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Comparação e Análise de Diferentes Situações de

“Cura Espiritual”*

Raymundo Heraldo Maués


Professor Emérito da Universidade Federal do Pará
Bolsista de Produtividade 1B do CNPq

Meus principais estudos sobre o que podemos chamar de “curas espirituais”


estão relacionados ao xamanismo entre populações rurais da Amazônia, mas não
indígenas, e a Renovação Carismática Católica (RCC), que estudei principalmente na
cidade de Belém, estado do Pará, Brasil, mas com uma pequena incursão no interior do
município de Vigia, numa povoação chamada Itapuá. Nessa povoação, realizei
principalmente meus estudos sobre xamanismo, mas tentei comparar o que lá encontrei
com relatos obtidos em outras áreas da chamada região do Salgado, onde se encontra o
município de Vigia e vários outros situados numa parte do nordeste do estado do Pará,
região litorânea da Amazônia, onde entre as principais atividades econômicas estão a
pesca artesanal e a agricultura praticada por pequenos proprietários camponeses, além
de atividades comerciais.

Estudos sobre cura xamânica: curadores ou pajés rurais ou de origem rural

Naquela ilha e na região do Salgado como um todo, o que chamamos de


pajelança (expressão não êmica, mas utilizada por antropólogos e outras pessoas de
fora) corresponde a um culto de cura de doenças pensado como não contraditório em
relação ao catolicismo popular, predominante na área. O pajé (expressão de origem
indígena, tupi) ou xamã não costuma se assumir por esses rótulos e prefere intitular-se
de curador ou pela expressão, mais rara, de “surjão (cirurgião) da terra”. Ele é um dos
especialistas populares de tratamento de doenças – por sinal o mais considerado -,

*
Comunicação a ser apresentada no GT 071, “Religiões e percursos de saúde no Brasil de hoje:
as ‘curas espirituais’”, durante a 29ª Reunião Brasileira de Antropologia – RBA, no período de 03 a 06 de
agosto de 2014, em Natal-RN. Texto provisório, sujeito a revisões. Comentários, críticas e sugestões
serão benvindos. Pede-se não citar este texto, exceto com permissão do autor (hmaues@uol.com.br ou
hmaues@ufpa.br).
2

juntamente com benzedores e benzedeiras, experientes e parteiras (que podem curar


doenças se tiverem o dom de utilizar-se de entidades chamadas caruanas, que também
se incorporam nos pajés).
Explicitando melhor, as técnicas corporais dos pajés incluem a incorporação de
entidades chamadas caruanas (seres humanos encantados que “baixam” para curar os
pacientes tratados pelo curador), mas também várias outras: o canto, a dança, a
defumação com cigarro especial (chamado pela expressão indígena de tauari ou
taquari), a oração, em alguns casos a sucção da parte do corpo infectada pela doença
(depois de lavada com cachaça), com o objetivo de retirar o “bicho” que está
provocando a doença, geralmente um inseto de pequeno porte (como um besouro) que é
mostrado em seguida aos assistentes do culto terapêutico. Esta última técnica, que não
esgota as técnicas corporais e outras utilizadas pelos pajés – sendo provavelmente como
as demais citadas de uso muito difundido em diversas sociedades de outras partes do
mundo -, tem paralelo notável com o que é descrito e analisado por Lévi-Strauss quando
fala de Quesalid, o xamã Kwakiutl que desejava desmascarar os feiticeiros da tribo, mas
que acabou usando suas mesmas técnicas e se transformando em famoso curador que,
afinal, ficou inteiramente dividido entre aquilo que praticava e sabia ser um truque, ao
mesmo tempo em que percebia que, para sua surpresa, muitos de seus pacientes se
curavam (cf. LÉVI-STRAUSS 1970). Sem poder neste texto esgotar todas as técnicas
utilizadas pelos pajés caboclos (para diferenciá-los dos indígenas) de Itapuá e do
Salgado paraense, remeto o possível leitor a um de meus textos publicados, onde
comparo as técnicas corporais de culto e de louvor entre pajés e carismáticos (cf.
MAUÉS, 2002).

