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“Cura Espiritual”*
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Comunicação a ser apresentada no GT 071, “Religiões e percursos de saúde no Brasil de hoje:
as ‘curas espirituais’”, durante a 29ª Reunião Brasileira de Antropologia – RBA, no período de 03 a 06 de
agosto de 2014, em Natal-RN. Texto provisório, sujeito a revisões. Comentários, críticas e sugestões
serão benvindos. Pede-se não citar este texto, exceto com permissão do autor (hmaues@uol.com.br ou
hmaues@ufpa.br).
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1
Montero, P. Da doença à desordem: a magia na umbanda. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
4
podiam obter somente com o tratamento médico (cf. MAUÉS, SANTOS & SANTOS,
2002).
Outro artigo científico, fora do Brasil, nos mostra no entanto realidade diversa,
que diz respeito a pesquisas destinadas a avaliar os efeitos da oração sobre pacientes
internados em hospitais. Pela sua riqueza e interesse, dedico aqui maior espaço a esta
temática. Essas pesquisas foram feitas nos Estados Unidos da América, sendo
conduzidas por médicos, as quais apresentaram resultados diversos (e às vezes
divergentes), que são analisados por Mihaela Frunza, professora do Departamento de
Filosofia Sistemática da Universidade Babes-Bolyai, na România. A autora começa,
sintomaticamente, com a citação de um médico americano, que lhe serve de epígrafe ao
artigo, e que traduzo para o português: “No futuro será considerado antiético para um
médico não orar para seu paciente como parte dos cuidados de saúde de qualidade 2 -
Larry Dossey, MD”. Segundo Mihaela Frunza as pesquisas seguiram o conhecido
método de considerar dois grupos de pacientes: o “prayer group patients” (pacientes do
grupo de oração) e o “control group” (grupo de controle); ao segundo, “obviamente”,
não seriam endereçadas as orações. Prática que acontece frequentemente em tais tipos
de pesquisas na área médica, quando o primeiro grupo recebe o remédio que está sendo
testado e o outro apenas recebe o “placebo” (embora este placebo, no caso, fosse a
própria ausência do “remédio” prescrito e em teste, isto é, a “oração”).
Mihaela Frunza cita e analisa inicialmente o que chama do “clássico estudo” de
Randolph C. Byrd, cujo resultado foi publicado, em 1988, no Southern Medical Journal,
volume 81, número 7. Esse estudo foi realizado por dez meses numa unidade
coronariana do San Francisco General Hospital. Um total de 393 sujeitos consentiu
participar da pesquisa que visava examinar os efeitos de “orações intercessoras” a eles
destinados. Foram divididos aproximadamente pela metade através de um computador
em dois grupos, conforme as normas acima mencionadas: apenas aos pacientes do
grupo de oração as preces deveriam ser destinadas, enquanto as pessoas do outro grupo
não poderiam receber qualquer oração. Nem os pacientes nem os médicos sabiam quem
pertencia a qual grupo. Nas palavras de Frunza, traduzidas para o português:
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In the future it will be considered unethical for a physician not to pray for his or her patient as
part of quality health care.
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The intercessors belonged to the ‘born-again’ Christians, mainline protestant churches, and the
Roman Catholic Church. The two groups were similar at the start, meaning that there was no statistically
significant difference between them. By analyzing what happened to the patients after entering the study,
Byrd concluded that, overall, the prayer group did better than the control group: “the prayer group had
less congestive heart failure, required less diuretic and antibiotic therapy, had fewer episodes of
pneumonia, had fewer cardiac arrests, and were less frequently intubated and ventilated” (citação do
artigo de Byrd, Randolph C. Positive Therapeutic Effects of Intercessory Prayer in a Coronary Care Unit
Population. Southern Medical Journal 81 (7): 826-829, 1988).
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A Randomized, Controlled Trial of the Effects of Remote, Intercessory Prayer on Outcomes in
Patients Admitted to the Coronary Care Unit no Archive of Internal Medicine.
5
The intercessors were again taken from various Christian traditions (nondenominational,
Episcopalian, Protestant groups, and Roman Catholics). In order to qualify, they were asked to agree with
statements claiming faith in a personal God that is receptive to prayers. They were asked to pray for four
weeks for the patients, about whom they knew only the first name and nothing else (Byrd’s intercessors
were given updated information on the state of health of the subjects).
