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Os poderes da arte à prova do nojo1

Carole Talon-Hugon
Universidade de Nice

É exclusivamente do nojo [dégoût] físico que será questão aqui. O nojo físico é
frequentemente associado ao nojo moral como no caso de um crime atroz, mas não deve por
isso ser confundido com este: o nojo experimentado no contato com uma superfície viscosa
não produz nenhuma repugnância de tipo moral. Por outro lado, o cinismo diabólico de
Ricardo III, na peça homônima de Shakespeare, inspira uma profunda aversão moral, mas não
produz náusea ou enjoo [haut-le-coeur]. Isolado desta forma dos sentimentos complexos no
interior dos quais ele pode entrar como componente, o nojo dispõe de um campo de objetos
(intencionais) relativamente limitado2. Em uma obra intitulada Le Dégoût, Aurel Kolnai
estabelece quais são seus objetos típicos: “a podridão (o definhamento de um corpo vivo,
putrefação, decomposição, odor cadavérico, “em geral tudo aquilo que é passagem do vivente
ao estado de morto”), os excrementos, as secreções, os bichos rastejantes como as lesmas ou
assimilados a parasitas como o rato. Em suma, o vivente que se desagrega, aquilo que infesta,
adere, se aglutina, pulula, boia” (Kolnai, 1997). Eu posso experimentar desprazer diante deste
ou daquele tipo de paisagem, execração ou repugnância diante de uma baixeza ou de uma
ação imoral, mas não o nojo. A lista dos objetos intencionais do nojo não diz respeito nem ao
campo do inanimado nem ao da ética: ele está circunscrito ao campo do orgânico.
É inegável que certas obras de arte contemporânea flertem com o nojo: Autorretratos
fotográficos de David Nebreda representando o rosto coberto de excrementos, escarificações
da Body Art, performances sangrentas dos Accionistas vienenses, trabalhos de Kiki Smith, de
Robert Gober, de Mike Kelley, de Sue Williams, de Nancy Spero, ou de Paul McCarthy, etc.
A exposição no Whitney Museum em 1993 intitulada “Abject Art: Repulsion and Desire in
American Art”, ou aquela de 1996 no Beaubourg: “Feminino masculino”, na qual órgãos
sexuais, orifícios e secreções corporais são onipresentes, são ainda outros indícios. Rosalind
Krauss fala do “impulso irresistível da abjeção como modalidade expressiva” (Krauss, 1996,
p. 233); Jean Clair afirma que o imundo é “a categoria privilegiada da arte dos dias atuais”
(Clair, 2004, p. 12); e o projeto elaborado por Claude Gintz para o museu de arte moderna da
1
Tradução livre de TALON-HUGON, Carole. Les pouvoirs de l’art à l’épreuve du dégoût. Ethnologie française.
Paris: Presses Universitaires de France. XLI, 2011, 1, pp. 99-106.
2
Esta afirmação vale para uma antropologia do nojo que o considere como afeto determinado por fatores
biopsicológicos sem dúvida resultantes da evolução. O que não significa que o nojo deixe de ter, assim como os
outros afetos, formas e objetos culturalmente determinados. Cf. sobre este ponto, o capítulo “Naturalidade e
culturalidade das paixões” in Carole Talon-Hugon (2004).
cidade de Paris, intitulado “Do informe ao abjeto”, enuncia claramente que o abjeto tornou-se
com efeito a forma contemporânea do informe.
Donde o seguinte problema: o nojo é um sentimento negativo; ele é uma perturbação
brutal da consciência que se vê invadida por uma percepção sensorial fortemente incômoda,
acompanhada por reações fisiológicas profundas (náuseas, enjoos, vômitos), uma confusão
violenta e penosa. Ele suscita uma reação de fuga ou de rejeição que provoca o afastamento
do objeto que o ocasiona. Ora, a arte, mesmo que ela não possa mais ser tão simplesmente
definida como no século XVIII por sua finalidade hedonista, permanece todavia ligada à ideia
de satisfação estética, qualquer que seja a complexidade desta noção. A questão, por
conseguinte, é: a arte pode continuar a perseguir esta finalidade escolhendo seus temas nos
objetos intencionais do nojo? Assim colocada, a questão é no entanto muito ampla, cada arte
declinando-a em termos específicos. Eu centrarei então minha análise sobre o caso de uma só
arte, a fotografia, e mais precisamente sobre uma única obra, escolhida entre aquelas evocadas
acima: um autorretrato de David Nebreda se representando o rosto coberto de excrementos.

