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O sertão vai virar mar - IV

Ou, do que serve falar tanto?

Retomemos um pouco, caro leitor, a discussão da semana passada. Para os mais


desavisados, como eu, lembro que a questão girava em torno dos pilares fundamentais de
nossa querida sociedade dita civilizada, dita ocidental, dita contemporânea. Chegamos ao
número sagrado de três pilares, cujo valor hoje em dia está entre a verdade factual e o dogma.
São eles o estado de direito, os direitos humanos e a liberdade de expressão.
Pois estava justamente a pensar sobre este último avatar, a liberdade de expressão,
quando me veio à mente uma pergunta até aqui sem resposta: Do que serve falar tanto?
Noutra versão, igual mas diferente: qual a função de poder falar tudo que se quer?
Ora, essa pergunta parece bastante idiota, e no fundo talvez o seja, mas o fato é que
não nos colocamos esta questão e acabamos como idiotas que falam sem saber por que (claro
que há nisso exceções, uma vez que há idiotas silenciosos, idiotas conscientes das idiotices
que dizem e outros tantos que de idiotas nada têm). Mas uma vez colocada a questão, não tem
mais volta e a única saída é aborda-la, da melhor maneira possível.
De minha parte, sempre suspeitei da ânsia louca de falar. Desde muito tempo que me
digo que se palavra gastasse, muita gente já estaria muda. Pensemos na seguinte hipótese:
suponhamos que as gentes venham ao mundo com um crédito-palavra determinado, o qual se
pode fazer crescer com o bom uso, ou diminuir com o uso indiscriminado, como numa bolsa
de valores da linguagem. Assim como o mundo está à beira da falência, estou para dizer que
teríamos uma percentagem grande, talvez mesmo majoritária, da população que seria neste
momento emudecida, privada do uso da palavra por conta de investimentos mal feitos: ações
do besteirol enlatado da vida quotidiana; das opiniões infundadas na base fantasma do
achismo; da intolerância raivosa; da tolerância falsa e mentirosa; entre outras tantas empresas
de péssima reputação no mercado da palavra.
Isso dito, ciente de que no mais das vezes usamos a palavra para dizer besteira, e que
por vezes essas besteiras podem ferir, ou mesmo matar, o uso indiscriminado da palavra tem
seu lado positivo, seu lado terapêutico. Nada como um bom palavrão, bem colocado, dito na
hora e na intensidade certas. Há anos também venho estudando o poder curativo da palavra
“merda”, e sou contra todo Estado totalitário que proíba o uso deste monumento da linguagem
humana. Em cada língua esta palavra tem, digamos, um gosto diferente, mas em todas as
línguas em que a conheço (tenho como hobby colecionar esta palavra, quiçá para vende-la no
mercado de ações quando esse mundo enlouquecido começar a feder) ela produz sempre
aquele efeito liberador de tensões, que vai do intestino à alma.
Além disso, a tal liberdade de expressão, que me permite dizer em alto e bom tom a
palavra “merda”, também me dá a liberdade de dizer que detesto aquela gente de bem que só
vê o lado positivo da vida. Eita! Coisa mais chata! Imagino então um outro cenário:
suponhamos estar vivendo num Estado onde as pessoas são obrigadas a ver tudo pelo lado
positivo, onde ninguém pode ver um copo meio-vazio quando o copo está cheio pela metade;
onde ninguém pode dizer merda quando dá um tropeço pois isso seria desconsiderar o
aprendizado inerente aos tropeços; onde alguém que se diga de saco cheio é preso por
atentado ao pudor segundo o parágrafo terceiro do código de ética do tudo-azul; onde todo
mundo é ecologista; socialmente engajado; politicamente correto; escoteiro; coroinha; doador
de sangue e afins; catador de papéis deixados ao léu na calçada; onde ninguém fura fila ou
sinal, nem ultrapassa em faixa contínua ou estaciona e fila dupla. Ufa! Já começo a sentir
enjoo.
Pois esta seria uma tirania cruel, e deselegante. E tenho medo do que as pessoas de
bem podem fazer num cenário como este! Linchariam o pobre coitado que insiste em dizer
“merda” porque de fato foi vítima de uma pomba desarranjada? Trancafiariam atrás das
grades o dissidente que assume sua tristeza? Pois eu seria certamente preso numa tal
sociedade. Faria panfletagens clandestinas em nome da desilusão, distribuiria chicletes
mascados e convidaria as forças de oposição a coloca-los na calçada, depois de humedece-los
com mais algumas mastigadas, a fim de sujar os sapatos dos cidadãos de bem.
Num caso como este, entre tantos outros, é evidente que a liberdade de expressão
precisaria ser defendida com unhas e dentes. Mas isso justifica falarmos pelos cotovelos?

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