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1
Introdução
2
democracia liberal. Na verdade, a democracia liberal e os diversos entendimentos
quanto a esta, podem dividir-se em duas grandes correntes, tendo como diferença
essencial a forma como encaram o conceito de liberdade, que se encontra no âmago do
liberalismo e em torno do qual existem complexas teorizações. Esta distinção permite-
nos considerar que, na realidade, não há apenas um liberalismo, mas vários, embora o
liberalismo constitua uma única tradição política1.
1
Cfr. John Gray, Liberalism, 2.ª Edição, Minneapolis, The University of Minnesota Press, 1995, p. xiii.
2
Cfr. João Carlos Espada, “Dois conceitos de democracia” in i online, 30 de Maio de 2009. Disponível
em http://www.ionline.pt/conteudo/6601-madison-e-rousseau-dois-conceitos-democracia. Consultado em
22/11/2009.
3
eleitores. No caso francês, tratava-se de substituir o antigo absolutismo monárquico por
um novo absolutismo, popular e republicano”3.
3
Cfr. Idem, ibidem.
4
Cfr. João Carlos Espada, “A tradição da liberdade e a sua memória: razão da sua importância” in João
Carlos Espada, Marc F. Plattner e Adam Wolfson, eds., Liberalismo: o Antigo e o Novo, Lisboa,
Imprensa de Ciências Sociais, 2001, p. 17.
5
Cfr. John Gray, ob. cit., p. 13.
6
Cfr. Idem, ibidem, p. 15.
7
Cfr. Idem, ibidem, p. 14.
4
Sendo um autor contratualista, à semelhança de Hobbes e de Rousseau, Locke
teoriza a passagem do estado de natureza ao estado de sociedade com base num pacto
social, a que os homens aderem renunciando ao “seu poder de executar a lei natural”,
visto que a “cláusula fundamental do pacto social está na renúncia ao direito de reprimir
as infracções à lei natural”, tendo ainda o pacto como característica essencial o
reconhecimento de um “poder de coacção, independente e superior, encarregado de
reprimir as violações da lei”, assim evitando que cada qual faça justiça pelas próprias
mãos, como é apanágio do estado de natureza8.
8
Cfr. Marcel Prélot e Georges Lescuyer, História das Ideias Políticas, Vol. 2, Lisboa, Editorial Presença,
2000, p. 39.
9
Cfr. David Held, Models of Democracy, Cambridge, Polity Press, 2008, p. 63.
10
Cfr. Idem, ibidem, p. 64-65.
5
parlamentarismo e o presidencialismo11. Feroz inimigo de qualquer dominação absoluta,
introduz o princípio da separação de poderes, ou melhor, teoriza com maior rigor aquilo
que já Aristóteles havia distinguido – a deliberação, o mando e a justiça. Para Locke, há
três domínios de acção: “o da lei, a disposição geral; o da aplicação da lei pela
administração e pela justiça; e (..) o das relações internacionais, o poder «federativo»”12.
Esta partilha de poder dá-se por duas vias, ou num sentido vertical ou num
sentido horizontal. Na primeira acepção, criam-se corpos intermédios entre governantes
e governados, ao passo que, na última, separa-se o poder em três diferentes poderes, o
legislativo, o executivo e o judicial – este último introduzido por Montesquieu –, que
11
Cfr. Marcel Prélot e Georges Lescuyer, ob. cit., p. 42.
12
Cfr. Idem, ibidem, p. 43.
13
Cfr. Idem, ibidem, p. 43.
14
Cfr. David Held, ob. cit., p. 65.
15
Cfr. Marcel Prélot e Georges Lescuyer, ob. cit., p. 44.
6
criam um sistema de checks and balances, ou seja, servem de peso e contrapeso entre si,
complementando-se mas vigiando-se e fiscalizando-se mutuamente16.
16
Cfr. Idem, ibidem, p. 44.
17
Cfr. David Held, ob. cit., p. 65-66.
18
Cfr. Idem, ibidem, p. 67.