1 Três argumentos
Três argumentos convidam a responder inicialmente de forma afirmativa à questão
de saber se a arte pode transfigurar o nojo. O primeiro é uma constatação muito antiga,
recentemente estudada sob a denominação de paradoxo dos afetos negativos. O segundo
evoca um dever ser da atitude estética, que surgiu no século XIX e que permanece, ainda hoje,
dominante. O terceiro convoca um exemplo particular. Consideremo-los um a um.

1.1 O paradoxo dos afetos negativos


O paradoxo dos afetos negativos designa o fato de que a arte é capaz de estetizar uma
série de coisas: o feio, o banal, o trágico, a morte, o sofrimento, etc. Por uma estranha
alquimia, ela permite superar a negatividade dos sentimentos que acompanham
ordinariamente tais espetáculos. Entre muitos outros, Santo Agostinho percebia este paradoxo
em relação ao espetáculo teatral: “o espectador quer sentir a aflição do espetáculo (aventuras
trágicas e lamentáveis), e nesta aflição consiste seu prazer” (Agostinho (santo), 1964, p. 50).
O que vale para a experiência do teatro vale para aquela da pintura ou da literatura, e mais
amplamente para todas as artes da representação. A satisfação, longe de ser extinta ou
diminuída pela presença destes afetos negativos que são o medo, a indignação, a tristeza ou a
compaixão [pitié], parece de fato aumentada. A arte possui o poder de resgatar [racheter] a
feiura e o mal e, ao faze-lo, de agradar ao transmutar os sentimentos de desprazer, de
indiferença, ou até mesmo de repugnância que tais objetos provocam na vida cotidiana,
quando fora de sua representação.
Se a tristeza, a indignação e a compaixão – sentimentos diferentes mas igualmente
associados a um mal e, em consequência, penosos de serem experimentados – podem ser os
ingredientes paradoxais de um prazer da tragédia, o nojo não pode também ser transfigurado?
O enunciado do paradoxo não é sua resolução e essa constatação [constat] não nos permite
saber como uma tal transfiguração opera, mas ele constata que o paradoxo se produz e
convida a considerar que esse resgate [rachat] possa se estender também ao nojo.

