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C O L E Ç Ã O F O R U M

f
A. L. M achado N eto

0 Pr o blem a da C iência do D ireito


(ENSAIO DE EPISTEM0L0G1A JURÍDICA)

AGUIAR & SOUZA LTDA.

LIVRARIA SONORA
CIÊNCIA DO DIREITO

CAPÍTULO V I I

O EGOLOGISMO EXISTENCIAL

“La Teoria egologica considera que la Ciên­


cia Dogmática dei D erccho es una ciência de
la realidod, por Io tanto una ciência de expo-
riencia; só/o que de la exporiencia cultural o
humana y no de la cxpsriencia natural o cau­
sai".
(C A R LO S COSSIO)

"Selo as! el sabsr de loa juristas alcünzará y


lucirá su diênidacl de ciência sin par, en tanto
que es la teoria de Ia libertad compartida, la
disciplina de la conducta social o — en otros
términos — la ciência de la peraona".
(EN RIQ U E R . A FTA LIO N ).

Como um importante marco cio grande movi­


mento filosófico-jurídico que caracteriza a presen­
te centúria, temos, na Argentina, o esplendoroso
florescimento jusfilcsófico que a escola egológica re­
presenta .

129
MACHADO NETO

Uma particularidade, poi’ém, caracteriza espe­


cialmente a meditação jusfilosófica de Carlos Cos-
sio e seus discípulos: é o fato de que — no dizer
do próprio chefe da escola. — , “la teoria egológica
no cree que pueda hacerse com provecho una filo­
sofia sobre el Derecho a secas” (1 ).

Daí que tcdo o interesse da meditação egológi-


ca esteja voltado para a ciência do Direito, para a
tarefa de tporcionar ao jurista o uso dos instru­
mentos mentais que o capacitem ao mellior trata­
mento do Direito positivo.
Com tal objetivo epistemológico, Cossio se aprc-
pria do instrumental teórico da filosofia contempo­
rânea, daí retirando, em particular, para a sua
construção teerética, o que êle considera as três
contribuições fundamentais da filosofia atual para
o estudo do Direito: a teoria dos objetos, a lógica do
dever ser e a idéia do tempo existencial (2).
Dizer isso' é revelar que as raízes ideológicas de
Cossio vão encontrar-se na fenomenologia, na fi­
losofia dos valores e no existencialismo e, especial­
mente, em matéria jurídica, na teoria pura do Di­
reito de Kelsen, que c professor argentino assimi­
lou como bem poucos e tem logrado, como ninguém,
superar. Vale salientar também uma certa dispo­
sição espiritual de fundo criticista que denuncia
a influência do filósofo de Kcenigsberg.

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CIÊNCIA DO DIREITO

E’ valendo-se da teoria dos objetos que Cossio


parte para a fundamentação de sua ontologia jurí­
dica, onde nos presenteia ccm a descoberta do Di­
reito como conduta em interferência intersubietiva.
Tal teoria dos objetos reconhece quatro regiões
ônticas ou quatro ontologias regionais, a saber: a)
os objetos ideais, que se caracterizam por serem ir­
reais, não se darem na experiência e serem neutros
de valor, e cujo processo cognoscitivo é .a intelecção,
que se realiza através o método racional-dedutivo;
b) os objetos naturais, reais, que se dão- na expe­
riência, são neutros ao valor e cujo processo de co­
nhecimento é a explicação, realizável por meio do
método empíricc-indutivo; c) cs objetos culturais,
que ião reais, estão na experiência, são positiva
ou negativamente valiosos e são conhecidos median­
te o processo gnoseológico da compreensão, por meio
cío método empírico-diaiético; c) os objetos m etafí­
sicos, que têm existência real, não estão na expe­
riência sensível e são valiosos positiva ou negativa­
mente .
A cada uma dessas regiões de objetos, por suas
especiais características, corresponde um determi­
nado tipo de ciência, salvo a última, região' própria
CIÊNCIA DO DIREITO

da metafísica, que a unânime opinião filosófica


apresenta como o terreno extracieníífico por exce­
lência. Assim é que aos objetes ideais correspon­
dem as ciências formais corno ps matemáticas e a
lógica, acs objetos naturais, as ciências experimen­
tais ou ciências naturais e aos objetos da cultura as
chamadas ciências humanas, sociais ou culturais.

