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O sertão vai virar mar

Sobre o capitalismo moribundo e as profecias do apocalipse

Essa frase, atribuída segundo dizem a Antônio Conselheiro – grande instigador da revolta
popular de Canudos – é de grande atualidade. Não! Não se trata de mais um ecologismo dentre os
tantos e semtamanhamente chatos que circulam nosso cotidiano sem cessar. A profecia do Antônio
Conselheiro talvez seja aproveitável para olharmos mais de perto a crise que se instala uma vez
mais nos mercados financeiros, e que reflete na verdade um antigo problema de gerenciamento dos
países. As “cabeças soberanas” dos governos centrais - como disse um analista econômico
referindo-se aos Estados Unidos e à União Europeia (!) - estão com as cabeças a prêmio e tentam de
todas as formas, não necessariamente resolver a situação, mas evitar que as pessoas descubram que
o rei está nu...
E ele está de fato nu. Pensemos por um breve instante. O que é uma dívida? É algo que se
deve, obviamente. Quando se contrai um empréstimo, tornamo-nos devedores daqueles que nos
emprestaram. O que os “soberanos” do mundo estão fazendo, há anos, é justamente emprestar e
emprestar e emprestar, a fim de financiar o custo astronômico de vida - que eles não podem mais
pagar, o consumo desenfreado e, não nos esqueçamos, o financiamento de guerras e da grande folia
contemporânea que é a conquista do espaço (aqui escuto o eco de Drummond perguntando: mas
estará o Homem preparado para a dangerosìssima viagem de si a si mesmo?).
Ocorre porém que esses tais “soberanos” já vivem há muito tempo de financiar dívida com
dívida, mais ou menos como o sujeito que paga o Visa usando o Mastercard, e que paga este usando
o American Express e assim sucessivamente, numa roda viva que faz com que os juros de uma
conta sejam pagos contraindo-se um novo empréstimo. Não sou economista, nem tenho talento para
analista político, mas pensando em termos estúpidos e grosseiros, como se a vida de um país
pudesse ser pensada como a economia doméstica, se se gasta mais do que se pode produzir, mesmo
que o gasto seja pretensamente para investimentos, uma hora ou outra a casa cai.
Tenho comigo a impressão de que vivemos atualmente de promessas de um futuro melhor,
improvável e mesmo delirante. Meu ceticismo radical e quase irracional me faz olhar para o palco
do mundo contemporâneo com um misto de pena e ironia. Quando vejo os chefes do mundo
correrem diante das câmeras de televisão para dizerem que está tudo sob controle, tenho como a
impressão de ver comediantes num “stand-up comedy”, tentando convencer a plateia de que sua
piada é bem contada, ou, estratégia ainda mais inteligente, rindo-se de si mesmo e de suas
desventuras.
Fato é que nesse mundo cão, a fome na Africa ou as revoltas nos países muçulmanos vêm
bem a calhar como entretenimento, como forma de sustentar nossa posição ocidentalòide de
democratas investidos na luta pelos direitos humanos. Mas até quando isso vai durar? Até quando
conseguiremos sustentar a ideia de que tudo vai bem no reino das democracias ocidentais, ou no
reino do capitalismo de Mercado. A estrutura do mundo parece tão complexa que ao vermos isso
temos imediatamente medo de que se uma peça desmontar todo o resto cairá junto, e que
voltaremos como que num passe de mágica à barbárie dos feudos medievais. Talvez sim! Talvez
não!
O problema é que não visualizamos nenhuma saída, nenhuma alternativa a esse modo de
produção e de trocas. E nesse sentido, as ideias de capitalismo sustentável (com toda sua
maquinaria entediante do ecologismo) de um lado, e os nacionalismos radicais do outro, parecem-
me reações a um mesmo problema; e me soam; ambas, como respostas ineficazes.
O ecologismo se sustenta na ideia apocalíptica de que o mundo vai acabar se não nos
comportarmos bem. É como um catolicismo leigo que nos promete o inferno sobre a terra se não
pagarmos o imposto de uma vida mais equilibrada, à qual o ser humano não está disposto desde que
o mundo é mundo. Que o digam nossos ancestrais míticos, o Adão e a Eva, que não suportaram a
monotonia do Paraíso e preferiram o Rock n' roll ao canto dos anjos e à companhia do Senhor.
Os nacionalismos, por sua vez, propagam a ideia de retorno a um paraíso perdido, no qual
somente a comunidade de raiz, os verdadeiros e únicos e escolhidos, deveriam habitar o solo
sagrado de uma nação. Ora, a chance de isso dar certo é mínima! Um velho e obscuro precursor do
Romantismo, Georg Lichtenberg, perguntava-se nos idos do fim do século 18: “Eu bem que daria
alguma coisa para saber exatamente para quem foram realizadas essas ações que proclamamos
publicamente terem sido feitas em nome da pátria”. Olhemos os reis nus de Wall Street
(elegantemente vestidos em ternos Armani) e teremos um esboço de resposta.
E salve Antônio Conselheiro! Talvez tenhamos que ver a queda de um mundo para poder
ver o surgimento de um novo, falta de ter visão de longo alcance para projetar soluções menos
ordinárias. Quem sabe se o sertão virar mar, e o mar virar sertão, a gente possa refazer a vida
noutros termos. Ou não...

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