Estudos sobre a cura na Renovação Carismática Católica (RCC)

No caso da RCC existem técnicas utilizadas nos ministérios de cura e mesmo


nos grupos de oração que têm semelhanças com as mencionadas acima: o canto, a
dança, a imposição de mãos e as orações. Ao lado disso, os ministros de cura agem
sobre os doentes sob a ação do Espírito Santo, do qual recebem os dons da “oração em
línguas” (glossolalia) e, muitas vezes, podem induzir com suas técnicas o conhecido
(entre pentecostais, católicos e protestantes) estado místico de “repouso no Espírito” que
tem efeitos terapêuticos, tanto para a saúde do corpo como da alma. E, embora sem
esgotar o assunto, os ministros de cura carismáticos podem com suas técnicas fazer uma
3

espécie de “exorcismo”, afastando entidades indesejáveis, que rotulam muitas vezes de


“Inimigo”, da mesma forma como pajés são capazes de expulsar espíritos maus ou
penitentes, assim como caruanas indesejáveis, do corpo de seus pacientes.

Outros estudos sobre curas “espirituais” no Brasil e no mundo

1 – Matingá, estado do Paraná, Brasil

Comparando parte de meu próprio trabalho com os resultados obtidos em outra


pesquisa sobre a RCC, realizada em Maringá, estado do Paraná, por enfermeira que
desenvolveu estudo sobre a relação saúde/doença e religião, transcrevo a seguir parte de
sua conclusão sobre essa temática. A pesquisa, diferente daquilo que desenvolvi –
juntamente com estudantes de graduação e pós-graduação -, acompanhando durante
mais de um ano o principal ministério de cura da Renovação Carismática Católica da
cidade de Belém, Pará, foi feita através de entrevistas nos lares dos sujeitos escolhidos
pela autora:
Este trabalho, durante sua execução e na fase da análise de resultados, deixa evidente que o
papel da religião na vida dessas pessoas é de extrema importância, uma vez que o sagrado
possui um poder capaz de levá-las a uma dependência, ligação e confiança de que isso as
salvará, de alguma forma, das situações de desespero que porventura, em algum momento
de suas vidas, possam atingi-las, e mais, que poderá supri-las em todas as suas
necessidades, principalmente aquelas de ordem social, espiritual e corporal. Os resultados
obtidos apontam que a busca do sagrado, a fé religiosa em Deus pelos carismáticos, é um
recurso importante nos momentos da desordem a que se refere Montero (1985) 1, ou seja, no
momento da doença, haja vista que o sagrado para essas pessoas exerce o papel de apoio
emocional, que as ajuda a viver e enfrentar de forma diferente daquelas pessoas que não
buscaram a força maior para recuperação da saúde. Constatou-se também que a ação divina
aparece na vida dessas pessoas no momento da angústia e da incerteza da recuperação da
saúde como uma esperança capaz de livrá-las do desespero e da morte (CORRÊA, 2006:
134).
Mesmo com diferenças de lugar e técnicas de pesquisa diversas – embora a
autora citada se fundamente também na obra de Minayo (1996) – é possível constatar
semelhanças nos resultados que eu mesmo encontrei. Refiro-me aqui ao fato de que,
acompanhando em Belém o Ministério de Cura acima referido, meus alunos e eu
tivemos duas situações em que, mesmo lidando com pessoas que sofriam de doenças
consideradas incuráveis pela biomedicina (insuficiência cardíaca ou “coração de boi” e
infecção pelo vírus da AIDs), essas mesmas pessoas se consideravam curadas, porque
encontravam, no ministério, o bem estar psicológico, a amizade e o sentimento que não

1
Montero, P. Da doença à desordem: a magia na umbanda. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
4

podiam obter somente com o tratamento médico (cf. MAUÉS, SANTOS & SANTOS,
2002).