O Direito, estando situado nesta última região,


é, pois, ur5' ;>bjeto cultural, a ciência do Direito
sendo, assim, uma ciência da cultura.

Mas, nos objetos culturais, Cossio distingue um


suporte fáctico ou substrato e um sentido suíten-
tado por êsse suporce, e que é onde reside o caráter
valioso ou desvalioso do bem cultural, qualquer que
seja êle. Conforme êsse suporte seja um objeto fí­
sico, como o mármore numa estátua, ou uma con­
duta humana, como num ato moral, teremos os
objetes culturais divididos em mundanais e egoló-
giccs, respectivamente.

O Direito, por inexistir, no caso, um cbjeto fí­


sico que lhe constitua o suporte, é um objeto egoló-
gico, por consistir em conduta, conduta humana
em interferência intersubjetiva, que é o que o dis­
tingue da moral, segundo a famosa distinção de Del
Vecchio, que Cossio transporta do plano lógico para
o ontológico.

132
CIÊNCIA DO DIREITO

Ora, como a conduta humana, mesmo em in­


terferência intersubjetiva. — isto é, enfocada do
t ponto de vista de sua impedibilidade — é liberdade
metafísica fenomenizada, 'o estilo de pensamento que
irá pensar o Direito não pode ser o mesmo capaz
de “inteligir” os objetos ideais ou explicar a natu­
reza. A lógica especial da ciência do Direito terá
de ser diversa da que rege os espíritos na formula­
ção das ciências naturais. Nesta, rege &. lógica do
ser, de que Aristóteles colocou as bases imortais,
enquanto no mundo da conduta, no plano do Di­
reito, vale uma lógica especial, a lógica, do dever-
ser, de que Hans Kelsen é, no entender de Cossio,
o genial descobridor.

Assim, a teoria pura do Direito, entendida co­


mo lógica jurídica formal, é assimilada -ao acervo
teórico da escola egológica, como o estilo de pensa­
mento próprio do jurista no enfrentar-se com a
conduta em interferência intersubjetiva, que é o
Direito.

^ Não é, porém, sem certas profundas alterações


que Cossio assimila a teoria pura do Direito. Entre
tais modificações está a transformação da estrutu­
ra lógica da norma jurídica em um juízo disjunti-

133
MACHADO NETO

vo, em uma disjunção propcsicional, ao contrário


de Kelsen, que a admitia como um juízo hipotético.
Em Kelsen a norma jurídica, juízo hipotético,
apresentaria a seguinte estrutura esquemática: “da­
do A deve ser B” , ou na fórmula propriamente ju ­
rídica, “dada a não prestação deve ser a sançãc” , a
norma que menciona a prestação e o fato jurídico
(“ dado o fato dever ser a prestação” ) aparecendo
como algo que viria permitir pensar de cutro ângu­
lo a relação j "ídica, mas, em todo o caso, algo mar-
cadamente pie&nástico, ou, 'na melhor das hipóte­
ses, expletivo. Nunca algo essencial e imprescin­
dível .

Na formulação egológica, ao contrário, ambas


as normas kelsenianas são engranzadas numa es­
trutura disjuntiva, tanto a prestação como a san­
ção assumindo o seu caráter essencial na relação
jurídica e na estrutura lógica que a pensa:
“Dado F. deve ser P. por Ao. face a Ap. (en-
donorma) ou
dado não— P deve ser S. pelo Fo. face à C.p.
(perinorma), ou mais explicitamente:

“Dada una situación vital como hecho


antecedente, debe ser la prestación por al-
guién 'cbligado frente a alguién titular; o dado

134
CIÊNCIA DO DIREITO

el entuerto, debe ser la sanción a cargo de


un funcionário obligado por la comunidad
pretensora” (3).

Assim, temos além dos elementos permanen­


tes: o clever-ser e a conjunção ou que marca a dis­
junção proposicional, os seguintes elementos da re­
lação jurídica: 1) — Fato jurídico, 2) — Prestação,
3) — Sujeito passivo, 4) — Sujeito ativo, 5) — Ilí-
cit: (“ entuerto” ), 6) — Sanção, 7) — Funcionário
obrigado como sujeito passivo da perinorma, 8) —
Comunidade pretensora como sujeito ativo da pe­
rinorma .

