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P
ES
M
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ISSN 1414-3283
Ricardo Pozzo, Projeto Urbe fágica, s/d
MÍDIA GESTÃO
COMUNICAÇÃO
ULINIDADE
MASC AUTÔNOMA
E NTO
CA BAM
INA
SAÚDE
COMUNIDADE MULHER
EDUCAÇÃO
RISCO
EMBELEZAMENTO
CORPO
SINAIS
ANTROPOLOGIA
VIOLÊNCIA
PASSAGENS
URBE FÁGICA
POESIA
BIOMEDICALIZAÇÃO ALD
TRANSUMANISMO EIA
S
LINGUAGEM
LIMITE
Filiadaà
A B E C
Associação Brasileira de
Editores Científicos
comunicação saúde educação
v.16, n.43, out./dez. 2012 ISSN 1414-3283
1143 cartas
comunicação saúde educação
v.16, n.43, out./dez. 2012 ISSN 1414-3283
917 Evaluation of the reception process in mental 1069 Community therapy: practice reported by professionals
healthcare in the central-western region of the within SUS in Santa Catarina, Brazil
municipality of São Paulo: analysis of the Cristina dos Santos Padilha; Walter Ferreira de Oliveira
relationship between psychosocial care centers and
primary healthcare units
Adriano Kasiorowski de Araujo; Oswaldo Yoshimi open space
Tanaka
1087 Concrete poetry in prose on the asphalt: handicap limits
929 Construction of spaces for listening, diagnosis in the urban space
and collective analysis of problems of public health Maria do Carmo Castiglioni
using theatrical language: the case of workshops
of theatrical games relating to dengue 1095 Tele-education for continuing education in mental
Denise Figueira de Oliveira; Cínthia Cristina health for family healthcare teams: an experience in
Resende Mendonça; Rosane Moreira Silva de Pernambuco, Brazil
Meirelles; Claudia Mara Lara Melo Coutinho; Tania Magdala de Araújo Novaes; Josiane Lemos
Cremonini Araújo-Jorge; Mauricio Roberto Motta Machiavelli; Filipe Cesário Villa Verde; Amadeu Sá de
Pinto da Luz Campos Filho; Tereza Roberta Castro Rodrigues
943 Construction of body image among obese subjects 1107 Developing medical students’ attitudes, knowledge and
and its relationship with the contemporary skills in healthcare for deaf people
imperatives for body beautification Luiza Santos Moreira da Costa; Natália Chilinque
Miquela Marcuzzo; Santiago Pich; Maria Glória Zambão da Silva
Dittrich
artigos
a corrosão do espaço público e a perda da condição humana
ALVES, R.A. et al. Men, victims and perpetrators of violence: the corrosion of public
space and the loss of the human condition. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.16,
n.43, p.871-83, out./dez. 2012.
Introdução
Mundialmente, a saúde dos homens apresenta uma situação de desvantagem em relação à das
mulheres, evidenciada por maior risco de morte, especialmente, em idades mais precoces (Tong et al.,
2011; United Nations, 2010; Gomes, Nascimento, 2006; Laurent et al., 2005; Meryn, Jadad, 2001;
World Health Organization, 2000).
Apesar de conhecido, esse problema foi tradicionalmente relegado pelas políticas públicas e, só nas
últimas décadas, ganhou o interesse do setor da saúde (Smith, Robertson, 2008; Gomes, Nascimento,
2006; Meryn, Jadad, 2001), quando surgiram iniciativas, em diversos países, reconhecendo os homens
como sujeitos do cuidado de saúde e portadores de necessidades e abordagens específicas. No Brasil,
foi publicada, em agosto de 2009, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (Brasil,
2009a, 2009b). Esse movimento mundial em defesa da saúde do homem sinaliza uma ruptura com a
visão parcial que afasta e/ou exclui o homem do papel do cuidado, pautado nas diferenças instituídas
pelas construções de gênero (Couto et al., 2010).
Dentre as principais causas de morbimortalidade masculina, destaca-se a violência (Tong et al., 2011;
World Health Organization, 2010a, 2000; Brasil, 2009a; Melo et al., 2008; Laurent et al., 2005; Meryn,
Jadad, 2001). Segundo a World Health Organization (2010a), das mais de 1,5 milhões mortes anuais por
causas violentas (homicídios, acidentes de transporte e suicídios), a maioria é de homens, principalmente
na faixa etária de 15 a 29 anos. Além disso, muitos sofrem com graves sequelas não fatais (World Health
Organization, 2010a, 2000; Melo et al., 2008). Em 2004, homens morreram, aproximadamente, três
vezes mais do que mulheres em consequência de acidentes de transporte e de homicídios, e duas vezes
mais devido aos suicídios (World Health Organization, 2010b). Das 468 mil mortes por assassinatos no
mundo, em 2010, mais da metade eram homens e jovens (United Nations Office on Drugs and Crime,
2011). Em 2009, no Brasil (Brasil, 2011), a razão das taxas de mortalidade por violência entre homens e
mulheres foi de 7:1. A expectativa de vida do Brasil poderia ser superior em dois ou três anos à atual se
não fosse o efeito das mortes prematuras de homens por causas violentas (Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística 2011). Isso mostra que a violência, assim como outros problemas de saúde, não é
igualmente distribuída entre os sexos ou grupos etários (Krug et al., 2002).
Estudos sobre a estreita relação entre os homens e a violência (Carrington et al., 2010; World Health
Organization, 2010a, 2000; Brasil, 2009a; Nascimento et al., 2009; Alvim, Souza, 2005; Schraiber et al.,
2005) apresentam explicações vinculadas à socialização dos homens, centrada em um hegemônico
modelo de masculinidade instituidor de papéis e de posições sociais desiguais entre os gêneros, além
de crenças que propiciam o envolvimento destes sujeitos com a violência, como: a soberania masculina,
a valentia, a honra, a dominação, a invulnerabilidade e a força. Este modelo naturaliza a violência como
um atributo dos homens e como um instrumento de afirmação do “ser homem”, e os induz à adoção
de práticas de risco à vida e de condutas autoritárias, ambas geradoras de relações humanas
violentamente conflituosas.
O desafio imposto pela violência no âmbito da saúde do homem e a necessidade de novos olhares
sobre esta questão geraram este estudo, realizado no Município de Ribeirão da Neves-MG, cujo
objetivo foi compreender, à luz dos fundamentos teóricos de Hannah Arendt, o envolvimento dos
homens com a violência, seja na condição de vítimas ou autores.
Hannah Arendt amplia os horizontes explicativos da violência ao reconhecê-la como um produto da
dominação própria das relações humanas desiguais, que trazem como pano de fundo: a
instrumentalização do sujeito, a aniquilação da fonte do poder legítimo – as interações humanas em pé
de igualdade – e a consequente perda da condição humana. Sendo a dominação o marcador da
condição masculina imposto pela socialização do homem, potencializa-se o estreitamento da relação
homem-violência.
artigos
Município mineiro integrante da região metropolitana de Belo Horizonte, Ribeirão das Neves
contava, em 2010, com uma população de 296.317 habitantes, dos quais, 99% viviam em área urbana
(IBGE, 2011). Desde a década de 1950, este município sofre com o intenso crescimento populacional e
a ocupação territorial desordenada, em oposição à capacidade administrativa de oferecer uma
infraestrutura local suficiente para atender as demandas da população (Ribeirão das Neves, 2008). O
setor econômico oferece poucas alternativas de trabalho, há predomínio de atividades informais
(Ribeirão das Neves, 2008), consequentemente, a maior parte da população é de baixa renda e vive
com renda média de até dois salários-mínimos (IBGE, 2011). A existência de um complexo
penitenciário de seis unidades em seu território, que abrigava, em 2006, 3.383 presos (Ribeirão das
Neves, 2008), desestimula o crescimento econômico local, pois desvaloriza os imóveis da região, limita
a atração de investimentos, prejudica o comércio e agrava o quadro de explosão demográfica pela
migração de parentes dos detentos (Ribeirão das Neves, 2008).
Estas fragilidades configuram um quadro de vulnerabilidade expressa em desempregos, empregos
precários, pobreza, misérias e exclusão social, que acirram os conflitos nos contextos da vida humana e
favorecem a instauração da violência como o maior problema para o município, com estatísticas que se
destacam no Estado de Minas Gerais (Brasil, 2011; Ribeirão das Neves, 2008). As taxas de morte por
violência no município estão concentradas na população masculina, com maior impacto na faixa etária
de 15 a 29 anos (Brasil, 2011). Desde 2002, os eventos violentos, especialmente os homicídios,
ocupam a primeira posição entre as principais causas de morte dos homens (Brasil, 2011). Em 2009,
85% das mortes violentas foram de homens e geraram taxas seis vezes maiores para os homens em
relação às mulheres (Brasil, 2011).
Referencial teórico
Inspirada pela Teoria Política de Hannah Arendt (2008, 1994), a violência foi definida como a
dominação própria de relações humanas marcadas pela ausência do diálogo e pela instrumentalização do
sujeito.
Orientada pelos princípios políticos do pensamento greco-romano e em discordância com o
pensamento político moderno, essa autora sustenta uma oponente distinção conceitual entre violência e
poder, sendo o último definido como fenômeno político, fundado em relações humanas argumentativas,
diferentemente do entendimento atual que o identifica com dominação, sinônimo de violência, que se
assenta em relações de mando-obediência.
Arendt (2008) reconhece três atividades humanas fundamentais: o labor, o trabalho e a ação. A
primeira constitui a condição humana da vida, por garantir a realização das necessidades vitais; a
segunda constrói o mundo artificial que confere certa durabilidade à fugacidade do tempo humano, e a
ação corresponde à atividade que se desenvolve entre os homens e tem como condição a pluralidade,
isto é, nossa condição de iguais e diferentes, todos humanos, mas cada um único e distinto de
“qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha existir” (Arendt, 2008, p.16), cujo nascimento é
sempre a chegada do novo e da possibilidade de mudança no mundo. Essa pluralidade humana,
instaurada pela natalidade, é a condição essencial de toda a vida política (Arendt, 2008).
A política, tal como na pólis grega, representa a liberdade humana e implica relações sem domínio e
sem submissão, portanto, interação horizontal entre as pessoas, mediada pelo agir argumentativo – a
ação política que é a única atividade humana mediadora, criadora, reveladora e transformadora. Como
seres políticos, as pessoas tornam-se inteligíveis entre si e ficam livres do fardo de comandarem ou de
serem comandadas.
O espaço de encontro político, na pólis grega, era a esfera pública enquanto o espaço da visibilidade
entre as pessoas que se reúnem pela busca do acordo e onde se revela a singularidade, “único lugar
em que os homens podiam mostrar quem realmente e inconfundivelmente eram” (Arendt, 2008,
p.35). Dessa ação política emerge o poder, relativo à “habilidade humana não apenas para agir, mas
para agir em concerto” (Arendt, 1994, p.36). A violência, ao contrário, surge da degradação ou
instrumentalização da ação política e significa “o agir sem argumentar, sem o discurso ou sem contar
com as conseqüências” (Arendt, 1994, p.48). Possui natureza instrumental e se assenta em relações
humanas desiguais de mando-obediência (Arendt, 1994).
A esfera pública grega, no entanto, não violava as fronteiras da vida privada, isto porque o suprimento
das necessidades da vida no âmbito privado era a condição para que o homem pudesse exercer sua
liberdade na esfera pública. O indivíduo passava, então, sua vida transitando entre as duas esferas, na
medida em que saía dos limites da sua morada privada, garantidora de um lugar no mundo e de proteção
da vida, para adentrar um espaço público em que ele se encontrava com o outro (Arendt, 2008).
O advento da era moderna e “[...] a ascensão da administração caseira, de suas atividades, seus
problemas e recursos organizacionais [...] do sombrio interior do lar para a luz da esfera pública”
(Arendt, 2008, p.47), alteraram o significado dessas duas esferas da vida humana e representaram a
“absorção da família por grupos sociais correspondentes” (Arendt, 2008, p.49), gerando um
equacionamento da vida social que “longe de ser uma igualdade entre pares, lembra muito mais a
igualdade dos membros da família ante o poder despótico do chefe da casa” (Arendt, 2008, p. 49). A
ação da esfera pública é substituída por um comportamento normalizado e o conformismo descarta a
possibilidade do novo. Nesse processo de publicização da esfera privada e uniformização da esfera
pública, ambas desaparecem, dando lugar ao surgimento de uma nova esfera que a tudo parece
consumir e devorar, a esfera social, que integra indivíduos moldados segundo um único interesse - o
econômico.
A moderna organização social institui o dinheiro como o seu denominador comum e como o fator
definidor da posição social ocupada pelo indivíduo - dominador ou dominado. Neste contexto, surge um
mundo determinado pela categoria de meios e fins e regido por uma racionalidade mercadológica e
utilitarista que burocratiza a vida do homem. A política perde seu significado interativo e assume caráter
de meio regulador; o engessamento da vida humana e a instrumentalização das relações entre as
pessoas aniquilam a capacidade de ação dos sujeitos - cria-se o espaço ideal para a violência assumir a
posição de mediadora das tensões humanas.
Neste ideário moderno de domínio absoluto reside o mais eficiente mecanismo de controle humano:
a sociedade de massas, que homogeneíza comportamentos, interesses, opiniões, sujeitos, numa
engrenagem que aniquila a plural singularidade humana, exclui sua ação inovadora e reduz sua
capacidade de julgamento, gera o desinteresse do indivíduo pelo mundo comum e por si, enfim,
transforma todas as pessoas em meras cópias humanas, reprodutoras de um modelo de sociedade
assimétrico, gerador de superfluidade, individualismo, alienação e desvalorização da vida humana. O
dilaceramento do tecido humano produz o ambiente favorável ao estabelecimento de interações
humanas mudas e regidas pela negação do reconhecimento das pessoas na sua autêntica posição de
igualdade.
Metodologia
Trata-se de estudo qualitativo, realizado no segundo semestre de 2009, cuja metodologia consistiu
na realização de trinta grupos focais, com residentes do Município de Ribeirão das Neves, organizados
por faixa etária, sexo e regiões administrativas do Município – Justinópolis, Veneza e Centro (Quadro 1).
Essa organização objetivou apreender as múltiplas faces do objeto estudado, por meio de vários olhares
que conversem entre si e, nesta perspectiva de intersubjetividade, alcancem a objetividade do
conhecimento (Habermas, 1996) e evitem a absolutização de um só ponto de vista.
A média de participantes em cada grupo foi de oito pessoas, somando um total de 231 participantes
(119 homens e 112 mulheres). Cada grupo durou, em média, oitenta minutos. Por ser uma pesquisa
qualitativa, a amostra, neste estudo, não seguiu orientação numérica, ao contrário, foi definida por
saturação dos significados coletivos atribuídos ao objeto investigado (Minayo, 1998).
Os participantes foram selecionados aleatoriamente e o recrutamento foi viabilizado com a
cooperação de profissionais da rede pública de saúde do município, que propiciou os convites aos
artigos
Regiões administrativas Grupos 10 a 14 15 a 19 20 a 29 30 a 59 > 60 Total
anos anos anos anos anos
Justinópolis Homens HJ HJ HJ HJ HJ 5
Mulheres MJ MJ MJ MJ MJ 5
Veneza Homens HV HV HV HV HV 5
Mulheres MV MV MV MV MV 5
Centro Homens HC HC HC HC HC 5
Mulheres MC MC MC MC MC 5
Total 6 6 6 6 6 30
HJ: Homens de Justinópolis; MJ: Mulheres de Justinópolis; HV: Homens de Veneza; MV: Mulheres de Veneza; HC: Homens do Centro; MC: Mulheres
do Centro.
moradores por ocasião de suas visitas domiciliares. Os critérios de inclusão foram: residir no município,
ser originário de um dos níveis de vulnerabilidade social (baixo, médio e alto), estar na faixa etária de 10
anos ou mais e ter interesse voluntário em participar. A organização dos grupos por região administrativa
garantiu a presença de participantes originários de diferentes condições de vulnerabilidade social (níveis
de escolaridade, condições de moradia, renda, acesso aos serviços essenciais e a rede de proteção
social etc). Informações obtidas com as equipes de saúde da família do Município permitiram seguir o
mesmo critério dentro de cada região.
A organização dos grupos por faixas etárias e sexo, além de captar diferentes olhares, garantiu a
homogeneidade de cada grupo (Minayo, 1998) e evitou influências inibitórias da variável gênero e
idade no comportamento dos participantes.
Os participantes do estudo ou seus responsáveis assinaram Termo de Consentimento Livre e
Informado, contendo informações explicativas sobre a pesquisa. Os grupos foram realizados em escolas
de cada região administrativa do município, por serem locais de fácil acesso dos moradores.
A condução dos grupos pelos pesquisadores foi orientada e uniformizada por meio de roteiro pré-
testado, que continha as questões da temática de interesse, e por instrutivo contendo o passo a passo
do trabalho de campo. É importante salientar que todos os 17 integrantes da equipe do trabalho de
campo participaram da discussão do tema, da organização e estruturação do trabalho de campo e da
construção do roteiro de questões.
O registro dos dados empíricos foi realizado pela gravação das falas de cada grupo. A etapa da
análise foi iniciada pelas transcrições das gravações, seguida por uma leitura exaustiva do material
transcrito. A seguir, foram definidas categorias analíticas geradas pela articulação dos pressupostos da
teoria condutora do estudo com os dados empíricos coletados e, assim, prosseguiu-se com a análise,
realizada por um movimento incessante entre as fontes empíricas e teóricas, característico do método
hermenêutico-dialético descrito por Minayo (1998). O entrelaçamento entre teoria e prática gerou três
categorias de análise: 1) Violência: dominação nas relações humanas, 2) Sociabilidade masculina:
modelo centrado na dominação, e 3) Superação da violência.