2 – Estados Unidos da América, pesquisas sobre o efeito terapêutico da oração

Outro artigo científico, fora do Brasil, nos mostra no entanto realidade diversa,
que diz respeito a pesquisas destinadas a avaliar os efeitos da oração sobre pacientes
internados em hospitais. Pela sua riqueza e interesse, dedico aqui maior espaço a esta
temática. Essas pesquisas foram feitas nos Estados Unidos da América, sendo
conduzidas por médicos, as quais apresentaram resultados diversos (e às vezes
divergentes), que são analisados por Mihaela Frunza, professora do Departamento de
Filosofia Sistemática da Universidade Babes-Bolyai, na România. A autora começa,
sintomaticamente, com a citação de um médico americano, que lhe serve de epígrafe ao
artigo, e que traduzo para o português: “No futuro será considerado antiético para um
médico não orar para seu paciente como parte dos cuidados de saúde de qualidade 2 -
Larry Dossey, MD”. Segundo Mihaela Frunza as pesquisas seguiram o conhecido
método de considerar dois grupos de pacientes: o “prayer group patients” (pacientes do
grupo de oração) e o “control group” (grupo de controle); ao segundo, “obviamente”,
não seriam endereçadas as orações. Prática que acontece frequentemente em tais tipos
de pesquisas na área médica, quando o primeiro grupo recebe o remédio que está sendo
testado e o outro apenas recebe o “placebo” (embora este placebo, no caso, fosse a
própria ausência do “remédio” prescrito e em teste, isto é, a “oração”).
Mihaela Frunza cita e analisa inicialmente o que chama do “clássico estudo” de
Randolph C. Byrd, cujo resultado foi publicado, em 1988, no Southern Medical Journal,
volume 81, número 7. Esse estudo foi realizado por dez meses numa unidade
coronariana do San Francisco General Hospital. Um total de 393 sujeitos consentiu
participar da pesquisa que visava examinar os efeitos de “orações intercessoras” a eles
destinados. Foram divididos aproximadamente pela metade através de um computador
em dois grupos, conforme as normas acima mencionadas: apenas aos pacientes do
grupo de oração as preces deveriam ser destinadas, enquanto as pessoas do outro grupo
não poderiam receber qualquer oração. Nem os pacientes nem os médicos sabiam quem
pertencia a qual grupo. Nas palavras de Frunza, traduzidas para o português:
2
In the future it will be considered unethical for a physician not to pray for his or her patient as
part of quality health care.
5

Os intercessores pertenciam à Igreja Católica, igrejas protestantes do protestantismo


histórico e cristãos “nascidos de novo”. Os dois grupos foram semelhantes no início,
significando que não houve diferença estatisticamente significativa entre eles. Analisando o
que aconteceu com os pacientes depois de entrar no estudo, Byrd concluiu que, em geral, o
grupo de oração saiu-se melhor do que o grupo de controle: “o grupo de oração teve menos
insuficiência cardíaca, requereu menos terapia diurética e antibiótica, teve menos episódios
de pneumonia, menos problemas cardíacos e seus pacientes foram menos frequentemente
entubados e ventilados” (FRUNZA 2007: 106).3
Como nos mostra a autora, o estudo do Dr. Byrd foi apreciado por muitos, mas
também criticado por “várias inconsistências”. Em consequência disso, foi realizado
novo estudo, liderado por William S. Harris, com a participação de vários
colaboradores, publicado em 1999 com o título “Um ensaio controlado e randomizado
dos efeitos e resultados da oração intercessória remota sobre pacientes admitidos à
unidade coronariana no arquivo de medicina interna”4. Tratava-se de uma réplica
proposital à pesquisa de Byrd, em que o número de pacientes em observação subiu para
990, os quais se encontravam em tratamento coronariano num hospital privado.
Importante diferença entre os dois estudos é que neste tanto pacientes como médicos
desconheciam a pesquisa que estava em curso e que não foi solicitado o consentimento
informado dos sujeitos da pesquisa. Durante quatro semanas os intercessores ficaram
realizando suas orações. Eles tinham uma ligação semelhante a igrejas ou organizações
religiosas a que pertenciam os intercessores que trabalharam na pesquisa liderada pelo
Dr. Byrd:
Os intercessores novamente foram escolhidos em diversas tradições cristãs (grupos não
denominacionais, episcopais, protestantes e católicos romanos). Para se qualificar, foi
pedido a eles que declarassem sua fé num Deus pessoal que fosse receptivo às preces.
Foram convidados a rezar por quatro semanas pelos pacientes, sobre quem sabiam apenas o
primeiro nome e nada mais (os intercessores de Byrd receberam informações atualizadas
sobre o estado de saúde dos indivíduos a quem se dirigiam as preces) (FRUNZA 2007:
106)5.