19
Cfr. Montesquieu, The Spirit of Laws, Chicago, William Benton, 1952, p. 69 apud David Held, ob cit.,
p. 67.
20
Cfr. David Held, ob. cit., p. 68.
7
respectivas escalas de valores, pelo que só as instituições criadas cuidadosamente
podem converter esta ambição em efectivas boas práticas de governação.
Institucionalizando a separação de poderes e criando formas para que os diferentes
grupos se manifestem e confrontem – precedendo o que Raymond Aron teorizaria como
institucionalização do conflito – Montesquieu originou um arranjo político que viria a
ser extremamente valorizado pela Modernidade: a divisão entre as esferas pública e
privada da vida em sociedade21.
Também ele contratualista, a sua preocupação central foi “encontrar uma forma
de associação que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada
associado e pela qual cada um, unindo-se a todos, não obedeça, contudo, senão a si
mesmo e permaneça tão livre como antes”25. O contrato social foi a resposta encontrada.
21
Cfr. Idem, ibidem, p. 69.
22
Cfr. Joseph A. Schumpeter, Capitalism, Socialism and Democracy, Nova Iorque, Harper Perennial,
2008, pp. 250-268.
23
Cfr. Clifford Orwin, “Rousseau entre dois liberalismos: a Sua crítica do antigo liberalismo e o Seu
contributo para o liberalismo mais recente”, in João Carlos Espada, Marc F. Plattner e Adam Wolfson,
orgs., Liberalismo: o Antigo e o Novo, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2001, p.72.
24
Cfr. José Adelino Maltez, Princípios de Ciência Política – Introdução à Teoria Política, 2.ª Edição,
Lisboa, ISCSP, 1996, p. 294.
25
Cfr. Jean-Jacques Rousseau, O Contrato Social, Mem Martins, Publicações Europa-América, 2003, p.
23.
8
Este não assentaria na força, ou em qualquer autoridade paternal ou divinal, mas sim
num livre compromisso por parte de quem se obriga. Seria “um pacto duma espécie
particular, pelo qual cada um se compromete com todos os outros; donde se segue o
compromisso recíproco de todos para com cada um, que é o objecto imediato da
reunião”26.
Ao abrigo deste contrato, que não tem verificação histórica, sendo apenas um
“tipo-ideal de constituição política (…) os indivíduos conferem ao Estado os seus
direitos naturais, para que este os transforme em direitos civis, que concede aos
cidadãos”27. Mas o grande dilema que atormentava Rousseau, partindo da sua
concepção de liberdade como a mais sagrada das virtudes do homem, era precisamente
a interrogação sobre como permanecer tão livre no estado de sociedade quanto no
estado de natureza. E para responder a esta questão, vai considerar a liberdade
individual como participação no processo de tomada de decisões em iguais condições,
sendo a apoteose da tentativa republicana de relacionar a liberdade com a participação
directa na vida pública28. Entregando-se cada indivíduo a todos os outros, não se
entregará a ninguém, e assim será livre29. É a partir desta resposta que se gera a
soberania colectiva assente no bem comum e na vontade geral. O cidadão tem de criar e
ligar-se à vontade geral, a concepção publicamente generalizada de bem comum. E
havendo diferentes opiniões quanto ao que será o bem comum, os votos da maioria
vinculam os restantes30.
26
Cfr. Jean-Jacques Rousseau, Lettres Écrites de la Montagne, sexta carta, in Écrits Politiques, p. 91.
apud José Adelino Maltez, ob. cit., p. 295.
27
Cfr. José Adelino Maltez, ob. cit., p. 295.
28
Cfr. David Held, ob. cit., p. 47.
29
Cfr. João Carlos Espada, “Liberdade como dispersão e equilíbrio de poderes” in i online, 25 de Julho de
2009. Disponível em http://www.ionline.pt/conteudo/15012-liberdade-como-dispersao-e-equilibrio-
poderes. Consultado em 22/11/2009.