De posse dessa estrutura disjuntiva, Cossio pôde


melhor ainda do que Kelsen ordenar hieràrquica-
rnente o ccnjunto das normas jurídicas na estrutura
piramidal que compõe o ordenamento jurídico. Com
efeito, se a prestação da endonorma não se verifica,
teremos a sanção que é a obrigação ou prestação
de uma endonorma que se dirige ao juiz, o qual,
se nãc a realiza, estará sujeito a uma sanção, que,
por ?ua vez, será a prestação de uma nova endo­
norma dirigida a quem tenha a competência legal
para sancionar o juiz prevaricador, e assim até a
norma fundamental.

Fechando, por todos os lados, essa estrutura


piramidal, temos o princípio da hermética plenitude
MACHADO NETO

clo ordenamento jurídico, que Cossio “ontologiza”


ao mcstrar que êle é um juízo sintético a priori,
fundado na intuição da liberdade pura.
1
Assim, cutra vez, como no conceito de Direito,
o lógico ss ontologiza nas mãos de Cossio, já que o
princípio lógico “o que não está juridicamente proi­
bido está juridicamente permitido” (lógico, e, como
tal, conversível em “o que não está juridicamente
permitido está juridicr^ente proibido” ) passa a
ser inconversível, por deüorrer da própria condição
ontológica dc Direito, do próprio ser do Direito, que,
sendo conduta, é liberdade metafísica fenomenizada,
e, como tal, não seria possível determiná-la total­
mente. Sempre há de restar certa margem de li­
berdade à conduta, por mais que a norma a pre­
tenda vincular a determinações e proibições. Dêsse
modo, se o contrato me determina a pagar a obri­
gação x em tal dia, resta-me a liberdade de fazê-lo
pela manhã ou à tarde. Se determina que a pres­
tação deve ser feita à tarde, eu poderei ainda esco­
lher se antes ou depois das 15 horas, por exemplo.
Mas se até a hora está marcada e com precisão de
minuto e segundo, nada me impede que eu vá ves­
tido a rigor ou a passeio, com ou sem chapéu, que
adote êste ou aquêle meio de condução, esteja ou
não assobiando o “Bclero” de Ravel ou um samba
de Heitor dos Prazeres, e etc___

136
CIÊNCIA DO DIREITO

Impensável é, portanto, a vida do Direito sob


a regência do princípio ontológico convertido em
“ tudo que não está juridicamente permitido está
juridicamente proibido” . Daí que o que o princípio
*iudo que não está juridicamente proibido está ju­
ridicamente permitido” , além de resolver o pro­
blema lógico da plenitude hermética da ordem ju­
rídica, seja o princípio cntológico do Direito, pois
nada de lógico nos poderia proibir a conversão do
mesmo, e sim, o próprio ser do Direito (4).

* *

Outro ponto em que a teoria egológica reforma


a teoria pura é na revalorização do Direito subjeti­
vo que o conceito do Direito ccmc conduta, i . e .:
como liberdade metafísica fenomenizada vem acar­
retar.

A liberdade é, nessa perspectiva, um prius don­


de há que partir. Originàriamente tôda conduta é
permitida. Todo Direito é assim um contínuo de
licitudes e um descontínuo de ilicitudes. Daí que
o princípio ontológico não seja conversível como
o é o juízo analítico “ tudo que não é ilícito é lícito” .
Sôbre êsse prius da liberdade humana, êsse
contínuo de licitudes, a determinação normativa
vai estabelecendo as ilicitudes.
MACHADO NETO

E’ <a norma, pois, que especifica a conduta em


interferênêcia intersubjetiva nas quatro formas ge­
rais do Direito: prestação, faculdade, ilícito, sanção.
Antes da norma não haveria tal especificação.
No que ao tema da revalorização do Direito
subjetivo se refere, a. norma, incidindo sôbre a li­
berdade, especifica-a em ilícito e liberdade jurídica
ou faculdade que, por sua vez, pode ser faculdade
de senhorio ou de inordinação,,' 'ta última — que
impossibilita uma escravidão toíál — sendo o Di­
reito de cumprir o próprio dever, seja por comissão
ou por omissão (5 ).


