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Colóquios sobre o conceito Arte

Artur- Ainda bem que decidimos fazer uma viagem de finalistas diferente. Hoje vamos visitar
um museu onde podemos encontrar várias obras de diferentes estilos.

Jacinta- Podemos aproveitar este tempo no bar do museu para tomar o pequeno-almoço.

Flávia- Preferia que tivéssemos escolhido outro sítio para passarmos o dia. Não me interesso
muito pela observação da arte.

Marcelo- Para fazeres essa afirmação, devias primeiro refletir sobre a definição de arte.

Flávia- Na realidade, nunca pensei nesse problema.

Marcelo- É mesmo um problema. Identificar os objetos, as atividades, ou atitudes que podem


ser consideradas arte é uma tarefa quase impossível porque implicaria sempre restringir este
conceito. No entanto, existe um princípio que dificilmente pode ser refutado: a arte e o ser
humano são indissociáveis. É longa a reflexão filosófica sobre o termo arte. Durante um longo
período da história nunca existiu uma definição clara entre artesanato ou artes mecânicas e
objetos, atividades e atitudes que pretendiam expressar ideias, sentimentos ou emoções
estéticas. Para mim a estética, para usar uma definição simples, é a área da filosofia que
reflete sobre o ideal da beleza formal definida numa determinada época.

Tó Zé- Já sabem que eu prefiro a prática à teoria. Eu concordo com o Marcelo quando ele diz
que este é um problema importante sobre o qual devemos refletir, pois existe uma relação
íntima entre o ser humano e a arte, chegando ao ponto de se afirmar a arte como condição de
humanidade. As obras de arte exigem um suporte material, através do qual o autor comunica
emoções, sentimentos e ideias. É relevante refletirmos sobre esses atos comunicacionais que
implicam uma intencionalidade de quem os produz e de quem os pretende fruir. Se
considerarmos que a arte é forma e conteúdo, fruto de uma ação humana, temos de
concordar que tem de existir, de certo modo, uma teoria relacionada com os seus modos de
produção e perceção. A obra de arte, depois de materializada torna-se em objeto artístico,
aberto às mais diferentes interpretações.

Artur- Eu gosto de valorizar o indivíduo e a subjetividade na observação dos mais diferentes


objetos artísticos: uma pintura, uma escultura, um edifício, uma música, uma peça de teatro,
um filme e outros. Estas leituras variam de acordo com as diferentes personalidades e
contextos culturais, sociais e históricos de quem observa. Com os objetos artísticos estamos
sempre perante um plural de sentidos.

Rita- Mas isso não consigo compreender. A arte não pode ser uma atividade unicamente
subjetiva, pois, também é relevante tentar compreender os motivos pelos quais alguns objetos
artísticos adquirem características de um valor universal e intemporal, ou seja, fazem sentido
para muitos seres humanos que existiram ou existem em diferentes contextos históricos e
culturais.

Jacinta- Em suma, os objetos artísticos expressam interpretações e emoções que só outro ser
humano é capaz de interpretar. Olhem! As salas do museu estão a abrir. Podemos iniciar a
nossa visita. Para ser mais interessante, cada um de nós vai ter de escolher uma obra que
melhor se identifique com a sua definição de arte.

Rita- Se todos concordarem posso ser eu a primeira. Já sei para que sala vou. No primeiro
andar, à esquerda temos a sala dos naturalistas. Vários pintores da Escola de Barbizon, vejam
este quadro do pintor Silva Porto.

Tó Zé- Já ouvi falar dele. Era professor de pintura e paisagem na escola de Belas Artes em
Lisboa.

Rita- Para mim a arte é a capacidade técnica de reproduzir a natureza, ou seja, as coisas tal
como os nossos olhos as conseguem ver.

Marcelo- Essa era a definição de arte dos filósofos da Grécia Clássica. Platão e Aristóteles
defendiam que a arte mimetizava a natureza.

Flávia- Mas o que é mimetizar a natureza?

Rita- Flávia, já viste que neste quadro Silva Porto 1 o pastor, o rebanho de ovelhas e a natureza
estão representadas com imenso rigor.

Artur- Até parece uma fotografia colorida.


Rita- Parece mais real que uma fotografia, quase podemos sentir o calor e respirar o pó que
envolve o pastor.

Jacinta- Eu não concordo que um objeto, para ser considerado arte, tenha de imitar uma
determinada realidade. Uma conjugação de linhas e cores ou de notas musicais produzidos
pelo ser humano e que não representam nenhuma realidade, podem ser considerados arte.

Rita- Mas mesmo a arte abstrata, para ser interpretada, tem de representar algo, Jacinta. Nem
que seja uma metáfora construída pela mente humana.

Tó Zé- Mas porque não vamos para a sala do abstracionismo que fica aqui mesmo ao lado e a
Rita pode concretizar com um exemplo prático a sua refutação.

Marcelo- Boa ideia Tó Zé!

Jacinta- Vês esta pintura a óleo de Kandinsky2? É uma conjugação de linhas e cores que não
representam nenhuma realidade.