30
Cfr. David Held, ob. cit., p. 46.
31
Cfr. Jean-Jacques Rousseau, O Contrato Social, ob. cit., p. 35.
9
tenham prescrito para eles próprios de acordo com o bem comum32. Logo, “it is freely
chosen obligation, accepted by the citizen body acting as a whole with the well-being of
the community in mind, which constitutes the basis of political right”33.
Este corpo de cidadãos, agindo como um todo, terá apenas uma única vontade,
sempre em estrita relação com o bem comum, assim gerando a vontade geral. Como
coloca Rousseau, “enquanto vários homens reunidos se consideram como um corpo
único, eles têm uma única vontade, relativa à conservação comum e ao bem-estar geral.
Então, todos os mecanismos do Estado são rigorosos e simples, as suas ideias mestras
são claras e luminosas, não há interesses duvidosos ou contraditórios, o bem comum
aparece sempre com evidência e não é necessário mais do que simples bom senso para o
apreender”34.
É desta forma que, segundo Eric Weil, Rousseau “descobre o conceito moderno
de razão como unidade de teoria e de acção, de pensamento e de moral, de consciência
individual e de lei universal35”, ao considerar que os homens são racionais e que a
vontade geral será sempre deduzida racionalmente, por mero bom senso, a partir do
momento em que todos os indivíduos se entregam à comunidade, livremente, passando
a constituir um corpo político, mantendo a sua liberdade intocada porque participam no
processo que conduz à produção da vontade geral, como iguais. Ou seja, como nota
Isaiah Berlin, ao entregarmo-nos à comunidade no seu todo, não poderemos deixar de
ser livres, porque nenhum indivíduo ou instituição nos força mas, tão simplesmente, o
Estado, entidade que para Rousseau somos nós e todos os outros nossos semelhantes,
apenas procurando concretizar o bem comum, pelo que, na sua lógica, ninguém nos
força a não sermos nós próprios36.
10
sujeitos e o soberano por mútua correspondência, encarregado da execução das leis e da
manutenção da liberdade, tanto civil como política”38, que resulta de um acto do povo
enquanto soberano39.
38
Cfr. Jean-Jacques Rousseau, ob. cit., p. 62.
39
Cfr Idem, ibidem, p. 100.
40
Cfr. José Adelino Maltez, ob. cit., p. 297.
41
Cfr. David Held, ob. cit., p. 49.
42
Cfr. Idem, ibidem, p. 47.
43
Cfr. Idem, ibidem, p. 47.
11
As Revoluções Atlânticas, em especial a Francesa, constituem, de facto, o marco
que simboliza a transição entre o que comummente designamos por Antiguidade e
Modernidade. Embora a literatura só a posteriori tenha cunhado o termo absolutismo,
para designar o poder exercido no Ancien Régime, há uma ruptura quanto à forma como
o exercício do poder é encarado, de que estes três teóricos serão, porventura, a face mais
visível, já que as suas ideias vão servir de base a grande parte dos desenvolvimentos da
teoria política que se verificarão nos séculos XIX e XX.
12
Desde logo, Berlin faz corresponder a concepção de liberdade rousseauniana a
um revivalismo da liberdade na democracia da Antiguidade Clássica, dos gregos, em
que ser-se livre implica necessariamente participar no governo da polis. Nesta acepção,
ser livre significava que “o governo e as leis pudessem referir-se a todas as esferas da
existência. O homem não estava livre, nem queria está-lo, da consequente supervisão”44.
Com a Modernidade, surge uma ideia nova, a distinção entre as esferas da vida pública
e privada, inicialmente formulada por Montesquieu, e clarificada por Benjamin
Constant45.
13
para alcançar um determinado objectivo, não se pode constituir como falta de liberdade
política. Assim, sendo a “diminuição da liberdade do sujeito (…) directamente
equacionada com a interferência de terceiros”49, conclui-se que “the wider the area of
non-interference the wider my freedom”50.