3
The intercessors belonged to the ‘born-again’ Christians, mainline protestant churches, and the
Roman Catholic Church. The two groups were similar at the start, meaning that there was no statistically
significant difference between them. By analyzing what happened to the patients after entering the study,
Byrd concluded that, overall, the prayer group did better than the control group: “the prayer group had
less congestive heart failure, required less diuretic and antibiotic therapy, had fewer episodes of
pneumonia, had fewer cardiac arrests, and were less frequently intubated and ventilated” (citação do
artigo de Byrd, Randolph C. Positive Therapeutic Effects of Intercessory Prayer in a Coronary Care Unit
Population. Southern Medical Journal 81 (7): 826-829, 1988).
4
A Randomized, Controlled Trial of the Effects of Remote, Intercessory Prayer on Outcomes in
Patients Admitted to the Coronary Care Unit no Archive of Internal Medicine.
5
The intercessors were again taken from various Christian traditions (nondenominational,
Episcopalian, Protestant groups, and Roman Catholics). In order to qualify, they were asked to agree with
statements claiming faith in a personal God that is receptive to prayers. They were asked to pray for four
weeks for the patients, about whom they knew only the first name and nothing else (Byrd’s intercessors
were given updated information on the state of health of the subjects).
6

A despeito das diferenças e da tentativa de maior rigor na pesquisa de William S.


Harris não houve grandes diferenças nos resultados, especialmente no fato de que para
os pacientes de ambos os grupos (os que receberam ou não as preces) o tempo de
duração na hospitalização dos sujeitos de ambos os grupos não diferiu em ambas as
pesquisas, mostrando pois um resultado semelhante.
Um terceiro estudo foi realizado sob a liderança de Leonard Leibovici, cujos
resultados foram publicados num periódico britânico em 20016. Este estudo, segundo
Mihaela Frunza, provocou mais controvérsias. Os sujeitos da pesquisa foram em maior
número, um total de 3.393 pacientes de um hospital universitário diagnosticados com
infecção na corrente sanguínea (bloodstream) no período de 1990 a 1996. Foram
divididos em dois grupos, dos quais só um recebeu as orações, não dirigidas aos
indivíduos, mas ao grupo como um todo. Nas palavras de Frunza, em minha tradução:
As reações a esses estudos foram muito divididas, os mais recentes atraindo inúmeras
respostas vívidas da comunidade médica e científica (o estudo de Harris et al. foi seguido
por quinze cartas aos editores do volume seguinte da revista em que foi originalmente
publicado, enquanto a edição online do estudo de Leibovici recebeu não menos de 86
respostas rápidas, a maioria delas variando do ultraje à zombaria) (FRUNZA 2007: 106).7
Uma das questões éticas mais importantes levantadas por Mihaela Frunza diz
respeito à exclusão do grupo que, não podendo participar nem receber “placebo”, de
fato é excluído do possível benefício das orações. Esta objeção crítica pode ser
levantada por pessoas que acreditam no benefício das mesmas e não aceitam a exclusão
de um dos grupos. As palavras de Larry Dosey, citadas por Frunza, expressam bem essa
questão:
Apercebi-me de que se a oração funciona, negá-la pode ser o equivalente a excluir meus
pacientes de uma valiosa medicação ou procedimento cirúrgico... Existem poderosas
implicações pessoais, profissionais e éticas para qualquer médico que leva a sério as
evidências que sustentam os efeitos do significado espiritual na saúde (FRUNZA, 2007:
109, apud DOSEY, 2000)8.
Outra crítica diz respeito à ausência, na segunda pesquisa (de William S. Harris)
do consentimento informado, além do fato de que essa possível “droga”, a oração,