« *

Se, no plano da lógica formal, a norma é um


juízo, juízo disjuntivo, como vimos, no plano gno-
seológico da lógica transcendental, ela é um con­
ceito que pensa a conduta em sua liberdade feno-
menizada, em seu dever-ser.

A relação entre norma e conduta é, pois, para


Cossio e sua escola, uma relação de conceito a ob­
jeto, a norma sendo o conceito que pensa a con­
duta em sua liberdade. O juízo enunciativo, pró­
prio das ciências naturais, não poderia pensar a
liberdade senão matando-a com o tal liberdade. Daí
CIÊNCIA DO DIREITO

que, prescindindo da liberdade, a lei científica es­


teja endereçada à previsão: “savoir pour prévoir” .
Juízo para o pensamento (lógica form al), a
norma é, pois, um conceito para o conhecimento
(lógica transcendental).
A norma é ainda o momento formal e necessá­
rio da experiência jurídica. Mas outros dois ingre­
dientes compõem essa experiência que é, assim,
por ser experiência cultural (e, portanto, valorati-
va), diversa da experiência natural de que se
ocupam as ciências da natureza.
Além da estrutura normativa, elemento formal
e necessário, a experiência jurídica encerra o con­
teúdo dogmático, material e contingente e a valo-
ração jurídica, a um só tempo material e necessá­
ria.
A existência dêsse momento material e neces­
sário, que é a valoração jurídica, leva-nos, por con­
seguinte, ao prcblema dos valores jurídicos. Quais
são êles?
Cossio responde a essa pergunta indicando co­
mo tais todos os valores bilaterais de conduta que,
no seu entender, formam o plexo axiológico-juríd-
co, composto de sete valores: ordem, segurança, po­
der, paz, cooperação, solidariedade e justiça (6) .

139
MACHADO NETO

Há que salientar, nesse ponto, que o Direito


não está norteado no sentido dêsses valores, com o
pode estar o navegante pela estrela polar, mas que,
ao contrário, por ser cultura, o Direito é, em qual­
quer de suas manifestações, a realização de alguma
ordem, alguma segurança, algum poder, alguma
justiça, e t c ... (7 ). ^
Daí que, embora a ciência seja neutra] para o
valor (e a ciência jurídica o é graças exatamente
à lógica do dever-ser, já que à base da lógica do
ser ela afirmaria valores), a ciênc>a do Direito en­
volva uma certa valoração.

É que, sendo a norma o conceito que pensa a


conduta, a interpretação não é, em Cossio, da lei,
e sim da conduta pela norma, por intermédio da
norma. Mister se faz, portanto, em primeiro lugar,
na aplicação do Direito ao fato, valorar a norma
para o caso o que se faz (ac escolhê-la. Trata-se,
portanto, de uma valoração que pretende realizar
certa segurança, certo poder, certa justiça, mas
não.se trata de uma valoração livremente em ocio­
nal e sim de uma valoração conceptualmente em o­
cional, já que o juiz terá de, para evitar a “ vivên­
cia da contradição” , procurar na intersubjetividade
que as fontes do Direito lhe proporcionam o crité­
rio da objetividade de sua valoração.

140
CIÊNCIA DO DIREITO

A maior ou menor verdade jurídica será, pois,


a maior ou menor fôrça de convicção da sentença,
o êrro jurídico sendo a arbitrariedade.

