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Confissões de um condenado à vida

(parte II)

Ah! Trata-se, em verdade, de restaurar o lugar das pequenas coisas, mas das
pequenas mesmo, daquelas que estão submersas sob aquilo que chamamos de pequenas coisas
simples da vida. Trata-se de eliminar o elo automático, e ilusório, entre as pequenas coisas
simples da vida e certo ideal de pureza que estaria aliado a elas. Sim! Pois temos essa mania
de achar que as pessoas simples são mais sábias por que se preocupam justamente com coisas
simples e não têm, por conseguinte, tempo para perder com baboseiras. Estariam elas, as
pessoas simples, imersas numa espécie de magma fundamental, ocupadas apenas da essência
e do essencial.
Mas por que, ao falar dessas tais coisas simples da vida, não nos referimos também
ao peido que sai sem querer num elevador onde estamos sozinhos e que nos faz respirar
profundamente, felizes por termos tal momento só para nós (e sorrindo de antemão com o
constrangimento que causaria aquele cheiro se exalado na presença de outros)? Por que não
citar as inúmeras vezes em que de galã suposto passamos, num repente, a idiota factual? Por
que não acrescentar à lista das coisas simples a vontade de comer a balconista do
supermercado? Ou a consideração cuidadosa da feiura da auxiliar do dentista, com aquela
face desgrenhada curvada sobre nossa impotente boca aberta? E por que não incluir as
pequenas invejas cotidianas? As malvadezas quase incidentais com uma formiga que
atravessa nosso caminho? As ironias, os desleixos, os desprezos? Por que, enfim, não tratar
como coisas simples da vida a vontade de não trabalhar, ou de mandar o vizinho às favas, ou
ainda as tramas imaginárias em que vemos fritando no fogo do inferno todos aqueles de quem
não gostamos?
Trata-se, em verdade, de restaurar o lugar simbólico do esgoto, das entrelinhas
maliciosas, das esquinas mal iluminadas, das ruas emporcalhadas, dos muros fedendo a mijo.
E isso de esgoto e entrelinhas e submundos faz-me lembrar que devo apresentar a que vim e
para que me dedico a estas confissões: tendo em vista o fato de que não tenho a quem pedir
redenção e que talvez o próprio ato de me curvar ao papel para depositar estas impressões
sequer se sustente na possibilidade de um hipotético leitor – que em última instância seria já
um olhar outro, e justificaria este trabalho enfadonho que me mantém sentado horas a fio –
sou obrigado a admitir que tudo isso pode ser perfeitamente inútil. Sou obrigado a entrever a
possibilidade de que esse ato laborioso e sofrido não sirva para além de gastar meu tempo, o
que não seria grande desperdício, devo uma vez mais confessar.
Porém esse ato de contrição talvez tenha uma função sacrificial e mesmo ascética, se
for possível pensar isso no sentido inverso, não de elevação, mas de rebaixamento: são, em
verdade, etapas de uma conversão ao descabido, ao sorrateiro, ao espúrio e indecente. Ou,
noutros termos, estas confissões são uma forma de mostrar como a moral pode esconder um
monstro.
Não é possível prever a que lugares um tal movimento nos pode levar, pois que
tipicamente tememos os quartos escuros e muitas vezes sequer nos aproximamos dos porões
de nossas casas, pois eles encerram uma aura mítica, certa ideia arcaica do espaço intrauterino
e, por extensão, uma representação tênue da não-existência que precede nosso estar no
mundo, a noite no sentido do não-saber sobre o antes (ou por que são de fato sujos,
malcheirosos e esquecidos pelas domésticas a quem relegamos a sujeira de nossos lares, de
nossos corpos, de nossas virtudes e vícios).
Se eu dissesse que ninguém escolhe este movimento de reflexão, e que somos
atraídos para ele como um tubarão é atraído pelo sangue, nisso haveria um tom
demasiadamente bíblico, e eu seria uma espécie de escolhido a navegar pelos mares sombrios.
Todavia, não podemos esquecer jamais o prazer que o obscuro gera: um prazer receoso, cheio
de uma curiosidade muito semelhante àquela que nos fazia espiar a prima tomando banho, ou
a mãe lavando louça num domingo, ou o pai dormindo depois do almoço; prazer cheio de um
temor semelhante ao do proibido, que gela a barriga, mas do qual é impossível desviar os
olhos. Sim, há nisso uma escolha também, uma opção por saborear a paisagem inóspita, o
vento frio e as paisagens abruptas.
Sempre gostei de frio, não por que me sinta bem, e sim pelo fato de me manter
vigilante, tiritando, sonhando com o calor... calor que quando chega e se instala, logo passo a
detestar, com saudade imensa do frio.
E por falar em vigília...

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