6
Leibovici, Leonard. Effects of remote, retroactive intercessory prayer on outcomes in patients
with bloodstream infection: randomized controlled trial. British Medical Journal 323: 1450-1451, 2001.
7
The reactions to these studies were highly divided, the more recent ones attracting numerous
vivid replies from the medical and scientific community (the study of Harris et al. was followed by fifteen
letters to the editors in the next volume of the journal that originally published it, while the online edition
of Leibovici’ study received no less than 86 rapid responses, most of them ranging from outrage to
mockery).
8
I realized that if prayer worked, withholding it might be the equivalent of denying my patients a
valuable medication or surgical procedure… There are powerful personal, professional, and ethical
repercussions for any physician who takes seriously the evidence supporting the effects of spiritual
meaning in health.
7

ministrada a pacientes, sabedores ou não do fato, não ter sido testada de modo suficiente
antes de ser aplicada a seres humanos, embora haja precedentes de pesquisas com
animais em que a oração também foi utilizada (FRUNZA, 2007: 109). Ao lado disso, no
estudo de Byrd foi constatado que apenas 2,7% dos consultados se dispunham a
participar do experimento, ao que se deve acrescentar ainda que a natureza do remédio
aplicado, a oração, podia ser também rejeitada por pessoas de outras religiões ou não
religiosas e ateias. E, para finalizar este tópico, o fato de que a “droga” utilizada, a
oração, não havia sido ainda suficientemente testada em seus “efeitos colaterais”, o que
poderia causar danos aos participantes da pesquisa. E, mais ainda, o fato de que os
indivíduos encarregados das orações poderiam facilmente – como medida caridosa ou
por desencargo de consciência – também aplicar suas orações aos integrantes do grupo
“placebo”, o que distorceria todo o resultado do experimento (FRUNZA, 2007: passim).

3 – Salvador, Bahia, Brasil


Aqui se pode acrescentar um rápido comentário ao que foi estudado pela
antropóloga brasileira Clarice Santos Mota em sua dissertação defendida no Mestrado
em Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia: sua temática foi o estudo da
Renovação Carismática Católica (RCC) a partir da ótica de médicos católicos
carismáticos que incluíam em sua prática terapêutica as orações e algumas técnicas
próprias da RCC. Daí o título dado a ela para a dissertação: “A Pomba e o Estetoscópio:
Um estudo sobre médicos religiosos na Renovação Carismática Católica”. Sem poder
me alongar muito no assunto, limito-me apenas a lembrar que, pelos resultados
alcançados em sua pesquisa, a autora percebeu que, embora a maioria dos pacientes
desses médicos aceitassem as técnicas de cura religiosa carismática, alguns se
recusavam. Isto possivelmente os levava a buscar outros médicos ou métodos de
tratamento (Cf. MOTA, 2003).

4 – Mais quatro aspectos, antes de concluir: América do Sul, automutilação de


mulheres, tuberculose entre índios Desana do Rio Negro (Brasil) e enfermidade e cura
entre os Ainu
Para concluir esta apresentação, antes das considerações finais, acrescento mais
quatro aspectos, resultado de outras pesquisas que podem ser relacionadas a meu
próprio tema. Em primeiro lugar, o artigo de Jane Teas que, tratando de “cura divina”,
nos diz que a mesma
8