Berlin faz notar claramente que liberdade é liberdade, não é igualdade, justiça,
cultura ou felicidade53. Sempre que se restringe a liberdade em prol de qualquer outra
ideia, mesmo que seja algo considerado moralmente bom, como seja a segurança ou
paz, ou para corrigir qualquer desigualdade, injustiça ou imoralidade, está-se, de facto, a
coagir e a interferir na área de liberdade individual, mesmo quando se justifica esta
restrição com a eventualidade de virmos a ter maior liberdade a posteriori54. E embora a
definição sobre o que constitui essa área mínima seja passível de discussão, o que
resulta deste entendimento é que a liberdade negativa é a liberdade de, a ausência de
interferência por parte da sociedade na esfera da nossa liberdade pessoal55. Em resumo,
João Carlos Espada diz-nos que “em termos políticos, o ideal da liberdade negativa
supõe a existência de um Estado limitado, que respeita a esfera privada das decisões
49
José Castello Branco, “Isaiah Berlin: Da Liberdade Negativa à Sociedade Decente” in João Carlos
Espada e João Cardoso Rosas, orgs., Pensamento Político Contemporâneo – Uma Introdução, Lisboa,
Bertrand, 2004, p. 63.
50
Cfr. Isaiah Berlin, “Two concepts of Liberty”, ob. cit., p. 3.
51
Cfr. Idem, ibidem, p. 5.
52
Cfr. João Carlos Espada, , “Isaiah Berlin: Liberdade e Pluralismo” in i online, 11 de Julho de 2009.
Disponível em http://www.ionline.pt/conteudo/12722-isaiah-berlin-liberdade-e-pluralismo. Consultado
em 22/11/2009.
53
Cfr. Idem, ibidem, p. 5.
54
Cfr. Isaiah Berlin, “Liberty”, in Henry Hardy, ed., Liberty, Oxford, Oxford University Press, 2002, p.
285 apud José Castello Branco, ob. cit., p. 66.
55
Cfr. Isaiah Berlin, “Two concepts of Liberty”, ob. cit., p. 5.
14
pessoais, e cujo principal objectivo é garantir que a liberdade de uns não interfere na
liberdade de outros”56.
56
Cfr. João Carlos Espada, , “Isaiah Berlin: Liberdade e Pluralismo”, ob. cit.
57
Cfr. José Castello Branco, ob. cit., p. 70.
58
Cfr. Isaiah Berlin, ob cit., p. 9.
15
their real selves, in the secure knowledge that whatever is the true goal of man
(happiness, performance of duty, wisdom, a just society, self-fulfilment) must be
identical with his freedom – the free choice of his true, albeit often submerged and
inarticulate , self”59.
Berlin vai teorizar sobre o confronto entre estas duas perspectivas e a forma
como a vida em sociedade deve decorrer em função destas, argumentando em favor da
liberdade negativa como um ideal pluralista, que tem como objectivo a gestão de
equilíbrios entre valores diversos, quando não mesmo conflituais. Tendo a liberdade
negativa que ser contrabalançada por outros valores, chega-se a uma concepção
moderada e equilibrada da vivência em sociedade, em que não podendo a liberdade em
si ser um fim ou valor último, não deixa de ser “a condição mais básica à vida
humana”60.
59
Cfr. Idem, ibidem, p. 78.
60
Cfr. José Castello Branco, ob. cit., p. 78.
61
Cfr. Idem, ibidem, pp. 76-77.
62
Cfr. Isaiah Berlin, “The Pursuit of the Ideal”, in Henry Hardy, ed., The Crooked Timber of Humanity:
Chapters in the History of Ideas, Londres, Fontana Press, 1991, p. 18 apud José Castello Branco, ob. cit.,
p. 80.
16
social. Este princípio é a ideia da ignorância constitutiva do ser humano63. Partindo das
acepções sobre a psique humana, que foram, durante algum tempo, o seu campo de
estudo, Hayek argumenta que não é possível explicar “em temos determinísticos, por
meio de relações causa-efeito, uma série de fenómenos do mundo que nos rodeia,
natural e social”64.
