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Carole Talon-Hugon
Universidade de Nice
É exclusivamente do nojo [dégoût] físico que será questão aqui. O nojo físico é
frequentemente associado ao nojo moral como no caso de um crime atroz, mas não deve por
isso ser confundido com este: o nojo experimentado no contato com uma superfície viscosa
não produz nenhuma repugnância de tipo moral. Por outro lado, o cinismo diabólico de
Ricardo III, na peça homônima de Shakespeare, inspira uma profunda aversão moral, mas não
produz náusea ou enjoo [haut-le-coeur]. Isolado desta forma dos sentimentos complexos no
interior dos quais ele pode entrar como componente, o nojo dispõe de um campo de objetos
(intencionais) relativamente limitado2. Em uma obra intitulada Le Dégoût, Aurel Kolnai
estabelece quais são seus objetos típicos: “a podridão (o definhamento de um corpo vivo,
putrefação, decomposição, odor cadavérico, “em geral tudo aquilo que é passagem do vivente
ao estado de morto”), os excrementos, as secreções, os bichos rastejantes como as lesmas ou
assimilados a parasitas como o rato. Em suma, o vivente que se desagrega, aquilo que infesta,
adere, se aglutina, pulula, boia” (Kolnai, 1997). Eu posso experimentar desprazer diante deste
ou daquele tipo de paisagem, execração ou repugnância diante de uma baixeza ou de uma
ação imoral, mas não o nojo. A lista dos objetos intencionais do nojo não diz respeito nem ao
campo do inanimado nem ao da ética: ele está circunscrito ao campo do orgânico.
É inegável que certas obras de arte contemporânea flertem com o nojo: Autorretratos
fotográficos de David Nebreda representando o rosto coberto de excrementos, escarificações
da Body Art, performances sangrentas dos Accionistas vienenses, trabalhos de Kiki Smith, de
Robert Gober, de Mike Kelley, de Sue Williams, de Nancy Spero, ou de Paul McCarthy, etc.
A exposição no Whitney Museum em 1993 intitulada “Abject Art: Repulsion and Desire in
American Art”, ou aquela de 1996 no Beaubourg: “Feminino masculino”, na qual órgãos
sexuais, orifícios e secreções corporais são onipresentes, são ainda outros indícios. Rosalind
Krauss fala do “impulso irresistível da abjeção como modalidade expressiva” (Krauss, 1996,
p. 233); Jean Clair afirma que o imundo é “a categoria privilegiada da arte dos dias atuais”
(Clair, 2004, p. 12); e o projeto elaborado por Claude Gintz para o museu de arte moderna da
1
Tradução livre de TALON-HUGON, Carole. Les pouvoirs de l’art à l’épreuve du dégoût. Ethnologie française.
Paris: Presses Universitaires de France. XLI, 2011, 1, pp. 99-106.
2
Esta afirmação vale para uma antropologia do nojo que o considere como afeto determinado por fatores
biopsicológicos sem dúvida resultantes da evolução. O que não significa que o nojo deixe de ter, assim como os
outros afetos, formas e objetos culturalmente determinados. Cf. sobre este ponto, o capítulo “Naturalidade e
culturalidade das paixões” in Carole Talon-Hugon (2004).
cidade de Paris, intitulado “Do informe ao abjeto”, enuncia claramente que o abjeto tornou-se
com efeito a forma contemporânea do informe.
Donde o seguinte problema: o nojo é um sentimento negativo; ele é uma perturbação
brutal da consciência que se vê invadida por uma percepção sensorial fortemente incômoda,
acompanhada por reações fisiológicas profundas (náuseas, enjoos, vômitos), uma confusão
violenta e penosa. Ele suscita uma reação de fuga ou de rejeição que provoca o afastamento
do objeto que o ocasiona. Ora, a arte, mesmo que ela não possa mais ser tão simplesmente
definida como no século XVIII por sua finalidade hedonista, permanece todavia ligada à ideia
de satisfação estética, qualquer que seja a complexidade desta noção. A questão, por
conseguinte, é: a arte pode continuar a perseguir esta finalidade escolhendo seus temas nos
objetos intencionais do nojo? Assim colocada, a questão é no entanto muito ampla, cada arte
declinando-a em termos específicos. Eu centrarei então minha análise sobre o caso de uma só
arte, a fotografia, e mais precisamente sobre uma única obra, escolhida entre aquelas evocadas
acima: um autorretrato de David Nebreda se representando o rosto coberto de excrementos.
1 Três argumentos
Três argumentos convidam a responder inicialmente de forma afirmativa à questão
de saber se a arte pode transfigurar o nojo. O primeiro é uma constatação muito antiga,
recentemente estudada sob a denominação de paradoxo dos afetos negativos. O segundo
evoca um dever ser da atitude estética, que surgiu no século XIX e que permanece, ainda hoje,
dominante. O terceiro convoca um exemplo particular. Consideremo-los um a um.
4
Peça de Nicolas Rowe, 1673 – 1718.
5
Observações de psicólogos permitem estabelecer que o contentamento e o descontentamento aparecem em
primeiro lugar, seguidos pela surpresa e pela cólera, e depois por nojo e medo. Ver M. Lewis e J. Haviland
(1993).
Este conjunto de características permite compreender porque o nojo não se deixa
superar facilmente. Esta emoção está, de certo modo, em excesso sobre a consciência. Ela é
desproporcional à vontade. A despossessão momentânea de si que ela significa torna quase
impossível seu controle. Sobre esta emoção não intelectualizada, o raciocínio não tem
aderência [prise]: eu sinto repugnância ao tocar uma lesma que eu sei todavia que é de
borracha. É que os circuitos neurológicos da reação não são os mesmos daqueles do
julgamento e resistem por isso mesmo ao desmentido que vem de um sistema cognitivo de
nível superior (neocortex).
A brutalidade deste afeto (ele surge quando de uma percepção sensorial – olfativa,
visual, tátil... –, sem a mediação de julgamentos e de avaliações), seu caráter intrusivo (ele
afeta não somente a alma mas o corpo) e seu arcaísmo fazem dela uma emoção invasiva,
incontrolável, largamente indomável. A indignação, a compaixão ou a tristeza,
experimentados em face dos eventos trágicos representados pelas artes visuais são bem
diferentes. Trata-se de sentimentos que pressupõem a mediação de saberes e de julgamentos;
seu caráter secundário permite a distância que dá o saber de seu caráter ficcional (leur
caractère secondaire permet la distance que donne le savoir de leur caractère fictionnel).
Mesmo se um sentimento experimentado em relação a um objeto ficcional é verdadeiro, a
consciência desta ficcionalidade faz com que este sentimento permaneça como que na
superfície do coração, e que comova sem perturbar. Esta superficialidade o torna controlável e
superável. Não se passa o mesmo com o nojo, sobre o qual Kant notava precisamente que “a
representação artística do objeto não está mais em nossa sensação distinta da natureza mesma
do objeto” (Kant, ibid.).
Assim, não podemos tratar de modo indistinto todos os afetos: o que vale para os
sentimentos não pode ser importado sem precauções às emoções em geral, e ao nojo em
particular.
Referências bibliográficas
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