é parte de todas as crenças e uma das solicitações mais antigas no mundo. Não obstante,
após o advento da medicina moderna, muitos médicos relegaram essa crença ao âmbito do
pensamento mágico e da superstição. Mesmo assim, 75% dos sul-americanos rezam pelo
menos uma vez por semana e 56% o fazem todo dia. É provável que pelo menos algumas
dessas orações sejam constituídas por súplicas voltadas para a cura de doenças. O que
reforça este comportamento? Presumivelmente pelo menos algumas dessas orações são
atendidas. Estamos interessados em como as pessoas definem as orações que encontram
resposta pela cura (TEAS, 2010: 17)9.
Outro aspecto a ser considerado neste texto diz respeito a práticas
contemporâneas de automutilação, que ocorrem entre jovens e mulheres, que podem ser
comparados aos “santos estigmáticos” da Idade Média. Podem ser vistas ainda como
técnicas de cura e de empoderamento e também de “mútua necessidade psicanalítica de
alteração do self como meio de escapar de suas próprias identidades dissociativas”.
Trata-se, segundo o autor, de “bricolage mútua de dor, imaginação, idioma e
subsequente automutilação [que] frequentemente proporciona uma transformação de
corpos em estado de sítio numa semelhança de saúde e transformação” (MULLEN,
2010: 91 e passim)10.
Mais dois elementos de comparação, antes de encerrar esta comunicação. Em
primeiro lugar, o artigo de Dominique Buchillet, intitulado “Tuberculose, Cultura e
Saúde Pública”. Antropóloga francesa, que no Brasil vinculou-se ao Museu Paraense
Emílio Goeldi e à Universidade de Brasília, durante bastante tempo um de seus artigos
estava disponível na página da web da UnB, exatamente aquele de que pretendo tratar.
Nesse artigo ela discute, do ponto de vista antropológico, a importância do estudo da
tuberculose na saúde pública. Além de mostrar as dificuldades do tratamento dessa
doença pelos serviços públicos de saúde no Brasil, assim como em várias outras partes
do mundo, Buchillet nos aponta também as questões mais sérias no que diz respeito à
saúde indígena, particularizando sobretudo a questão no que diz respeito aos índios
Desana do Rio Negro. E, sob esse enfoque, ressalta

9
Divine healing is part of every faith and one of the most ancient health claims in the world.
However, with the advent of modern medicine, most doctors relegate being healed by faith to the realm of
magical thinking and superstition. Yet 75% of Americans pray at least once a week, and 56% do so daily.
It is likely that at least some of these prayers are petitionary prayers for healing. What reinforces this
behavior? Presumably at least some prayers for healing are answered. We were interested in how people
define answered prayers for healing.
10
O texto completo do abstract do artigo é: “This paper explores the comparative dynamics of
self-mutilation among young, contemporary, female self-cutters, and the holy stigmatics of the Middle
Ages. It addresses the types of personalities that engage in self-mutilation and how some manipulate their
self-inflicted pain into a method for healing and empowerment. The similarities between teenage cutters
and female stigmatics are striking in their mutual psychoanalytical need for self-alteration as a means of
escaping their own disassociative identities; and offers evidence of how their mutual bricolage of pain,
imagining, languaging, and subsequent self-mutilation often provide a transformation from bodies under
siege to a resemblance of health and transformation”.
9