Embora estes dois tipos de ordem coexistam, os seus princípios não são os
mesmos65. A ordem de organização, também denominada por made order, corresponde
a um arranjo, uma estrutura que visa impor aos indivíduos determinados
comportamentos, com vista a alcançar certos fins, podendo ser esta estrutura descrita
como “a construction, an artificial order or, especially where we have to deal with a
directed social order, as an organization”66.
63
Cfr. Manuel Fontaine Campos, “ Friedrich A. Hayek: Liberdade e Ordem Espontânea”, in João Carlos
Espada e João Cardoso Rosas, Pensamento Político Contemporâneo – Uma Introdução, Lisboa, Bertrand,
2004, p. 34.
64
Cfr. Idem, ibidem, p. 34.
65
Cfr. F. A. Hayek, Law, Legislation and Liberty, London, Routledge, 1993, p. 48.
66
Cfr. Idem, ibidem, p. 37.
67
Cfr. Idem, ibidem, p. 38.
17
Esta distinção, no entanto, só permite explicar o funcionamento destes
fenómenos, e não a sua origem. Para tal, Hayek faz corresponder à ordem espontânea o
evolucionismo, e à ordem de organização o construtivismo. Para o construtivismo, as
instituições foram desenhadas por um indivíduo ou conjunto de indivíduos, tendo
propósitos bem definidos, podendo, pelo facto de serem construções sociais, ser
completamente redesenhadas de acordo com outros princípios que se achem
apropriados68.
Sendo esta visão absurda, visto que são fenómenos demasiado complexos, não
podemos deixar de constatar a tentativa de colocar em prática utopias que obedeceram a
estes princípios, não compreendendo que tais fenómenos resultam de ordens
espontâneas, fruto da já referida interacção entre milhões de seres humanos ao longo do
tempo, chegando até nós através de processos de competição e selecção, e em resultado
de terem permitido “aos grupos humanos onde surgiram sobreviver e prosperar”69. Tal
não significa que existam instituições perfeitas, já que a evolução é contínua e depende
das circunstâncias que se vão alterando ao longo da História.
Hayek foi um dos grandes intelectuais do século XX, responsável pela denúncia
intelectual e moral do comunismo, no qual via uma ordem de organização que castrava
a liberdade dos indivíduos. Esta, só pode ser assegurada por uma sociedade liberal
assente nos princípios da economia de mercado e da liberdade individual. Este tipo de
sociedade é o único que proporciona aos indivíduos a “maximização da possibilidade de
cumprimento do maior número de fins individuais”, dependente apenas da capacidade
de cada um de “poder utilizar os seus conhecimentos na prossecução dos seus próprios
fins”70.
68
Cfr. Manuel Fontaine Campos, ob. cit., p. 35.
69
Cfr. Idem, ibidem, p. 36.
70
Cfr. Idem, ibidem, p. 37.
71
Cfr. Idem, ibidem, p. 37.
18
agindo de acordo com a ilusão de que seriam capazes de calcular todas as necessidades
humanas, pretendiam distribuir a propriedade em função de um padrão de justiça social.
O que é facto é que a ordem espontânea liberal e capitalista é muito mais produtiva e
eficiente, ao basear-se num sistema em que as decisões económicas são tomadas através
da interacção de diversos agentes. Cada agente toma as decisões económicas de acordo
com o conhecimento e informação que detém, sendo, por isso, os “conhecimentos de
cada indivíduo aproveitados ao máximo”72, o que não acontece em sistemas dirigistas,
já que a autoridade central não consegue aceder e processar todo o conhecimento e
informação disponível. Embora pareça um sistema desorganizado, o que acontece é que
há um efeito de organização espontânea, alcançado por via do mecanismo ou sistema de
preços, através do qual é transmitida a informação entre os agentes económicos.
72
Cfr. Idem, ibidem, p. 38.
