bernabé (Dir.). Historia de la acción
educadora de la Iglesia en España.I: Edades Antigua, Media y Moderna. Madrid: BAC, 1995, p.77.

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pitagóricas e possivelmente anteriores, com decisivas influências


platônicas, aristotélicas e agostinianas e complementações
metodológicas de Marciano Capela (início do século V), Severino
Boécio (480-524) e Flávio Cassiodoro (490-580), até chegar a
Alcuíno (735-804), o organizador da escola carolíngia em Aix-en-
Chapelle (...) O trivium inclui aqueles aspectos das artes liberais
pertinentes à mente, e o quadrivium, aqueles aspectos das artes
liberais pertinentes à matéria. Lógica, gramática e retórica
constituem o trivium; aritmética, música, geometria e astronomia
constituem o quadrivium. A lógica é a arte de pensar; a gramática,
a arte de inventar símbolos e combiná-los para expressar
pensamento; e a retórica, a arte de comunicar pensamento de uma
mente a outra, ou de adaptar a linguagem à circunstância. A
aritmética, ou teoria do número, e a música, uma aplicação da
teoria do número (a medição de quantidades discretas em
movimento), são as artes da quantidade descontínua ou número.
A geometria, ou teoria do espaço, e a astronomia, uma aplicação
da teoria do espaço, são as artes da quantidade contínua ou
extensão.9

Paralelamente a esta formação humanística, o infante Alfonso ganhará de


seu aio uma série de particulares ensinamentos diretamente relacionados à função
régia a qual estava destinado a ocupar: os fundamentos das chamadas artes das
guerras. Durante a década, que permaneceria sob os cuidados de García Fernández
de Villamayor e de outros intelectuais, o infante Alfonso aprenderia então os
necessários conhecimentos militares e bélicos que deveriam possuir os monarcas,
a partir da leitura dos clássicos, como a Epitoma Rei Militaris do tratadista militar
romano Flávio Vegécio Renato (IV D.C.), assim como também sobre os costumes
cavalheirescos e os conhecimentos políticos e diplomáticos necessários para agir
perante o corpo político do reino.
Como bem destacara Salvador Martínez:

El rey más religioso de la España medieval, y el único que ha


tenido el honor de llegar a los altares, [refere-se a Fernando III, o
Santo], no quiso que su primogénito fuese educado al abrigo de un
monasterio, o bajo la tutela de algún insigne prelado y ni siquiera
por los grandes maestros de la escuela de artes o la Escolástica
parisina. Por el contrario, todo parece indicar que la educación de
Alfonso fue encomendada a figuras laicas, por cierto, más

9 JOSEPH, Miriam. O Trivium: as artes liberais da lógica, gramática e retórica: entendendo a natureza
e a função da linguagem. São Paulo: É realizações, 2008, p.27.

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conocidas por sus virtudes guerreras, que como letrados.10

A aprendizagem “precoce” por parte dos herdeiros régios, sobretudo do


primogênito, frente ao manejo das armas, se apresentava como um estágio crucial
no processo educacional de um príncipe medieval. Esta complexa e simultânea
formação humanística e guerreira pela qual passara o primogênito Alfonso durante
os seus primeiros anos de existência, “se justifica se considerarmos que, na Idade
Média, criar e educar um futuro rei significa, antes de tudo, formar um guerreiro e
ao mesmo tempo um perfeito cavaleiro cristão”.11
A fim de complementar esta ampla formação perpetrada pelos educadores
alfonsinos, o monarca Fernando III, encomendara aos intelectuais a composição de
um specula principium para ser entregue aos seus herdeiros,12 em especial, ao seu
primogênito, o príncipe Alfonso, para quem estava destinado o encargo de futuro
monarca de Castela-Leão.
O monarca castelhano-leonês Fernando III (1217-1252) recorrera então ao
suporte de um mecanismo educacional que se encontrava em plena consolidação
instrumental no Ocidente Medieval, haja vista que:

Os espelhos de príncipes foram produzidos ao longo de toda a


história, porém na Idade Média com os carolíngios, no século IX,
adquiriram a forma que lhes conferiu o status de gênero literário
definido e independente de caráter pedagógico, com tratados de
educação de príncipes, agregando no final do medievo,
especialmente após o século XIII, características eminentemente
políticas, convertendo-se então em verdadeiros tratados político
pedagógicos.13

Segundo Cassirer, esta literatura didática se consolidara enquanto


instrumento de educação monárquica “entre os anos 800 e 1700 [quando]

10 SALVADOR MARTÍNEZ, op.cit, p.54.


11 REIS, Jaime Estevão dos. Território, legislação e monarquia no reinado de Alfonso X, o Sábio (1252-
1284). Tese (Doutorado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras de Assis,
2007, p. 27.
12 A obra De clementia, escrita entre 55 e 56 d.C., por Lucius Sêneca, preceptor de Nero, pode ser

apontada como a obra que possivelmente estabelecera à expressão “espelho de príncipes”. SOARES,
Nair de Nazaré Castro. O príncipe ideal no século XVI e a obra de D. Jerónimo Osório. Coimbra:
Instituto Nacional de Investigação Científica, 1994, p.33.
13 HAHN, Fábio André. Espelhos de Príncipes: considerações sobre o gênero. História e- História, v.

04/11, p. 1-9, 2008, p.1.

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publicaram-se perto de mil livros destinados a ensinar o rei como se devia


conduzir a fim de ser ‘ilustre no seu elevado cargo’”14 Lopes destaca que, durante a
Idade Média, os espelhos de príncipes possuíam uma estrutura específica:
“Produzidos por clérigos, dedicam-se a realçar as virtudes cristãs para a boa
condução do governo por parte de príncipes, reis e imperadores”.15
Ao analisarmos acuradamente o conteúdo discursivo deste espelho de
príncipe produzido em solo castelhano-leonês, na primeira metade do século XIII,
constataremos que, do conjunto de sessenta e seis aconselhamentos, ao menos um
contigente de quinze sentenças versam, direta ou indiretamente, em torno das
questões de natureza político-militar e bélica, desde aquelas relativas às questões
mais organizacionais, como os dispositivos intrínsecos à realização da
convocatória bélica, da manutenção e subsistência das hostes, até outras de
natureza mais prática, como o pagamento do soldo dos segmentos militares, as
necessárias concessões de recompensas aos guerreiros, e efetivamente os
comportamentos tático-estratégicos que deveriam ser postos em prática pelo
futuro monarca castelhano-leonês nas sistemáticas guerras de Reconquista16 que
seriam cotidianamente operacionalizadas contra os reinos taifas muçulmanos.17

