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Confissões de um condenado à vida

(parte IV)

E ontem mesmo me peguei agindo certo simplesmente para me provar superior. Aí a


questão da certitude emerge imediatamente: se tudo que fiz de maneira correta ocupava tão
somente o lugar de querer demonstrar minha superioridade em relação aos que não seguiam o
padrão como eu, é ainda possível afirmar que eu estava certo?
Ontem mesmo eu me vi dando dinheiro a um pedinte a fim de me livrar do incômodo
de suas insistentes investidas...; ontem mesmo eu disse bom dia a um vizinho detestável
somente para provar a mim mesmo que eu sou generoso e não discrimino ninguém...; ontem
mesmo olhei uma criança de rua com um sentimento de ternura pesarosa, mas não estava nem
um pouco disposto a baixar o vidro do carro e sentir o cheiro que exalava de sua pele...; ontem
mesmo eu estive preocupado com a situação social dos menos favorecidos, mas isso por que
incomoda meus olhos enxergar a pobreza rastejando entre os carros...; ontem mesmo decidi
ingressar na Anistia Internacional, mas me dei conta subitamente que meu interesse pelos
africanos e pelas mulheres maltratadas não passa de um nível retórico básico – o do bom-
mocismo politicamente correto – e que me preocupo tanto com isso quanto com uma espécie
de plâncton azul anil, raro, em vias de extinção.
Eu bem que preferiria ficar apenas com a parte bonita dos sentimentos que me
animam, mas não posso negar o fato de que na cotidianidade eu nutro mais indiferenças e
ódios do que preocupação e ternura pelos que convivem comigo neste mundo. Não consigo
esconder que vivo mais no desprezo e na pressuposição do erro alheio do que na tentativa de
acolher o outro como sendo uma individualidade irredutível e, portanto, digna de ser ouvida
em sua particularidade, ainda que se trate de um imbecil. Não tenho paciência para ignorância
e falta de tato social. Estes são elementos que me parecem fundamentais para a vida em
comunidade, mesmo que isso inclua a mentira deslavada.
Só que nós estamos mais para fantasmas repetidores de certos padrões sociais do que
criadores, inventores de uma vida nova a cada dia. Nossa geração está engessada entre a visão
da crueldade e a promessa de um mundo onde as contradições não impedem a satisfação de
nossos anseios. É uma geração desprovida de viço, de estro poético, de veias pulsantes. Nós
não faremos mais que dois ou três gênios, quando muito.
Cristalizamos numa posição submissa ante os constrangimentos todos que o dia-a-
dia nos inflige, e esta cristalização pode ser raivosa ou pacata, de modo que muitas vezes a
estupidez mumificada no corpo de nossa geração aparece como tentativa de se impor pela
quantidade de músculos, pelos decibéis suportados no automóvel, pelo descaso com a
reflexão crítica, com o desmando nas camadas gestoras do estado, que agora se reabastece
com uma geração nova, mas que possui os mesmos trejeitos de impostação de voz e
gesticulação (e quiçá atuações) das aves de rapina que lhes servem de modelo. Cristalizamos
numa posição de imbecilidade social, e não sei se há santo suficiente para dar conta de
equilibrar faltas e excessos.
REVOLUÇÃO! Sangue derramado pelas estradas. Burgueses classe média baixa –
inclusive implicados com a causa revolucionária – aparecem degolados. Reis assassinados.
Presidentes queimados em praça pública. Suspensão de liberdades individuais. Exílio. Talvez
seja esse o caminho para nos civilizarmos; revolução armada, com sangue e sofrimento; ou
talvez nesse caminho estejamos retornando a uma nova Idade Média, na qual o obscurantismo
– agora um obscurantismo científico e laico – ganha força e ressurge como regulador social e
ordenador do conhecimento.

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