*
í'.‘ *

Do exposto- até aqui depreende-se que, para Cos­


sio e a escola egológica, a dogmática é uma ciência
de experiência — embora de uma experiência va-
lcrativa porque cultural — , uma ciência de objetos*
reais.
Seu métcdo, como ciência cultural que é, será
o método da compreensão, o método empírico-dia-
lético. Empírico, porque trata com objetos reais,
que se ncs dão na experiência e são, portanto, im­
possíveis de tratar pelo método racional-dedutivo,
pois não pedem ser deduzidos de uma idéia geral.
Dialético, porque a compreensão envolve um cami­
nho circular de ida e volta do substrato ao sentido,
até que o espírito interrompe num ponto essa. pe­
regrinação, por já se julgar convenientemente in­
teirado do sentido e de sua encarnação no respecti­
vo substrato. Essa interrupção da dialética não
impede, porém, que, se a retomamos, o nosso co­
nhecimento mais e mais se amplie, pois assim como
o conhecimento matemático forma um todo simples

141
MACHADO NETO

e fechadc-, o natural um tcdo composto e aberto, o


conhecimento dos objetos culturais forma um todo
simples e aberto.
Ciência de realidades, como pode a ciência do
Direito distinguir-se da sociologia jurídica ?
Cossio responde à questão propondf^a aproxi­
mação, para efeito de simples comparafao, entre
a ciência do Direitc, a sociologia jurídica e a axio-
logia jurídica pura, o que faz nos seguintes têrmos:

“Nosotros diremos que la Ciência dei Dereclio,


en tanto ciência de la realidad, considera el ser de
la conducta en su deber ser positivo o ideal real.
La sociologia jurídica en cambio, considera el deber
ser positivo c. ideal de la conducta en su ser efec-
tivo. Y la axiologia jurídica pura considera el de­
ber ser puro o ideal verdadero” (7).
Os planos em que se inscrevem, pois, a sociolo­
gia jurídica, a ciência dogmática do Direito e a axio­
logia jurídica pura são, respectivamente, os planos
do ser, do dever-ser lógico (lógica do dever-ser) e
do dever-ser axiológico.

Assim é que, fundando-se na lógica do ser, a


sociologia descreve e propõe significar o dever-ser
positivo da conduta jurídica em seu ser, e, ao con­
trário, baseando-se na lógica do dever-ser, a ciência

142
CIÊNCIA DO DIREITO

do Direito descreve o ser da conduta em seu dever-


nser positivo. Sòmente esta última é, pois, inteira­
mente compatível com a liberdade que a conduta
envolve, a sociologia e a história, por fundadas na
lógica do ser, enfocando uma liberdade cosificacla,
petrificada.

Tal é a distinção egológica entre sociologia ju­


rídica e ciência do Direito. E’ fato que elas ficam
aqui bastante aproximadas. Muito mais do que na
perspectiva racionalista em que seriam ciências
inteiramente diversias, por tratar, a dogmática, de
objetos ideais — as normas — enquanto a sociolo­
gia jurídica trataria de objetos reais — a vida social-
- jurídica e as interrrelações de sociedade e Direito.
Não se diga, porém, depois do que ficou acima ex­
plicado, que a posição egológica conflui no socio-
logismo. O fato de se fundarem em lógicas diver­
sas, diversifica amplamente as duas disciplinas, em­
bora elas sejam ambas, como ciências sociais ou cul­
turais, ciências da realidade.

£ ❖

Também sem fundamento seria a objeção que


à posição egológica poder-se-ia fazer argüindo que a
Ciência do Direito não poderá ser a única ciência da

143
MACHADO NUTO

conduta, uma vez que, nesse grupo, deveriam ser


também incluídas a moral e a teologia.
Mas, a moral e a teologia não pedem conservar
a neutralidade que a norma jurídica como disjun­
ção proporcional permite à ciência do Direito (9).
E se, por acaso, se argumentar que a tunsidera-
ção do Direito c:m o conduta impediria a ciência
do Direito histórico como ciência do Direito, Cossio,
êle próprio, concordaria com essa objeção ao afir­
mar que o horizonte temporal da ciência dogmática
é o presente existencial (10). Aliás, quanto a esta
última objeção, não se a pode realmente levar a
.cério pcis a ciência do Direito histórico, com ser
história, jamais se identificou oom a. ciência dogmá­
tica dc Direito positive, em qualquer das posições
teóricas possíveis, salvo, de certo modo, o histori-
cism o.
De fatc, os prcblemas que suscita a história do
Direito não ;ão problemas jurídicos e sim proble­
mas históricos, e isso assinala a distinção essencial
entre essa duas disciplinas jurídicas.