14 CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1976, p.168.
15 LOPES, Marcos Antônio. Os espelhos de príncipes: um velho gênero para uma nova História das
Idéias. Cadernos de História. v. 4. n. 5. Belo Horizonte: Puc/Minas, dez.1999, p.21-30, p.23.
16 Conceito de difícil caracterização, o termo Reconquista será utilizado a fim de definir “a un

proceso clave en la Edad Media peninsular, como la expansión militar a costa del Islam occidental,
que estuvo revestido e impulsado por una ideología militante basada en los principios de guerra
santa y de guerra justa, y que además tuvo una incidencia decisiva en la conformación de unas
sociedades de frontera.” In: GARCÍA FITZ, Francisco. La Reconquista: un estado de la cuestión. Clio &
Crimen, Revista del Centro de História del Crimen de Durango, n.6, 2009, p.142-215, p.201.
Disponível para consulta em: <https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=3158663>.
Acesso em: 05 jun. 2020. Um interessante e sucinto trabalho de síntese sobre as querelas
historiográficas acerca do conceito de Reconquista pode ser encontrado em: ÁLVARO, Bruno
Gonçalves; PRATA, Rafael Costa. Guerras rendilhadas da erudição: um breve panorama dos
combates e debates em torno do conceito de Reconquista. Signum: Revista da Associação Brasileira
de Estudos Medievais, Belo Horizonte, v. 15, n. 2, p. 104-126, 2014. Disponível para consulta em:
<http://www.abrem.org.br/revistas/index.php/signum/article/view/144/132>. Acesso em: 05
jun. 2020.
17 Com o chamado “rompimento do colar” do Califado Cordobês ocorrido em 1031, verificou-se a

composição de uma série de pequenos Reinos Taifas independentes na Andaluzia, que passaram a
ser sistematicamente corroidos pelos monarcas castelhanos-leoneses no prosseguimento da
Reconquista. Nesta nova conjuntura, o poder monárquico encaminhara um processo de expansão
político-militar diante da “fraqueza” dos Reinos Taifas. GARCÍA FITZ, Francisco. Relaciones políticas

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Nesse sentido, contemplamos então que “la guerra o las recompensas a los
vasallos son una pieza esencial del discurso”18 engendrado neste specula
principium destinado ao príncipe Alfonso X, em suma, àquele que ocuparia tão
prontamente a morte do monarca castelhano-leonês Fernando III (1217-1252) o
trono do reino e, consequentemente, os encargos de manutenção e consolidação
dos territórios conquistados e igualmente a política de conquistas que engendrava
a Reconquista.
Tendo em conta estas questões, em nosso sucinto artigo, efetuaremos uma
acurada problematização dos conteúdos discursivos dispostos nos
aconselhamentos político-militares e bélicos, a fim de observarmos como estes se
apresentavam como efetivos modelos de compoartamentos legados ao futuro
monarca para que fossem devidamente empregados em meio as constantes
guerras travadas frente as diversificadas sociedades de fronteira 19 que integravam
a paisagem geopolítica ibérica, sejam estas, os reinos cristãos penínsulares (norte e
centro) ou os reinos taifas da Andaluzia.20

Os aconselhamentos político-militares e bélicos no Libro De Los Doce Sabios:


É fato, pois, que os estudos sobre as obras produzidas em meio aos reinados
dos monarcas medievais “impõem ao pesquisador algumas dificuldades no que se

y guerra. La experiencia castellanoleonesa frente al Islam. Siglos XI-XIII. Sevilla: Universidad de


Sevilla, 2002, p.32-39.
18 RAMOS, Op.Cit, p.844.
19 Esta caracterização oferecida em torno da conformação dos reinos cristãos peninsulares durante

o processo de Reconquista remonta a apreciação oferecida, em 1966, por Elena Lourie em seu
clássico artigo, publicado na Past and Present Society, intitulado A Society organized for war:
Medieval Spain, onde a autora apresenta uma série de argumentos a fim de justificar a concepção de
que os reinos cristãos peninsulares, especialmente o reino castelhano-leonês, foram moldando as
suas estruturas politicas, econômicas, sociais, militares, religiosas, etc, tendo sempre no horizonte a
presença da guerra. LORIE, Elena. A Society organized for war: Medieval Spain. Past and Present, 35,
1966, p.54-76. Esta ideia foi reforçada por outros autores, como: POWERS, James. A Society
Organized for War: The Iberian Municipal Militias in the Central Middle Ages, 1000-1284. Berkeley-
Los Ángeles – Londres: University of California Press, 1988; RUCQUOI, Adeline. História Medieval da
Península Ibérica. Lisboa: Estampa, 1995, p.216-217.
20 Como destacara González Jiménez: “Tras la conquista de las principales ciudades del valle del

Guadalquivir por Fernando III, todo el territorio conquistado comenzó a llamarse, tanto en el lenguaje
vulgar como en el de la cancillería, Andalucía.” GONZÁLEZ JIMÉNEZ, Manuel. Qué es Andalucía? Una
revisión histórica desde el medievalismo. Historia de Andalucía. Granada: Universidad de Granada,
2010, p. 13-33, p. 17. Disponível em: <http://institucional.us.es/revistas/rasbl/38/art_1.pdf>.
Acesso em: 05 jun. 2020.