Resultados e discussão
A concentração estatística da violência entre os homens tem gerado a proposição de que os homens
sejam mais violentos do que as mulheres e, de um modo geral, os estudos explicam este fato como
sendo resultante de uma naturalização construída socioculturalmente (Carrington et al., 2010;
Nascimento et al., 2009; Brasil, 2009a; Alvim, Souza, 2005).
E seria surpreendente encontrar - caso não se adotasse um referencial teórico cujo postulado central é
o de que a violência é antes produto da dominação própria das relações desiguais - que os participantes
deste estudo consideraram, de uma forma quase que unânime, que tanto homens quanto mulheres são
susceptíveis ao envolvimento com a violência, seja na condição de autores ou de vítimas: “eu acho que
os dois são violentos, não é a mulher mais que o homem não” (HV), fala que se repete várias vezes, “os
dois são violentos da mesma forma” (HC), é “tudo igual porque a mesma capacidade que um tem o
outro também tem” (MV). O que muda, segundo eles, são as características da violência em que cada
um se envolve “o homem usa mais da força e a mulher usa mais da sabedoria para praticar a violência...”
(HV), porém, isso “não quer dizer que a violência seja pior para um ou pior para outro não, ela é
idêntica” (HC). E, no encontro da teoria com o mundo empírico, evidencia-se que o potencial de
dominação e a disponibilidade de recursos para exercê-lo são os elementos que regem e diferenciam os
modos de agir com violência: para Hannah (2008; 1994), a violência é dominação que perpassa as
relações humanas, seja entre homens e seja entre mulheres, onde quer que estejam; para os
participantes da pesquisa, é a “questão do poderio, pois isso só tinha na cabeça do homem, aí entrou na
cabeça também das mulheres” (HC). É óbvio que essa aproximação entre o pensamento de Hannah e o
pensamento dos entrevistados (este compatível, é lógico, com o entendimento atual) exige o devido
resguardo da premissa, antes mencionada, de que o entendimento de ambos sobre poder é diferente,
praticamente contrário, para ela liberdade, para eles dominação. Coerentemente, um estudo de Rosa et
al. (2008, p.156) mostra que as relações assimétricas de domínio, na maioria das vezes orientadas por
construções de gênero, propiciam cenários de violência por se configurarem como “relações de força
expressas enquanto relações de dominação”. Outra fala não deixa dúvida quanto a isso, “a mulher quer
mandar, entendeu o problema?” (MC), clara intuição - ou quem sabe, receio ou recusa - de que, na
história de homens e mulheres, a luta contra a dominação, como já aconteceu em outras searas da
experiência humana, possa se transformar, ela própria, em dominação (Horkheimer, Adorno,1975).
Ora, se a violência é dominação que perpassa as relações humanas, então ela é determinada pela
forma como se forjam as relações sociais, dependendo dos papéis sociais e atributos que elas
engendram, assim como pelas habilidades específicas de cada envolvido. Juntos, estes fatores definem
o tipo de violência, o seu espaço de ocorrência, a vítima, o agressor e os instrumentos utilizados.
Não se podem contestar ou ignorar as estatísticas referentes ao envolvimento dos homens com a
violência. O conhecimento, porém, do contexto de produção desses números e a compreensão do seu
significado trazem nova luz à questão. Segundo os participantes, “o homem é mais violento pela força
física” e, além disso, “são eles que mais ficam na rua” (HC). Os números expressariam então as faces
visíveis e mensuráveis da violência, referentes a acometimentos físicos graves ou morte, na maioria das
vezes, ocorridos no espaço público, e envolveriam, predominantemente, homens, provavelmente em
virtude das suas habilidades físicas e de seu papel social que gera maior exposição pública (Schraiber et
al., 2005; World Health Organization, 2000). Por outro lado, a face menos visível da violência, que não
se explicita tão facilmente ou é de difícil mensuração, por se manifestar de forma simbólica ou velada,
foi principalmente atribuída, pelos participantes, às mulheres – “a agressão da mulher pra mim, eu acho
que é mais verbal, a mulher não é muito de ... fazer agressão física” (HJ), por isso sua violência é mais
“disfarçada” (MC). Ressalta-se que essa face opaca da violência é tão grave como qualquer outra
(Caldas, Gessolo, 2008) e, como enfatiza um participante, “tem violência verbal que machuca mais do
que um tapa no pé da orelha” (HC). Aliás, muitas vezes, ela desencadeia a violência física (Rosa et al.,
2008), fato comentado nos grupos focais: “as mulheres se envolve em violência por questões muitas
vezes de uma fofoca ...” (HC), “inclusive se... foi lá e fez uma fofoca de mim, eu vou chegar nela e
vou arrumar a maior confusão” (MJ), como no caso; “a minha irmã ...brigou na escola... a menina
pegou um negócio da outra, colocou dentro da bolsa dela e falou que foi ela que tinha roubado e não
era. Minha irmã pegou a cabeça da menina, colocou dentro do vaso e deu descarga” (MV). E também
artigos
acontece “quando os homens exageram na bebida e as mulheres começam a xingar, ... eles ficam
agressivos e começam a bater nelas mesmo” (HV).
Os perfis descritos de envolvimento com a violência não graduam um ou outro sexo como mais ou
menos violento, eles mostram que certos tipos de violências são predominantes, mas não exclusivos de
homens ou mulheres. Nesse sentido, Schraiber et al. (2005) argumentam que apesar das diferenças nas
inserções sociais, não se devem fixar imagens estereotipadas dos homens como eternos agressores e,
das mulheres, como eternas vítimas.
Também não se podem excluir as mulheres da prática da violência física, pois ao se considerar o
espaço domiciliar, a mãe aparece como a principal agressora contra crianças (Sapi et al., 2009; Brito et
al., 2005), mostrando, mais uma vez, a influência das condições assimétricas no exercício da
dominação, fato claramente relatado pelos participantes: “A mulher, hoje a mulher é mais violenta
através dos pequeninos” (MV), “a violência das mulheres é com as crianças, é violência doméstica, é
dentro de casa” (MV); e tem, entre suas motivações, os problemas conjugais: “Tem mulher também
que briga com o marido e quer descontar a raiva nos filhos, bate nos meninos, deixa os meninos mau
tratado” (MV), “eu mesma tenho uma irmã que faz isso, ela espanca os filhos dela pra chamar atenção
do marido” (MC). E episódios mais graves de violência não são raros no contexto da população
estudada, “a gente tem casos na área mesmo, caso recente aí, de uma mãe tentar matar a criança
(MV), ou casos em que a mãe “batia com ferro, botava de joelho, amarrava no botijão de gás” (MC).
No decorrer da dinâmica do grupo, não faltam testemunhos: “eu acho que já pratiquei, naquela revolta
danada, batia nos meninos” (MC).
Muitas vezes, a mãe e a própria sociedade não consideram tais atos como violência, mas como
prática educativa e legítima, sem danos à criança (Barbosa, Pegoraro, 2008; Carmo, Harada, 2006),
como se verifica na seguinte fala: “Eu dô uma varadinha na perna também, não é só castigo não... eu
dô só uma pancadinha nas pernas pra entender que tem que respeitar o papai e a mamãe” (MV). Para
Barbosa e Pegoraro (2008), os maus-tratos cometidos pela mãe contra seu filho estão vinculados à
posição ocupada por cada membro de uma família e ao papel social da mulher, sendo um desafio à
superação da ideia da agressividade restrita ao homem e da imagem materna como ser generoso,
incapaz de causar danos aos filhos.
Na relação entre casais, a presente investigação identificou, como outros estudos (Prosman et al.,
2011; Caldas, Gessolo, 2008; Krug et al., 2002), o predomínio do homem no papel de agressor e da
mulher no papel da vítima - “aqui também tem muito homem batendo em mulher” (HV), “a minha
tia... ela casou com um rapaz... e depois que eles casaram ele começou a bater nela...” (MJ). Porém,
há outra face, menos frequente e pouco reconhecida, da violência conjugal, em que a mulher aparece
como agressora do seu companheiro, “tanto tá tendo violência da mulher contra o homem, quanto do
homem contra a mulher” (HC), casos estes de conhecimento deles: “Eu conheço uma mulher que dá
varada no homem” (MV), ou vividos por eles: “eu falo que eu posso apanhar, mas ele apanha também.
Eu bato nele também, eu bato sem dó... Uma vez assim, que eu tava brigando com o meu marido... eu
peguei a tesoura e joguei a tesoura no rosto dele e ele levou vinte pontos... Sempre mais sou eu que
agrido ele” (MJ). Casos assim oferecem perigos adicionais, pois além do risco de desencadearem
agressão masculina contra a parceira (Rosa et al., 2008), costumam ser – amparados nas teses de
autodefesa feminina – aceitos socialmente, sendo raramente denunciados pelos homens, por estarem
aprisionados ao ideário da honra (Alvim, Souza, 2005). Fato este enfaticamente expressado nos grupos:
“os homens têm vergonha de fazer a denúncia e procurar a polícia” (HJ).
Algumas investigações (Zaleski et al., 2010; Alvim, Souza, 2005; Archer, 2000) sobre violência
conjugal identificaram os homens e as mulheres como autores e vítimas dos diversos tipos de violência,
e taxas de perpetração e vitimização por violência física mais elevadas foram encontradas entre as
mulheres. Melo et al. (2008) identificaram mulheres adolescentes como autoras de agressão física
contra homens adolescentes. Rosa et al. (2008) identificaram a agressão física, verbal ou psicológica da
companheira como uma das causas desencadeadoras da agressão masculina contra sua parceira.
Surpreendentemente, os grupos focais, tanto de homens como de mulheres, identificam os traços
femininos utilizados para subjugar o homem, por exemplo: a facilidade em usar palavras, a arte da
sedução, posses financeiras ou, mesmo, quando há necessidade do uso da força, a manipulação de
outros homens para tal fim: “é a questão do poder... No alto escalão tem empresária aí que pode pagar
um pra ceifar o outro, matar e no baixo escalão a mulher pode seduzir um cara aí e falar: mata fulano
pra mim ou então dá um pau nele pra mim” (HV). Elementos que também contribuem para a
magnitude dos números são as “várias mortes de homens que são encomendas de mulheres” (MV) ou,
mesmo, por elas cometidas. Como no caso de “uma mulher que tava fazendo sexo com um cara aí, na
hora que ela conseguiu tirar o dinheiro do cara, ela deu uma facada na barriga do cara” (HV). A este
respeito, alguns estudos (Krug et al., 2002; Wilson, Daly, 1992) encontraram proporções consideráveis
de homicídios masculinos envolvendo a autoria das mulheres.
Portanto, mais do que ser coisa de homem ou de mulher, é a lógica de controle nas relações
interpessoais que alimenta o cenário de violência, seja no âmbito da vida pública ou privada, sendo sua
autoria e vitimização definidas pela possibilidade de exercício de dominação entre os envolvidos. Rosa
et al. (2008) afirmam que, numa organização social desigual, todos são atingidos e tornam-se, ao
mesmo tempo, vítimas e autores dos diversos tipos de violência. Enfim, em um mundo
assimetricamente organizado, onde todos competem pela posição de dominador, a violência aparece
como resultante, sendo consenso entre os participantes que a “violência só vira violência” (MV, HV).
Em outras palavras, a explicação da violência não se esgota nas informações estatísticas, nos estereótipos
culturais (Brasil, 2009a; Nascimento et al., 2009) ou nas diferenças biológicas entre os sexos (Carrington
et al., 2010; Imura, Silveira, 2010). Restringir-se a esses níveis seria ignorar a sua complexidade e a sua
raiz mais profunda.
Olhada à luz da teoria arendtiana, a socialização do homem pode ser interpretada na perspectiva da
massificação humana, segundo um modelo dominador e de dominação, que se assenta na soberania
masculina e na subjugação do outro, contrariando o princípio de igualdade e a condição de liberdade
das pessoas. Esta forma de socialização, por sua vez, acaba por reforçar os padrões da moderna
dinâmica macrossocial, fundada em relações desiguais. Dessa forma, os homens seriam, então,
simultaneamente aprisionados nas condições de agentes e de grandes vítimas de um modelo violento
de socialização. Reféns dessas exigências sociais muitos deles perdem a vida ou tiram a vida de outras
pessoas na busca de afirmação de um sexo social (Diniz et al., 2003). Segundo esse modelo, o ‘ser
macho’ - atributo pautado na valentia e na soberania do homem, seja sobre a mulher ou sobre outras
pessoas - é o principal requisito para afirmação do ‘ser homem’ (Nascimento et al., 2009; Alvim, Souza,
2005), percepção praticamente unânime dos participantes: “Ser macho é achar que pode tudo... é
achar que é o dono da situação..., então eu sou o machão..., por isso eu bato no cê, eu mato ocê”
(HC), porque “o homem é quem manda” (MV).
Tudo que simboliza dominação e proporciona uma sensação de coragem, de invulnerabilidade, de
aumento da força - como, por exemplo, o álcool ou as armas - dá aos homens a impressão de serem
mais homens (Nascimento et al., 2009; Alvim, Souza, 2005), como expressa um participante: “É porque
são homens, tipo assim, por causa do motivo que eles tá com revolver, tá com a faca, eles se sente
mais homem, aí que acontece as coisas” (HV). Questões que ferem ou ameaçam esses tradicionais
atributos masculinos são fatores motivadores do envolvimento dos homens com a violência (Carrington,
2010), como ocorre com a suspeita de traição pela mulher, fantasiosa ou de fato, que muito perturba os
homens: “Ah, não aceito traição não” (HV), por isso “tem mulher aqui que apanha pra cachorro...”
(HV). Neste cenário, a prática da violência contra a companheira assume um caráter punitivo e expressa
a forma de o homem afirmar o domínio sobre a mulher ou demarcar sua propriedade frente aos outros
homens (Nascimento et al., 2009; Alvim, Souza, 2005).
Os grupos focais, especificamente os de homens, possibilitaram perceber que o empoderamento da
mulher na sociedade moderno-contemporânea tem gerado sofrimento e insegurança aos homens, e isto
provavelmente ocorre em decorrência da perda de sua soberania e dos seus espaços de controle
(Nascimento et al., 2009; Alvim, Souza, 2005). Nesse novo cenário das relações humanas, os homens
estão confusos e sentem-se ameaçados, fato que se reflete diretamente em suas relações no âmbito
social e da família. Na tentativa de resgatarem sua posição de dominador, demarcarem sua propriedade e
artigos
de exteriorizarem suas angústias, utilizam a violência, que tem sido o instrumento mais atrativo para se
tentar resolver conflitos: “se o homem não fizer nada, ele não vai valer nada e aí vai ser violento” (MC).
Se, como diz Arendt (2008), a posição econômica é definidora da posição social ocupada pelo
indivíduo, então, nenhuma surpresa há nas falas que mostram, não sem amargura, a vinculação da
condição do homem aos aspectos financeiros:
“- Hoje em dia quem manda realmente é o dinheiro. Cê tem dinheiro, cê tem tudo.
- Cê tem muié, cê tem carro, cê tem moto, cê grava um CD, cê faz o que ocê quiser com o
dinheiro. Entendeu?
- E quem não tem?
- Não tem nada”. (HV)
Superação da violência
A desvalorização da vida aparece nas falas dos participantes como uma das resultantes mais graves
da moderna dinâmica social desumana e, consequentemente, violenta: “hoje em dia também a vida do
ser humano não tá valendo nada não” (HV), “as pessoas matam os outros e quase sempre fica por isso”
(HJ). O isolamento, resultante do medo e da insegurança, aparece como um dos pilares perpetradores e
perpetuadores dessa dinâmica social: “Eu fico lá na minha casa com a porta, com esse calorão, porta,
janela, tudo trancado. De medo. Quando eu saio lá fora eu saio rapidinho, faço o que eu tenho que
fazer e volto pra dentro. Então quando eu escuto um tiro, nosso Deus!” (MV). Ora, o isolamento das
pessoas impede a ação política, como diz Arendt (2008): “sem a ação para por em movimento no
mundo o novo começo de que cada homem é capaz por haver nascido, não há nada que seja novo
debaixo do sol”. Entrelaçada ao isolamento humano tem-se a discriminação, apanágio de um modelo de
sociedade massificada, criador de estereótipos sociais ideais e excludentes de quem não os segue: “a
maioria da violência é isso também a discriminação... igual eu já fui procurar emprego várias vezes, na
hora que fala aonde mora, as pessoas não dá emprego, sabe?” (MV), e “às vezes só porque o cara tá
andando de bonezinho, o cara tem uma roupa mais ou menos boa e simples... o pessoal fala: é
traficante, é bandido, malandrinho” (HV).
De imediato, este estudo permite reconhecer a degradação do diálogo e a perda dos encontros no
espaço público como elementos propulsores da violência, tal como afirma Arendt (2008, 1994); e, por
consequência, o resgate dessa habilidade é o caminho para a superação da violência (Melo et al.,
2007): “feliz do homem que acha que dá pra resolver na conversa e resolve” (HC), “eu acho que as
pessoas têm que si respeitar mais, conversar mais”, para “chegar num acordo, afinal o acordo serve pra
gerar harmonia” (MJ).
Tal iniciativa implica mudanças amplas das relações sociais e das construções de gênero, cujo início,
porém, pode ser aqui e agora, à disposição de cada um, pois é no dia a dia onde se engendra a
violência, e que se engendra, também, a possibilidade de sua superação, a partir da relação dialética de
singularidade e pluralidade, que faz nascer e renascer incessantemente nossas esperanças de relações
humanas mais igualitárias, germinadas na inquebrantável certeza, honrosamente compartilhada com
Hannah Arendt (2008, 1994), de que “ser homem é uma coisa muito sublime, não é só ser macho não,
não, ser macho é muito pouco, qualquer vagabundo é” (HC).