* *

Assim, a posição teórica que nasce em Savigny,


e é por êle próprio bruscamente interrompida, vindo
144
CIÊNCIA DO DIREITO

renascer nos múltiplos sociologismos, posição que


enfoca a ciência jurídica como ciência de realidades,
de objetos reais, tem na escola egológica a sua ex­
pressão mais atual, aquela, aliás, que é a única que
torna êsse objetive compatível com a especial digni­
dade epistemclógica da jurisprudência, já que o his-
tcricismo a identificaria, com a história do Direito
e o sociologismo a incluiria com o um capítulo es­
pecial na sociologia geral.
J
Também, é verdade, c racionalismo dogmático
de Kelsen, quer se entenda a teoria pura como
teoria geral do Direito ou com o lógica jurídica
(porque ciência dogmática do Direito ela não é,
evidentemente) é compatível com a dignidade epis­
temclógica peculiar à ciência do Direito. Também
o normativismo kelseniano, hoje a posição domi­
nante no mundo da teoria jurídica, permltè auto­
nomia epistemclógica à jurisprudência. Mas, para
tal, tem de pagar o alto preço de considerar a
ciência jurídica como ciência de normas, i.é.: como
ciência de objetes ideais, tal como a lógica e as ma­
temáticas. E êsse é um preço muito elevado . . . (11)
Com efeito, por que, das disciplinas sociais, a
ciência do Direito seria a única a desgarrar-se do
bloco das ciências cuturais e ir inscrever-se na com­
panhia das matemáticas e da lógica ? ! Por que re­
duzir o Direito à simples norma, em seu tratamento
M A C H A D O NETO

científico, se a quase unanimidade dos jusfilósofos


de hoje, por êsse ou aquêle caminho, vão dar na con­
clusão de que o Direito é fato, valor e norma, por ser
um objeto cultural? Tais sã o(as questões a que o
normatívismo não pode responder suficientemente.
E o não poder respondê-las faz com qu\*.al po­
sição se enrede em invencíveis contradições,’ que a
posição egológica pede evitar, a cavaleiro.
Entre tais contradições, está aquela que con­
siste em o normativismo, depois de considerar a
norma como objeto do Direito e de estar consciente
de que ela é um objeto ideal, e, como tal, fora do
tempo e do espaço, considerar questões atinentes à
ciência jurídica as de vigência e positividade, que
fazem evidente referência a uma validade aqui e
agora, o que vale dizer, no espaço e no tempo (1 2 )..

O abismo é, pois, evidente entre a idealidade


da norma e a temporalidade do Direito, de que a
ciência jurídica não pode prescindir (13).

Outrossim, se a norma é o objeto da ciência ju­


rídica e pela legislação o jurista cria normas, esta­
mos em face da raridade epistemológica de uma
ciência construir o seu objeto material. Que a ciên­
cia cria, ou rnelhcr, constroi, até certo limite, um
objeto é uma verdade que o neokantismo deixou pa­
tente. Mas o objeto de que aí se trata é o formal,

148
ClâNCIA DO DIREITO

não o material — para usarmos a cômoda distinção


escolástica — , pois nesse caso além da raridade
epistemológica, teríamos a contradição vital de o
homem criar um problema — o objeto rnaterial de
uma ciência — para tentar depois resolvê-lo — ciên­
cia. E a economia vital se cpõe veementemente a
tais luxos...
I
Por que então — seria justo indagar — em face
de tantas contradições teóricas e vitais, o norma ti -
vismo tem imperado e até hoje impera como posi­
ção líder da epistemologia jurídica ?
t

Talvez a sociologia do saber pudesse responder


a tal pergunta, acusando o normativismo de lugar
geométrico do jurista prático. De fato, trabalhando
sobretudo com as normas, o jurista prático está
sempre inclinado .a hipostasiá-las como o Direito
“ tout c o u r t O observador mais superficial, porém,
está em ccndições de verificar que se apenas de nor­
mas se tratasse, o Direito não teria sentido algum,
já que todos estão de acôrdo em lhe atribuir uma
tarefa prática de referência à conduta. Ora, assim
sendo, a ciência do Direito estudaria um instru­
mento que, depois, seria aplicado ao seu objetivo
vital que é a conduta, quando o comum é que a
ciência com ser, como o assinala Max Scheler, um
saber de dominação, seja ela mesma, um instru­
mento que se aplica ao objeto que se pretende do­

147
MACHADO NETO

minar. Ora, que se não pretende dominar as nor­


mas e sim a conduta é algo manifesto. Mas o ju­
rista, que vive sobretudo com e das normas, êste
.sim, êste é quem pretende dominar as normas. Daí
que confundisse e exagerasse ao admitir que as nor­
mas constituem o objeto de sua ciência, tal como o
químico prático que entendesse a química como a
ciência que estude cs provetes.