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referem a definição da autoria, circunstâncias da elaboração e datação. O mesmo se


aplica às obras iniciadas durante o reinado de seu pai, Fernando III, e finalizadas
sob o próprio comando”.21 Estas dificuldades certamente são encontradas em meio
a problematização do chamado Livro dos Doze Sábios;
Da natureza complexa deste specula principium emerge, portanto, uma série
de acalorados debates historiográficos acerca de inúmeras questões, dos quais, em
especial, sobrassem aquelas relativas à datação da obra e a natureza de sua
composição.
Para Walsh, esta obra sapiencial fora resultado de uma composição
efetuada em dois momentos específicos: o prólogo e os primeiros sessenta e cinco
capítulos teriam sido escritos em 1237 enquanto que o epílogo fora acrescentado
em 1255, portanto, durante o reinado de Alfonso X.22 Contudo, conforme Bizarri,
apenas os capítulos 21 a 65 teriam sido escritos em 1237, tendo sido acrescentado
em 1255, o prólogo, os primeiros vinte capítulos e, por fim, o epílogo. A despeito de
todas estas discordâncias se faz certo que:

Quizá sea preferible seguir con la máxima cautela, y no optar


finalmente entre 1237, 1237-1255 o 1255, ni entre Fernando III y
Alfonso X, dado que sea cual sea la solución real, lo importante es
subrayar que este tratado participa de un mismo contexto
fundacional, el que constituyen los reinados de Fernando III y de
Alfonso X.23

De fato:

Não existem documentos que atestam a datação exata da redação


do Livro dos doze sábios, de modo que, é preciso o máximo cuidado
ao refletir sobre esta questão. O mais adequado é não optar
formalmente pelas datas de 1237, ou 1237-1255, ou ainda a de
1255, nem mesmo por Fernando III ou Alfonso X como
promotores únicos da obra.24

21 REIS, Jaime Estevão dos. A construção da figura heroica de Fernando III no Libro de los Doze
Sabios. In: ZIERER, Adriana; VIEIRA, Ana Lívia B.; ABRANTES, Elizabeth Souza. (Org.). História
Antiga e medieval. Sonhos, Mitos e Heróis: Memória e identidades. 1.ed. São Luís: EDUEMA, 2015, v.5,
p. 125-136. p.125.
22 WALSH apud REIS, Op.Cit, p.197.
23 FORONDA, François. Sociedad Política, Propaganda Monárquica y Regimen en la Castilla del Siglo

XIII. En torno ao Libro de los Doze Sabios. Edad Media. Revista de Historia, v. 7, (2005-2006) p. 13-
36. p. 17-18.
24 REIS, Op. Cit, p.198.

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Entretanto, estes historiadores são uníssonos ao destacarem o propósito


fernandino à hora de patrocinar a composição do chamado Libro de Los Doce
Sabios: o monarca castelhano-leonês Fernando III tencionara seguramente legar
aos seus herdeiros, sobretudo ao seu primogênito Alfonso, um singular espelho de
príncipes que permitisse a contemplação de uma gama de aconselhamentos sobre
as mais diversas problemáticas relativas à boa manutenção da conduta régia,
desde aquelas relativas aos comportamentos nas guerras contra os inimigos
muçulmanos até às incidentes em torno do devido tratamento a ser conferido aos
distintos poderes que compunham o corpo político do reino.
O primeiro ensinamento com teor bélico reside na sentença IV (Que debe
ser el rey fuerte y poderoso). Os sábios destacam então as virtudes do “esfuerzo” e
da “fortaleza” como mecanismos cruciais na boa condução do reino, posto que:

Y el que ha de regir reino si esfuerzo y fortaleza no hubiese, no


podría venir en perfección de su regimiento ni dar fin a ningún
buen hecho. Y los que con el reino tuviesen guerra, cobrarían
osadía viéndolo más flaco y de poco esfuerzo y fortaleza, y muy de
ligero podría el reino perecer cuando no tuviese cabecera buena,
como muchas veces hayamos visto muchos reinos ser perdidos
por haber rey o príncipe o regidor cobarde y flaco y de poco
esfuerzo, y por contrario con esfuerzo y fortaleza llevar lo poco a
lo mucho y lo menos a lo más, y ser defendidas muchas tierras por
ello25

Este aconselhamento primordial se apresenta, por certo, como uma espécie


de anunciação do modelo de conduta da atuação régia perseguida pelo reino
castelhano-leonês em meio ao processo de Reconquista. Percebe-se no bojo desta
sentença, a criação de um binarismo diretamente atrelado tanto às conquistas e às
perdas territoriais, como também aos benefícios e aos problemas suscitados frente
aos poderes do corpo político do reino, que poderiam ocorrer durante o reinado de
um monarca; comportando-se como um monarca forte, vigoroso e corajoso, em
tempo de guerra, acabaria então por conquistar ainda mais territórios para os
domínios do reino ou, reforçar ainda mais os seus vínculos com os distintos
25 WALSH, JOHN. El libro de los doce sabios o Tractado de la nobleza y lealtad. Real Academia
Española de la Lengua (Anejos del Boletin de la Real Academia Española, XXIX). Madrid, 1975.
Disponível em: <http://www.filosofia.org/aut/001/12sabios.htm>. Acesso: 05 jun. 2020.

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Revista Signum, 2019, vol. 20, n. 1.

poderes do reino, pois, não nos esqueçamos de que o poder monárquico


constantemente entrava em guerras com parcelas da aristocracia. Em
contrapartida, ao proceder covardemente, o monarca poderia acabaria
enfraquecer o poderio do reino, seja por conta de possíveis derrotas em guerras
travadas perante os reinos taifas muçulmanos, como também frente às querelas
suscitadas diante das dignidades aristocráticas do reino de Castela-Leão.
Seguindo o caminho progressivo dos aconselhamentos, na sentença XI (Que
el rey o príncipe o regidor de reino debe ser compañero a sus compañas), se
sublinha o dever do monarca de não se afastar de suas hostes, sendo então
companheiro destas companhias militares, fazendo-lhes:

Muchas honras y gasajados y haber placer con ellos cuando


cumpliere, y en las guerras y batallas comer y beber de compañía,
y burlar con los suyos, y entremeter con ellos algunas maneras de
solaz, y loarlos y honrarlos en plaza el bien que hicieren, y
hacerles merced por ello.26

Em seguida, a sentença XII (Que el rey debe ser largo a los nobles e hidalgos
y de buen linaje, y a los otros que bien obran) se dedica então a uma virtude
essencial na manutenção das boas relações entre o poder monárquico e os demais
poderes do corpo político do reino: a prodigalidade, em suma, a faculdade de
conceder dons, em troca, da recepção de contradons, em suma, de empreender o
regime de interdependência calcada no servicium – beneficium. Nesta, se orienta a
necessidade do monarca se comportar permanentemente de maneira justa, pois,
caberia a este recompensar os indivíduos que lhe servissem satisfatoriamente em
tempos de paz e, sobretudo, em períodos de guerra:

Largo debe de ser el rey o príncipe o regidor de reino a los nobles


e hidalgos y de buen linaje y a los otros que bien obraren y alguna
hazaña y nobleza de caballería hicieren o en otras cosas bien y
lealmente lo sirvieren, así por las noblezas que hicieren cuando
pudieron los que no pueden, como por las que hacen los que
pueden. Y de los que en su servicio morieren, debe ser largo en
hacer merced a sus hijos y a los de su linaje porque todos hayan
voluntad de bien hacer y de le servir lealmente y con voluntad.