1.2 A contemplação desinteressada


O segundo argumento reside na invocação do que deve ser a experiência artística.
Desde o final do século XVIII, desenvolveu-se a ideia de que a experiência das obras de arte
não é a experiência dos objetos e dos acontecimentos do mundo, e que não se pode colocar
num mesmo plano – portanto em concorrência, o desprazer ordinariamente sentido em relação
aos objetos representados e o prazer experimentado em sua representação. A experiência da
arte, com efeito, supõe certa atitude, teorizada a partir de Kant através da palavra desinteresse
[désintéressement]. Estar na boa disposição estética para abordar a arte é considerar suas
obras independentemente dos seres, das coisas e dos valores do mundo; é considera-las por si
mesmas, com uma atenção qualificada por Vivas de “intransitiva”, ou seja, contempla-las em
sua dimensão de existência puramente sensível. No caso da obra pictural ou fotográfica, isso
significa considerar não sua dimensão material (tela, papel, pigmentos), não sua dimensão
icônica (o que ela representa) ou temática (o que ela significa), mas somente sua dimensão
sensível e fenomenal. O formalismo que domina a estética desde o século XIX e que
permanece ainda largamente dominante nos dias de hoje defende que só devem ser levadas
em conta estas qualidades da obra que são o estilo, as cores e as formas, os sons e os ritmos,
independentemente do que representam, exprimem ou significam. Em fins do século XIX,
Fiedler enunciava claramente esta recusa da referência e da significação, e defendia um ver
puro, ou seja, um ver que só diz respeito à luz e às cores: “o ver alcança por assim dizer a si
mesmo quando desapareceu a relação ao objeto” (Fiedler, 2003, p. 69). As artes plásticas são
apenas uma questão de formas. A atitude estética seria precisamente aquela que nos permite
ver e escutar aquilo que não vemos ou escutamos ordinariamente: as dimensões sensíveis dos
objetos, comumente negligenciadas na vida pelas exigências da ação.
Uma tal invocação do que deve ser a boa atitude estética permite acolher os objetos
intencionais do nojo na arte, uma vez que estes objetos, como todos os outros objetos
possíveis da representação, não interessam, ou seja não são vistos. Estamos aqui muito
distantes do primeiro argumento examinado, pois este evocava um sentimento negativo
superado, transfigurado ou transmutado, mas sempre ainda assim experimentado [éprouvé].
Aqui, ao contrário, não há lugar para tais sentimentos. É o paradoxo mesmo dos afetos
negativos que desaparece por esta razão simples e radical de que não haveria mais lugar na
experiência da arte para afetos negativos tais como o medo, tristeza ou nojo, pois que eles
supõem objetos, e os objetos se dissolveram em qualidades de aparência [qualités
aspectuelles]. A dimensão icônica (o que é representado) não é mais pertinente: não se
contempla mais o duque de Olivares, mas um Vélasquez; não mais uma mulher vista de perfil
sentada numa cadeira com os pés colocados sobre um banquinho baixo, e sim um
Arrangement en gris et noir (Whistler); não mais uma mulher nua, um cavalo de batalha ou
uma qualquer anedota, mas, de acordo com a fórmula de Maurice Denis, “uma superfície
plana recoberta de cores reunidas numa determinada ordem”. Nestas condições, os
sentimentos negativos se esvaem ao mesmo tempo que os objetos que os suscitavam.
As emoções que conservam alguma legitimidade [droit de cité] na experiência das
artes visuais são emoções muito específicas: aquelas que são provocadas apenas pelos seus
valores plásticos; não por formas a serviço de conteúdos, mas por esses elementos puros que
são as linhas, os ritmos, as massas, o espaço, a sombra, a luz e as cores. Apollinaire, a respeito
da pintura, insiste sobre sua especificidade: “os pintores novos proporcionam já a seus
admiradores sensações artísticas que se devem unicamente à harmonia de luzes e sombras, e
independentemente do tema retratado no quadro” (Apollinaire, 1997, p. 215). E Baudelaire,
em A obra e a vida de Eugène Delacroix, fustiga o espectador que se apegaria ao tema de uma
tela que representa “os membros de um mártir despedaçado”; o bom espectador se liga apenas
ao modo [manière]: “uma figura bem desenhada preenche-o de um prazer de todo distinto do
tema. Voluptuosa ou terrível, esta figura deve seu charme apenas ao arabesco que ela delineia
[découpe] no espaço” (Baudelaire, 1963, p. 1124-1125).
No contexto desta doxa cultivada, qualquer objeto pode ser estetizado. Se, com
efeito, de acordo com a fórmula de Gérard Genette, “não é o objeto que torna estética a
relação, mas sim a relação que torna estético o objeto” (Genette, 1997, p. 18), todos os
objetos, inclusos aí os que suscitam nojo, podem ser transmutados pela arte, pois a qualidade
estética lhes é atribuída por certo tipo de olhar. Acomodar-se na fenomenalidade do que é
pintado impede pura e simplesmente a constituição da imagem e consequentemente a
produção de seus efeitos.
1.3 A raia de Chardin
Terceiro argumento, bem mais breve pois ele consiste em evocar um exemplo: o do
quadro de Chardin intitulado A raia. Ele representa incontestavelmente um objeto nojento: um
peixe eviscerado e sangrento, e no entanto ele não deixa de suscitar prazer e admiração.
Eis aqui então uma aplicação particular do paradoxo das emoções negativas ao caso
do nojo. O comentário de Diderot a este quadro esclarece tanto o nojo quanto a aplicação do
paradoxo. Dirigindo-se ao pintor Jean-Baptiste Pierre, ele escreve: “o objeto é nojento, mas é
a carne mesma do peixe, é a sua pele, é seu sangue; o aspecto mesmo da coisa não
influenciaria de outro modo. Senhor Pierre, olhe bem este quando quando for à Academia, e
aprenda, se puder, o segredo de salvar pelo talento o nojo de certas naturezas (Diderot, 1991,
p. 484). O espectador experimenta de fato nojo, porém ele experimenta um outro sentimento
que suplanta o primeiro: a admiração pelo talento do pintor. O gênio da representação permite
ultrapassar o nojo do representado. O prazer pela pintura ocorre apesar do desprazer infligido
por seu tema. A satisfação proporcionada pelo caráter pictórico [par la picturalité] do que foi
pintado se sobrepõe aos sentimentos suscitados pelo que a tela representa.

2 Avaliação crítica dos três argumentos


Devemos, portanto, concluir desses três argumentos que os objetos intencionais do
nojo possuem seu lugar de direito na arte e, mais precisamente, dado o caso que nos ocupa
aqui, que a fotografia de David Nebreda pode constituir-se como objeto de experiência
estética da mesma forma que qualquer outro objeto do mundo? Não; a resposta não poderia
ser mais simples. É o que veremos ao retomar um a um esses três argumentos.