Considerações finais
Tanto os homens quanto as mulheres foram identificados pelo estudo como sujeitos vulneráveis ao
envolvimento com a violência, e as relações desiguais de dominação ditando a forma do envolvimento
de cada um. A vulnerabilidade dos homens é agravada por sua socialização, que os condiciona à posição
de dominador, institui a violência como um atributo próprio da sua natureza e os aprisiona na condição
de vítimas e autores de violência. Essa condição, por sua vez, reforça os padrões da moderna dinâmica
macrossocial de dominação. A superação dessa condição, assim como de qualquer relação de
dominação, passaria pelo resgate da ação política descrita por Hannah Arendt, ou seja, pelo resgate da
palavra viva e da ação vivida, fontes do poder legítimo, que além de preservarem os espaços públicos
de revelação entre os sujeitos, tornam os seres humanos não apenas inteligíveis entre si, mas sujeitos
livres e autônomos e, portanto, capazes de construir uma nova ordem no mundo. Dessa forma, será
possível remodelar masculinidades mais flexíveis, saudáveis e pautadas no estabelecimento de relações
mais igualitárias dos homens junto aos seus pares e ao sexo oposto.
Os dados desta investigação problematizam a importante questão de ser a violência um dos
principais agravos para a saúde do homem, e revelam, ao buscarem raízes mais profundas do
fenômeno, importantes elementos contextuais explicativos dessa estreita relação. Espera-se, com isso,
contribuir para o seu melhor entendimento e somar força às inúmeras iniciativas que buscam melhores
intervenções com vistas à superação do problema.
É importante destacar a limitação própria da metodologia qualitativa de não permitir a extrapolação
dos resultados para outras populações, além da estudada. Por outro lado, o cuidado em organizar os
grupos focais por sexo e faixa etária permitiu apreender diversos olhares, evitar absolutizações e
produzir conhecimento objetivo sobre o tema.
Colaboradores
Rejane Aparecida Alves e Elza Machado de Melo realizaram o delineamento da
pesquisa, o trabalho de campo, a análise dos dados e a redação do manuscrito. Lauriza
Maria Nunes Pinto participou do trabalho de campo e colaborou na redação; e Andréa
Maria Silveira e Graziella Lage Oliveira colaboraram na redação do artigo.
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artigos
por mulheres com transtorno depressivo
atendidas em serviço de saúde público*
Denise Martin1
Aline Cacozzi2
Thaise Macedo3
Sergio Baxter Andreoli4
MARTIN, D. et al. Meaning of the search for treatment among women with depression
attended at a public healthcare service. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.16, n.43,
p.885-99, out./dez. 2012.
The aim of this ethnographic study was O objetivo deste estudo de caráter
to analyze the meaning of the search for etnográfico foi analisar o significado da
treatment among women with depression busca de tratamento por mulheres com
attended at a psychosocial care center in transtorno depressivo atendidas em um
the municipality of Santos, São Paulo, Núcleo de Atenção Psicossocial do
Brazil. The route to treatment of município de Santos, São Paulo, Brasil.
depression (from referral to attendance), Foram identificados, neste contexto: o
the notions of the illness held by the tratamento da depressão no serviço (do
women and their drug consumption were encaminhamento ao atendimento), as
identified within this context. The noções de doença elaboradas pelas
trivialization of depression, importance of mulheres e o consumo de medicamentos.
the psychiatrist and use of Ficaram evidentes: a banalização da
antidepressants and anxiolytics in the depressão, a importância do psiquiatra e
treatment were evident. The women’s do uso de antidepressivos e ansiolíticos no
patterns of drug consumption suggested tratamento. Os padrões encontrados de
that addiction to medications was consumo dos medicamentos pelas
occurring. In addition to pharmacological mulheres sugerem a ocorrência de uma
action, use of medicines had symbolic “toxicomania medicamentosa”. O uso de
action, towards comfort and care. Our medicamentos, além da ação
study indicates that there is a need to farmacológica, possui uma ação
connect the meanings of the women’s simbólica, no sentido de conforto e *
Elaborado com base
experiences with the therapeutic cuidado. O trabalho aponta para a em Martín (2008);
approaches towards depression in necessidade de se articularem o pesquisa financiada pela
FAPESP (Proc.
constructing public mental healthcare significado das experiências das 08/06460-5).
policies. mulheres e as abordagens terapêuticas 1,4
Programa de Mestrado
da depressão na construção das políticas em Saúde Coletiva,
Keywords: Depression. Women. Universidade Católica de
públicas de saúde mental.
Ethnography. Drugs. Santos. Rua Carvalho de
Palavras-chave: Depressão. Mulheres. Mendonça, 144. Santos,
SP, Brasil. 11.070-906.
Etnografia. Uso de medicamentos. demartin@unisantos.br
2,3
Universidade Católica
de Santos.
Introdução
artigos
farmacêutica); estímulo ao diagnóstico precoce e autodiagnóstico, e que o uso do termo depressão
contribui para o processo de medicalização da vida.
A depressão, seja ela diagnosticada como um transtorno propriamente dito ou como uma doença
autoidentificada pelo senso comum, segue sendo um problema de saúde mental importante, pois
resulta em busca de atendimento em saúde e tratamento (o que inclui o tratamento medicamentoso).
Depressão e cultura
Vários autores mostraram como a experiência da depressão pode ser compreendida com referência
ao segmento cultural no qual as pessoas estão imersas (Hussains, Cochrane, 2004; Rodrigues Cardoso,
1998; Kleinman, Good, 1985).
Estudos clínicos sobre depressão, realizados em culturas não ocidentais, apontam a reduzida
frequência ou ausência dos componentes chamados psicológicos da depressão (sentimentos de culpa,
desespero, autodestruição e ideação suicida) e a dominância de aspectos denominados somáticos
(Marsella, 1985).
Halbreich et al. (2007) citam que, em culturas não ocidentais, os sintomas que são tratados como
distúrbios disfóricos são, sobretudo, somáticos, diferentemente do sistema ocidental centrado nos
manuais diagnósticos. Em muitos casos, os critérios destes manuais não são sequer reconhecidos pelos
pacientes.
Pereira et al. (2007), estudando mulheres de Goa, na Índia, diagnosticadas como deprimidas,
identificaram que elas expressam seus problemas de saúde mental especialmente através de uma série
de queixas somáticas; localizam a sua angústia na vida através das desvantagens sociais que
experimentam em seu dia a dia, e só procuram ajuda médica para queixas somáticas.
Estudos em vários países concluem que muitas das concepções correntes sobre depressão poderiam
ser altamente etnocêntricas (Marsella et al., 1985). Trata-se de um tema que desafia definições a priori
para contextos culturais específicos.
No Brasil, o estudo da depressão com enfoque no contexto cultural das mulheres que sofrem com o
transtorno ainda é recente.
Martin, Mari e Quirino (2007a) e Martin, Quirino e Mari (2007b) estudaram a depressão entre
mulheres diagnosticadas com o transtorno e os psiquiatras que as acompanhavam, no Embu, na Grande
São Paulo, enfocando o entendimento do transtorno e do atendimento psiquiátrico no município. No
estudo, a depressão era um idioma para expressar muitos sentimentos, como a infelicidade num
contexto de pobreza e violência. Concluiu-se que o psiquiatra extrapolava as suas funções clínicas e
tinha um papel na reorganização do cotidiano dessas mulheres. A depressão expressava o drama social.
Em Martin, Mari e Quirino (2007a), a depressão foi tratada como um termo empregado como divisor
de comportamentos aceitáveis e criticáveis, o que aponta para um deslocamento de significações. Havia
a depressão legítima e a falsa, esta servindo para mascarar eventos e comportamentos pessoais
imperfeitos ou localmente indesejáveis.
Este estudo revelou percepções de depressão, das mulheres e da comunidade, fortemente
ancoradas na cultura em que estavam inseridas: pobre, violenta e desigual. Ficaram patentes, nos
resultados, a desigualdade nas relações de gênero e a violência doméstica presente no cotidiano das
mulheres com depressão.
Maluf e Tornquist (2010) estudaram as questões de gênero, saúde e aflição, no campo da saúde
mental, do ponto de vista das políticas públicas, do ativismo político e das experiências sociais. Entre os
principais resultados, destacam-se: a necessidade de uma política de saúde mental com a perspectiva
de gênero, o consumo de medicamentos psicotrópicos por mulheres, a medicalização na política de
saúde mental, e as dimensões físico-morais do sofrimento psíquico e sua ressignificação pelas mulheres.
Tornquist, Andrade e Monteiro (2010) estudaram a disseminação do diagnóstico de depressão, com
tratamento e medicalização entre grupos populares em Florianópolis. As autoras mostram que a
categoria “depressão” era conhecida e usada eventualmente pelas mulheres, indicando um estado
comum que qualquer pessoa poderia atravessar.
A depressão - para além dos problemas da identificação de casos de transtorno depressivo, tal como
ele é descrito clinicamente, ou de, simplesmente, depressão, como é concebida na sociedade - vem
ganhando importância na vida cotidiana das pessoas e na sociedade. Isso porque serve como idioma
para expressão de sentimentos, sofrimento, infelicidades ou de condições de vulnerabilidade, mas que,
frequentemente, resultam em busca de atendimento em saúde e demandam tratamento (o que inclui o
tratamento medicamentoso).
O objetivo deste estudo foi analisar o significado da busca por tratamento para depressão, tendo
como sujeitos as mulheres diagnosticadas com transtorno depressivo, atendidas em serviço de saúde
público.
Percurso metodológico
Foi realizada uma etnografia, método no qual a experiência humana é um pressuposto para que se
produza o conhecimento antropológico e encontra-se presente em todas as etapas da produção deste
conhecimento (Nakamura, 2009).
A pesquisa de campo foi realizada no período de maio de 2009 a julho de 2010. No serviço, a
pesquisadora realizou a observação no horário da manhã e da tarde, por um período de três meses
consecutivos, e esporadicamente para realizar o contato com as mulheres para a entrevista. Esta etapa
da pesquisa buscou conhecer o funcionamento do serviço para o tratamento dos casos de depressão.
Das 25 entrevistas, 22 foram realizadas nas casas das pacientes e três no NAPS I. Quanto à idade,
havia mulheres na faixa dos trinta anos até os 81 anos. A média foi de 52,2 anos. A escolaridade era
baixa, predominando o Ensino Fundamental incompleto (12 mulheres). Três mulheres declararam nunca
terem estudado. Duas mulheres haviam concluído o Ensino Fundamental, duas possuíam o Ensino
Médio incompleto e quatro o completo. Uma mulher havia completado o Ensino Superior e uma outra
estava cursando. Quanto ao local de moradia, quinze mulheres moravam em casa própria, e cinco em
casa alugada ou cedida. Duas moravam em barracos em palafitas e três em barracos em favelas. Quanto
ao local de nascimento, 15 mulheres eram do Nordeste do país, seis eram de Santos, duas do interior
de São Paulo, uma do Paraná e uma de Minas Gerais. Todas tinham filhos. Quanto ao trabalho no
momento da pesquisa, duas mulheres estavam desempregadas, três aposentadas, seis afastadas por
motivos médicos, cinco recebiam aposentadoria do esposo, cinco não trabalhavam, e quatro
trabalhavam (assistente de mercado, dona de bar, telemarketing e acompanhante de idosos). Quanto à
religião, 14 se declararam católicas, uma umbandista, nove evangélicas e quatro espíritas (algumas
frequentavam mais de uma religião).
Todas as mulheres possuíam como diagnóstico principal a depressão, segundo critérios da
Classificação Internacional de Doenças (Organização Mundial da Saúde, 1997). Foram realizadas cinco
entrevistas com profissionais de saúde que trabalhavam no serviço, com o objetivo de conhecer como
ocorria o atendimento. As entrevistadas foram contatadas na farmácia no momento em que retiravam
suas medicações, e, também, por indicação dos profissionais da unidade. A primeira forma de contato
foi a que deu melhores resultados.
As entrevistas foram realizadas até a saturação dos conteúdos. Após a leitura exaustiva das
transcrições, os dados foram agrupados em categorias e analisados de acordo com os objetivos do
estudo. As observações etnográficas do serviço e a entrevistas com os profissionais de saúde também
foram objeto de análise.
A análise antropológica é resultado de todas as etapas de produção do conhecimento. O olhar (a
observação), o ouvir (as entrevistas) e o escrever (a análise e interpretação dos dados), como atos
cognitivos, são domesticados teoricamente, ou seja, disciplinados no horizonte da Antropologia
(Oliveira, 2006).
Todos os participantes foram informados sobre os objetivos do estudo e assinaram o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade
Católica de Santos.
Local da pesquisa
artigos
O município de Santos é um local privilegiado para o estudo da saúde mental,
pois possui uma rede de assistência bem estruturada, regionalizada e com
distribuição equilibrada de serviços. A estruturação desta rede de serviços teve início
no ano de 1989, marcada pela mudança do modelo assistencial centrado no hospital
psiquiátrico para um modelo centrado em serviços comunitários. A rede de
assistência em saúde mental de Santos está estruturada, basicamente, em serviços
comunitários, cinco Centros de Atenção Psicossocial - CAPS - (1,2 por cem mil hab.)
distribuídos de forma equilibrada pela cidade, e atende pacientes com todas as
morbidades psiquiátricas (Andreoli et al., 2004).
A zona noroeste é composta por 12 bairros. É uma região residencial na qual não
houve crescimento vertical, com exceção dos conjuntos habitacionais. As casas da
região, em sua maioria, são de alvenaria. Alguns bairros possuem casas construídas
em terrenos espaçosos. Em um dos bairros, embora existam casas de alvenaria, há
barracos construídos sob as palafitas na maré. O acesso às moradias localizadas nas
palafitas é difícil, pontes estreitas de madeira fazem a ligação entre os barracos.
Quando a maré sobe, o lixo e a água invadem as casas. As enchentes são um
problema na região.
O tratamento no NAPS
“Foi assim, pra mim ir no psiquiatra da outra vez, aquela época foi a
ginecologista que encaminhou, eu contei a história pra ela e ela me
encaminhou, e agora dessa segunda vez foi com ela também, ela já
sabe a minha história, daí ela viu que eu tava mal de novo e me
encaminhou pra cá”. (M14)
situação, foi criado um sistema de rodízio com psiquiatras de outros NAPS, que atendiam uma vez por
artigos
semana. Todos os pacientes tiveram atraso em atendimentos e medicação, além de perderem o vínculo
com os psiquiatras que os tratavam. Desta forma, a maioria criticou o atendimento, sobretudo pela falta
de médicos, como mostra a fala abaixo:
“Ai ela me disse que eu ia falar só com a assistente porque não tem médico. É uma
vergonha não ter médico”. (M15)
Com as dificuldades citadas, as mulheres possuíam estratégias para obter os medicamentos que
consideravam necessários. Uma possibilidade era passar no psiquiatra do Pronto-Socorro, ou recorrer a
médicos de outras especialidades que poderiam prescrever os medicamentos:
“... que nem eu: preciso de um psiquiatra pra me dar uma receita e não tem. Então fica
difícil...você vê, eu não tomo remédio porque não tem quem me prescreva. ... como eu
tenho consulta marcada agora em agosto, com uma neurologista, eu vou ver se ela me passa
algum remédio”. (M16)
Todavia, alguns médicos do Pronto-Socorro não davam a receita por saberem que a mulher era
usuária do NAPS. Algumas mulheres foram atendidas por psiquiatras de planos de saúde, mas também
sem continuidade ou tendo que buscar o serviço público.
O atendimento no NAPS, para os casos de depressão, envolvia, além da consulta médica, a terapia
grupal realizada pelos psicólogos. Observou-se que, apesar de todas as críticas à falta de psiquiatras no
serviço e à falta de continuidade no tratamento, estes profissionais eram considerados centrais para o
tratamento e recuperação. Neste contexto de atendimento em saúde mental, embora houvesse uma
proposta de uma diversidade nas formas de cuidar, a psiquiatria ocupava um lugar importante na
identificação e tratamento das pessoas com depressão.
Os psicólogos eram pouco aceitos ou valorizados na proposta terapêutica:
“Eu fiz tratamento até março né, quer dizer, eu estou em tratamento ainda. Mas assim, eu
tenho certeza absoluta que hoje eu estou viva por causa deles mesmo (dos médicos), eles
me acompanharam, eles foram super legal comigo”. (M15)
“É nos grupos, eu não vou me sentir bem me expondo, ...então eu vou me sentir um pouco
ridícula de expor o que eu tô sentindo, porque parece que é muito fácil, em vista de outros
problemas, entendeu? Então eu prefiro ficar na minha que é melhor...”. (M2)
Ficou evidente, na pesquisa, que – na visão das entrevistadas – a proposta terapêutica para
depressão estava focada, sobretudo, no atendimento médico. Segundo Silveira (2000), na consulta
médica, é possível se narrarem as queixas, legitimar-se socialmente o sofrimento e resolver-se o
problema pragmaticamente com medicamentos. Todavia, este atendimento estava aquém do desejável,
destacando-se a falta de continuidade do atendimento no serviço acima citado.
O contexto do atendimento médico permitiu situar como estas mulheres compreendiam a
depressão.