26 WALSH apud El libro de los doce sabios. Disponível em:


<http://www.filosofia.org/aut/001/12sabios.htm>. Acesso: 05 jun. 2020.

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Revista Signum, 2019, vol. 20, n. 1.

Que una de las principales gracias que cumple haber en los


señores, especialmente en los conquistadores, ser largo de
corazón y de obra, pero que no se debe mover ligeramente a hacer
merced hasta ser cierto del bien que cada uno hizo.27

Reconhecia-se, assim, a fundamental importância nutrida pela eficiente


execução por parte do poder monárquico do regime do dom-contra dom para a
edificação e manutenção de boas relações perante, especialmente, a aristocracia
castelhano-leonesa e, subsequentemente, para a conservação e perpetuação da boa
saúde do reino por meio da conquista da fidelidade e da obediência destes
indivíduos.
Se, por um lado, a força certamente se assumia, assim, como um mecanismo
primário na construção e legitimação da autoridade dos monarcas perante os
distintos poderes do reino, por outro, a prodigalidade, a largueza, a faculdade de
concessão de dons, se apresentava, igualmente, como um procedimento
reiteradamente operacionalizado por estes, cuja execução, se configurava como o
mais forte indício ou manifestação expressa de sua autoridade, posto que no bojo
destas relações senhoriais travadas, conceder significava entrelaçar-se, reforçando
os vínculos de hierarquia, e não um ato de recuo, de notório enfraquecimento. Um
monarca que não efetua concessões de toda ordem, que não prodigaliza os dons,
não será, efetivamente, um monarca legitimado e autorizado pelo corpo político do
reino.
Pioneiro na sistematização destas reflexões em torno do paradigma do
dom-contradom, o sociólogo e antrópologo Marcel Mauss, ao analisar
acuradamente o papel desempenhado pelas prestações totais, em especial, o
potlatch, nas sociedades antigas da Polinésia, chegara à conclusão de que o
conjunto das relações operadas no seio destas sociedades se encontravam
inteiramente assentadas em um tripé arregimentado: dar, receber e retribuir.28
Nesse sentido, encontrariamos nas propriedades inerentes a este regime

27 WALSH apud El libro de los doce sabios. Disponível em:


<http://www.filosofia.org/aut/001/12sabios.htm>. Acesso: 05 jun. 2020.
28 Conforme Mauss, a “prestação total não implica só a obrigação de retribuir os presentes

recebidos; ela supõe dois outros igualmente importantes: obrigação de os dar, por um lado,
obrigação de os receber, por outro”. MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a Dádiva. Com introdução à obra
de Marcel Mauss por Claude Lévi-Strauss. Lisboa: Edições 70, 1988. p. 67.

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Revista Signum, 2019, vol. 20, n. 1.

das dádivas, um processo dialético que estimularia a subsequente composição de


sociabilidades, em suma, de relações de toda ordem entre os indivíduos. Estas
redes de sociabilidades formadas entre os indivíduos se expressariam como uma
espécie de trocas entre almas, como uma “ligação espiritual” compartilhada. Ao
conceder, o indivíduo doa algo de si mesmo a outrem. Ao receber, o outrem deixa
de ser outro para ser alguém próximo ao doador. O dom os tornaria então
inteiramente próximos, pois, reside no dom uma força, uma alma, que acaba então
constituindo uma gama de “laços espirituais” entre os indivíduos.29
Para Mauss, as circulações de dádivas objetivariam, portanto, a composição
de um quadro de reiteradas constituições de vínculos de interdependência e de
redes de ligações entre os indivíduos envolvidos. Relações de sociabilidades estas
que germinam justamente da “virtude que obriga as dádivas a circular, a serem
dadas e a serem distribuidas”.30
O paradigma do dom-contradom se apresentaria, assim, como a inéquivoca
chave para a compreensão de todo o espelho refletido pelas relações de
sociabilidade travadas no bojo das sociedades antigas. Toda ordem de relações,
sejam elas sociais, políticas, militares, etc, se desenvolveram integralmente a partir
da influência exercida por este visceral regime de dádivas, haja vista que este
esquema, por anteceder qualquer manifestação de sociabilidade, se manifestara
sempre enquanto fator estruturante destas sociedades.
O historiador do direito António Manuel Hespanha também procurou
destacar a importância deste “sistema do dom-contradom” na conformação das
estruturas das sociedades do Antigo Regime. Ao analisar o “caráter corporativo”
destas sociedades, Hespanha examinou os meandros das composições e das
reproduções das redes de clientelas em Portugal, a fim de demonstrar como as
estruturas desta metropole se encontravam integralmente ancoradas num
sistemático regime de distribuição e circulação de bens e benefícios de toda ordem,
tanto na metropole como nas colonias.
Estas “relações que obedeciam a uma lógica clientelar, como a

29 Ibidem, p. 69.
30 Ibidem, p. 125.

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Revista Signum, 2019, vol. 20, n. 1.

obrigatoriedade de conceder mercês aos mais amigos, eram situações sociais


quotidianas e corporizavam a natureza mesma das estruturas sociais, sendo,
portanto, vistas como a norma”.31 Por conseguinte, no bojo destas relações
travadas, se torna possível constatar que:

A atividade de dar (a liberalidade, a graça) integrava uma tríade


de obrigações: dar, receber e restituir. Estes atos cimentavam a
natureza das relações sociais e, a partir destas, das próprias
relações políticas [de maneira tal que] O dom podia acabar por
tornar-se um princípio e epifania de Poder. Assim, era frequente
que o prestígio político de uma pessoa estivesse estreitamente
ligado à sua capacidade de dispensar benefícios, bem como à sua
fiabilidade no modo de retribuição dos benefícios recebidos.32