2.1 Os limites do formalismo


Eu começarei pelo segundo, mostrando em quê este argumento formalista é, em sua
radicalidade, insustentável. Esta estética 3 formalista aplica-se indiferentemente a qualquer
imagem? Não: tomemos o caso da pintura; é de modo muito diverso que ela se presta à
atenção intransitiva - ou seja, ao olhar que se detém nas cores e nas formas sem avançar até o
que elas representam –, a depender de estarmos lidando com telas figurativas, semi-
figurativas ou abstratas. Sem dúvida, uma imagem só existe na e para uma consciência, mas
ela não é por isso puramente subjetiva: ela sobrevém [survient] das propriedades formais da
tela, de certo agenciamento dos traços. Em certos casos, este agenciamento é pouco restritivo
[contraignant], como em Le Parc de Sceaux ou Agrigente de Nicolas de Staël. Noutros, por
3
Designo por meio desta palavra o ramo da estética que se interessa pela recepção das obras.
exemplo na totalidade da pintura acadêmica, [o agenciamento] é bem mais [limitante]. Nesse
último caso, e em condições normais de percepção, as propriedades puramente sensíveis da
pintura figurativa se organizam efetivamente em objetos. Não é de espantar que, cento e vinte
anos antes dos inícios da abstração em pintura, Kant, tratando do prazer estético
proporcionado pelas belas artes, escolha como exemplos “os desenhos à grega, os arabescos
sobre os enquadramentos ou sobre papéis de parede, etc.”. É que lá onde o sujeito subsiste, a
emoção estética é impura. É preciso, por conseguinte, agenciamentos formais que “não
signifiquem nada em si mesmos; [que] não representem nada, nenhum objeto com um [sous
un ]conceito determinado” (Kant, 1974, §16).
A intransitividade do olhar reivindicada pela estética formalista não significa
portanto não ver o representado, mas sim não se deter nele. A isso se soma o fato de que as
imagens não possuem todas a mesma força de confisco da atenção. E o que faz a diferença
são suas cargas patéticas [charges pathétiques] respectivas: uma natureza morta não possui a
mesma carga patética do Bara de David. Tanto mais o tema é anódino, qualquer,
negligenciável, mais nós podemos deslizar sobre ele. Tanto mais ele é afetivamente
carregado, mais ele retém. Como o escreveu Wilde: “Enquanto um objeto nos afetar de
qualquer modo (em prazer ou em sofrimento), ele está fora da esfera da arte. Um tema
artístico nos deve ser mais ou menos indiferente” (Wilde, 1986). Ora, precisamente, os
objetos intencionais do nojo são afetivamente muito carregados, o que torna difícil sua
acomodação apenas nas qualidades de aparência do quadro. Quando muito, é com um vai-e-
vem entre a dimensão icônica e a dimensão fenomenal que teremos de lidar. Por conseguinte,
o argumento formalista não se aplica aqui, e não permite, portanto, que se responda
afirmativamente à questão do resgate do nojo pela arte.