que os efeitos colaterais dos medicamentos podem ser considerados pelos pacientes
indígenas como sintomas de outra doença. Entre os Desana do Rio Negro (...) a aparente
ausência de relação da doença em relação ao tratamento empreendido, assim como o
surgimento de sintomas no curso da doença, podem invalidar o diagnóstico pré-
estabelecido e, portanto, o tratamento prescrito (...). De fato, e de maneira diferente do
esquema ocidental, o diagnóstico, na sociedade tradicional, pode variar na evolução de uma
doença em função de fatores propriamente clínicos e/ou extra médicos (como, no último
caso, sonhos, reminiscências do pajé ou conflitos na comunidade, entre outros).
E, mais adiante, ainda se referindo aos Desana:
a simbolização xamânica de quatro doenças infecciosas (malária, varíola, sarampo, gripe)
se baseava em parte no reconhecimento indígena de suas características epidemiológicas
diferenciais, principalmente: edemicidade, cronicidade, necessidade de um vetor,
associação com variações sazonais do nível das águas, evolução relativamente crônica,
longevidade do parasita, capacidade de latência e de reativação deste último no organismo
humano (...). Assim, características epidemiológicas da tuberculose, como a edemicidade, a
evolução relativamente crônica, a baixa contagiosidade, a possibilidade de recaída e a
disseminação lenta nas sociedades humanas podem explicar porque os Desana a
consideram como uma doença tradicional, isto é, doença que os afeta desde sempre.
E, mais: “atribuem-na, além disso, à feitiçaria xamânica”. Ao lado disso, no que
diz respeito ao tratamento, as “concepções locais sobre os mecanismos da eficácia
terapêutica também podem ser determinantes”, pois “a cura é, principalmente, baseada
na recitação de encantações terapêuticas altamente formalizadas sobre líquidos ou
plantas que lhes servem, essencialmente, de suporte material e de veículo para alcançar
o doente, mas podem ao mesmo tempo redobrar simbolicamente o efeito procurado na
encantação” (BUCHILLET, 2000: passim).
E, para finalizar, o artigo de Emiko Ohnuki-Tierney, intitulado “Ainu illness and
healing: a symbolic interpretation”. Para esse povo, existem “doenças metafísicas”
provocadas ou tornadas mais graves pela interferência de seres espirituais (demônios ou
divindades). Mas ao mesmo tempo essas entidades podem ser tomadas como fontes de
“energia de cura”. O artigo visa oferecer uma “interpretação simbólica das doenças
metafísicas dos Ainu tendo como referência a estrutura cognitiva básica da
epistemologia médica dos Ainu, que é fundada sobre a díade sagrado-profano, dentro de
uma rede social da organização cósmica”. Assim:
Demônios patogênicos representam anomalias estruturais intrínsecas, anárquicas e
permanentes. Eles contrastam com disjunções cósmicas extrínsecas, criativas e temporárias
do universo, que também causam doenças. Anomalias anárquicas de demônios são
diferenciadas das anomalias criativas de símbolos de mediação corporificadas nos espíritos
do xamã. O poder de contra-ataque às anomalias estruturais (e de curar os pacientes
atendidos) deriva de simbolismo do profano, que é aproveitado pelo poder não formalizado
dos xamãs e das mulheres na sociedade Ainu (OHNUKI-TIERNEY, 2009: 132).11

11
No original: “Pathogenic demons represent intrinsic, anarchic, and permanent structural
anomalies. They contrast with extrinsic, creative, temporary cosmic disjunctions of the universe, which
also cause illnesses. Anarchic anomalies of demons are differentiated from creative anomalies of
mediation symbols, as embodied in the shaman's spirits. The power to counterattack structural anomalies
10

Considerações Finais

Os exemplos acima listados podem ilustrar várias situações correspondentes a


“curas espirituais” que, mesmo apresentando variações, possuem também uma espécie
de eixo comum, concretizado em crenças e práticas espalhadas por várias partes do
mundo, mesmo que possuam variações em suas diferentes formas ou estruturas.
Este trabalho buscou comparar diferentes estudos no campo da antropologia da
saúde, feitos no Brasil e em outras partes do mundo, que dizem respeito a curas ou
tentativas de cura de caráter religioso ou “espiritual”. Pesquisei na internet, visando
obter certo número de trabalhos científicos publicados. Neles, foram encontrados
elementos que dizem respeito a terapias por meio de orações, benzeções, representações
de carismáticos católicos sobre processos de “recuperação” da saúde, bem como
representações e práticas alternativas de populações rurais e indígenas brasileiras sobre
tratamento de tuberculose, através de soluções de natureza mágico-religiosa. Ao lado
disso, em outras partes do mundo - forma extrema de invocação ao sobrenatural -, a
automutilação como prece para obter a cura de doenças e outras graças espirituais. E,
para concluir a lista de tais situações, entre os Ainu, no Japão, “doenças metafísicas”,
que se caracterizam pela presença de seres espirituais, demônios ou deuses, cuja cura é
obtida pelo poder não formalizado de mulheres e de xamãs.
A despeito dos diferentes estudos, com seus diversos enfoques, em várias partes
do Brasil e do mundo, há semelhança notável entre essas manifestações, estando sua
variabilidade não só nos diferentes lugares, mas também no estilo das orações e de
outras formas terapêuticas, que representam, assim, construções locais de elementos
culturais que podem ser encontrados em populações tão espalhadas e, ao mesmo tempo,
tão diferentes.
Uma questão fundamental diz respeito ao entendimento dessas práticas do ponto
de vista dos profissionais formados dentro dos parâmetros da biomedicina ocidental –
uma forma de medicina douta cuja eficácia tem se mostrado tão relevante, no mudo
inteiro, mas que não é única medicina douta, nem a única eficaz – e que muitas vezes
não busca entender a importância das chamadas “curas espirituais” (com exceções, é
claro, como nos mostram as pesquisas citadas acima). Existe, em certas situações,