Foi através deste esquema das concessões de dádivas que o amplo quadro
das relações senhoriais, inclusive, aquelas de natureza militar, foram travadas
entre os agentes políticos durante a Idade Média. Nas sociedades medievais, as
concessões senhoriais operadas pelo poder monárquico se encontravam
inteiramente norteadas pelo regime de dom-contradom, pela sempre imperativa
dinâmica do serviço-benefício.
A medievalista Maria Filomena Coelho, ao destacar o paradigma
descentralizador e corporativo que permeava as sociedades medievais, salientara
precisamente que estas foram plenamente moldadas em torno de uma:

Economia moral de serviço e de beneficio (...] [que atava] os


homens entre si por meio de laços de dependência, cujas
referencias são cada vez mais territorializadas. Receber um feudo,
significa receber um beneficio, pelo qual se presta um serviço. Não
é uma lógica de pagamento por determinado trabalho cumprido,
mas de criação de laços duradouros entre homens, pois a ideia do
serviço cristão explica-se menos pelo que já se prestou e mais pela
disponibilidade do vassalo em estar disposto a sempre servir.33

O próprio príncipio de obediência e, especialmente, a natureza da


Autoridade Monárquica, se encontrava inteiramente relacionado ao modo como

31 XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, António Manuel. As redes clientelares. In: MATTOSO, José
(Dir). História de Portugal: o Antigo Regime. Lisboa: editorial Estampa, s/d. p. 381-393. p. 381.
32 Ibidem, p.382.
33 COELHO, Maria Filomena. A “longa Idade Média”: reflexões e problemas. Atas da VII Semana de

Estudos Medievais. Por uma longa duração: perspectivas dos estudos medievais no Brasil.
PEM/Universidade de Brasília, 2010, p. 57-73. p. 71.

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Revista Signum, 2019, vol. 20, n. 1.

àqueles homens concebiam os seus vínculos e as suas hierarquias sociais mediante


a posta em prática deste regime de dom-contradom, pois:

Em todos os níveis sociais, o princípio da obediência aparecia


ligado ao reconhecimento da autoridade, e só tem autoridade
aquele que é investido desse poder. Para além da proveniência
mágica ou sagrada do poder, há outro elemento que aparece aos
olhos de todos como evidência da capacidade de exercer o poder:
beneficiar, recompensar os que servem, aqueles que prestam
serviço. Assim, a todo serviço corresponde um benefício, a todo
benefício corresponde um serviço. Esta dinâmica, se não explica
todos os aspectos das relações pessoais em sociedade na Idade
Média, certamente abarca um universo que se aproxima muito da
totalidade. Somente pode ser obedecido, ser reconhecido como
superior, aquele que reconhece generosamente e com justiça os
serviços que prestam os dependentes. (...) E a questão da
obediência parecia-me claramente vinculada à harmonia entre os
dois pratos da balança. É mais. O próprio serviço confundia-se
com a obediência. Somente se presta serviço àquele a quem se
reconhece superioridade e autoridade, ato do qual se desdobra a
obediência como consequência natural.34

Poderiamos mencionar uma gama de paradigmáticos exemplos em torno


desta relação de interdependencia firmada no esquema do dom – contradom entre
o poder monárquico e os poderes do reino, no qual se firmava a lógica do servicium
– beneficium, entretanto, basta que mencionemos apenas um exemplo em torno
das concessões senhoriais efetuadas pelo próprio monarca Alfonso X (1252-1284)
em meio as guerras travadas frente aos muçulmanos andaluzes durante o seu
reinado.
Em um diploma régio concedido em 1256 pelo monarca Alfonso X à Ordem
de Calatrava, comtemplamos a concessão do castelo e da vila de Matrera, com a
outorga de uma gama de privilégios e isenções econômicas, em troca do dever da
execução da “paz e da guerra” para o reino de Castela-Leão:

Et tengo y pora mi, e pora todos aquellos que regnaren después de


mi en Castiella e en León, pora siempre jamás, que fagan por nos
guerra y paz, e que nos den moneda los christianos que y moraren,
e que entre hi el mio adelantado asy cuemo entra en todas sus

34FILOMENA COELHO, Maria. Serviço e benefício: Relações e redes sociais na tradição Ibérica. In:
MACEDO, José Rivair. (Org.). A Idade Média Portuguesa e o Brasil: Reminiscências, transformações,
ressignificações. Porto Alegre: Vidráguas, 2011. p. 145-156. p. 147-148.

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Revista Signum, 2019, vol. 20, n. 1.

villas que ha en frontera pora faser justiçia.35

Além da força e da prodigalidade, outra virtude acaba sendo sublinhada


pelos sábios enquanto qualidade a ser desenvolvida pelo monarca a fim de atingir
a boa administração do reino: a cobiça. Ao tratar desta virtude, a sentença XIX (De
como debe haber en el rey o príncipe o regidor de reino poca codicia), acaba por
sublinhar a sua importância como uma virtude almejada e controlada em bons
tons pelo monarca, especialmente, tendo em consideração o seu manejo nos
assuntos bélicos, posto que competiria a este:

Huir della, como sea la más vil cosa, y en menos tenida de toda las
del mundo (...) Pero no deje de ser codicioso de hacer buenos
hechos y grandes hazañas y conquistas, y de los bienes y de las
virtudes que viere en otros haber, codicia de las haber, y de hacer
otras cosas semejantes”.36

Ora, há de se compreender que, durante a Idade Média, a cobiça/ganância


era encarada como uma virtude profundamente necessária para a consecução de
toda ordem de desígnios alçados, sejam aqueles políticos, bélicos, etc., desde que
esta fosse utilizada para os fins considerados justos – e sacralizados, inclusive – e
que não prejudicasse o plano geral do que fora anteriormente planejado. Assim
sendo, a “codicia” não se apresentava significados apenas relacionados com uma
faceta negativa, sendo então alçados como qualidades naturalmente nutridas pelos
indivíduos e que, quando bem controladas, produziriam resultados positivos para
o reino.
Passada esta contemplação das primordiais virtudes régias, os sábios
passam então a destacar propriamente as condutas que deveriam ser postas em
prática pelo monarca a fim de bem gerir os assuntos políticos e bélicos do reino.
Certamente uma das principais problemáticas abordadas se refere à natureza das
complexas e conturbadas relações senhoriais travadas entre o poder monárquico e
os demais poderes do reino, sobretudo o aristocrático.