73
Cfr. F. A. Hayek, The Road to Serfdom: text and documents – The Definitive Edition, Bruce Caldwell
(ed.), Chicago, The University of Chicago Press, 2007, p. 69.
74
Cfr. John Gray, ob. cit., p 62.
19
muitos adversários do liberalismo e não defendido pela maior parte dos autores
liberais75.
No século XX, Karl Popper dedicou grande parte do seu tempo a esta questão da
limitação do poder, à semelhança de Hayek ou Berlin, e em consonância com os
princípios e conceitos por estes desenvolvidos. É crucial entender a forma como Popper
vai chegar a um complexo raciocínio com o objectivo de defender a ideia de sociedade
aberta e de limitação de poder, começando por reflectir em termos de filosofia da
ciência e do conhecimento.
75
Cfr. Idem, ibidem, p 70.
76
Cfr. Idem, ibidem, p. 72.
77
Cfr. Karl Popper, The Open Society and Its Enemies, Princeton, N.J., Princeton University Press, 1971,
Vol. 2, p. 369 apud João Carlos Espada, “Karl R. Popper: A Sociedade Aberta e os seus Inimigos”, in
João Carlos Espada e João Cardoso Rosas, Pensamento Político Contemporâneo – Uma Introdução,
Lisboa, Bertrand, 2004, p. 28.
78
Cfr. João Carlos Espada, “Karl R. Popper: A Sociedade Aberta e os seus Inimigos”, ob. cit., p. 28.
20
entendimento de verdade permite dar sentido ao conceito de erro. Cometemos um erro
quando consideramos verdadeiro um enunciado que é falso, ou vice-versa”79.
A sua teoria sobre o conhecimento é de extrema importância para a crítica que faz
ao que considera os inimigos da sociedade aberta, i.e., o historicismo, relativismo,
engenharia social, colectivismo, característicos de sociedades fechadas como as que são
originadas pelos totalitarismos. Por outro lado, a liberdade de crítica encontra-se na base
da ideia de sociedade aberta. Nesta última, “existe espaço para a liberdade de crítica e
para a gradual alteração de leis e costumes através da crítica racional”, ao passo que, na
79
Cfr. Idem, ibidem, p. 28.
80
Cfr. Idem, ibidem, p. 28.
81
Cfr. José Adelino Maltez, Curso de Relações Internacionais, Lisboa, Principia, 2002, p. 18.
82
Cfr. João Carlos Espada, “Karl R. Popper: A Sociedade Aberta e os seus Inimigos”, ob. cit., p. 17.
21
primeira, “pelo contrário, leis e costumes são vistos como tabus imunes à crítica e à
avaliação pelos indivíduos”83.
Estas regras vão de encontro à questão que Popper considera como mais
pertinente para o funcionamento de uma democracia: “como se limita o poder de quem
governa?”, ou seja, como se evita a tirania, como se evitam abusos de poder e
interferências por parte do governo em áreas onde não deve intervir, e como se garante a
mudança de governo sem violência86.
83
Cfr. Idem, ibidem, p. 18.
84
Cfr. Karl Popper, “Conferência de Lisboa”. Disponível em http://www.ordemlivre.org/node/615.
Consultado em 08/12/09.
85
Cfr. João Carlos Espada, “Karl R. Popper: A Sociedade Aberta e os seus Inimigos”, ob. cit., p. 19.
86
Cfr. Idem, ibidem, p. 19.
22
dessas regras. Elas incluem a separação de poderes, os freios e contrapesos, as garantias
legais – numa palavra, o governo constitucional ou limitado pela lei”87.
Tendo como principal preocupação elaborar uma teoria explicativa que pudesse
permitir uma melhor compreensão do funcionamento das democracias, a sua obra mais
conhecida, Capitalismo, Socialismo e Democracia, viria a ter um grande impacto na
Ciência Política e na Teoria da Democracia em geral, surgindo no mesmo patamar de
nomes como Giovanni Sartori, Norberto Bobbio ou Robert Dahl. Em larga escala, este
reconhecimento deve-se a uma elaborada desconstrução dos princípios de Rousseau.