Rita- Tens razão, aparentemente nada representa, mas esta conjugação de formas pode
remeter para uma sensação de alegria ou de musicalidade. Depende da interpretação de cada
um.

Jacinta- Antes disso devemos focar a nossa atenção nos materiais que um pintor utiliza e na
pura conjugação das formas, à qual se dá o nome de forma significante. Objetivamente esta
conjugação das formas constitui um objeto belo que provoca uma emoção estética a quem o
observa com atenção. Uma harmonia de cores e de linhas, mesmo que apresentem
semelhanças com a natureza, nunca se confundem com esta, valem por si mesmos e não
necessitam de ser contextualizada, é autónoma da realidade em que foi produzida. A obra de
arte só existe como forma.

Flávia- Mas então o que é a emoção estética e a forma significante?

Jacinta- A emoção estética é aquilo que se sente quando se está perante certas configurações
de formas, linhas e cores e a forma significante é esta configuração quando provoca emoção
estética no espetador.
Flávia- Então estás a cometer uma falácia de petição de princípio, utilizando um raciocínio
circular para definir esses conceitos.

Marcelo- Não posso concordar contigo, Jacinta. Estás a partir do princípio de que a beleza é
um aspeto objetivo da arte. No entanto, a noção do belo é subjetiva pois é influenciada por
fatores culturais.

Tó Zé- Concordo com o Marcelo. Para além disso, essa tua visão de arte, em que a conjugação
das formas deve ser interpretada isoladamente, desvaloriza o contexto histórico, social e
cultural em que os objetos artísticos são produzidos, o que limita a interpretação e
compreensão da arte.

Artur- Gostaria que fossemos à sala do expressionismo.

Rita- Parece-me bem.

Artur- A arte é o melhor meio para que o ser humano expresse as suas emoções. Se o escritor
se exprime por palavras, o artista utiliza imagens.

Flávia- Não queres dar um exemplo?

Artur- Vejam este quadro de Van Gogh.

Tó Zé- É bastante conhecido, A Noite Estrelada3.

Artur- Van Gogh pintou esta tela quando estava internado num asilo devido a doença
psiquiátrica. Ele exprime as emoções do seu drama pessoal, nomeadamente a sua agitação
interior à sua visão da paisagem: as árvores, as casas, as estrelas e a lua agitam-se de forma
frenética. Os traços da pintura são grosseiros e revoltos.

Rita- Realmente nesta pintura a natureza não é representada com realismo. Parece que as
árvores, as casas, as estrelas e a lua perderam a sua existência concreta.
Artur- Mas não é por falta de técnica do pintor. Ao deformar as formas naturais, ele pretende
transmitir as suas emoções subjetivas, expressar de forma imaginativa os seus sentimentos
mais íntimos e provocar um impacto emocional no observador. Para mim, umas atitudes só
podem ser consideradas como arte, se for produzida por alguém com o intuito consciente de
exprimir imaginativamente as suas emoções, tal como faz Van Gogh neste quadro.

Rita- Eu não concordo. A tua definição de arte é demasiado restrita. Repara que essa definição
exclui toda a arte naturalista. Desde o Renascimento que os pintores desenvolveram técnicas
que permitiram criar obras de arte, capazes de reproduzir a natureza. A tela que vos mostrei
de Silva Porto representa a realidade e o pintor não pretendeu expressar as suas emoções
mais íntimas.

Marcelo- Para além do argumento da Rita, que a definição de arte do Artur é muito restrita, eu
acrescento que se aceitássemos a definição que a arte é a expressão de emoções teríamos de
considerar que uma simples mensagem de telemóvel que exprimisse, por exemplo, angústia
ou felicidade, constituía um objeto artístico. Ora, todos sabemos que não é assim, ou seja,
expressar emoções não é uma condição suficiente para estarmos perante arte.

Jacinta- Eu olho para esta tela de Van Gogh e posso sentir uma emoção, mas não posso
afirmar com uma certeza absoluta, qual era a intenção do pintor quando produziu esta obra.
Se consideras que a arte consiste na expressão intencional de emoções, como podemos
conhecer a intenção dos autores? Para além disso, é totalmente esquecida a análise técnica,
ou seja, da matéria ou matérias que constituem a obra de arte.

Artur- As vossas objeções têm lógica, mas eu valorizo os efeitos subjetivos na arte.

Tó Zé- Podemos discordar numa definição essencial do conceito arte. No entanto, estamos
num museu que é uma instituição especializada e que seleciona os objetos que no nosso
contexto social e cultural podem ser considerados arte.

Flávia- Podes concretizar melhor a tua ideia?

Tó Zé- O museu que estamos a visitar é uma instituição da civilização ocidental. Se


estivéssemos a visitar um museu de uma sociedade ou cultura diferentes, poderia existir uma
outra seleção de objetos aos quais se atribuía a condição de serem arte. Neste caso aceitamos
que diversas instituições como universidades, galerias ou a imprensa com crítica cultural
tenham autoridade para definir o que se considera um objeto artístico.