35 GONZÁLEZ JIMÉNEZ, Manuel (Ed.). Diplomatario andaluz de Alfonso X. Sevilha: El Monte. Caja de
Huelva e Sevilha, 1991, doc. 179.
36 WALSH apud El libro de los doce sabios. Disponível em:
<http://www.filosofia.org/aut/001/12sabios.htm>. Acesso: 05 jun. 2020.

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Esta questão se torna evidente a partir do capítulo XXVI (De como el rey
debe primeramente conquistar y ordenar lo suyo y aseñorearse dello), onde se
sublinha que:

E señor conquistador que quieres ganar otras tierras y comarcas y


las conquistar, y tu deseo es aumentar la ley de Dios y le servir, y
hacer placer, y dejar al mundo alguna buena memoria y
nombradía, primeramente conquista y sojuzga y ordena lo tuyo y
aseñoreate dello y sojuzga los altos y poderosos, y la tu voz
empavorezca el tu pueblo, y sea el tu nombre temido. Y con esto
empavorecerán los tus enemigos, y la mitad de tu conquista tienes
hecha, y tu intención aína se acabará. Que si tú bien no corriges y
sojuzgas lo tuyo ¿cómo sojuzgarás aquello en que no as poder? Y
no te tendría por lo que conquistases, y muy de ligero perecería
eso y lo ál.37

Aconselha-se ao futuro monarca, portanto, que antes de se dirigir à


concretização de seus projetos bélicos, que se preocupasse em reforçar o seu
poder perante os distintos poderes do reino, pois, sem o respeito a esta “etapa
prévia”, toda ordem de projetos se tornaria inviável. Para se lançar diante das
conquistas bélicas, se fazia mais do que necessário então a existência de uma
harmonia dentro da política interna do reino, posto que os braços armados que
seriam utilizados nas campanhas bélicas, remontariam precisamente aos serviços
fornecidos pelos segmentos políticos do reino.
O capítulo XVII (Que habla de como el rey debe catar primero los fines de
sus guerras y ordenar bien sus fechos) se assume como um reforço do capítulo
anterior, posto que, se sublinha a necessidade de que se resolvam
antecipadamente as questões relativas ao âmbito interno do reino, reforçando os
vínculos com os distintos poderes do corpo político, impondo a sua autoridade, o
temor, antes de se lançar nas conquistas bélicas, haja vista que:

Tú conquistador que deseas hacer todo bien y traer muchas


tierras y provincias a la fe de Dios, los comienzos ligeros los
tienes, mas cumple de catar los fines y ordenar bien tus hechos en
manera que seas honrado y tu hecho y señorío vaya adelante y
prevalezca, y no te sea necesaria la necesidad en tus hechos, ni
queden en medio de la carrera como quedan de muchos que bien

37 Ibidem.

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no ordenan sus haciendas y perecen por mala ordenanza, de que


habemos ejemplo en muchas cosas pasadas. Y desi, para tu bien
guerrear, cúmplete primeramente ser amado y temido de los tus
vasallos, y de los tuyos, y debes pensar que es la conquista que
tomas y las más maneras y provechos que tienes para ello, y las
gentes y el tiempo y las cosas que te pueden embargar.38

Reforça-se novamente que para guerrear com qualidade e que,


consequentemente, sejam obtidas conquistas territoriais para os dominios de
Castela-Leão, se procure a manutenção das boas relações entre os distintos
poderes do corpo político, reforçando os vínculos hierárquicos e, por conseguinte,
resolvendo todas as possíveis querelas existentes a fim de que não se produza um
enfraquecimento na ossatura do reino que o impedisse de se lançar em suas
conquistas bélicas que resultariam no acréscimo de territórios para a Coroa de
Castela-Leão.
Esta preocupação em demonstrar a natureza dos comportamentos e dos
mecanismos que permitiriam a efetivação de uma modelar prática bélica por parte
do futuro monarca perpassa integralmente o discurso produzido neste espelho de
príncipes, posto que:

Em muitos momentos, o tratado se dirigia ao interlocutor – o


futuro rei – como um conquistador em potencial. A preocupação
com os demais aspectos da luta armada, tais como os suprimentos,
a escolha do contingente militar mais indicado (bem como o
menos indicado), as estratégias de batalha, e a administração do
território após sua conquista apenas reforçam este perfil de
monarca idealizado pela corte de Fernando III.39

Com este expresso propósito, a partir do capítulo XVIII (Del abastecimiento


que el rey debe tener para sus guerras), se orquestram então uma série de
aconselhamentos bélicos de natureza organizacional e tático-estratégica. No
supracitado capítulo se desenvolve a problemática do abastecimento das hostes
em meio às guerras, aconselhando então que:

El rey debe tener para sus guerras: antes de la guerra busca y ten
aparejado bastimiento de pan, y de vino, y de carne, y de las otras

38 Ibidem.
39 SOUZA JÚNIOR, Op. Cit, p.112.

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Revista Signum, 2019, vol. 20, n. 1.

cosas que te hacen mester, y hazlo tener presto en los lugares


cercanos de la tu conquista, y manda comprar el tal bastimento a
omnes de buen recado y entendimiento y de buena intención y de
poca codicia, y mándales dar su mantenimiento abundadamente y
aun más de lo que hubieren mester, porque para su provisión no
te hayan de hacer arte en las compras (...) Que señor, si la tu
merced no remedia en los tales hechos, y no tienes los dineros y
bastimento que les es mester prestos y buscados y mercados en
sus tiempos debidos, mejor sería no comenzar la conquista para la
haber de dejar por mengua o fallecimiento de lo que hubiere
mester.40

Recorda-se ao futuro monarca, portanto, a importância de se efetuar com


esmero todas as atividades que engendram a logística de subsistência das
campanhas bélicas, pois, sem a sua devida realização, se tornaria inviável a
obtenção das conquistas bélicas que encaminhariam os acréscismos territoriais
para a coroa castelhano-leonesa, posto que inevitavelmente a ausência destas
medidas encaminharia, na melhor das ocasiões, a retirada forçada das hostes em
meio as expedições bélicas ou, inclusive, no pior dos casos, a derrocada dessas
hostes frente aos inimigos mediante a situação de debilidade que acabaria
ocasionando na moral das tropas militares, na medida em que poderiam ser
acometidos pela fome, pela má qualidade dos armamentos dispostos para os
combates, etc.
Uma outra questão crucial, relativa a logística das campanhas bélicas passa
a ser problematizada no capítulo XXIX (De las gentes que el rey no de debe llevar a
las sus guerras): o recrutamento das hostes. Nesta sentença, os sábios não
aconselham o futuro monarca a realizar um recrutamento maciço e irrestrito dos
súditos do reino, pois, não se deveria:

Llevar a la guerra en la tu merced gentes y compañías ricas ni


codiciosas, y que no son para tomar armas ni usar dellas, y que su
intención es más de mercaduría que de alcanzar honra y prez. (...)
Y por ende cumple a la tu merced de llevar contigo los que
entendieres que son tuyos y deséante bien y ámante, y aman tu
honra. Y de los otros mancebos y valientes omnes que desean
alcanzar honra y que presumen de si de la ganar por sus manos, y
su codicia y deseo es hacer hazañas y buenas obras, y destos tales

40 WALSH apud El libro de los doce sabios. Disponível em:


<http://www.filosofia.org/aut/001/12sabios.htm>. Acesso: 05 jun. 2020.

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tienes tantos y sábelos buscar, que no dudo que con cinco mil
dellos no dieses batalla a todo el mundo en un día. Y sin duda
vencerías siendo pagado de ti, y teniéndolos a tu voluntad.41

Neste aconselhamento, mais uma vez a virtude da “codicia” perpassa


integralmente o conteúdo aludido. Efetua-se uma crítica incisiva aos aristocratas
que, com as suas hostes, se preocupavam muito mais em efetuar uma série de
pilhagens para satisfazer os seus interesses próprios, do que em realizar proezas
bélicas a serviço de uma causa comum ao reino. Em contrapartida, se prescreve a
convocatória precisamente em relação aos indivíduos jovens, cuja “codicia” se
encontraria diretamente relacionada com o se tornar reconhecido por conta de
suas “hazañas y buenas obras” bélicas e não propriamente em obter riquezas
imediatas.
Os capítulos XXX e XXXI retornam a tratar de questões envolvendo a
logística e a devida planificação das campanhas militares. No primeiro destes (De
la ordenanza y regimento que el rey debe haber con sus enemigos) se aconselha
que o monarca procure sempre efetuar uma planificação antes de partir em suas
campanhas perante os inimigos, tratando então de conhecer:

Los tiempos y los lugares, y siempre busca ventaja mientras


pudieres, y gana el sol o el aire, y se rey primero cometedor, que
gran ventaja es ver omne como hiere, y no le embargar el sol, ni
polvo. Y su enemigo estar ciego, y no ver lo que hace es tener
vencido la mitad del campo. Y comoquier que Dios sea el vencedor
de las batallas, a las veces todo lo más deja a la buena industria de
los omnes.42

No segundo, o XXXI (Que cuando el rey hubiere de hacer entrada a otro


reino, o a conquistar alguna tierra, que vaya poderosamente) se aconselha ao
futuro monarca que, quando desejar conquistar alguma terra em pessoa, que:

No entres por parte donde no hubiere agua, que todavía el


mantenimiento es necesario. Y entra en tiempo que halles hierba
verde o seca o algún mantenimiento para tu gente, y no te pares
sobre lugar hasta que primeramente tales o destruyas toda la
tierra, y traigas y tomes todos los ganados y panes y viandas que

41 Ibidem.
42 Ibidem.

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Revista Signum, 2019, vol. 20, n. 1.

hallares.43

Estes aconselhamentos encaminham, portanto, a necessidade de um profundo


conhecimento e do consequente emprego sistemático das condições climáticas e
geográficas por parte do poder monárquico e das suas hostes em meio não
somente aos preparativos para as campanhas bélicas, na busca pelos melhores
locais para o assentamento das hostes, como também, precisamente nas batalhas
campais, a partir da utilização dos ventos e da luz do sol, a fim de potencializar as
chances de exitos bélicos.
O capítulo XXXII (En que el rey no debe llevar a la su conquista compañías
consejiles si no fueren escogidos) incide sobre uma problemática bastante sensível
para a monarquia castelhano-leonesa: o difícil relacionamento com as hostes
recrutadas dos conselhos das vilas e das cidades do reino, em suma, as chamadas
milícias concejiles. Neste aconselhamento, se recomenda ao herdeiro do trono para
que:

No lleves a la tu conquista compañías concejiles sino si fueren


escogidos por omnes de quien la tu merced fíe, y que les sea bien
pagado su sueldo, que no debes hacer cuenta de la gente que va
sin dineros, y no sabe que es tomar lanza para herir. Que cuando
pensares que tienes algo, no tienes nada. Que de las gentes que
van a pelear, los flacos embargan a los fuertes, y los cobardes
hacen huir a los buenos. Y por ende siempre pon en la delantera a
los más fuertes y esforzados.44

Estas hostes urbanas eram recrutadas e dirigidas por suas próprias:

Autoridades locales, basándose en los privilegios concedidos para


ello a través de los Fueros, Cartas Pueblas y otros documentos
fundacionales. Siendo sus principales funciones la construcción y
reparación de fortificaciones, vigilancia del recinto y murallas de
la urbe, defensa de la ciudad en caso de cerco, acudir al Apellido y
sumarse a las cabalgatas e incursiones en territorio enemigo,
cuando así lo ordenasen las autoridades locales. Además, debemos
agregar a lo anterior, la obligación de unirse a la hueste real
cuando el rey así lo solicitase.45

43 Ibidem.
44 Ibidem.
45 MENEGHELO, Raimundo. Milicias Concejiles en la Plena Edad Media Hispana. El caso de Castilla y

León en los siglos XII y XIII. Historias del Orbis Terrarum, n. 3, 2009, p.92-102, p. 96. Disponível em:
<https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=3622254>. Acesso: 05 jun. 2020.