De maneira geral, as mulheres aceitavam o diagnóstico de depressão, o que pode estar relacionado
à banalização do termo. As causas da depressão, quando identificadas, eram sempre de origem
externa. Nenhuma das entrevistadas justificou seu sofrimento devido a características pessoais ou de
“Foi desde que eu tive umas descontrariedade muito grande, assim de família viu! Eu tive
um desgosto muito grande, que eu nem sei se eu devo explicá... dizê o porquê”. (M2)
Clarke (2006) também observou que a depressão era manifestada, pela maioria de suas
entrevistadas, como algo que vem de fora, como um lugar separado de seu próprio corpo.
A variedade de justificativas para o sofrimento estava relacionada às questões de parentesco, dando
destaque para as questões de gênero, também identificados em Martin, Mari e Quirino (2007a), Martin,
Quirino e Mari (2007b) e Tornquist, Andrade e Monteiro (2010). As causas variavam muito, desde a
morte de um filho, problemas com consumo de drogas até problemas financeiros, como desemprego
ou impossibilidade de realizar uma cirurgia plástica. É interessante notar a plasticidade que o termo
depressão recobre, podendo justificar praticamente todas as experiências desagradáveis vividas por estas
mulheres. Extrapola a noção patológica definida pela biomedicina e possibilita abarcar toda a
negatividade da vida cotidiana (Martin, Quirino, Mari, 2007b).
Nas entrevistas com as mulheres, a maioria se queixou dos infortúnios e sofrimentos que viviam ou
viveram. A variedade de possibilidades de sofrimentos era muito grande, como por exemplo: a violência
do tráfico, a traição do marido, as doenças que sofriam, as doenças na família, o filho homossexual, e a
falta de dinheiro. Desta forma, tudo o que era vivido em termos de sofrimento e infortúnios justificava
a depressão. Para Ehremberg e Lovell (2001), a depressão se coloca como foco de atração do
sofrimento psíquico e designa, com ou sem razão, a maior parte das dificuldades psíquicas e
comportamentais que cada um pode encontrar em sua existência.
Nesta perspectiva, ficou também evidente a fragilidade epistemológica da categoria depressão,
como mostrou Caponi (2009).
As causas identificadas, de que maneira as mulheres entendiam o sofrimento que nomeavam como
depressão?
As mulheres possuíam ideias vagas sobre a depressão, não sabendo definir exatamente do que
sofriam (como em Martin, Quirino, Mari, 2007b):
“Ah! Eles deram como depressão, né... depressão profunda, né... Dor na alma”. (M3)
Observou-se, também, uma confusão entre sintomas ou causas e definição da doença, como mostra
a seguinte fala:
“Ah, eu não sabia nem o que era, aí ele falou pra mim que os sintomas que eu tinha era
devido a depressão, por causa dos problemas que eu tinha, eu contei tudo da minha vida..”.
(M19)
Havia o preconceito de que a depressão comentada por outros era frescura, ou seja, uma maneira
de chamar a atenção das pessoas e, ainda, a associação com a loucura, noção também identificada em
Martin, Mari e Quirino (2007a):
“Mexe muito com a mente, aí eu não sei... eu falo assim...- mas isso não é uma doença -, aí
eu acabei crendo que é uma doença. Como o povo tinha, eu falava assim... “é uma
doença?”, eu falava assim... Agora eu sei que não é frescura viu! A gente tem que passar pra
saber...”. (M4)
Assim, embora a noção de doença fosse, na maioria das vezes, vaga e superficial, havia a
preocupação em não ser confundido com os chamados “loucos”.
A maioria das entrevistadas não acreditava na possibilidade de cura para a depressão:
“Eu não controlo mais, eu tenho certeza que a minha cabeça não volta mais como era
artigos
antes... Eu acho que não!”. (M4)
Para outras, a cura estaria associada a mudanças na vida, pouco prováveis de acontecer, e que, desta
forma, limitavam a possibilidade de ocorrer:
“Você sabe quando eu ia me sentir curada? Quando eu tiver minha casa, um carro na minha
garagem, um marido fiel, cuidando dos meus filhos, todo mundo numa boa, sem
aborrecimento. Assim eu seria feliz. Isso seria minha felicidade, porque só foi decepção”.
(M23)
Por fim, algumas entrevistadas relacionaram a cura à fé religiosa, como mostra a fala:
O consumo do medicamento
“Como eu falei, ameniza muita coisa. Uma coisa é você viver chorando 24 horas por dia e
você querer se matar, com dó de você a vida toda. E você vai aprendendo que o remédio,
parece que não, mas, ele mexe muito com a mente da gente, ele mexe muito”. (M12)
“... Quando eu ia nos médicos psiquiatras, eu dizia que eu queria um remédio pra me dar
alegria, eu fico assim muito... não sei te falar se é triste, mas sem ânimo, então eu sinto essa
falta do remédio, pra me dar mais ânimo, mais coragem”. (M16)
Como foi mostrado, algumas mulheres chegaram ao serviço com prescrições de medicamentos para
depressão realizadas por outros profissionais da área médica, recomendações de amigas, além dos
atendimentos em pronto-socorro e ambulatórios de especialidades além da psiquiatria. O diagnóstico e
a medicação haviam sido realizados em outro momento:
“O primeiro remédio quem me deu... foi o meu gastro... há mais de 5 anos que eu faço
tratamento com o gastro!”. (M4)
“Foi assim: foi a minha colega que me deu, porque tem gente que
pega medicação lá no NAPS e não toma, joga na maré e fica
boiando... Oh, judiação!...”. (M5)7 7
Segundo a entrevistada,
as pessoas buscam o
diagnóstico de depressão
“Eu dou calmante pra uma pessoa, uma amiga minha que tem em serviços de saúde
depressão e tem vergonha de ir no NAPS, mas eu dou pouquinho, mental para obterem
dou uma dessa e uma dessa. Mas olha, é tudo guardadinho, licenças médicas e
aposentadorias, pegam o
separadinho, mas não estou louca de ficar dando remédio. (M24) medicamento prescrito e
depois jogam fora.
Comentários sobre este
Nas duas últimas falas, ficou evidente a banalização do termo depressão. Uma uso da depressão foram
mulher comentou exagerar nos sintomas na consulta psiquiátrica para dar uma frequentes tanto no
serviço como entre os
parte dos medicamentos para a amiga, por ela diagnosticada também como moradores da região.
“deprimida”. Este consumo obedecia a uma lógica na qual havia uma avaliação de
necessidade independente da prescrição médica. Revela, desta forma, um
deslocamento das necessidades relacionadas ao registro biomédico para o
contexto no qual o sofrimento se enquadra.
Maluf (2010) mostra que existe uma “demanda por medicação”. Esta autora
identifica esta demanda nas falas dos profissionais de saúde, que se queixam das
estratégias e formas de pressão dos pacientes para obterem a receita, e, também,
nas mulheres diagnosticadas com depressão e consumidoras de medicamentos.
Tornquist, Andrade e Monteiro (2010) também observaram uma apropriação
pessoal do uso de remédios, incluindo recomendações, sugestões ou, mesmo,
estoque dos medicamentos para uso de quem necessite.
Relatos de efeitos colaterais também foram frequentes:
“Aí você toma e já fica com cara de besta, cara de idiota”. (M5)
(mas também sujeitas às limitações do serviço e dos psiquiatras) até aquelas que tomavam os
artigos
medicamentos por recomendação de amigas ou com avaliação pessoal. Reconheciam que o cotidiano
ficava diferente com o medicamento, mas de certa forma resolvia.
A experiência da depressão, para estas mulheres, evidenciou um caleidoscópio de sofrimentos,
justificativas e soluções possíveis para o sofrimento cotidiano. O medicamento era um componente
importante.
Considerações finais
Colaboradores
Denise Martin e Sergio Baxter Andreoli responsabilizaram-se pela concepção do
estudo, revisão de literatura, análise e redação do manuscrito. Aline Cacozzi
responsabilizou-se pela revisão de literatura e Thaise Macedo foi a responsável pelo
trabalho de campo.
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El objeto del estudio de carácter etnográfico ha sido el de analizar el significado de la
búsqueda de tratamiento por parte de mujeres con trastorno depresivo atendidas en el
Núcleo de Atención Psico-social del municipio brasileño de Santos, estado de São
Paulo. En tal contexto se identificaron el tratamiento de la depresión en el servicio
(desde el encaminamiento hasta la atención) las nociones de enfermedad elaboradas
por las mujeres y el consumo de medicamentos. Quedaron evidentes la banalización de
la depresión, la importancia del psiquiatra y del uso de anti-depresivos y ansiolíticos en
el tratamiento. Los patrones de consumo encontrados en las mujeres sugieren una
“toxicomanía medicamentosa”. El uso de medicamentos, además de su acción
farmacéutica, posee una acción simbólica en el sentido de comodidad y cuidado.
Nuestro trabajo sugiere la necesidad de articular el significado de las experiencias de
las mujeres y los planteamientos terapéuticos de la depresión en la construcción de
políticas públicas de salud mental.
Palabras clave: Depresión. Mujeres. Etnografía. Utilización de medicamentos.
artigos
de verdade naturalistas à espessura biopsicossociocultural do adoecimento mental
Introdução
artigos
na tessitura das formas de adoecimento
tempo histórico quanto biográfico. Estas interações complexas dificultam previsões lineares, linhas de
continuidade e relações de determinação ligadas a doenças específicas. A partir dessas constatações,
autores vão tomar por objeto os processos de transformação de doenças de base afetivo-emocional em
desordens biológicas. Analisam as mudanças históricas que favorecem o esteio social dessas
transformações, ao mesmo tempo em que instauram uma ruptura semântica entre as mesmas.
Concluem que novas entidades são produzidas, embora uma estratégia naturalizadora instaure uma linha
de continuidade histórica, garantida por um mito de origem que afirma que elas sempre existiram,
embora fossem subdiagnosticadas.
Pierre-Henri Castel (2008), por exemplo, vai estudar as origens da neurose obsessiva, relacionando-a
ao crescimento do protestantismo na sociedade alemã. Religião cujo etos está referido à ideia de que a
graça deve preceder as ações, ela inscreve nestas todo tipo de impedimentos, dúvidas e indecisões. A
neurose obsessiva seria uma doença da dúvida e surge em um momento onde a culpabilidade se torna
um organizador moral no centro da economia psíquica. Transformações históricas vêm ligadas a ideais
de construção de pessoa e, com essas, diferentes formas de individualismo produzem formas distintas
de objetivação da mente e de afetação psíquica. Segundo Castel, mudanças históricas nos fins do
século XX trazem consigo novas representações de constrangimentos morais, e outros ideais substituem
a culpabilidade como organizadora da economia psíquica. A autoafirmação dos indivíduos ganha
preeminência enquanto valor e se torna uma condição normativa. Com a redução de um estado
coercitivo, aumenta a introjeção do controle de si. O transtorno obsessivo-compulsivo, diferentemente
da neurose obsessiva, seria, assim, uma doença do escrúpulo, e não da dúvida, sendo as ameaças
sentidas mais de dentro de si mesmo do que de fora, do espaço social. Corrobora, assim, o que Gori
(2010), em acordo com Hacking, chama a atenção quando fala das psicopatologias “enquanto
reveladoras da substância ética da cultura da qual elas emergem e que elas contribuem, em retorno,
para recodificar” (Gori, 2010, p.6).
De uma outra perspectiva, Lane (2006) vai analisar a patologização crescente de comportamentos
humanos antes tidos como diferentes, porém normais e anódinos. Associa a criação de novas patologias
a interesses mercadológicos das indústrias farmacêuticas, que dão sustentação a associações em torno
dessas patologias e se aliam a grupos de psiquatras, investindo somas estratosféricas no marketing das
mesmas. Baseado na virada biológica da psiquiatria, que explica comportamentos patológicos a partir de
disfunções cerebrais, verifica-se o crescimento exponencial de comportamentos tornados anormais e
categorizados nas nosologias dos DSM, para os quais progressivas descobertas psicofarmacológicas
aportariam um tratamento. Esse é, para o autor, o solo social e econômico-científico da transformação,
por exemplo, da timidez em fobia social. Surge uma tendência à intolerância aos introvertidos,
misantropos, pessimistas, entre outros personagens que povoavam as sociedades, fazendo parte das
múltiplas formas de subjetividade humana. Esta intolerância e a patologização destes comportamentos
seriam o resultado, segundo o autor, de uma fantasia de que, desenhando o nosso próprio cérebro,
seremos capazes de calibrá-lo. Lane (2006, p.408) prossegue afirmando que «[a] psicofarmacologia
transforma essa fantasia em uma demanda ética», quando concebe esses ‘transtornos psiquiátricos’
como problemas da vida humana que as drogas podem eliminar.
As análises empreendidas por esses autores favorecem a apreensão da atmosfera cultural e do ar do
tempo que matizam a experiência coletiva de mal-estares e formas de sofrimento a partir de um campo
semântico e pragmático que as circunscreve. Como campo semântico e pragmático, entendemos um
conjunto de valores, símbolos, construções de pessoa e modos de fazer compartilhados e produzidos
em contextos sociais definidos a partir de uma conjuntura histórica, que envolve relações de poder e
econômicas, semelhante ao que Foucault chama de dispositivos ou práticas discursivas. Nesse caso,
sintomas e patologias subscrevem valores morais e se situam em relações sociais concretas, refletindo e
participando dos jogos de posicionamento social e sofrendo os efeitos dos seus conflitos e dinâmicas
sociais.
artigos
e o manejo do social nas geografias clínicas
Jupille (2011), estudando o tratamento de crianças com transtorno da atenção com ou sem
hiperatividade (TDAH), em um serviço universitário de orientação cognitivista em Paris, observa que
estabelecer um diagnóstico é fruto de um processo de negociações estabelecido entre vários atores
(professores, pais, profissionais, laboratórios). Alguns desses atores apresentam representações
divergentes quanto à doença, reflexo de controvérsias na sociedade mais vasta. Jupille descreve o alívio
das famílias quando recebem uma explicação neurobiológica para o transtorno e tratamento
medicamentoso e psicoeducativo, buscadas através de demandas estereotipadas em fórmulas que
agregam os sintomas mais importantes da doença, dirigidas às instituições de cuidado. A despeito dessa
unificação da diversidade pelo diagnóstico, o autor observa que o curso do tratamento individualiza as
queixas e permite singularizar as situações das famílias. Observa que a satisfação com o medicamento
(metilfenidato) é transitória, o que exige permanentes reajustes da sua dose, refletindo o processo de
individualização do cuidado. O autor conclui que o papel do medicamento é o de servir como um
articulador central das relações socioafetivas que passam a se estabelecer entre os membros das famílias
que possuem um(a) filho(a) com esse diagnóstico, produzindo um trabalho sobre a relação, mudando o
cotidiano dos mesmos e melhorando a reinserção social das crianças. Por sua vez, as mudanças
propiciadas pelo diagnóstico dependem, de um lado, dos acordos, ou desacordos, produzidos pelas
formas de dar sentido às dificuldades da criança e, de outro, das táticas de homologação desenvolvidas
pelos pais com a ajuda dos técnicos. Esse estudo permite entender que o resultado dessa abordagem
clínica é altamente dependente da lógica social das relações, estando muito distante das assertivas
essencialmente naturalistas propostas pela neurobiologia quando se refere ao efeito das medicações
sobre o controle de comportamentos disfuncionais.
A incorporação do social por psiquiatras, no manejo do diagnóstico, é proposta, de modo ainda mais
contundente, por Béhague (2009). Seu estudo, realizado no âmbito da clínica psiquiátrica voltada para
adolescentes de Pelotas, Brasil, oferece insights acerca da correlação entre o discurso, a prática
biopsiquiátrica e seus processos psicossociais. Na parte qualitativa desse estudo, a autora acompanha,
durante nove anos, um grupo de adolescentes, com diagnóstico de problemas de conduta, tratados
psicoterapeuticamente por psiquiatras em serviços públicos de saúde mental dessa cidade. Busca, entre
outros objetivos, discutir a modalidade e o processo de biomedicalização dessa sociedade. Para isso
enfoca o aparente paradoxo entre uma psiquiatria que realiza tantos diagnósticos pautados em
definições comportamentais (revelado por dados epidemiológicos do mesmo estudo, que mostram um
crescimento desses diagnósticos prioritariamente atribuídos a crianças de baixa renda e a jovens do sexo
masculino) e uma clínica psicoterapêutica socialmente orientada. O argumento principal da autora se
constrói a partir da análise de casos bem-sucedidos de acompanhamento terapêutico, onde as respostas
favoráveis dos adolescentes resultaram de uma relação terapêutica centrada na elaboração (psíquica) dos
determinante sociais à base dos seus comportamentos, a partir de uma perspectiva terapêutica
politizadora. Descrevendo essas terapêuticas, o(a)s jovens evidenciavam um aumento do seu poder de
análise dos conflitos da sociedade onde viviam, observando a relação entre suas dificuldades pessoais e
os sentimentos que experimentavam quanto às injustiças sociais. Além disso, produziram formas mais
legítimas de rejeição às mesmas, tais como o ativismo político, ou outras formas de empoderamento. O
resultado, segundo a autora, é uma transformação psi-induzida, onde se produz um deslocamento de
uma perspectiva individualizada para outra mais coletiva, acompanhada de mudanças pessoais e
estruturais na experiência dos jovens. Na análise de Béhague, esse tipo de terapia encontra-se
fortemente enraizado em práticas psiquiátricas política e socialmente sensíveis, fruto de um pensamento
desenvolvido a partir de contradiscursos nascidos dos movimentos antipsiquiátricos, no processo da
reforma psiquiátrica brasileira. A autora evidencia que profissionais sensíveis às condições sociais nas
quais se produzem sofrimentos humanos têm a capacidade de se distanciar do aspecto categorizador
dos diagnósticos para fazer emergir as lógicas sociais subjacentes ao mal-estar dos sujeitos.