\

* *

Se a posição egológica pode esquivar-se a tôdas


as contradições do ncrmativismo, pode ainda, mais
resolver certas questões que até iaqui tinham sido a
pedra no sapato do jurista. Tais são as questões das
mudanças de jurisprudência, do desuso da lei e da
sentença contra legem.

Por menos que o normativismo possa conve­


nientemente explicar essas questões, iou melhor, êsses
fatos, êles são constantes da experiência jurídica,
que uma teoria da ciência do Direito precisa expli­
car, dar razão.

E isso é o que ccnsègue, brilhantemente, o ego-


logismo, como decorrência, exclusivamente, de sua

148
CIÊNCIA DO DIREITO

posição epistemológica, que considera a ciência do


Direito como ciência de objetos reais, per ter por
objeto a conduta em interferência inter-subjetiva.
As mudanças de jurisprudência provam, a con­
tento, a verdade egológica de que não se interpreta
a lei, e sim a conduta, pois em tais casas a lei é a
mesma. Foi interpretando a conduta em sus. cir­
cunstância temporal que o juiz entendeu realizaria
mais convenientemente cs valores jurídicos se sen­
tenciasse em oposição aos precedentes judiciais, acs
quais se ateria outrora, como base para a inter-subje-
tividade de sua valoração.
No desuso da lei (ãesuetudo), uma lei perdeu o
conteúdo axiológico e viveu algum tempo sob o
apoio do valor ordem. Mas coma o Direito é con­
duta e não norma, sobrevêm, um dia, o desuso. E
pouco importa que as legislações o proíbam . . .
t
Quanto à sentença contra legsm, Ccssio dira que
não há tal (salvo o caso de revclução individual,
que aqui está, logicamente, afastado). O que há
é sentença com ou sem íôrça ds convicção. N,a. cha­
mada sentença contra legem, a lei não serviria a
fundamentar a fôrça de convicção.
Em todos êsses três casos, trata-se de que a nor­
ma, era um conceito que não coincidia com a intui­
ção, e, com tal, não se adaptava ao seu mister, que

149
MACHADO NETO

é pensar a conduta. Mas como, no dizer de Cossio,


só a norma verdadeira é verdadeiramente norma,
pcrque o Direito é ccnduta, ali se afastou o juiz do
precedente, aqui da lei, e no desuétudo, o próprio
particular apartou sua conduta do estabelecido na
lei decaida.

*
* *

Com Carlos Cossio e a escola egológica fecha-se


a ilustre tradição, que parte de Savigny e passa por
Comte, Spencer e Wundt (14) e po,r todo o sociolo-
gismo e histcricismo.

Se do normativismo kelseniano e seu purismo


metodológico poderíamos dizer que tudo que, em ma­
téria jurídica, o desconhece tem um ar inevitável
de passado, de demodé, do egologismo poderíamos
dizer que é a esplendorosa conclusão do purismo me­
todológico de Kelsen. E com o saldo favorável que
é o colocs,r a ciência jurídica em sua exata posição,
como ciência da realidade. Essa, sua conquista de­
finitiva. Graças a isso- é possível escrever, com o faz
R. Aftalaión, um dos mais ilustres e produtivos
membros da escola, que “sólo asi los juristas cleja-
rón de remedar las actitudes científicas próprias de
otros ordenes dei saber. Sólo así el saber de los

150
CIÊNCIA DO DIREITO

juristas alcanzará y lucirá su dignidad de ciência


siti dar, en tanto que la teoria de la libertad com-
partida, la disciplina de la conducta social, o — en
otros términos — la ciência de la persona” (15).