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As dificuldades no relacionamento entre o poder monárquico e as milícias


concejiles podem ser prontamente atestadas em inúmeros episódios durante os
reinados de Fernando III (1217-1252) e Alfonso X (1252-1284). Cabe-nos
mencionar, por exemplo, o episódio ocorrido durante o cerco realizado em Úbeda
por Fernando III em 1233; nesta ocasião, acudiram as milícias concejiles de Toro,
Zamora, Salamanca e Ledesma sob a convocatória monárquica:

En el invierno siguiente, era de 1271, en la fiesta de Epifanía, el


rey asedió Ubeda con los nobles y no muchos pueblos del reino
leonés, y el pueblo de Toro, de Zamora, de Salamanca y Ledesma,
que acudieron, al mandato del rey, al asedio de la citada villa en
gran multitud y con mucho aparato. Pero llegado el término hasta
el que estaban obligados a seguir al rey según propio fuero, como
ellos decían, antes de la toma de la villa, volvieron a sus propias
tierras.46

O próprio monarca Alfonso X teria que lidar com uma série de problemas
militares e bélicos gerados pelo difícil relacionamento travado frente a estes
segmentos militares formados por guerreiros oriundos dos conselhos urbanos. Em
um testemunho contido na Crónica de Alfonso X, se contempla os entraves
encontrados por Alfonso X a hora de efetuar o recrutamento destas milícias
concejiles:

E leyendo este rey don Alfonso esta guerra que tenía comenzada
con los moros en que se gastaban muchos caballos, é otrosí
commo muchos de las villas se excusaban de lo servir por el
llamamiento que les facia de cada año para la frontera, é en que
aquel tiempo iva cada uno á servir tres meses por lo que avia.47

O capítulo XXXIV (En que el rey no consienta en el tiempo de las guerras


comprar viandas a regatonería) retorna a problematizar o abastecimento das
hostes, aconselhando então que:

46 Crónicas de los Reyes de Castilla desde Don Alfonso el sabio hasta los Católicos Don Fernando y
Doña Isabel, tomo I, colección ordenada por C. Rosell, Biblioteca de Autores Españoles. Tomo LXVI.
Ediciones Atlas. Madrid, 1953. p.10.
47 CRÓNICA DE ALFONSO X. (Ed.). Manuel González Jiménez. Murcia: Real Academia Alfonso X el

Sabio, 1998, p.35.

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Revista Signum, 2019, vol. 20, n. 1.

Especialmente en el tiempo de la guerra, ningunas personas


compren pan ni vino, ni pescado, ni carne, ni otra cosa de
mantenimiento para revender, salvo lo hubieren mester para su
mantenimiento propio. Y pon pena así de los cuerpos como de los
algos en las tales personas que lo compraren.48

Considerações finais
Apesar de toda a sua importância enquanto um singular specula principum
produzido em solo castelhano-leonês no calor do processo de Reconquista, o Libro
de Los Doce Sabios continua sendo pouco abordado pela Medievalística, a qual,
continua a se debrucar nos espelhos de príncipes mais conhecidos, sobretudo, os
produzidos nas cortes francesas e inglesas. Desta forma, cabe-nos constatar que:

El Libro de los doce sabios es uno de los textos menos estudiados.


Por este motivo, no se ha apreciado hasta este momento el
significativo valor que posee dentro de la extensa lista de
“catecismos político-morales” que circularon en la Península.49

Longe de se apresentarem como aconselhamentos distantes da realidade


socio-política e bélica, os conteúdos dispostos neste specula principum castelhano-
leonês se apresenta como um inequivoco corolário do processo de Reconquista,
refletindo então uma gama de comportamentos e procedimentos belicosos
modelares para os monarcas em meio as ofensivas bélicas frente aos reinos taifas
muçulmanos da Andaluzia, desde as questões mais psicologicas, como as virtudes
da força e do esfuerço, até as questões mais práticas como os pagamentos das
hostes e os procedimentos de assentamentos das hostes nos campos de batalhas.
Todas as acuradas descrições de comportamentos político-militares
apresentadas pelos sábios refletiram, portanto, o caloroso clima de belicismo
inerente áquelas sociedades de fronteira que compunham o quadro geopolítico da
Reconquista que impregnara visceralmente as condutas das lideranças políticas
ibéricas durante toda a Idade Média.
Com a composição deste sucinto artigo, esperamos ter contribuído para

48 WALSH apud El libro de los doce sabios. Disponível em:


<http://www.filosofia.org/aut/001/12sabios.htm>. Acesso: 05 jun. 2020.
49 BIZARRI, Op. Cit, p. 5.

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Revista Signum, 2019, vol. 20, n. 1.

para alargar os estudos acerca deste singular espelho de príncipes produzido com
o propósito de ser entregue ao príncipe Alfonso X, o qual, tão prontamente se
tornaria o monarca Alfonso X (1252-1284), um dos monarcas mais representativos
do Ocidente Medieval em meio ao século XIII. Caracterizado a partir do epíteto o
Sábio, por conta de seu mecenato frente a uma vastíssima e diversificada produção
cultural, a qual resultara em uma gama de obras de natureza jurídica, histórica,
artística e literária,50 este monarca castelhano-leonês se apresentara igualmente
como um enérgico monarca guerreiro.

Artigo recebido em 08.11.2018


Artigo aceito em 02.06.2020

50 Este monarca castelhano-leonês fomentara a composição de inúmeros espaços de produção


intelectual, desde o taller historiográfico, onde fora produzida a Primera Crónica General de España,
ao taller jurídico, marcado pela composição do Espéculo, Fuero Real e as Siete Partidas. Na seara
artístico-literária, foram produzidas as chamadas Cantigas de Santa Maria e as Cantigas de Escarnio
e de Maldizer. O patrocínio alfonsino se estendeu a outros campos da produção cultural, como a
Astronomia, com obras como as Tablas alfonsíes e o Lapidario, e os jogos de lazer, com a produção
do Libro de los Juegos. Sobre o tema: MONTOYA MARTÍNEZ, Jesús; DOMÍNGUEZ RODRÍGUEZ, Ana.
El scriptorium alfonsí: de los libros de astrologia a las Cantigas de Santa María. Madrid: Editorial
Complutense, 1999; BRASA DÍEZ, Mariano. Alfonso el Sabio y los traductores españoles. Cuadernos
Hispanoamericanos, Madrid: Instituto de Cooperación Iberoamericana, n. 410, p. 21-33, 1984;
BURNS, Robert. Emperror of culture: Alfonso X the learned of Castile and his thirteenth-century
renaissance. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1990.

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