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6
Leibovici, Leonard. Effects of remote, retroactive intercessory prayer on outcomes in patients
with bloodstream infection: randomized controlled trial. British Medical Journal 323: 1450-1451, 2001.
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The reactions to these studies were highly divided, the more recent ones attracting numerous
vivid replies from the medical and scientific community (the study of Harris et al. was followed by fifteen
letters to the editors in the next volume of the journal that originally published it, while the online edition
of Leibovici’ study received no less than 86 rapid responses, most of them ranging from outrage to
mockery).
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I realized that if prayer worked, withholding it might be the equivalent of denying my patients a
valuable medication or surgical procedure… There are powerful personal, professional, and ethical
repercussions for any physician who takes seriously the evidence supporting the effects of spiritual
meaning in health.
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ministrada a pacientes, sabedores ou não do fato, não ter sido testada de modo suficiente
antes de ser aplicada a seres humanos, embora haja precedentes de pesquisas com
animais em que a oração também foi utilizada (FRUNZA, 2007: 109). Ao lado disso, no
estudo de Byrd foi constatado que apenas 2,7% dos consultados se dispunham a
participar do experimento, ao que se deve acrescentar ainda que a natureza do remédio
aplicado, a oração, podia ser também rejeitada por pessoas de outras religiões ou não
religiosas e ateias. E, para finalizar este tópico, o fato de que a “droga” utilizada, a
oração, não havia sido ainda suficientemente testada em seus “efeitos colaterais”, o que
poderia causar danos aos participantes da pesquisa. E, mais ainda, o fato de que os
indivíduos encarregados das orações poderiam facilmente – como medida caridosa ou
por desencargo de consciência – também aplicar suas orações aos integrantes do grupo
“placebo”, o que distorceria todo o resultado do experimento (FRUNZA, 2007: passim).
é parte de todas as crenças e uma das solicitações mais antigas no mundo. Não obstante,
após o advento da medicina moderna, muitos médicos relegaram essa crença ao âmbito do
pensamento mágico e da superstição. Mesmo assim, 75% dos sul-americanos rezam pelo
menos uma vez por semana e 56% o fazem todo dia. É provável que pelo menos algumas
dessas orações sejam constituídas por súplicas voltadas para a cura de doenças. O que
reforça este comportamento? Presumivelmente pelo menos algumas dessas orações são
atendidas. Estamos interessados em como as pessoas definem as orações que encontram
resposta pela cura (TEAS, 2010: 17)9.
Outro aspecto a ser considerado neste texto diz respeito a práticas
contemporâneas de automutilação, que ocorrem entre jovens e mulheres, que podem ser
comparados aos “santos estigmáticos” da Idade Média. Podem ser vistas ainda como
técnicas de cura e de empoderamento e também de “mútua necessidade psicanalítica de
alteração do self como meio de escapar de suas próprias identidades dissociativas”.
Trata-se, segundo o autor, de “bricolage mútua de dor, imaginação, idioma e
subsequente automutilação [que] frequentemente proporciona uma transformação de
corpos em estado de sítio numa semelhança de saúde e transformação” (MULLEN,
2010: 91 e passim)10.
Mais dois elementos de comparação, antes de encerrar esta comunicação. Em
primeiro lugar, o artigo de Dominique Buchillet, intitulado “Tuberculose, Cultura e
Saúde Pública”. Antropóloga francesa, que no Brasil vinculou-se ao Museu Paraense
Emílio Goeldi e à Universidade de Brasília, durante bastante tempo um de seus artigos
estava disponível na página da web da UnB, exatamente aquele de que pretendo tratar.
Nesse artigo ela discute, do ponto de vista antropológico, a importância do estudo da
tuberculose na saúde pública. Além de mostrar as dificuldades do tratamento dessa
doença pelos serviços públicos de saúde no Brasil, assim como em várias outras partes
do mundo, Buchillet nos aponta também as questões mais sérias no que diz respeito à
saúde indígena, particularizando sobretudo a questão no que diz respeito aos índios
Desana do Rio Negro. E, sob esse enfoque, ressalta
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Divine healing is part of every faith and one of the most ancient health claims in the world.
However, with the advent of modern medicine, most doctors relegate being healed by faith to the realm of
magical thinking and superstition. Yet 75% of Americans pray at least once a week, and 56% do so daily.
It is likely that at least some of these prayers are petitionary prayers for healing. What reinforces this
behavior? Presumably at least some prayers for healing are answered. We were interested in how people
define answered prayers for healing.