87
Cfr. Idem, ibidem, pp. 20-19.
88
Cfr. Idem, ibidem, p. 20.
89
Cfr. David Held, ob. cit., p. 152.
23
Para Schumpeter, a democracia é um processo, um método, que ele próprio visa
explicar em termos realistas e empíricos. Começa por definir a doutrina clássica da
democracia rousseauniana, baseada no bem comum e na vontade geral, precisamente
como um método com determinados objectivos: “the democratic method is that
institutional arrangement for arriving at political decisions which realizes the common
good by making the people itself decide issues through the election of individuals who
are to assemble in order to carry out its will”90.
Ainda assim, mesmo que se pudesse considerar uma acepção única de bem
comum, suficientemente aceitável por todos, tal não implica que as respostas às
necessidades, vontades e assuntos individuais sejam igualmente definidas e definitivas.
E mesmo que eventualmente o fossem, os indivíduos continuariam a discordar sobre a
forma como alcançar os objectivos definidos e derivados dessas respostas92. Criticando
Rousseau pelo seu utilitarismo, Schumpeter faz notar os problemas que surgem do
dilema da avaliação entre respostas satisfatórias presentes e futuras, exemplificando que
a questão socialismo vs. capitalismo ficaria sempre em aberto, mesmo se todos os
indivíduos pensassem em termos utilitaristas. Por outras palavras, os teóricos
utilitaristas da doutrina clássica da democracia falharam ao não considerar que
mudanças substanciais a nível económico alteram os hábitos dos indivíduos e da
sociedade, pelo que é impossível ter uma resposta definitiva e aceite por todos sobre o
que é o bem comum93. Pode definir-se num dado momento e numa determinada
sociedade consoante o contexto e circunstâncias presentes, mas num outro dado
momento a resposta não será a mesma, nem terá necessariamente um nível de aceitação
idêntico.
90
Cfr. Joseph A. Schumpeter, ob. cit., p.250.
91
Cfr. Idem, ibidem, p. 251.
92
Cfr. David Held, ob. cit., p. 147.
93
Cfr. Joseph A. Schumpeter, p. 255.
24
Destes considerandos, decorre naturalmente que a vontade geral também não
existe, já que a sua formulação advém da concepção única do bem comum discernível
por todos. Para tal é necessário que exista na sociedade um centro em torno do qual
gravitam todas as vontades individuais, com vista a gerar o bem comum e a vontade
geral. E é esse centro que unifica as vontades individuais, as imputa racionalmente à
vontade geral, e confere a esta última “the exclusive ethical dignity claimed by the
classic democratic creed”94. Como já vimos, essas vontades são demasiado
fragmentadas para que se possam gerar estas acepções rousseaunianas. Como resume
Schumpeter, “both the existence and the dignity of this kind of volonté générale are
gone as soon as the idea of the common good fails us. And both the pillars of the
classical doctrine inevitably crumble into dust”95.
O seu argumento final contra o bem comum está relacionado com a sua
concepção da natureza humana, e a observação dos comportamentos dos indivíduos no
que concerne às necessidades económicas e aos seus hábitos de consumo. Estes são
originados através de uma construção social, com uma carga muito pouco racional e
independente. O mesmo acontece no campo da política. Esta não se encontra no centro
das preocupações da maior parte das pessoas, o que não lhes permite efectuar juízos
totalmente racionais sobre ideologias e políticas em competição. Além do mais, a
maioria dos indivíduos é susceptível de ser manipulada por grupos de pressão e de
94
Cfr. Idem, ibidem, p. 252.
95
Cfr. Idem, ibidem, p. 252.
96
Cfr. David Held, ob. cit., p. 148.
97
Cfr. Joseph A. Schumpeter, p. 257.
25
interesses, o que, mais uma vez, retira dos seus juízos qualquer independência ou
racionalidade98.