Categorias diagnósticas podem ser também consideradas como pré-textos para comunicar problemas
e produzir significados, os quais são fortemente dependentes dos espaços materiais e sociais nos quais
eles ganham forma. Das e Das (2007) sugerem que os estudos sobre os significados das doenças têm
dado pouca atenção à especificidade das condições sociais nas quais as pessoas experimentam a saúde e
a doença. Esse aspecto pode ser explorado no campo da saúde mental, observando-se em que medida
condições de pobreza, marginalidade e desigualdade social encontram eco nas formas pelas quais os
artigos
terapeutas, mas também os doentes, manejam diagnósticos psiquiátricos. As autoras evidenciam a
precariedade da vida cotidiana de certos bairros populares como um complexo que constitui uma
ecologia local que engloba circunstâncias políticas e econômicas colocadas em jogo no momento de
circulação e de manipulação de diagnósticos, bem como nos sentidos que eles favorecem a elaboração.
Em contextos marginais ao próprio enquadramento psiquiátrico, esses usos podem também ser
observados. Um bom exemplo é o trabalho de Lovell (2001) que estuda moradores das ruas de Nova
York com delírios identificatórios, evidenciando como esses sintomas mentais canalizam imperativos
morais e conteúdos identitários sustentados por uma lógica social. A autora descreve a significação
social da vida na rua, problematizando a relevância da identidade social em um tal contexto, que a faz
adquirir uma qualidade de mediadora das interações sociais. Viver na rua exige o domínio de um
verdadeiro teatro de apresentação de si, o que envolve corpo, gestos e palavras na modelagem dos
seus contornos identitários. Segundo Lovell, esse trabalho de identificação ganha maior importância
quando os sem domicílio são percebidos como «loucos» (Lovell, 2001, p.132). A versão delirante da
fabricação de si ocupa, aqui, um lugar fundamental, cujo aspecto fictício é facilitado pelos espaços
intersticiais da rua. Esses delírios parecem repousar em situações relacionais, influenciadas por
pertencimento étnico ou de gênero, funcionando como estratégia para embelezar o passado de pessoas
que romperam seus laços familiares. Diferentemente de diagnósticos comparáveis na psiquiatria, tais
como as síndrome de Capgras ou de Fregoli, os delírios da rua parecem mais afeitos a mecanismos de
sobrevivência em face da aniquilação social, colocando em jogo questões de racismo envolvidas nos
pertencimentos étnicos. Delírios desse tipo são inteligíveis à luz da experiência de discriminação,
evidenciam um mecanismo de inversão diante do sentimento de desrespeito, fazendo apelo a um
registro de justificação em uma sociedade de direitos e de cidadania. Essas ficções de si funcionam em
uma lógica social de comunicação com os outros, uma forma de produção de rede social (verdadeira ou
não), enfatizando modelos transacionais.
As situações sociais e contextos econômicos de inscrição também influenciam posturas profissionais
na utilização e avaliação dos novos recursos etiológicos, diagnósticos e terapêuticos definidos pela
biopsiquiatria. Muitas vezes, fascinados pelas promessas anunciadas pelas descobertas científicas e pelas
novas tecnologias colocadas à disposição de sociedades de capitalismo avançado, os pesquisadores se
esquecem que um sem número de países, ainda que expostos aos regimes de verdade neurobiológicos
e às redes de influência das indústrias farmacêuticas, estão à margem do acesso às mesmas.
Good (2007), em estudo realizado em Java, Indonésia, verifica, na psiquiatria javanesa, a influência
de um projeto de essencialização biológica da doença mental, interpretando-o a partir dos avanços na
síntese de novos psicofármacos mais eficazes, aliados aos interesses de ampliação de mercados de
medicamentos e de biotecnologia, ao que se associa a vontade do país de desenvolver seu projeto de
modernidade. Esse projeto, no entanto, encontra inúmeros obstáculos, diretamente sentidos na prática
psiquiátrica, onde um contexto de baixa renda impossibilita o real acesso aos avanços oferecidos pela
psiquiatria contemporânea, gerando um sentimento de inadequação. Além disso, os psiquiatras
javaneses, segundo Good, não pareciam completamente convertidos a esse projeto e se ressentiam da
progressiva racionalização e desencantamento do mundo e dos processos de cura. Alguns destes se
diziam capazes de distinguir doenças de causa biológica daquelas de origem espiritual, dentre os quais
existiam aqueles que associavam dois tipos de prática: psiquiatria moderna e terapêutica tradicional.
Essa soma de precariedade econômica e de valores tradicionais em certas sociedades é importante
no incompleto sucesso e complexa configuração do projeto de biossocialidade dos sujeitos nesses
contextos.
As descrições antropológicas das formas pelas quais essa densa textura do social interage com
sintomas psiquiátricos informam acerca da inelutável constituição multifatorial das doenças mentais: na
construção histórica do normal e do patológico; nas condições materiais da sua experiência e
consequente incorporação das mesmas nos seus sintomas, ou no desvendamento da sua compreensão;
na recuperação dos recursos biológicos na (re)tessitura de laços sociais; nos interesses socioeconômicos
em jogo na economia das terapêuticas e da produção das doenças. No próximo grupo de estudos,
vamos deslocar o foco dos recursos psiquiátricos e seus usos para os recursos socioculturais, naquilo que
eles oferecem de permeabilidade social às experiências de alteridade vividas por pessoas com
diagnósticos de psicose, ou ainda nas formas singulares pelas quais as pessoas jogam com os mesmos
para conviver, comunicar e socializar a sua diferença.
Subjetividades recessivas:
a elaboração e comunicação dos sentidos da loucura pelo trabalho da cultura
extremamente valorizadas na renúncia dos sadhus, sendo considerada o apogeu da vida, estariam mais
artigos
condizentes com os modos pelos quais os pacientes situavam sua experiência de alteridade. Para Corin
(2007), essa heterogeneidade estrutural no interior da cultura abre espaço para que as pessoas joguem
com a mesma na perspectiva de construírem trajetórias próprias e, no caso dos psicóticos, explorarem e
conterem seus sentidos de estranhamento e articularem um espaço de diferença. Como hipótese, ela
sugere que esses jogos teriam um efeito favorável na evolução da doença, uma das razões pelas quais o
prognóstico da esquizofrenia seria melhor na Índia quando comparado com os Estados Unidos, como
encontrado por Sartorius (1986).
Em pesquisa realizada em Cachoeira, Bahia (Nunes, 1999), foi observado que a existência e a
utilização do idioma do Candomblé por pessoas psicóticas também eram uma forma importante de lidar
com a experiência de alteridade e abria canais de relação com a comunidade, favorecendo uma inserção
social, ainda que paradoxal. Além do aspecto de comunicação, o que pareceu mais estruturante e
protetor na utilização dos recursos dessa religião foi a sua utilização idiossincrática pelas pessoas
psicóticas, de modo a dialogarem com o estranhamento da experiência, o que foi denominado de
reescrita do idioma religioso.
Essa reescrita dizia respeito ao fato de que as pessoas psicóticas estudadas, apesar de resistirem a um
enquadramento religioso enquanto adeptas e a despeito de confessarem um estranhamento acerca do
saber fazer do candomblé, desenvolviam formas singulares de utilizá-lo na sua vida cotidiana. Essas
utilizações ajudavam-nas a criar relações privilegiadas e diretas com divindades do candomblé, não
mediadas pela intervenção de líderes religiosos, nem pelas obrigações rituais tradicionais. Ao contrário,
estas eram criadas pela bricolagem desses saberes tradicionais com interpretações próprias, muitas vezes
ligadas a um imaginário psicótico, envolvendo ideias de perseguição, de grandeza ou de poderes
extraordinários. Outra utilização importante era a de nomear ou significar experiências estranhas e
ameaçadoras a partir de explicações religiosas, tais como: escutar vozes malignas como sendo a voz de
Exu; ler o pensamento dos outros como uma habilidade de um médium de audição; sentir algo
controlando a sua voz como a influência de Preto Velho; apresentar visões de animais peçonhentos
como sinal mágico; ou apresentar alterações sensoriais olfativas, o cheiro de coisas em putrefação,
como indicação de que algum feitiço tinha sido enviado para lhe fazer um mal. Outros usos seriam
aqueles situados a meio caminho entre um saber fazer tradicional e um arranjo ‘estranho’. Como
exemplos desse arranjo, observaram-se: a utilização de folhas de mariô, à moda de terreiros de
candomblé, na entrada da casa, como uma proteção contra a invasão de males invisíveis; a utilização de
flores e de garrafas de bebida, retiradas do lixo, para uma oferenda a Janaína; a receita com pimenta da
costa para esquentar a cabeça daquele que detém a guarda de um filho, perdida sob determinação
judiciária, para assim fazê-lo voltar. Todos esses usos, encontrados entre as mulheres estudadas,
mantinham-nas, paradoxalmente, em contato e em interlocução com seus vizinhos e parentes.
Entendidos como bizarrices de quem tinha o ori (cabeça) fraco, esses usos permitiam-lhes, contudo,
tornar menos aterrorizadores pensamentos intrusivos, tornar mais sagrados e nobres comportamentos
impertinentes e atribuir poder a discursos exaltados.
Outros resultados etnográficos que este estudo aporta são as convergências entre as utilizações
idiossincráticas de uma cultura pelas pessoas doentes e as brechas coletivamente construídas dessa
malha cultural que possibilitam a não-rejeição desses sujeitos. Entre essas importantes construções
culturais, destacam-se as sutis possibilidades de resgate de histórias que derraparam dessa trama
simbólica, condensadas no conceito de resgate transgeracional da desordem. Por este conceito, o
candomblé operaria a partir de uma lógica onde um indivíduo doente é imediatamente inscrito em uma
trama social de formato intergeracional. Neste, uma pessoa de segunda ou, principalmente, terceira
geração pode resgatar a desordem que caiu sobre os ombros de um dos membros antecessores da sua
família, abrindo-lhe a possibilidade de resgatar certa ordem, ou reposicionamento, no mundo social e
físico. Para isso, o membro dessa geração sucessora deve reparar o mal, realizando, ele mesmo, os
rituais ou cuidados espirituais transgredidos pelo seu familiar. Esse conceito é fortalecido por um outro, a
recessividade social da doença, proposto por Zempléni (1977), que informa essa condição não
atomizada, ou coletiva, do adoecer, que implica necessariamente outros no reordenamento do mal,
incluindo uma série de reorientações sociais e relacionais para além dos atos simbólicos.
Conclusão
As interseções pelas quais tentamos conduzir o leitor neste artigo, situadas entre história, cultura,
sociedade e biologia, buscam traduzir a doença mental nos seus nós, dificilmente desatáveis. Elas
surgem como os contornos destacados de uma paisagem, de modo a fazer ressaltar, sucessivamente,
um ou outro elemento, à moda de uma gestalt. Em certos momentos, o que sobressai são as
explicações neurobiológicas, que vêm aliviar fardos e sentimentos de culpa; em outras ocasiões, são as
tradições culturais que, na vida concreta de muitas pessoas, vão nuançar os males psiquiátricos,
tornando sintomas ‘hard’ mais leves e fáceis de dominar.
Onde quer que se situem, na perspectiva de um corpo biológico, ou naquela de um corpo social, as
várias dimensões da experiência humana realizam interseções na tentativa de produzirem significados.
Esta produção não é espúria ou periférica; ela constitui os fenômenos, atribuindo-lhes densidade. Para
compreendê-la, escolhas analíticas são feitas de forma a ultrapassar a armadilha de dispor, de modo
apenas sobreposto, as camadas que compõem a existência individual ou coletiva por cujas articulações a
experiência do adoecimento se efetua. Este artigo colocou, portanto, como objetivo examinar algumas
dessas análises, finamente construídas a partir de diferentes aportes teórico-metodológicos, nas suas
evidências empíricas das formas pelas quais se modela a espessura biopsicossociocultural do
adoecimento mental.
Nesse adensamento, vimos que as polaridades culturais do vício e da virtude podem, como diz
Hacking (1998), inscrever as doenças nos seus nichos ecológicos, e essa inscrição pode favorecer a
positivação de experiências dolorosas, pela situação do patológico em um continuum mais alvissareiro
com os excessos do normal. A compreensão desses nichos ecológicos permite, talvez, aos que sofrem
desses males, não estarem sozinhos no desvio da rota, mas perceberem os movimentos do coletivo
envolvidos na modulação dos desvirtuamentos de um tempo. Esse movimento pode remeter ao
conceito etnográfico de Zempléni, a recessividade social das doenças, mais evidenciado, segundo o
autor, em sociedades predominantemente sociocêntricas, onde os males não são apenas de
responsabilidade individual ou resultado de heranças genéticas deterministas, mas, necessariamente,
envolvem os grupos no seu enlace e desenlace. Na saúde coletiva, isso se aproximaria do conceito de
consciência sanitária, tendo este último um sentido maior de positividade e sendo fruto de uma
produção mais induzida sobre os grupos do que de uma vivência socialmente incorporada, como os
anteriores.
Nessa paisagem da saúde mental, observam-se ainda que as tramas do social atualizam as
tecnologias e incorporam-nas nas suas formas de produzir lógica, o que a clínica evidencia amplamente,
revelando o senso prático da ciência. Daí que os discursos dos progressos científicos estejam sempre
um tanto descompassados em relação aos seus efeitos sociais. A não ser que esses efeitos sejam
entendidos como os de uma ideologia favorável aos mesmos pela produção de mentalidades mais
receptivas e consumidoras de tecnologias e medicamentos, o que justifica tanto investimento midiático
e publicitário em novas descobertas.
Quanto a isso, Bourdieu (2003) chama a atenção para o fato de que uma determinada ordem social
pode ganhar eficácia pelo fato de apoiar-se sobre uma relação de dominação inscrita em uma biologia,
que é, ela mesma, uma construção social biologizada. A configuração de universalidade de certos
artigos
ordenamentos, que se impõem como autoevidentes e universais, ganhando ares de uma profunda
necessidade, pode dissimular possibilidades que escapariam, assim, do reconhecimento da falta de
justificativa. Tal como sugerido por Hoy (1999), a própria biologia, quando colocada para uso social, se
torna uma categoria socialmente construída, que pode servir para construir possibilidades sociais. Assim,
notam-se: mudanças expressivas nas nosologias psiquiátricas contemporâneas, um aumento exponencial
de pessoas diagnosticadas com novas patologias e um avassalador consumo de novas drogas. No
entanto, modulando a pretensão universalista à base desses saberes, observam-se os contornos locais
dessas mudanças, as formas de resistência às mesmas, e as refrações nos seus usos e significados
evidenciam o que chamamos de geografias clínicas.
O que se vê é que as intempéries e vicissitudes da vida concreta dos sujeitos servem de bússola a
partir das quais as pessoas lançam mão dos recursos disponíveis para desatarem os nós que tensionam as
relações humanas nas quais estão inseridas. Produzem-se o que chamamos das subjetividades
socialmente recessivas, que elaboram e comunicam os sentidos das experiências de sofrimento psíquico
pelas dobradiças do trabalho da cultura. A disponibilidade de recursos culturais, no entanto, não é assim
tão uniforme, nem são da mesma natureza de uma sociedade a outra. Os usos desses recursos
aparecem como formas de nomear, significar, tratar e negociar com os vários sofrimentos da alma, e
tendem a problematizar os regimes de verdade naturalistas. Como diz Hoy (1999, p.7, minha tradução):
«o ponto é que a invariância não precisa ser completamente negada, mas a real universalidade dessas
invariantes pode ser tão diluída a ponto de torná-las desinteressantes, ou rasa demais para responder às
mais interessantes e críticas questões» acerca das complexas experiências de pessoas que vivenciam
sofrimentos psíquicos.
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artigos
NUNES, M.O. Intersecciones antropológicas en salud mental: de los regimenes de
verdad naturalistas a la densidad bio-psico-sociocultural de la enfermedad mental.
Interface - Comunic., Saude, Educ., v.16, n.43, p.903-15, out./dez. 2012.
En la psiquiatría contemporánea, un proyecto hegemónico trans-nacional centrado
sobre un discurso naturalista acerca de las enfermedades mentales propaga un régimen
de verdad anclado en la propuesta de explicación de su fisiopatología y en el dominio
de su tratamiento. A pesar de su gran difusión, un grupo de estudios demuestra como
ese discurso repercute de forma diferente en contextos culturales específicos. Un
segundo grupo analiza las construcciones históricas de las enfermedades mentales,
definiendo polaridades culturales que valorizan como virtuosos o viciosos
determinados comportamientos. Un tercer grupo analiza los usos de recursos culturales
como un modo de negociar experiencias de alteridad, produciendo contextos más
abiertos a la diferencia. Este artículo es una revisión de esas perspectivas, destacando
intersecciones entre historia, cultura, sociedad y biología en la base de las
enfermedades mentales.
Palabras clave: Antropología médica. Enfermedad mental. Utilización de medicamentos.
Construcción social. Alteridad.
artigos
na região centro-oeste do município de São Paulo:
a relação entre CAPS e UBS em análise
ARAUJO, A.K.; TANAKA, O.Y. Evaluation of the reception process in mental healthcare
in the central-western region of the municipality of São Paulo: analysis of the
relationship between psychosocial care centers and primary healthcare units. Interface -
Comunic., Saude, Educ., v.16, n.43, p.917-28, out./dez. 2012.
Introdução
Uma investigação, seja ela de qualquer natureza, deve surgir a partir de um incômodo naquele que
pretende descobrir algo. A Saúde Mental sempre foi um campo bastante fértil para descobertas, uma
vez que se caracteriza como uma área que suscita várias perguntas em quem participa de seu universo.
