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Os Cinco Sexos PDF
Os Cinco Sexos PDF
Em 1843 Levi Suydam, de vinte e três anos, morador de Salisbury, Connecticut, pediu
ao conselho local que fosse validado seu direito de votar como um whig3 numa
controvertida eleição local. O pedido levantou uma porção de objeções do partido de
oposição, por razões que devem ser raras nos anais da democracia americana: foi dito
que Suydam era mais mulher do que homem e por isso (uns oitenta anos antes do
sufrágio ser estendido a mulheres) não poderia obter a permissão para votar. Para dar
fim à disputa, um médico, William James Barry, foi chamado para examinar Suydam.
E, provavelmente depois de encontrar um falo, o bom doutor declarou que x possível
eleitorx era homem4. Com Suydam a salvo em seu lado, os whigs venceram a eleição
por um voto de diferença.
Mas o diagnóstico de Barry mostrou-se de certa forma prematuro. Em poucos dias ele
descobriu que, apesar do falo, Suydam menstruava regularmente e tinha uma abertura
vaginal. Tanto seu físico quanto suas predisposições mentais eram mais complexas do
que a princípio se suspeitava. Elx tinha ombros estreitos e quadris largos e sentia
atração sexual por mulheres. “As propensões femininas de Suydam, como gostar de
cores alegres, de retalhos de chita, e de compará-los e colocá-los juntos, assim como
uma aversão a – bem como uma inaptidão para – trabalhos corporais , eram notadas
por muitas pessoas”, escreveu Barry. Não está claro se Suydam perdeu ou manteve
seu direito ao voto, ou se o resultado da eleição foi revertido.
hoje ela significa estar livre ou isenta do recrutamento militar, bem como estar sujeita
de várias maneiras a uma série de leis que governam o casamento, a família e
intimidade humana. Em muitas partes dos Estados Unidos, por exemplo, duas
pessoas legalmente registradas como homens não podem ter relações sexuais sem
infringir os estatutos anti-sodomia.
maneira alguma ligado a uma conspiração. As metas dessa política são genuinamente
humanitárias, refletindo o desejo da comunidade médica de que essas pessoas
possam se “encaixar” tanto física como psicologicamente, entretanto, as
pressuposições por trás desse desejo – de que existem apenas dois sexos, de que a
heterossexualidade é normal, de que existe apenas um verdadeiro modelo de saúde
psicológica – permanecem praticamente sem serem examinadas.
entre 1,5 e 2,8 polegadas5, no entanto, essas pessoas urinavam através de uma uretra
que se abria dentro ou perto da vagina.
Os livros da lei judaica, tanto o Talmud quanto o Tosefta, listam uma série de regras
para as pessoas do sexo misto. O Tosefta proíbe expressamente hermafroditas de
herdarem os bens de seus pais (como filhas), de isolarem-se com mulheres (como
filhos) ou de se barbearem (como homens). Quando hermafroditas menstruam devem
ser isoladxs dos homens (como mulheres); não podem servir como testemunha ou
como sacerdotes (como mulheres), mas as leis de pederastia se lhes aplicam.
Na Europa, surgiu um padrão no final da Idade Média que, num certo sentido,
permaneceu até os nossos dias: hermafroditas eram obrigadxs a escolher um papel de
5
3,81cm
e
7,112cm,
respectivamente.
5
gênero estabelecido e se agarrar a ele. A pena para a transgressão era muitas vezes
a morte. Assim, em 1600 a umx hermafrodita escocesx que vivia como mulher foi
enterradx vivx após engravidar a filha de seu mestre.
Durante este século, a comunidade médica tem completado o que o mundo jurídico
começou – o apagamento completo de qualquer forma de sexo encorporado6 que não
corresponda a um padrão heterossexual macho-fêmea. Ironicamente, um
conhecimento mais sofisticado da complexidade dos sistemas sexuais levou à
repressão dessa mesma complexidade.
Um dos casos mais interessantes de Young foi umx hermafrodita chamadx Emma, que
tinha crescido como uma pessoa do sexo feminino. Emma tinha um clitóris do
tamanho de um pênis e uma vagina, o que tornou possível para elx praticar sexo
heterossexual "normal" tanto com homens quanto com mulheres. Quando adolescente
Emma manteve relação sexual com uma série de garotas que lhe atraíam
profundamente, mas com a idade de dezenove elx se casou com um homem.
Infelizmente, ele proporcionava pouco prazer sexual à Emma (embora ele não tivesse
queixas) e, por isso, durante todo esse casamento – e os casamentos subseqüentes
dela – Emma manteve casos extraconjugais com mulheres. Com certa freqüência elx
tinha sexo prazeroso com elas. Young descreve Emma como aparentando "ser
bastante contente e até mesmo feliz." Em certa ocasião, Emma contou-lhe de seu
desejo de ser um homem, coisa que Young disse ser relativamente fácil de realizar.
Mas a resposta da Emma mostrou-se surpreendente:
Você teria que remover essa vagina? Eu não estou certa a respeito disso,
porque ela é meu ticket refeição. Se você fizer isso, eu teria de abandonar o
6
Nota
da
Tradução:
Traduzo
o
termo
“embodied”
pelo
neologismo
“encorporado”
seguindo
Eduardo
Viveiros
de
Castro,
visto
que
nem
“encarnar”
nem
mesmo
“incorporar”
parecem
termos
adequados.