Este pressuposto tem duas consequências. A primeira é que mesmo que não seja
influenciado por quaisquer grupos políticos, o cidadão típico tenderá a ceder a
preconceitos ou impulsos irracionais ou extra-racionais, muitas vezes obscuros e com
base em fracos padrões morais, já que o seu processo de pensamento na esfera política é
associativo, primário, muito pouco lógico e detém um controlo muito pouco efectivo
sobre os resultados das decisões tomadas. Mas mesmo que aconteça o contrário, ou seja,
que se manifeste de forma generosa e indignada, nada garante que a sua análise e
perspectiva seja a mais correcta, embora ele se possa convencer de que corresponde de
facto à vontade geral. Desta forma, corre-se o risco do indivíduo se tornar ainda mais
obtuso e irresponsável, o que poderá ser fatal à nação e/ou ao Estado em determinadas
circunstâncias100.
98
Cfr. David Held, ob. cit., p. 149.
99
Cfr. Joseph A. Schumpeter, p. 262.
100
Cfr. Idem, ibidem, p. 262.
101
Cfr. Idem, ibidem, p. 263.
26
A afirmação de que a vontade geral é o resultado e não a causa do processo
político é certamente uma das ideias mais desconcertantes para os defensores da
doutrina clássica da democracia. É, a nosso ver, a pièce de résistance na desconstrução
de Schumpeter dos postulados de Rousseau.
É ainda a partir de tal que vai elaborar a sua teoria da democracia, postulando o
processo democrático em termos bem mais realistas: “The democratic method is that
institutional arrangement for arriving at political decisions in which individuals
acquire the power to decide by means of a competitive struggle for the people’s
vote”102.
102
Cfr. Idem, ibidem, p. 269.
103
Cfr. David Held, ob. cit., p. 143.
104
Cfr. Idem, ibidem, p. 150.
27
lugar, a qualidade dos políticos tem que ser elevada. Em segundo, a competição entre
líderes e partidos rivais deve dar-se apenas em relação a um conjunto relativamente
restrito de questões, delimitado pelo consenso generalizado em relação às políticas a
seguir, decorrentes do programa do governo aprovado pelo parlamento e das matérias
constitucionais. A terceira condição é a existência um aparelho burocrático
independente e de qualificações elevadas, que possa auxiliar os decisores políticos na
formulação das políticas e na administração. O quarto factor é o auto-controlo
democrático, segundo o qual, todos os grupos da sociedade devem estar dispostos a
aceitas as medidas governamentais, conquanto estejam restringidas à luz da segunda
condição, devendo evitar-se criticismos excessivos ou oposições a todas as medidas, o
que pode levar a comportamentos imprevisíveis e violentos. Por último, tem de existir
uma cultura de tolerância e respeito pelas diferenças de opinião, pelo que a liberdade de
expressão e de imprensa é um dos fundamentos do método democrático105.
Conclusão
105
Cfr. Joseph A. Schumpeter, ob cit., pp. 290-296 e David Held, ob. cit., pp. 150-151.
106
Cfr. David Held, ob cit., p. 152.
28
organizada de cima para baixo, por um indivíduo ou conjunto de indivíduos, que
inevitavelmente assenta num sistema económico planificado. Por outro lado, a corrente
anglo-saxónica, assente num liberalismo que tem no cepticismo em relação ao exercício
do poder um dos seus traços característicos, pauta-se pela assumpção da liberdade
negativa, a que melhor serve uma ordem social liberal, óbvia e naturalmente
espontânea, que em termos políticos vai assumir os princípios do governo limitado e da
limitação e dispersão de poder, salvaguardando a liberdade individual e a possibilidade
de cada indivíduo prosseguir os seus fins como melhor lhe aprouver, o que em termos
económicos só é possível numa economia de mercado.
107
Cfr. José Adelino Maltez, Princípios de Ciência Política – Introdução à Teoria Política, ob. cit., p.
149.
29
conferem aos decisores um espaço de manobra e capacidade de acção extremamente
amplo, assente numa crença no poder ilimitado da razão.
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