A investigação à qual o trabalho se destina encontra sua fundamentação no próprio processo
histórico no qual participam os serviços de Saúde Mental (Brasil, 2001a, 1992, 1988, 1986), pois se trata
de uma avaliação dos mesmos. A avaliação em serviços de saúde tem sido cada vez mais exigida no
expediente da academia e nos próprios serviços de saúde, por se tratar de uma ferramenta capaz de
desvelar problemas e identificar soluções (Onocko Campos et al., 2008).
O campo da Saúde Mental, herdeiro de uma história ligada à loucura e às tentativas de se lidar com
ela (Foucault, 1978), vem, nos últimos vinte anos, produzindo diversas mudanças nos serviços de saúde
mental (Brasil, 2002, 2001b), como consequência de diversos movimentos ocorridos na sociedade
brasileira e que têm causado transformações significativas na concepção de sofrimento mental, assim
como na prática que o seu cuidado demanda (Brasil, 2004).
Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), serviços de saúde que se constituíram como
equipamentos substitutivos a um modelo manicomial, centralizam as transformações na área e
condensam trabalhadores que pleiteiam por inovações no modo de cuidar (Brasil, 2004, 2002).
Com respeito a esta investigação, o incômodo que interpelou o investigador situa-se sobre as
práticas dos trabalhadores da Saúde Mental. Estes sujeitos que dedicam suas vidas a cuidar das pessoas
que experimentam algum sofrimento psíquico têm suas práticas envoltas sobre ideais e realidades
controversos. Entre limites e possibilidades muitas vezes de difícil identificação.
Estas dificuldades se apresentam em forma de barreiras que os trabalhadores encontram em superar
um modelo antigo, de fugir à lógica que o encerra (Desviat, 1999). Em outras palavras, a investigação
pondera sobre a própria transição desses modelos: o manicomial, com seus modos próprios de fazer; e
o antimanicomial – também chamado de psicossocial, ou substitutivo, empreendendo diferentes
maneiras de produzir saúde (Costa-Rosa, Luzio, Yasui, 2001).
Com este incômodo presente, o trabalho dedica-se ao objetivo de promover um diálogo com uma
rede de saúde mental na região Oeste da cidade de São Paulo, tentando, com isso, entender como o
processo de acolhimento se apresenta na citada região.
O acolhimento é tomado por objeto de estudo por se constituir em um dispositivo que expressa as
transformações que os serviços de saúde vêm desenvolvendo no tocante às suas práticas. Desta forma,
o entendimento sobre o estabelecimento do acolhimento, bem como os processos a ele concernentes
e a percepção dos trabalhadores quanto a estes fenômenos, passaram a ser os objetivos desta
investigação.
Por se tratar de uma avaliação de serviço, torna-se importante delinear qual a perspectiva de
avaliação que o trabalho compartilha. A avaliação em saúde pode ser considerada como um processo
que visa à medição, comparação e à emissão de um juízo de valor (Tanaka, Melo, 2001). Sendo esta
última dimensão a que se apresenta passível de uma intersecção.
Mas como se chega a esse juízo de valor? A hermenêutica (Gadamer, 2008) pode contribuir com
esta discussão já que atribui à linguagem a característica eminentemente humana de se chegar a tal
juízo, através das mediações possíveis que vão acontecer no mundo de compartilhamentos da
experiência humana. Isto é, o juízo de valor é presumido a partir da experiência própria que o
intérprete estabelece com aquilo que pretende interpretar. Neste sentido, não se trata de confiar o
entendimento a uma metodologia, conforme a ciência moderna acostumou-se a fazer, mas identificar
os elementos que participam das relações que produzem determinado valor para determinado sujeito,
em um contexto também determinado.
Assim, o resultado que se pretende com a hermenêutica não visa uma verdade absoluta, mas uma
aproximação da realidade. O valor da avaliação, ou, na concepção hermenêutica, a validade do
conhecimento que surge, está colocado sobre a relação que o intérprete estabelece com a coisa – seu
objeto de análise – partindo de seus conhecimentos prévios num movimento dialético com o enunciado
por este objeto.
artigos
acerca do tema investigado, e as possíveis respostas são colocadas em suspensão de sentido, para que o
novo, ou o juízo, possa ser emitido, tendo-o sempre como uma aproximação que se dá em um tempo
e espaço determinados, e podendo ser “re-questionado” sempre.
No entendimento de Ayres (2008), a avaliação em saúde deve enfocar a dimensão prática do
cotidiano, ou seja, as relações microscópicas, e não macroscópicas, no acontecer do fazer saúde. Para
este autor, avaliar segundo a hermenêutica é considerar que a linguagem é diálogo. Trata-se de um
modo de participar do mundo vivido; a essência do diálogo está na dialética da pergunta e resposta; e a
verdade seria alcançada por meio da fusão de horizontes.
Para tanto, é preciso recorrer ao conceito de aplicação hermenêutica, que, segundo o autor, é o
próprio tema da conversa que acontece (Ayres, 2008). No caso específico desta pesquisa, o tema é
acolhimento, e este se constitui no elemento precipitador dos questionamentos.
Quando se visitam apontamentos sobre o tema aqui proposto, o acolhimento, e o identificam como
um processo capaz de operar mudanças no modelo assistencial em saúde (Franco, Bueno, Merhy,
1999), percebe-se que estas características estão presentes e guardam a potencialidade de se aproximar
da realidade a partir da aplicação proposta, isto é, chegar à compreensão de como o acolhimento tem
acontecido em determinada região, composta por serviços de saúde específicos e prestando
atendimentos com características peculiares.
Todas essas especificidades oferecem um desenho único, que carrega uma singularidade na
apreensão de sua verdade. E, ao mesmo tempo, têm a potência de, a partir desse singular, se abrirem
para o universal em forma de linguagem (Gadamer, 2008) e, assim, se chegar à validade da avaliação.
O acolhimento tem se mostrado uma palavra bastante frequente no cotidiano dos serviços de saúde,
no entanto, quando se verificam alguns trabalhos acerca do assunto, logo se percebe a utilização dessa
palavra para designar processos de trabalho que mantêm sua operacionalidade muito próxima do que se
conhece por triagem, como pontuam Cunha e Vieira-da-Silva (2010), Souza (2008) e Campos (1998);
e, embora o vocabulário entre os profissionais tenha se alterado, o fazer permanece mediado por uma
lógica de princípios diferentes.
A diferença nos princípios pode ser balizada sobre a discussão com respeito ao que se objetiva com
uma ou outra modalidade de intervenção. Isto é, o usuário que busca o serviço de saúde o faz movido
por seu problema de saúde. O profissional que o recebe – e, sobretudo, como recebe –, o faz mediado
pelo que sabe fazer em saúde.
A partir da 8ª Conferência Nacional de Saúde (Brasil, 1986), estabelecida como marco histórico de
construção do SUS, definem-se os princípios de uma saúde pública como direito de todos e em defesa
da vida. Estes princípios implicam diretamente alterações operativas quanto ao trabalho em saúde.
Cabe apontar que já nesta Conferência é debatido que, para a concretização destes princípios, novos
parâmetros devem ser construídos; bem como os paradigmas dos quais a saúde se serve devem ser
alterados. É a propósito dessas transformações que se torna importante a discussão sobre as tecnologias
relacionadas às práticas que acontecem no interior da rede de cuidados.
O conceito de tecnologias adotado se refere a uma ação intencional no mundo e mediada por uma
racionalidade (Franco, Merhy, 2003). Segundo esta compreensão, as tecnologias seriam capazes de
capturar os objetos e transformá-los em bens/produtos (Merhy et al., 1997); no caso da saúde, a própria
sanidade dos agravos seria seu produto, ou os elementos simbólicos oriundos das relações estabelecidas
entre os profissionais e os usuários dos serviços.
Para Merhy (1997), há uma diferenciação entre o trabalho morto, cujos produtos já estão acabados –
por exemplo, as medicações ou os procedimentos – e o trabalho Vivo em Ato, o qual se dá na própria
relação estabelecida – seria o trabalho que “acontece acontecendo”, mediado pela atuação dos agentes
e se constituindo em trabalho sempre novo e criativo.
Conforme esta abordagem, haveria três maneiras de o processo de trabalho se apresentar: as
tecnologias duras, que se constituem como equipamentos tecnológicos, normas e estruturas
organizacionais; as tecnologias leve-duras, que dizem respeito aos saberes estruturados; e as tecnologias
leves, que são basicamente tecnologias das relações, produzindo vínculos, autonomização, e
acolhimento.
Desta maneira, a triagem representa uma modalidade específica de fazer saúde, ligada à lógica do
saber médico hegemônico (Franco, Merhy, 2005), o qual se tornou, com o avanço do capital, cada vez
mais dependente de tecnologias duras, encerrando a assistência em saúde em prescrições
medicamentosas, produção de exames, e encaminhamentos a especialistas. Posicionando, assim, os
usuários dos serviços como organismos biológicos, e seus problemas de saúde como objetos de saberes
cada vez mais segmentados (Ayres, 2002).
Por outro lado, o acolhimento, neste panorama, passa a ser discutido como uma diretriz operacional
(Franco, Bueno, Merhy, 1999), isto é, potencialmente transformador desses paradigmas, pois tenta
concentrar estes princípios na concretude do cotidiano dos serviços, mantendo uma centralidade sobre
as tecnologias leves.
Franco, Bueno e Merhy (1999) compreendem o acolhimento como um espaço intercessor que
produz uma relação de escuta e responsabilização; a primeira garante a formação de vínculo com o
usuário e a segunda traduz-se como o compromisso com os projetos de intervenção que surgirão dessa
relação. Desta forma, é através desse espaço que o trabalhador utilizará sua tecnologia, seu saber, e
onde o usuário se verá como sujeito da produção de sua saúde, e não um mero objeto de um saber
impessoal.
A penetração desses princípios na realidade dos serviços de saúde, para além da mudança na
nomenclatura de velhas práticas, produzindo uma efetiva transformação dos mesmos, converte-se em
um processo que precisa ser explorado e entendido.
O problema da alteração na linguagem sem a correspondente alteração nas práticas, ou as
dificuldades que os serviços atravessam para a implementação do processo de acolhimento, de maneira
a produzir saúde de forma mais resolutiva, mais integralizada, mais econômica e mais humanizada,
passam a ser uma necessidade premente para a saúde pública.
Método
Partindo destas perspectivas, o trabalho construiu um caminho metodológico que estabeleceu três
fases, chamadas de giros, em alusão ao círculo hermenêutico que fundamenta o tratamento dos dados.
Trata-se de uma pesquisa que lida com dados secundários, isto é, houve um outro momento de
coleta de dados, realizados em pesquisa anterior que data de 2006. Os dados foram construídos em
forma de narrativa, a partir da seguinte questão: como é o serviço de saúde mental em que trabalha?
Esta pergunta foi feita a seis profissionais de três serviços diferentes. Sendo um auxiliar de enfermagem
e um médico clínico geral, de uma UBS que não possui equipe de saúde mental; um psicólogo e um
médico psiquiatra de uma UBS com equipe de saúde mental; e, finalmente, um psicólogo e um médico
psiquiatra do CAPS adulto da região.
O Primeiro Giro – a construção das linhas de argumentação. Iniciou-se a partir dos relatos. Foi
possível construir três linhas de argumentação. Partindo da noção de fusão de horizontes (Gadamer,
2008), foram questionadas as narrativas acerca do acolhimento. Como se parte do princípio (concepção
prévia) segundo o qual acolhimento seria um espaço intercessor (Franco, Bueno, Merhy, 1999), onde há
uma relação entre subjetividades, o elemento vínculo se tornou um importante analisador deste
aspecto, pois sobre ele se situam as ligações entre os sujeitos envolvidos. Outra faceta do acolhimento
foi considerada quando este é descrito como diretriz operacional do serviço (Franco, Bueno, Merhy,
1999), isto é, como ferramenta capaz de reorganizar a rede de cuidados. Dessa forma, se estabeleceu a
articulação da rede como outro elemento de análise.
Portanto, o primeiro contato com os relatos guia a interpretação por meio dessas três linhas de
argumentação: vínculo, acolhimento, e articulação da rede.
Uma primeira visita aos dados, enquanto um todo sendo questionado pelas linhas de argumentação,
direcionou o trabalho para a reconstrução das narrativas, em um primeiro momento individualizadas,
relato por relato.
Esta etapa foi eminentemente interrogativa, ou seja, são construídos vários questionamentos aos
dados, criando um debate com eles; cumprindo com a premissa segundo a qual a compreensão nunca é
artigos
Assim, se promove um choque que produz algo novo a partir das perguntas guiadas pelas linhas de
argumentação.
Este choque se dá no decorrer do diálogo com os dados, pois a necessidade de contrapô-los com
pressupostos teóricos vai se desenhando, o que possibilita às narrativas permanecerem abertas às
perguntas que vão sendo levantadas. Isto faz essa fase ser marcada por uma presença bastante
frequente dos discursos, tal como são emitidos pelos sujeitos.
Segundo Giro – a busca pela univocidade. Este segundo momento foi permitido pela abertura
causada pela fase anterior. Nesta etapa do processo de interpretação, o caminho segue para o
assentamento das questões apresentadas, em busca do entendimento sobre como os elementos
abordados são aplicados à realidade local.
Esta fase da interpretação baseou-se na tentativa de responder às diversas questões levantadas na
fase anterior. As linhas de argumentação continuaram guiando a análise, mas agora não mais pelas
partes, senão na busca por uma univocidade dos dados, isto é, trazendo fala à rede como um todo, e
em relação. Com isso, alguns aspectos que foram sendo questionados e contrapostos com teorias
tornavam-se mais explícitos, ou – consoante com a hermenêutica – se destacavam no processo.
Para Gadamer (2008), conseguir ver além depende da relação em que se colocam os horizontes, a
partir deste processo a compreensão se faz possível.
O diálogo proporcionado entre os dados e o intérprete produziu o surgimento de pontos não vistos
ou percebidos anteriormente. E foram estes pontos considerados aquilo que se conservou no processo
de produção do trabalho hermenêutico. Assim, foi possível levar estes novos elementos à discussão dos
resultados, de forma a lapidá-los nesta que foi considerada a última fase do processo interpretativo.
Terceiro Giro – o destaque. Esta fase recebeu o nome de discussão dos resultados, pois evidenciou
aquilo que permaneceu em aberto no decorrer de todo o trabalho. Longe de esgotá-los, o caminho do
pensamento erigido no trabalho permitiu trazê-los à luz ou dar-lhes forma.
Os resultados foram construídos em forma de quatro categorias, e esta construção se deve à
possibilidade de funcionarem como analisadores da rede, isto é, elementos capazes de apontar
características semelhantes em outras regiões e serviços. Cumprindo, assim, com o objetivo da
interpretação, que é promover uma aproximação com a realidade.
Discussão e resultados
A análise possibilitou notar que os profissionais entrevistados se encontram com suas práticas
distantes do que vem sendo preconizado para serviços de saúde acolhedores, responsáveis e
integralizadores do cuidado dos usuários. E que esta distância está diretamente ligada à ausência ou
presença de equipes de saúde mental nos serviços, o que evidencia a contribuição que um modelo
diferenciado do hegemônico pode trazer à rede de cuidados.
A análise buscou confrontar os paradigmas implícitos nestas características e, desta forma, alguns
elementos surgiram a partir da investigação e do diálogo empreendido com os dados, são eles:
a) ausência;
b) mistura;
c) tecnologias;
d) integralidade.
Optou-se pela exposição em forma de categorias, e estas são dispostas conforme sua ordem de
aparecimento no decorrer da discussão; contudo, entende-se que há uma relação entre os fenômenos
no cotidiano do serviço, se constituindo, assim, em elementos importantes para se considerar, em
termos de aplicação: o vínculo, o acolhimento e a articulação da rede.
Ausências. Conforme o trabalho foi avançando na busca pela compreensão do objeto em estudo, a
sensação de que nas diversas falas havia uma espécie de ausência relatada pelos profissionais
evidenciou-se. Em determinados momentos, se tentou dar forma a esses fenômenos. São expostos
abaixo três exemplos extraídos dos relatos de distintos profissionais que apontam para esta tentativa,
cada qual de um equipamento de saúde – a UBS A, sem equipe de saúde mental; a UBS B, com equipe
de saúde mental, e o CAPS, respectivamente:
Essas tentativas surgem nas falas como ausências de recursos humanos, materiais, dificuldades
comunicativas, incoerências entre os profissionais ou unidades etc.
Este raciocínio acabou levando ao entendimento de uma ausência estrutural, dizendo respeito à rede
que se desenhava conforme as argumentações erigidas.
O aporte teórico adotado não possibilitou encontrar elementos correlatos que pudessem ser
confrontados, ou mesmo conceitos que pudessem subsidiar o entendimento dessas ocorrências. Neste
sentido, o contexto no qual estas ausências são manifestadas diz respeito ao trabalho inserido em uma
instituição, um serviço de saúde, composto por profissionais dessa área. Se estes sujeitos passam a ser
entendidos como integrantes de um grupo e se recorre à Psicanálise para se pensar essa rede como o
lugar da ausência, alguns apontamentos podem ser construídos em busca de uma elucidação do referido
fenômeno.
Quando se questiona sobre o sentido, o objetivo, ou o motivo de existência de um serviço de
saúde, uma resposta bastante comum pode ser expressa: serve para cuidar da saúde. Se as ausências
são várias vezes repetidas pelos profissionais, depreende-se daí que sua intenção, de cuidar da saúde,
não tem alcançado sua finalidade.