(VIVEIROS
DE
CASTRO,
E.
A
inconstância
da
alma
selvagem.
São
Paulo:
Cosac
&
Naify,
2002.)
6
meu marido e começar a trabalhar, então eu acho que vou mantê-lo e ficar
como estou. Meu marido me sustenta direito, e mesmo que eu não tenha
nenhum prazer sexual com ele, eu tenho muito prazer com minhas namoradas.
Dewhurst e Gordon advertiram que tal destino miserável seria a sina do bebê se o
caso fosse tratado indevidamente; “mas felizmente", eles escreveram, "com o devido
tratamento, as perspectivas são infinitamente melhores do que os pobres pais -
emocionalmente atordoados pelo evento - ou mesmo qualquer pessoa com
conhecimento do assunto jamais poderia imaginar."
Por outro lado, as mesmas realizações médicas podem ser lidas não como um
progresso, mas como um modo de disciplina. Hermafroditas têm corpos ingovernáveis.
Elxs não se encaixam naturalmente em uma classificação binária, e só algo como uma
calçadeira cirúrgica pode encaixa-lxs nesse tipo de classificação. Mas por que
deveríamos nos importar com o fato de uma "mulher" – definida como uma pessoa
que tem mamas, uma vagina, um útero e ovários e que menstrua – ter também um
clitóris grande o suficiente para penetrar a vagina de outra mulher? Porque
deveríamos nos importar com o fato de existirem pessoas cujo equipamento biológico
lhes permite ter relações sexuais "naturalmente" tanto com homens quanto com
mulheres? As respostas parecem residir numa necessidade cultural de manter
distinções bem marcadas entre os sexos. A sociedade dita o controle dos corpos
intersexuais porque eles borram a diferença e conectam a grande divisão dos sexos.
Na medida em que hermafroditas literalmente incorporam ambos os sexos, elxs
desafiam crenças tradicionais sobre diferença sexual: elxs possuem a habilidade
irritante de viver às vezes como um sexo e, outras vezes, como outro, e elxs levantam
o espectro da homossexualidade.
Eu não acho que a transição para a minha utopia seria suave. Sexo, mesmo de tipo
supostamente "normal" heterossexual, continua a causar enormes ansiedades na
sociedade ocidental. E seguramente uma cultura que ainda está para aceitar -
religiosamente e, em alguns estados, legalmente - a antiga e relativamente simples
realidade do amor homossexual não aceitará facilmente a intersexualidade. Não há
dúvida de que a arena mais problemática seria, de longe, a criação de filh@s. Desde a
época vitoriana, pais e mães têm se inquietado, por vezes até ao ponto de pura
negação, sobre o fato de suas crianças serem seres sexuais.
8
Tudo isso e muito mais explica amplamente porque crianças intersexuais são
geralmente espremidas em uma das duas categorias sexuais dominantes. Mas quais
seriam as conseqüências psicológicas de tomar uma rota alternativa - criar
descaradamente crianças como intersexuais? Superficialmente, esse nó parece cheio
de perigo. O que, por exemplo, aconteceria com a criança intersexual no meio da
crueldade implacável do pátio escolar? Na hora da ducha, depois da aula de ginástica,
que horrores e humilhações aguardariam x intersexual quando sua anatomia fosse
exibida em toda a sua glória não tradicional? Para começar: em qual turma de
ginástica poderia ela/e se registrar? Qual banheiro usaria? E de que maneira mamãe e
papai lhe ajudariam a atravessar o campo minado da puberdade?
Nos últimos trinta anos essas questões têm sido ignoradas, e a comunidade científica
tem, com notável unanimidade, evitado contemplar a via alternativa de uma
intersexualidade desempedida. Mas investigador@s modern@s tendem a ignorar um
conjunto substancial de casos, a maioria deles compilados entre 1930 e 1960, antes
da intervenção cirúrgica tornar-se desmedida. Quase sem exceção, esses relatórios
descrevem crianças que cresceram sabendo que eram intersexuais (embora não
alardeassem o fato) e que se ajustaram à sua condição invulgar. Alguns dos estudos
são ricamente detalhados – descrevendo até mesmo as tais duchas após a aula de
ginástica (que a maioria dxs intersexuais evitava sem incidentes); dentre eles não há
caso de psicose ou suicídio.
Ainda assim, as nuances de socialização entre intersexuais clamam por uma análise
mais sofisticada. É evidente que, antes que a minha visão da multiplicidade sexual
possa ser realizada, as primeiras crianças intersexuais e seus pais e mães terão de
ser pioneir@s corajos@s que suportarão o peso das dores de crescimento da
sociedade7. Mas, a longo prazo - apesar de que poderia demorar gerações para ser
alcançado - o prêmio poderia ser uma sociedade em que a sexualidade fosse algo a
ser comemorado por suas sutilezas, e não algo a ser temido ou ridicularizado.
7
Nota
da
tradução:
vale
notar
que
no
inglês
a
expressão
growing
pains
(de
acordo
com
o
Novo
dicionário
de
expressões
idiomáticas
americanas
de
Luiz
Lugani
Gomes)
tem
o
duplo
sentido
de
“dores
do
crescimento”
e
“dificuldades
e
problemas
que
ocorrem
no
início
de
um
projeto”.