(and to cure patients) derives from symbolism of the profane, which is tapped by nonformalized power of
shamans and women in Ainu society”.
11

verdadeiro abismo na diferença de compreensão de profissionais dessa área com relação


a populações indígenas, por exemplo, como aparece claramente nas formulações da
antropóloga Dominique Buchillet acima apresentadas. As diferenças entre os
pressupostos da ciência e da cultura de tipo “ocidental” estabelecem barreiras para a
mútua compreensão, já que se trata de povos e pessoas que possuem diferentes
cosmologias, o que as leva a comportar-se e a entender doenças e métodos terapêuticos
de modo diverso, do que resulta frequentemente a ineficácia dos tipos de tratamento.
Mesmo quando são médicos competentes e formados dentro das regras
científicas mais rigorosas do ponto de vista da ciência moderna, equívocos e ações
antiéticas podem ser cometidos, como é bem apresentado pelo artigo de Mihaela Frunza
em relação à eficácia científica da oração nos processos terapêuticos em grandes
hospitais.
Este texto é ainda exploratório e inconclusivo, mas se destina a um debate sobre
a questão de algumas das diferentes situações de “cura espiritual”, partindo da
semelhança entre essas técnicas terapêuticas, que existem e se mantêm há tantos
séculos, espalhadas entre diferentes populações do mundo inteiro. E por que existem?
São formas distintas de práticas curativas que muitas vezes partem de um raciocínio
mágico/religioso e simbólico, que são testadas em diferentes sociedades humanas e
persistem há tanto tempo. Delas não está ausente a experimentação e a observação que
leva a esse experimento12. Esta talvez seja a razão de sua persistência: algum tipo de
eficácia que, se não resulta na cura “verdadeira” e/ou “completa”, nos termos da
biomedicina, pode em certos casos conduzir a uma espécie de cura “psíquica”, trazendo
conforto ao paciente, mesmo que seja aquela que encontramos, conforme foi narrado
acima, entre portadores de moléstias consideradas incuráveis, mas que, frequentando
um ministério de cura da Renovação Carismática Católica/RCC, sentiam-se e diziam-se
curados, mesmo que continuassem sendo portadores de doenças “incuráveis” (em
termos estritamente médicos) de que eram portadores. Ao lado disso, creio podermos,
neste último caso, pensar em um tipo de tratamento paliativo desses pacientes, no qual
o convívio com seus parceiros carismáticos, as orações, os cânticos e as demais práticas
de louvor a Deus exercem uma função tão importante para que possam melhor conviver
com a doença de que são vítimas.
12
Sobre isto, consultar Lévi-Strauss (1970 a), que – fundamentado nos trabalhos dos
etnocientistas ou antropólogos praticantes da antropologia cognitiva – enumera e exemplifica alguns
fenômenos resultantes, no plano terapêutico, em populações do mundo inteiro, que se mostram de fato
eficazes. E também seus artigos famosos sobre a eficácia simbólica (LÉVI-STRAUSS, 1970 b).
12

REFERÊNCIAS

BUCHILLET, Dominique. Tuberculose, cultura e saúde pública. Série Antropologia do Departamento de


Antropologia da Universidade de Brasília, n.273, p. 1-17, 2000.
CORRÊA, Darci Aparecida Martins. Religião e saúde: um estudo sobre as representações do fiel
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