Salvador, 15 de dezembrc de 1957.

Madre de Deus, 18 de fevereiro de 1958.

NOTAS

(1 ) CA R LO S COSSIO — Panorama de la Teoria E£oló$ice


clel Derccho — Faculdad de Darecho y Ciências Socialeo
de la Universidad de Bueno3 Aires — 1949 — pag ■ 12.

(2 ) C fr. CARLOS COSSIO — El Derccho en ol Derecho Ju­


dicial — Ed. Guillermo Kraft — B . Aires — 1945 —
ca p . I — pags. 10-63.
i
(3 ) C A R LO S COSSIO — Lss Actitudes Filosólicas de la
Ciência Jurídica — in La Ley, 12-6-1956 — B . Aires —
p a g . 3, nota 1.

(4 ) C fr . CARLOS COSSIO — La Plenitml dei Orden Jurídico


y la Interpreíadón Judiciai de la L ey — Losada — B .
Aires — 1939.

(5 ) C fr . sobre o tema CARLOS COSSIO — La Teoria E£o-


lo é ‘ ca dei Derecho y Concepto Jurídico de Libertad — Lo­
tada — B . Aires — 1944 — cap. III — pag. 289 e. segs.

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<6) Em La Valoración Jurídica y la Ciência dei Derecho —
Arayú — B . Aires — 2.® ed. — 1954. Cossio ainda con­
serva a refência apenas a seis valores jurídicos como os com­
ponentes do piexo axiológico-juríáico. Faltava ainda o valor
cooperação. Cfr. op. cit. — pag. 83.

(7 ) Isso faz com que Miguel Reale entenda que a teoria ego­
lógica dá “ ao Direito (Positivo as carcterísticas de um ver­
dadeiro Direito Ideal “ in fieri” , de um Direito Natural que
corre com o tem po” . — Cfr. Miguel Reale — Horizontes
do Direito e da História — Saraiva — S. Paulo — 1956
— pag. 327. Cfr. também pag. 319.

(8 ) La Teoria Egológica . . . — pag. 114. Cfr. também —


La Valoración Juridica y la Ciência dei Derecho — pag. 9.

(9 ) Cfr. Teoria de la Verdad Jurídica — pag. 135.

(10) La Teoria Egológica . . . — pag. 145. Cfr. também •—


La Valoración Juridica . . . — pag. 65 e Panorama de la
Teoria Egologica . . . — pag. 32.

(11) Que entre o normativismo lcelseniano e o egologismo de


Cario'j Cossio está a decidir-se a solução que poderíamos cha­
mar atusl do problema da ciência do Direito prova-o a fa­
mosa polêmica há pouco sustentada pelos dois ilustres
jusfilósoíos, polemica em que o observador desinteressado
não poderia deixar de vislumbrar um certo mal-estar do
pensador austríaco a um a cavsleiro realmente impressio-
sssnte do professo* argentino. São documentos dessa polê­
mica ilustre: Kelsen-Cossio — Problemas Escogidon de la
Tsoría Pura <is! Derecho — (Teoria Egológica y Teoria
Pura) — Guilherme Karft — B . Aires — 1952 a resposta
da Kelsen publicada em Revista de Estudos Políticos —
n° 71 — Madrid — 1953 — pags. 3-40 e o contra-ataque
de Cossio in Jus — Revista di Sc:onze Giuridiche — (pubJi-

.152
CIÊNCIA DO DIREITO

cata per cura dell’Univerisità Cattolica dei Sacro Cuoro)


Milano — Settembre — 1956 — A nno V II — Fase. III —
(separata) .

Cfr. sôbre essa polêmica o comentário de Werner


Goldschmidt irt Conduta y Norma — Libraria Jurídica Va-
lerio Abeledo — B . Aires — 1955 — Cossio contra Kslsen
— pags. 19-54.

(1 2 ) Cfr. La Teoria Egológica . . . — p s g . 154.

(1 3 ) Idem — pag. 263.

(1 4 ) Cfr. ENRIQUE R . AFTALIÓN — Critica alSaber do


los Juristas — Arayú Distribuidores Exclusivos — La
La Plata — 1951 — pag. 153.

(1 5 ) Idem — pag. 282.

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