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O texto completo do abstract do artigo é: “This paper explores the comparative dynamics of
self-mutilation among young, contemporary, female self-cutters, and the holy stigmatics of the Middle
Ages. It addresses the types of personalities that engage in self-mutilation and how some manipulate their
self-inflicted pain into a method for healing and empowerment. The similarities between teenage cutters
and female stigmatics are striking in their mutual psychoanalytical need for self-alteration as a means of
escaping their own disassociative identities; and offers evidence of how their mutual bricolage of pain,
imagining, languaging, and subsequent self-mutilation often provide a transformation from bodies under
siege to a resemblance of health and transformation”.
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que os efeitos colaterais dos medicamentos podem ser considerados pelos pacientes
indígenas como sintomas de outra doença. Entre os Desana do Rio Negro (...) a aparente
ausência de relação da doença em relação ao tratamento empreendido, assim como o
surgimento de sintomas no curso da doença, podem invalidar o diagnóstico pré-
estabelecido e, portanto, o tratamento prescrito (...). De fato, e de maneira diferente do
esquema ocidental, o diagnóstico, na sociedade tradicional, pode variar na evolução de uma
doença em função de fatores propriamente clínicos e/ou extra médicos (como, no último
caso, sonhos, reminiscências do pajé ou conflitos na comunidade, entre outros).
E, mais adiante, ainda se referindo aos Desana:
a simbolização xamânica de quatro doenças infecciosas (malária, varíola, sarampo, gripe)
se baseava em parte no reconhecimento indígena de suas características epidemiológicas
diferenciais, principalmente: edemicidade, cronicidade, necessidade de um vetor,
associação com variações sazonais do nível das águas, evolução relativamente crônica,
longevidade do parasita, capacidade de latência e de reativação deste último no organismo
humano (...). Assim, características epidemiológicas da tuberculose, como a edemicidade, a
evolução relativamente crônica, a baixa contagiosidade, a possibilidade de recaída e a
disseminação lenta nas sociedades humanas podem explicar porque os Desana a
consideram como uma doença tradicional, isto é, doença que os afeta desde sempre.
E, mais: “atribuem-na, além disso, à feitiçaria xamânica”. Ao lado disso, no que
diz respeito ao tratamento, as “concepções locais sobre os mecanismos da eficácia
terapêutica também podem ser determinantes”, pois “a cura é, principalmente, baseada
na recitação de encantações terapêuticas altamente formalizadas sobre líquidos ou
plantas que lhes servem, essencialmente, de suporte material e de veículo para alcançar
o doente, mas podem ao mesmo tempo redobrar simbolicamente o efeito procurado na
encantação” (BUCHILLET, 2000: passim).
E, para finalizar, o artigo de Emiko Ohnuki-Tierney, intitulado “Ainu illness and
healing: a symbolic interpretation”. Para esse povo, existem “doenças metafísicas”
provocadas ou tornadas mais graves pela interferência de seres espirituais (demônios ou
divindades). Mas ao mesmo tempo essas entidades podem ser tomadas como fontes de
“energia de cura”. O artigo visa oferecer uma “interpretação simbólica das doenças
metafísicas dos Ainu tendo como referência a estrutura cognitiva básica da
epistemologia médica dos Ainu, que é fundada sobre a díade sagrado-profano, dentro de
uma rede social da organização cósmica”. Assim:
Demônios patogênicos representam anomalias estruturais intrínsecas, anárquicas e
permanentes. Eles contrastam com disjunções cósmicas extrínsecas, criativas e temporárias
do universo, que também causam doenças. Anomalias anárquicas de demônios são
diferenciadas das anomalias criativas de símbolos de mediação corporificadas nos espíritos
do xamã. O poder de contra-ataque às anomalias estruturais (e de curar os pacientes
atendidos) deriva de simbolismo do profano, que é aproveitado pelo poder não formalizado
dos xamãs e das mulheres na sociedade Ainu (OHNUKI-TIERNEY, 2009: 132).11
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No original: “Pathogenic demons represent intrinsic, anarchic, and permanent structural
anomalies. They contrast with extrinsic, creative, temporary cosmic disjunctions of the universe, which
also cause illnesses. Anarchic anomalies of demons are differentiated from creative anomalies of
mediation symbols, as embodied in the shaman's spirits. The power to counterattack structural anomalies
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Considerações Finais
(and to cure patients) derives from symbolism of the profane, which is tapped by nonformalized power of
shamans and women in Ainu society”.
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REFERÊNCIAS