Em Psicologia de Grupo e Análise do Ego, Freud (2006) apresenta como os grupos são capazes de se
organizar em função de uma autoridade, podendo esta ser representada por uma pessoa, um setor, ou
uma ideia. E mais, esta autoridade tem a função de, por seu caráter ambivalente, oferecer medo e
proteção ao mesmo tempo; manter todos os indivíduos sob seu domínio, com o desejo individual
inibido em sua finalidade.
O desejo inibido não garante que se alcance a satisfação, mas reproduz a promessa que isso seja
possível. Em outras palavras, todos agem submetidos à voz da autoridade, permanecendo na falta
(ausência) da consecução do desejo, neste caso, a produção do cuidado.
As tecnologias duras, assim, se apresentam como a autoridade que oferece a proteção da verdade a
priori (Gadamer, 2008), gerando a manutenção/reprodução do modelo centrado no médico e em
procedimentos (Franco, Merhy, 2005).
Freud (2006, p.139) considera que o indivíduo, quando inserido em um grupo, passa a compartilhar
de seu ideal e se submete à ideia ali preponderante, esta “necessitando somente fornecer uma
impressão de maior força [...]”.
E, neste sentido, o trabalho mostrou como as tecnologias duras ainda mantinham sua força sobre a
rede de cuidados, toda organizada em função desse paradigma, identificado nos relatos dos profissionais
das diferentes unidades analisadas.
Mistura. Assim como no caso das ausências, o termo mistura não se trata de um conceito teórico
ou técnico, mas de uma palavra com potencial de representar um fenômeno presente na rede
estudada.
A concepção de Reforma Psiquiátrica traz, em seu bojo, um processo histórico marcado por uma
tentativa de mudança de um modelo de atenção ao sofrimento mental, fugindo da lógica
artigos
sociabilidade, como se pode verificar no tema da III Conferência de Saúde Mental (Brasil, 2001a), que é
“cuidar sim, excluir não”.
No entanto, a rede demonstra existir uma verdadeira mistura entre os modelos: o antigo, que
mantém primazia sobre o atendimento médico e todos os procedimentos a ele correlatos, e o modelo
novo, substitutivo.
No CAPS analisado, essa mistura foi mais evidente, não gratuitamente, pois este equipamento foi
pensado e empreendido com a finalidade de ser o dispositivo “substitutivo” ao hospital psiquiátrico.
Tornando-se, assim, o serviço que carrega os dois modelos misturados, como um momento deste
processo de substituição que se pretende aplicar.
Esta situação é identificada no relato do profissional do CAPS:
“Depois da Portaria 336, o CAPS foi regulamentado como sendo a referência para todos os
casos de Saúde Mental. Desde então, a equipe se achou obrigada a manter a ‘porta aberta’,
e garantir pelo menos uma primeira escuta à demanda que recebe”. (Psicólogo)
Verifica-se, na passagem, que a “porta aberta” não se constitui como um momento da atenção
tendo o usuário como centro do cuidado, mas como uma obrigação jurídica externa que se sobrepôs à
dinâmica do serviço.
Esta mistura, por vezes, foi debatida como o que teoricamente foi chamado de transição tecnológica,
na transformação dos modelos de atenção à saúde mental. Como um produto da luta invisível que
acontece entre a visão hegemônica manicomial e a contra-hegemônica antimanicomial.
No entanto, a transição tecnológica implica um investimento social, cultural, político e subjetivo
sobre o núcleo tecnológico, com o objetivo de torná-lo leve dependente (Franco, Merhy, 2003); e este
compromisso não foi verificado na rede analisada. Por este motivo, a mistura foi situada como um
fenômeno próprio da convivência de dois modelos, tendo o contra-hegemônico sido empreendido de
maneira normativa, e não como um investimento institucional.
Tecnologias. A discussão sobre as tecnologias no processo de trabalho analisado importou, do
modelo de Defesa da Vida, as concepções para se debaterem as práticas da rede. Esta adoção se deu
pelo entendimento de que o referido modelo mantém subjacentes elementos da Reforma Sanitária
(Brasil, 1986), da mesma forma que a Reforma Psiquiátrica (Brasil, 2001b). Com esta perspectiva, o
trabalho aderiu aos apontamentos teóricos que identificam a necessidade do investimento em
tecnologias leves como uma possível solução para questões como a ausência e a mistura acima
descritas; no primeiro caso, porque aumentaria a força e a liberdade (com poder de decisão) do
trabalhador; e, no segundo caso, porque objetaria a mudança no núcleo tecnológico.
Embora as tecnologias leves se apresentem como um instrumento capaz de operar mudanças
significativas na rede de cuidados, de forma a aumentar o coeficiente de vínculo e responsabilização,
produzir serviços mais acolhedores e trabalhar em favor da integralidade do cuidado (Franco, Bueno,
Merhy, 1999); ainda demonstra fragilidades, sobretudo quando se pensa em sua penetração nas práticas
de saúde, após mais de uma década da criação do SUS. E há muito a ser desenvolvido para superar as
ausências e misturas que sua implementação provoca sobre o modelo de atenção e às práticas nele
inseridas.
Integralidade. A rede analisada pode ser comparada a um arquipélago, composto por ilhas, e
caracterizada apenas por sua localização em uma mesma região, mas sem comunicação entre elas.
A apresentação dessa rede pode ser expressa segundo sua distância com relação ao que é
preconizado pelas diretrizes da Reforma Psiquiátrica.
A unidade mais distante, UBS A, apresenta-se, segundo relatos, como um local onde procedimentos
enrijecidos pelas normas e tradição técnica se sobressaem. Por exemplo, quando o usuário chega com
queixa de saúde mental, a indicação que se tem é encaminhar ao PS local, lugar onde as decisões são
tomadas.
Esse procedimento feito a priori foi relatado por ambos os trabalhadores entrevistados: o auxiliar de
enfermagem, que reproduz o discurso da ordem: “saúde mental tem que encaminhar para o PS”; e o
clínico geral, que se vale do conhecimento técnico para justificar o procedimento, segundo ele: “o
saber sobre saúde mental é atribuído à psiquiatria”.
A única rede que se configura a partir dos discursos é o fluxo da UBS A para o PS, sem outras
comunicações.
Na UBS B, foi identificada uma possível divergência entre o trabalho do médico e de seu colega de
unidade, o psicólogo, pois o primeiro mantém presente a primazia do PS, enquanto o segundo
direciona-se mais ao CAPS. Contudo, essa divergência é esclarecida quando se entende o processo de
trabalho no interior da UBS.
Segundo o médico psiquiatra, a UBS B tem o seguinte fluxo: recebe pacientes do Hospital Central e
do Hospital Universitário através da marcação de consultas. Após avaliação, se o usuário não for
conhecido, encaminha para o PS e esse decide se encaminha para o CAPS ou para hospital fechado. Se
for conhecido e conforme a necessidade avaliada pelo médico, encaminha para psicoterapia com o
Psicólogo da própria UBS, ou diretamente para o CAPS. Logo, o PS mantém-se como o centro decisório.
Quando analisada a fala do Psicólogo, atentou-se para o fato de ele omitir o PS e estabelecer uma
comunicação bastante rica com outros recursos, dando a impressão de tentar uma atenção integral.
As conversações acontecem com maior frequência nessa unidade, denotando que a perspectiva da
Reforma Psiquiátrica tem avançado sobre a rede, não sendo ainda capaz de superar o modelo antigo,
mas causando sobre ele algumas alterações consideráveis. O fluxo se mostra da seguinte forma: da UBS
para o CAPS, mediante contato telefônico; da UBS para o CAPS ad, quando o caso se tratar de
dependência química; da UBS para clínica de psicoterapia da Universidade; da UBS para Ambulatório de
especialidades; da UBS para outros recursos da comunidade, como ONGs, CECCO, oficinas etc.
Ao contrário da primeira UBS, portanto, a UBS B apresenta-se mais comunicante e ofertando maiores
possibilidades de espaços de convivência e produção de saúde com produção de subjetividade.
Quando se chega ao CAPS, seu fluxo é descrito da seguinte forma pelo psiquiatra: recebe
encaminhamentos do PS local, o centro decisório, como abordado. Recebe também usuários
encaminhados por outros PS. Além dos pronto-socorros, as UBSs também encaminham para o CAPS,
contudo, pela análise das ausências verificadas, possivelmente daquelas que possuem equipe de saúde
mental, pois a UBS A deixa claro que a norma é encaminhar ao PS primeiro.
Uma vez no CAPS, existe o que o médico nomeia de triagem, da qual ele participa e, segundo
avaliação, oferece encaminhamento. Essa avaliação leva o usuário para o tratamento ofertado pelo
próprio serviço, ou, em outros casos, para a clínica de psicologia da universidade, para as UBSs ou outros
serviços da região.
O psicólogo, por sua vez, define a rede da seguinte maneira: recebe os encaminhamentos e,
conforme a gravidade verificada pela descrição do mesmo, direciona o usuário para a recepção, feita em
grupo e destinada aos casos mais leves; ou para a triagem, realizada individualmente e reservada a casos
mais graves. Essa segunda forma de recepção tem a participação do médico e, possivelmente, se trata
do mesmo procedimento descrito acima e com o mesmo nome.
Se os usuários não forem inseridos para o tratamento no CAPS, são encaminhados para a UBS de
referência, ou para a clínica da Universidade, ou mesmo para outros recursos da região, como CECCO,
terapia comunitária, outros locais onde há psicoterapia, ONGs, cursos, oficinas etc.
Nessa unidade, percebe-se que ambas as descrições coincidem, e, embora se possa problematizar a
maneira como são realizadas e o paradigma que as inspira, essa coincidência denota uma maior
comunicação entre os atores envolvidos. Pode-se dizer que a coincidência é produto da comunicação,
uma vez que o serviço estabeleceu uma dinâmica que tem sido respeitada pela equipe.
Com relação à comunicação e a necessidade do diálogo entre os atores envolvidos, é interessante
notar que o fluxo aqui descrito se aproxima bastante da UBS B, que possui equipe de saúde mental. Essa
aproximação, quando tangenciada para a questão comunicativa da rede, oferece indícios de que o
trabalho de inter-relação entre os serviços CAPS e UBS B, mediado pela linguagem, é responsável pelo
trânsito seguro do usuário na rede (Franco, Merhy, 2003).
A maior incidência comunicativa coloca o trabalhador como o agente fundamental na constituição do
cuidado e na busca pela integralidade do mesmo. Utilizou-se como metáfora da rede analisada sua
semelhança com um arquipélago, contendo ilhas separadas pelas especialidades, que apenas
permanecem próximas, mas sem comunicação. Mas quando se volta o olhar para a potencialidade dos
artigos
trabalhadores em reduzir esse distanciamento por meio da comunicação, percebe-se que ela se
apresenta como o elemento condutor, ou a linha que estabelece o laço entre os serviços para buscar a
resolutividade. Esse laço comunicativo, exclusivamente entendido como tecnologia leve, surge como o
elemento capaz de promover a integralidade dessa rede não comunicante.
A visão médica hegemônica, produtora de procedimentos e consumidora de insumos tecnológicos,
empobrece a clínica, reduzindo-a à realização de exames, prescrição medicamentosa e
encaminhamentos a especialidades. Essa escassez no uso das possibilidades clínicas minimiza a
resolutividade na UBS e reproduz, no caso da saúde mental, a lógica manicomial, consoante com o
paradigma de busca por especialidades.
O CAPS em questão é concebido, pelos outros serviços da rede, como um hospital psiquiátrico,
concentrando todos os casos de saúde mental, embora sua equipe tenha apresentado alguns avanços
qualitativos.
A convivência de mais de um modelo foi apresentada como ponto central nas dificuldades de
estabelecimento de vínculos, instituição do acolhimento conforme diretrizes do Ministério da Saúde e
articulação da rede baseada na resolutividade e na integralidade.
Identificou-se ainda que essa mesma convivência propicia iniciativas contra-hegemônicas ou
instituintes, ou, mesmo, de transição tecnológica. Ficou claro o limite que as tecnologias duras
apresentam em promover a integralidade dos serviços, uma vez que se baseiam na reprodução de um
modelo que não coloca o usuário como centro do trabalho realizado. Ao passo que o investimento na
comunicação e nos espaços de diálogo pode se apresentar como a ferramenta capaz de construir as
pontes necessárias entre as ilhas da rede em análise e proporcionar o trânsito seguro e cuidador do
usuário entre elas.
Pessoas são capazes de atingir pessoas através da linguagem. Toda conversação pressupõe uma
linguagem comum, ou melhor, toda conversação gera uma linguagem comum (Gadamer, 2008). Se
integrar é unir, a linguagem é o meio de união, transformando os diversos serviços que compõem uma
rede de cuidados em apenas um emaranhado, cujo objetivo principal seja o cuidado ao usuário.
O trabalho mostrou que onde ocorrem mais trocas mediadas pela linguagem entre os profissionais,
maior a unidade do serviço e sua comunicação com os demais recursos da rede, isto é, maior a
integralidade do cuidado.
A linguagem é o que subjaz às tecnologias leves, relacionais, pois estas buscam a criação de espaços
de fala e de troca de saberes. Isso reduziria as ausências, pois alcançaria a satisfação do desejo de
cuidado; a linguagem comum diminuiria as misturas, já que essas são produto da convivência de, pelo
menos, dois modelos, com linguagens diferentes, mas buscando a fusão, a unidade.
Conclusões
Partindo da potência identificada sobre o processo de acolhimento, a pesquisa estabeleceu como seu
objetivo geral avaliar a aplicação do mesmo em uma região determinada do município de São Paulo.
E, por se tratar de um campo específico – a Saúde Mental –, o olhar avaliativo se voltou para as UBS
e para o CAPS daquela região. Assim procedendo, tentou-se compreender como os profissionais
percebem suas práticas nestas unidades de saúde.
A avaliação em serviços de saúde foi tratada como a emissão de juízos de valor, neste caso, com
respeito ao processo de acolhimento; e, para isto, empreendeu-se o caminho metodológico da
Hermenêutica Filosófica, por esta abordagem se apresentar como uma maneira adequada de se
alcançarem os objetivos.
No que concerne ao acolhimento nos serviços estudados, este esteve vinculado a um outro processo
de trabalho, representante do modelo centrado sobre a figura do médico e de seus procedimentos,
trata-se da triagem. Foi realizada uma revisão bibliográfica anteriormente e alguns trabalhos mostraram
que estas duas práticas apresentam-se com esta proximidade. A pesquisa mostrou resultados
semelhantes com relação a isso, com o complicador que, em algumas unidades, a triagem era aplicada
e, ao mesmo tempo, levava o nome de acolhimento, sem, com isso, alterar significativamente as
práticas, não possibilitando o espaço de fala, não reorganizando a rede de cuidados e não investindo em
vínculos com os usuários.
Desta forma, a pesquisa partiu da análise das narrativas produzidas pela pergunta primaz: como é o
serviço de saúde mental? E trilhou um caminho de pensamento interrogativo aos dados coletados,
seguindo os fios condutores: vínculo, acolhimento, e articulação da rede. Este caminho empreendido
necessitou ser confrontado com teorias e argumentações sobre as práticas de saúde, produzindo os
círculos hermenêuticos, nos quais se transita diversas vezes pelo mesmo objeto. E, neste caminho,
alguns destaques puderam ser construídos.
Alguns elementos vieram à luz como respostas aproximadas à pergunta primaz. Em resumo, o
trabalho pode mostrar que os serviços de saúde da região analisada produzem uma sensação de
ausência; convivem com uma mistura de modelos; mantêm tecnologias duras na produção de
saúde; e não são eficientes quanto à integralidade.
Assim, a pesquisa apresentou um retrato de como o acolhimento e demais elementos participantes
deste processo puderam ser aplicados naquela região e naquele momento histórico. É importante frisar
que, embora a investigação tenha se fundamentado no princípio ético da pesquisa qualitativa, segundo
o qual a descrição dos processos de manejo dos dados deve primar pela clareza e fidedignidade, um
limite deve ser pontuado, e diz respeito à época em que os mesmos foram coletados, no ano de 2006;
assim como à distância temporal para sua análise.
A Hermenêutica Filosófica proporciona um diálogo profícuo com material de qualquer época, mas
entende que é, no próprio processo de interpretação, que o objeto pode ser atualizado.
Neste sentido, entende-se que os resultados apresentados têm o potencial de serem confrontados
em futuros trabalhos; e, da mesma forma, podem ampliar o olhar sobre a temática do acolhimento se
forem considerados como elementos participantes do mesmo.
Colaboradores
Os autores trabalharam juntos na concepção, delineamento, análise, interpretação dos
dados e redação do artigo.
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Este articulo relata la experiencia de evaluación de la recepción en salud mental en São
Paulo-SP. Fueron utilizadas entrevistas con trabajadores de uno Centro de Atención
Psicosocial (CAPS) y dos Unidades Básicas de Salud (UBS). Objetivó comprender la
recepción, la percepción de los empleados y la identificación de los lazos y la
coordinación de la red. Fue utilizado como método la hermenéutica filosófica para
identificar qué elementos de la recepción se destacan. Procedió al análisis de las
narrativas partiendo de tres líneas de argumentación: lazo, recepción, y conexión de
red. Los resultados llegaron en forma de cuatro categorías: sensación de falta, modelos
mixtos, primacía de tecnologías duras, atención integral ineficiente. La discusión
mostró una relación entre estas categorías, colocando la inversión en tecnologías
blandas como el centro del debate para superar el sentimiento de falta, la mescla de
modelos, y para la construcción de una atención integral.