2.2 A natureza do nojo


Quanto ao argumento do paradoxo dos afetos negativos, ele não sai enfraquecido
desta análise, pois ele incide sobre afetos provocados por objetos representados. Ele estipula,
lembremos, que a arte transfigura as paixões negativas e que este poder de transfiguração
pode ser estendido ao nojo. Está nisso precisamente toda a questão. O nojo é um afeto
negativo como a tristeza, a compaixão, a indignação? Da resposta a essa questão depende a
resposta à questão precedente.
É interessante notar que a estética clássica, seja ela a de um Kant ou a de um Hume,
ao tempo em que afirma que a arte pode transmutar a feiura natural em beleza artística, exclui
desse processo de transfiguração apenas um tipo de objeto: aqueles que, precisamente,
excitam naturalmente o nojo. Assim, Kant escreve no parágrafo 48 da Crítica da faculdade de
julgar: “As fúrias, as doenças, as devastações da guerra, etc., podem, enquanto coisas nocivas,
ser descritas de modo muito belo e podem mesmo ser representadas por pinturas; apenas uma
forma de feiura não pode ser representada de forma natural sem aniquilar toda satisfação e,
por consequência, toda beleza artística: é aquela que excita o nojo (Eckel)” (Kant, op. cit.,
§48). Hume, por sua vez, afirma em sua pequena Sobre a tragédia: “Uma ação figurada numa
tragédia pode ser demasiado sangrenta e demasiado atroz. Ela pode excitar tamanhos
movimentos de horror que não se atenuarão em prazer. A maior força de expressão,
consagrada a descrições dessa natureza, consegue apenas aumentar nosso mal-estar. Uma
ação desse tipo é representada em L’Ambitieuse Belle-Mère [A madrasta ambiciosa]4, onde
um venerável velho homem, no qual a fúria e o desespero são levados ao paroxismo,
precipita-se contra uma pilastra, batendo nela com sua cabeça e espalhando por todo lado
pedaços de massa encefálica e sangue misturados. O teatro inglês abusa de representações tão
chocantes quanto esta” (Hume, 1994, p. 113). Por que esses autores autorizam o monstruoso
(“as fúrias”), o degenerescente (“as doenças”), o mórbido (“as devastações da guerra”) e
interditam o que é nojento? Para responder a esta questão e por conseguinte saber se a arte
pode estetizar os objetos do nojo e, in fine, metamorfosear o desgosto em prazer, é preciso
realizar uma análise deste afeto.
Tomado no sentido físico que é o único que nos retém aqui, o nojo é uma emoção e
não um sentimento, ou seja, um afeto intenso, breve e repentino. Assim como nas outras
emoções, há pouco lugar no nojo para julgamento: o medo que me submerge precede as
razoes de ter medo; a cólera me invade antes que eu tenha claramente consciência do que não
tolero; o nojo me “abraça” independentemente do saber de uma hipotética razão para esta
repugnância. A dimensão somática do nojo é, por outro lado, bastante pronunciada: ele
comove o corpo por meio de uma perturbação fisiológica momentânea que diz respeito
notadamente ao aparelho digestivo e circulatório. O nojo faz parte desse pequeno grupo de
emoções ditas “primitivas”, respostas inatas e pré-organizadas relativas a esta zona do cérebro
que é o sistema límbico (Damásio, 1996): a alegria, a tristeza, a surpresa, o medo, a cólera e o
nojo (Griffiths, 1997). A neurobiologia nos ensina que estes são programas afetivos limitados
em número e flexibilidade. O homem os compartilha com outros mamíferos. Estes são
também os primeiros afetos que observamos no decorrer do desenvolvimento da criança5.

4
Peça de Nicolas Rowe, 1673 – 1718.
5
Observações de psicólogos permitem estabelecer que o contentamento e o descontentamento aparecem em
primeiro lugar, seguidos pela surpresa e pela cólera, e depois por nojo e medo. Ver M. Lewis e J. Haviland
(1993).
Este conjunto de características permite compreender porque o nojo não se deixa
superar facilmente. Esta emoção está, de certo modo, em excesso sobre a consciência. Ela é
desproporcional à vontade. A despossessão momentânea de si que ela significa torna quase
impossível seu controle. Sobre esta emoção não intelectualizada, o raciocínio não tem
aderência [prise]: eu sinto repugnância ao tocar uma lesma que eu sei todavia que é de
borracha. É que os circuitos neurológicos da reação não são os mesmos daqueles do
julgamento e resistem por isso mesmo ao desmentido que vem de um sistema cognitivo de
nível superior (neocortex).
A brutalidade deste afeto (ele surge quando de uma percepção sensorial – olfativa,
visual, tátil... –, sem a mediação de julgamentos e de avaliações), seu caráter intrusivo (ele
afeta não somente a alma mas o corpo) e seu arcaísmo fazem dela uma emoção invasiva,
incontrolável, largamente indomável. A indignação, a compaixão ou a tristeza,
experimentados em face dos eventos trágicos representados pelas artes visuais são bem
diferentes. Trata-se de sentimentos que pressupõem a mediação de saberes e de julgamentos;
seu caráter secundário permite a distância que dá o saber de seu caráter ficcional (leur
caractère secondaire permet la distance que donne le savoir de leur caractère fictionnel).
Mesmo se um sentimento experimentado em relação a um objeto ficcional é verdadeiro, a
consciência desta ficcionalidade faz com que este sentimento permaneça como que na
superfície do coração, e que comova sem perturbar. Esta superficialidade o torna controlável e
superável. Não se passa o mesmo com o nojo, sobre o qual Kant notava precisamente que “a
representação artística do objeto não está mais em nossa sensação distinta da natureza mesma
do objeto” (Kant, ibid.).
Assim, não podemos tratar de modo indistinto todos os afetos: o que vale para os
sentimentos não pode ser importado sem precauções às emoções em geral, e ao nojo em
particular.