Rita- Mas pode não existir consenso e pode ser legítimo contestar que o estatuto de objeto
artístico apenas possa ser atribuído por especialistas do mundo da arte. Neste caso, a definição
de arte funcionaria num circuito fechado de especialistas. Imagina que uma instituição
considerava uma lista de compras um objeto artístico porque materialmente utiliza os mesmos
signos que um poema. Segundo a tua teoria, como era uma autoridade do mundo da arte a
atribuir esse estatuto, não poderia ser contestado.

Tó Zé- Na definição institucional de arte, a discussão ocorre entre especialistas e no teu


exemplo duvido que todos tivessem de acordo em considerar a lista de compras como um
objeto artístico.

Artur- Mas existem exemplos da arte conceptual aos quais os especialistas atribuem o
estatuto de arte e que dificilmente é compreendido por um número significativo de pessoas.

Jacinta- Não queres dar um exemplo?

Artur- A obra de John Cage, 4’33’’ 4, corresponde a um pianista que se senta perante um piano
em silêncio durante esse período de tempo. Foi um escândalo em 1952, mas os especialistas
em música valorizaram o conceito do autor que pretendia que naquela janela de tempo se
apercebessem que o silêncio é uma utopia, pois existem sons provocados de forma
inconsciente pelo público ou pelo ambiente envolvente.

Marcelo- O que mais me fascina na arte é que ela nos permite conhecer melhor os seres
humanos ao longo do tempo e, simultaneamente, a sociedade e o sistema cultural em que a
obra foi produzida. A melhor definição de objeto artístico é reconhecer que este se filia numa
linha histórica de objetos aos quais foi atribuído esse estatuto. O próprio autor desses objetos
tem de produzir esse objeto com a intenção de obter esse estatuto. Esse objeto tem de ser
produzido de forma original, sendo propriedade do próprio autor.

Flávia- A tua teoria permite uma objeção. Terá existido um momento em que foi produzida a
primeira obra de arte e, por ser a primeira, não se podia filiar numa sucessão de obras prévias.

Rita- Também existem formas de arte que com o evoluir dos tempos, perderam esse estatuto.
Existem formas mecânicas de reproduzir a realidade que podem ser produzidas com ausência
de intencionalidade artística, como é o caso de determinadas fotografias.

Tó Zé- Existem objetos produzidos ao longo da história que os artistas sem uma
intencionalidade de serem arte, por parte do artista, e que posteriormente obtiveram esse
estatuto. Por exemplo, há quem interprete as pinturas rupestres como um ato mágico para
garantir a caça e, dessa forma, a sobrevivência da tribo.

Artur- Estou a perceber a perspetiva do Tó Zé. Outro exemplo são os sarcófagos egípcios que
exprimiam uma intenção religiosa relacionada com a crença na imortalidade e não foram
produzidos com intenção de serem objetos artísticos. Atualmente, integram o património
histórico e artístico do mundo.

Jacinta- Acho que já todos exprimimos a nossa opinião acerca deste problema, exceto tu
Flávia.

Flávia- A discussão sobre o conceito de arte só reforçou a minha convicção.

Artur- Mas afinal qual é o teu conceito de arte?

Flávia- Eu acredito que não é possível definir o conceito de arte. As vossas definições ou eram
demasiado restritivas, excluindo um conjunto de atitudes e objetos do estatuto artístico, ou
demasiado inclusivas, dificultando a distinção entre objetos e atitudes que são considerados
arte dos que não têm essa validade.

Rita- Mas concretiza a tua ideia.

Flávia- Acompanhem-me à sala do dadaísmo. Vejam a fonte de Duchamp 5. É um objeto


industrial que rompeu com o argumento institucional ou histórico, tal como não se
enquadrava nas definições essenciais de arte.

Marcelo- Foi um escândalo para a sociedade no início do século XX.

Tó Zé- Mas posteriormente, foi-lhe atribuído o estatuto de objetos artístico com a designação
de “ready-made”.

Flávia- Marcel Duchamp apenas retirou este objeto do seu contexto utilitário e integrou-o num
contexto expositivo de obras de arte, atribuindo-lhe uma data e uma assinatura. Assim o autor
questionou a própria noção de arte.

Marcelo- Neste caso, tal como em muitos outros, os artistas não ficaram limitados pelo
conceito de arte definido na sua época, mas desafiaram esses limites.

Rita- No entanto, apesar das diferenças, também existem semelhanças em todas as


sociedades e culturas relativamente à produção e fruição dos objetos artísticos, pelo que
talvez exista alguma objetividade na arte.

Jacinta- O tempo passou tão depressa, o museu já vai fechar.


Artur- Acho que esta nossa discussão só provou que a arte é um conceito complexo e quase
impossível de definir.

Tó Zé- No entanto, existe um princípio que dificilmente pode ser refutado: a arte e o ser
humano são indissociáveis.
Anexos

1-

2-

3-

4- https://www.youtube.com/watch?v=JTEFKFiXSx4

5-

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