2.3 Chardin e Nebreda


E no entanto, o terceiro argumento que vimos não nos convida a concluir através do
exemplo de A raia o resgate possível do nojo pela arte? O que vale para a tela de Chardin não
pode valer para a fotografia de David Nebreda?
Sem dúvida, as duas obras possuem certa quantidade de pontos em comum: elas são,
todas as duas, representações visuais de objetos intencionais do nojo. Mas dois pontos no
mínimo as separam.
Seus suportes respectivos, inicialmente. A imagem pictural figurativa se dá pelo
duplo mimético de seu referente; a fotografia (analógica, é necessário precisar), é sua
impressão [do referente]. A técnica fotográfica permite à própria coisa de se pintar sobre a
superfície sensível do filme. Na categorização de Peirce, uma fotografia é da ordem do indício
e não do ícone, ou seja, ela entretém com seu modelo uma relação não apenas de similitude
mas de causalidade (Peirce, 1992). Assim como a cinza é indício de fogo, a imagem
fotográfica é indício de que o referente esteve presente e desempenhou seu papel de causa. A
gênese bastante peculiar deste tipo de imagem faz da fotografia um suporte de afetos de uma
vivacidade particular, cujos estudos de Walter Benjamin ou de Roland Barthes, entre tantos
outros, nos fizeram notar (La genèse très particulière de ce type d’image fait de la photo-
graphie un support d’affects d’une vivacité particulière dont, entre beaucoup d’autres, les
études de Walter Benjamin ou de Roland Barthes ont bien rendu compte). Também para os
objetos do nojo, a natureza particular deste suporte aumenta a força da emoção. Sua
transparência acentua o afeto a ponto de interditar seu ultrapassamento por outro mais forte
(admiração pelo enquadramento escolhido, a objetiva, o filme e o papel utilizados, a
impressão realizada, etc.).
Uma outra diferença, importante para nosso propósito, separa estas duas obras: suas
datas de criação. A raia de Chardin data de 1728; o autorretrato de Nebreda de 1994. Mais de
século e meio nos separa de Chardin. Ora, o tempo que passa “classicisa” as obras, abranda
seus efeitos, recobre com um véu de idealidade os temas mais patéticos. Nós não choramos
mais diante de uma Virgem em lágrimas de Dirk Bouts, e sentimos certamente bem menos
repulsa ao ver A raia do que sentiram os contemporâneos de Chardin. O enfraquecimento de
nossas reações se deve também ao fato de que, no decorrer do século e meio que nos separa
de Chardin, a arte inventou novos suportes, e ao círculo das cinco belas-artes canônicas
(literatura, pintura, escultura, música e arquitetura) somaram-se a fotografia, o cinema, os
ready-made, as performances, o vídeo, etc. Da mesma forma, não é somente por que nós a
reproduzimos e vimos bastante que A raia nos afeta menos, mas também pelo fato de que
nossas expectativas em termos de realismo mudaram: o realismo de uma tela pintada
empalidece ao lado de uma imagem fotográfica, e a época [âge] de nosso olhar faz com que
nossas reações diante desta tela não sejam aquelas que teriam tido o homem do século XVIII.
Não podemos por conseguinte concluir do prazer que sentimos com A raia que a
mesma reação deva ser esperada diante do autorretrato de Nebreda: o que poderíamos chamar
de circunstâncias da representação desempenha um papel não negligenciável em nossas
reações afetivas.
Desta feita, por conseguinte, existem evidentemente limites afetivos aos poderes de
estetização da arte, e o nojo é um desses limites. Mas a demarcação desses limites é algo
delicado: ela depende da conjugação de três fatores que são: a natureza do afeto (as emoções
são menos estetizáveis que os sentimentos), a natureza do suporte (seu grau de realismo) e a
época do olhar. A crença modernista na plenipotência da arte, unida à recusa formalista de
considerar na experiência da arte outra coisa que não afetos especificamente estetizados,
impediu por um longo tempo de o admitir. Curioso notar como o colocar em xeque esta dupla
postulação é o próprio fato da arte quando, em algumas de suas formas contemporâneas, ele
joga com os objetos intencionais do nojo, sem que possamos saber sempre ao certo se este
colocar em xeque repousa numa confiança indefectível em seus postulados ou significa sua
contestação.

Referências bibliográficas

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