Palabras clave: Evaluación. Salud Mental. Acogimiento.
artigos
e análise coletiva de problemas de saúde pública
com a linguagem teatral: o caso das oficinas de jogos teatrais sobre a dengue
Denise Figueira de Oliveira1
Cínthia Cristina Resende Mendonça2
Rosane Moreira Silva de Meirelles3
Claudia Mara Lara Melo Coutinho4
Tania Cremonini Araújo-Jorge5
Mauricio Roberto Motta Pinto da Luz6
Introdução
A dengue é a principal arbovirose da atualidade, além de ser a que mais rapidamente se espalha,
afetando cerca de cinquenta milhões de pessoas anualmente em mais de cem países das regiões
tropicais e subtropicais (Guzman, Isturiz, 2010). As limitações ao controle da dengue no Brasil - e no
mundo - são muitas: desde ausência de vacinas, à intensidade da circulação e à diversidade de sorotipos
do vírus; o favorecimento climático ao vetor, suas modificações genéticas, a capacidade de adaptação
do vetor às mais diversas circunstâncias; a urbanização explosiva; a vulnerabilidade socioambiental
associada a regiões economicamente frágeis, até a iniquidade social e a debilidade dos sistemas
sanitários (Schweigmann, Hernandez-Suares, Cool-Cardenaz, 2009).
A ineficácia de ações baseadas em tentativas de controle sistemático de formas adultas do vetor é
conhecida desde a década de 1980 (Gubler, Clark, 1996). Estudos empíricos comparativos indicam que
ela pode ser menos efetiva do que ações educativas (Espinoza-Gomez et al., 2002). Em contrapartida, a
importância da participação comunitária no controle da dengue, mais especificamente na eliminação de
criadouros domiciliares e urbanos do vetor, tem sido destacada (Toledo-Roman et al., 2007; Oliveira,
1998), com particular atenção a ações envolvendo escolas e o engajamento de alunos como agentes
educativos na comunidade (Jayawardene et al., 2011; Maciel et al., 2010; Madeira et al., 2002).
Segundo Gubler e Clark (1996), objetivos relacionados ao controle efetivo da dengue possivelmente só
serão alcançados a longo prazo e com a participação da comunidade também nas etapas de
planejamento, e não apenas na execução das ações de controle.
O controle e prevenção da dengue necessitam de engajamento da população, além de políticas
públicas potentes (Valla, 1999; Briceño-Léon, 1996). Talvez o desafio maior das campanhas
empreendidas seja a mudança de comportamento (Donalisio, Alves, Visockas, 2001; Buss, 1999), até
porque têm sido relatados entraves para o controle da doença que independem do grau satisfatório de
informação da população (Araújo et al., 2003).
Numerosos estudos alertam para a importância da consideração de outras dimensões além das
habituais, ligadas ao simples conhecimento do problema de saúde, e têm reorientado o papel do setor
de saúde frente aos seus principais determinantes histórico, social e ecológico, com maior
aproveitamento da produção científica no setor, de estratégias atualizadas de comunicação e saúde,
bem como de ações pedagógicas (Schweigmann et al., 2009; Araújo, 2003). Ações que envolvem a
participação comunitária desde a identificação do problema e o planejamento, e não apenas na
execução das ações de controle da dengue, podem alcançar resultados substanciais (Toledo-Romani et
al., 2007). Revisões sobre o tema indicam a dificuldade de comparação dos resultados de diferentes
ações baseadas na participação comunitária devido a diferenças ou, mesmo, imprecisões metodológicas
encontradas em vários deles (Heintze, Garridob, Krolger, 2006), bem como a necessidade de avaliações
padronizadas e com metodologias de análises de dados consistentes para uma aferição adequada da
efetividade de tais programas (Ballenger-Browning, Elder, 2009; Heintze, Garridob, Krolger, 2006). As
ressalvas feitas, no entanto, não se constituem em uma desqualificação de ações, mas, antes, destacam
a necessidade de estudos capazes de avaliá-las adequadamente, pois ainda que alguns autores sugiram
que somente o desenvolvimento de vacinas possa levar ao controle efetivo da dengue em escala
mundial (Guzman, Isturiz, 2010), tal ponto de vista ainda não representa um consenso.
Nos campos de ação da Promoção da Saúde se propõe a articulação de saberes técnicos e populares
e a mobilização de recursos institucionais e comunitários, públicos e privados, de diversos setores, para
o enfrentamento e a resolução dos problemas de saúde e seus determinantes (Buss, 1999). Tal
abordagem tem sido apresentada como uma das estratégias promissoras para o enfretamento de
dilemas na prevenção de doenças. Nesse contexto, considerando-se a importância da adesão e
participação popular e as dificuldades descritas até o momento para o controle da dengue, torna-se
evidente a necessidade de estratégias inovadoras. No desenvolvimento de canais privilegiados de
compartilhamento de saberes, é fundamental a atenção para que as práticas pedagógicas evitem repetir
modelos de transmissão linear das informações, calcadas em abordagens que se assemelham às
pedagogias tradicionais (Sales, 2008; Moreira, 1999). No âmbito da saúde, essa posição se expressa no
caráter excessivamente prescritivo (“faça isso, não faça aquilo”) e na distância de resultados de
artigos
pesquisas científicas das práticas de políticas públicas de prevenção.
Dentro dessa proposta de inventividade, aproveitamos a potencialidade do diálogo entre Arte e as
Ciências da Saúde para elaborar e testar uma Oficina de Jogos Teatrais visando à criação de ambientes
favoráveis para a discussão dos determinantes de saúde por educadores. Elegemos a linguagem teatral
como estratégia metodológica por ser uma linguagem dialógica, que estimula a colaboração entre as
partes e provoca a ação espontânea dos participantes.
O presente trabalho discute a proposta de criação de um espaço de fala e escuta coletiva baseado
em Oficinas de Jogos Teatrais para educadores envolvidos em ações de combate e prevenção da
dengue, visando, ainda, contribuir na investigação sobre os processos que podem evitar a dissociação
entre conhecimentos e práticas nas comunidades nas quais aqueles agentes atuam.
Percurso metodológico
Em uma articulação entre a Arte, a Educação e as Ciências da Saúde, a proposta das Oficinas de
Jogos Teatrais teve por objetivo alcançar os diversos atores sociais identificados como educadores no
processo de Promoção da Saúde. Oficinas de diversos formatos têm sido vistas como instrumentos
deflagradores de reflexão (Telles, 2006), capazes de apoiar discussões pedagógicas atuais e ratificar a
importância de espaços de escuta na educação e saúde (Schweigmann et al., 2009; Teixeira et al.,
2009; Gastal, Gutfreind, 2007; Teixeira, 2004).
Reconhecemos como educadores não apenas os professores, que atuam na Promoção da Saúde por
meio dos temas transversais do ensino formal, mas, igualmente, os agentes de saúde e os agentes de
endemia, importantes elos entre a comunidade e os programas de saúde, que atuam em contextos não
formais de ensino, essenciais. As Oficinas foram realizadas em municípios nos quais já existia uma
parceria entre a instituição de pesquisa responsável e a administração municipal, visando a criação de
espaços para discussão da prevenção da dengue. Um total de 104 educadores, entre professores de
ciências e agentes de saúde e de endemias, participou de sete Oficinas, seis no município de Itaboraí e
uma no bairro de Campo Grande, no município do Rio de Janeiro.
A arte, por si, oferece elementos significativos de interlocução, na medida em que utiliza caminhos
diversificados, permite a reflexão entre o fazer e o fruir, entre o que se pensa e o que se sente. A
linguagem teatral, especificamente, torna possível relacionar o conjunto de vozes que evidencia
confrontos e a luta pela legitimação de discursos, naquilo que Bakhtin define como “dialogismo”
(Bakhtin, 1992).
Optamos pela linguagem teatral, utilizando-a em oficinas, intencionalmente realizadas sem
excessivas formalizações ou formação prévia dos participantes. Buscamos, com isso, atenuar, ainda que
apenas em parte, o caráter desigual das entrevistas, nas quais, segundo Minayo (2004, p.114), “sua (do
entrevistado) chance de tomar a iniciativa em relação ao tema é pouca, é o pesquisador que dirige,
controla as digressões e controla a palavra”. Nas oficinas teatrais, mesmo estando o tema predefinido, a
palavra é dada aos educadores, para que a utilizem para expressão de conhecimentos resultantes de
suas experiências e vivências. Essa maior liberdade pode ser consequência das etapas iniciais, nas quais
a confiança mútua e o relaxamento, bem como a possibilidade de expressão coletiva de
questionamentos e conhecimentos frente aos pesquisadores, são estimulados, flexibilizando, ainda que
por breves instantes, uma divisão de trabalho na qual se atribui ao pesquisador: “o labor do
questionamento dos outros, da sociedade e de si mesmo” (Minayo, 2004, p.114).
As oficinas foram elaboradas como sequências de jogos teatrais, cada qual com um objetivo
específico relacionado a questões importantes do processo de educação e de Promoção de Saúde.
Ao mesmo tempo, buscamos propor atividades que estimulassem a troca de informações entre
diferentes segmentos da comunidade envolvida, visando à maior integração dos conhecimentos e
práticas. A nossa proposta compreende elementos de uma pedagogia de investigação participativa,
incorporando a ideia de “oficinas em saúde” (Souza et al.; 2003; Souza, 2000), associada ao método de
“mobilização social” (Toro, 1996), por meio de adaptações das propostas de Boal (2002), Spolin (2001)
e Koudela (1984). Elas foram conduzidas por duas mediadoras e comportam até vinte participantes.
Detalhamos, a seguir, as etapas que compõem a oficina, bem como seus objetivos:
1 Apresentação: Cada participante faz uma breve apresentação de si mesmo e de sua expectativa
em relação à oficina de forma sucinta, por meio da “dinâmica dos fósforos” (Longo, Silva, 1998): Os
participantes se colocam em círculo, em pé ou sentados, o primeiro participante acende um palito de
fósforo e se apresenta durante o tempo em que a chama permanece acesa. O procedimento é repetido
pelos demais participantes. Os tempos de cada um são diferentes, bem como a síntese que cada um
faz de si mesmo.
2 Aquecimento: Jogos para construir uma sintonia entre os participantes e oferecer uma
preparação corporal e psicológica mínima que os habilitasse para o engajamento nos jogos seguintes. O
“aquecimento interno” pretende que o grupo realize exercícios de respiração de forma pausada,
seguindo as orientações dos mediadores, ao som de música ambiente suave, seguindo-se um
aquecimento vocal adaptado de Till (1988) e composto de uma inspiração profunda seguida por
expiração com a vocalização de sons de vogais. A articulação do “aquecimento externo”, composto de
cinco exercícios com dois minutos de duração cada, visa à construção de sintonia entre os participantes
e do corpo no espaço da sala onde a oficina se realiza. Nessa etapa são propostas atividades de
movimentação corporal rápida, gerada pela indicação de um mediador, como, também, por música
ambiente instrumental com ritmo dinâmico previamente selecionado. No primeiro exercício, “caminhos
pelo espaço” (adaptado de Spolin, 2001), os participantes percorrem toda a sala com passos ritmados e
de forma aleatória, sem esbarrar ou olhar para outros participantes, realizando caminhos diferentes e
sem retornar aos lugares de origem. Em sequência ao exercício anterior, os participantes são convidados
a imprimir ritmo mais forte às suas passadas e, focalizando um ponto no espaço à altura dos olhos,
caminham até ele. Ao atingi-lo, o participante é convidado a repetir o procedimento por cerca de dois
minutos, considerando desvios e os cuidados para não impedir os movimentos ou colidir com
companheiros que realizam a mesma atividade. No exercício seguinte, “reconhecimento do outro”, os
participantes observam-se uns aos outros, cumprimentam-se inicialmente apenas com um olhar, depois,
também com um aceno de cabeça, mantendo o ritmo de caminhada, finalizando a atividade com aperto
de mãos ou abraço. No momento posterior, “caminhar juntos”, repetido cinco ou seis vezes,
mantendo-se a música ritmada, todos continuam caminhando, mas, após uma palma ou pausa na
música, param o movimento e observam ao redor se a disposição dos participantes com relação ao
espaço físico lhes parece homogênea. Em caso negativo, se movimentam até preencherem os espaços.
No último exercício desta etapa, “despertando o corpo”, retomando o círculo, os participantes são
convidados a realizar movimentos fortuitos, mas ritmados, de partes do corpo, começando pela rotação
dos dedos dos pés, pé, perna direita, perna esquerda, cintura, braços e todo o resto do corpo. Sob o
apelo da música, os movimentos se tornam mais soltos, facilitando o relaxamento dos músculos, o que
espontaneamente resulta em uma dança.
3 Jogos de integração: Para acompanhar e promover maior interação entre os participantes, bem
como evoluir para a experiência de jogos em parceria, suscitando ações ou discussões relacionadas aos
temas da confiança, cooperação, reformulação de princípios, atenção ao outro e à criatividade. No
“jogo do acolhimento”, adaptado de Boal (2002), os participantes formam duplas e estabelecem uma
distância de cerca de um metro entre si. Um membro de cada dupla fica de costas para seu
companheiro e se inclina para trás, sem se voltar, caindo em direção aos braços do outro. Esse último
deve amparar o companheiro com firmeza e erguê-lo, levando-o de volta à posição ereta. O exercício,
inicialmente, é exemplificado pelos facilitadores, esclarecendo-se que não se trata do uso ou da
necessidade de força física. Após este jogo, os participantes se reorganizam em novas duplas para a
realização do “jogo do espelho” (Koudela, 1984). Nele, são orientados a procurar um novo parceiro e,
mirando-se em seus movimentos, repeti-los como se visualizassem seus próprios reflexos. Após cinco
artigos
minutos, ocorre a troca de liderança e o exercício é repetido. Nessa atividade, espera-se que os
participantes percebam a importância da compreensão do outro e a atenção a seus papéis, ou seja, dos
parceiros em qualquer ação. Pode-se, ainda, posteriormente, ensejar a discussão sobre o significado da
mera repetição das ações sem reflexão ou crítica, transpondo esse questionamento para as práticas
educativas. Segue-se o jogo “homenagem a Magritte” (Boal, 2002), de improviso e criatividade, no
qual um objeto é apresentado e o participante tem o direito de usá-lo, dando a ele o sentido que
desejar, exceto o do próprio objeto (uma cadeira pode ser usada para representar qualquer coisa exceto
uma cadeira). Espera-se que esse jogo estimule a criatividade, pelo uso de um objeto para
representação de outro, bem como o questionamento da realidade imediata como única e estável.
Partimos do princípio de que os educadores são colocados frente a desafios que exigem novas respostas
e ações. Um de nossos objetivos, portanto, era que, por meio dos jogos desenvolvidos, fosse
estimulado o estabelecimento de respostas inovadoras.
4 Jogos de cena: Aqui mergulha-se na investigação do gesto espontâneo associado a uma
situação-problema, numa adaptação do método de Bernardo Toro (1996), que entende a mobilização
social como um ato de comunicação, no qual são compartilhados discursos, visões e informações. Os
estudos do autor sobre os momentos coletivos de aprendizagem revelam que inúmeras vozes transitam
nas práticas de promoção da saúde, no caso da pesquisa: institucionais (Ministério da Saúde e
Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, por meio de seus profissionais) e não institucionais (da
sociedade, dos denunciantes ou da população vítima dos agravos da doença). O método utilizado quis
tornar evidentes algumas dessas vozes e, ao mesmo tempo, investigar a potencialidade de os grupos se
organizarem na proposição de soluções coletivas. Aliando esse método de trabalho em grupo à
criatividade, propomos meios que permitam, aos participantes, uma reflexão ampliada dos fatores que
determinam sua saúde, especificamente, sobre o tema da dengue. É proposta a montagem de um
breve conjunto de cenas teatrais (esquetes), inspiradas na situação-problema trabalhada (dengue). Cada
participante representa um papel elaborado pelo próprio grupo. São distribuídos papéis de diferentes
sujeitos de três núcleos representativos relacionados entre si: poder público, familiar e espaço escolar
(Quadro 1).
Quadro 1. Núcleos e personagens utilizados nos jogos de cena das oficinas teatrais
Núcleos
O número de papéis disponíveis em cada núcleo deve ser adequado ao número de participantes de
cada Oficina, de modo que os três núcleos estejam sempre representados. Os participantes foram
informados que deveriam criar suas próprias abordagens para o tema apresentado e, em cinco minutos,
deveriam montar os “jogos de cena”. O pouco tempo disponibilizado para a composição do jogo teatral
foi intencional, para evitar, por parte dos participantes, a racionalização excessiva, que, muitas vezes,
mascara a realidade (Brook, 1999). Cabe aqui ressaltar que os participantes tiveram liberdade para
construir suas falas nos “jogos de cena”, com base na estrutura geral proposta pelo grupo. Nesse
sentido, o uso dos “jogos de cena” permite que as concepções de cada participante sejam colocadas
espontaneamente.
Resultados e discussão
Neste trabalho, analisamos os resultados das etapas dos “jogos de cena” e das “impressões
coletivas”, entendendo que as etapas anteriores foram essenciais para sua preparação.
A partir da análise da sequência dramática dos “jogos de cena” e das entrevistas semiestruturadas
nas “impressões coletivas”, foi possível perceber uma estrutura recorrente (Figura 1), na qual se
destacam, ainda, as visões conflitantes dos educadores a respeito das diferentes instâncias do poder
público envolvidas nas ações de saúde. Em primeiro lugar, no conjunto dos “jogos de cena” analisados,
os personagens “professores”, quando confrontados com a situação-problema da dengue,
demonstravam já terem apresentado, para os seus alunos, as informações gerais sobre a doença e os
alertado para os riscos de agravamento. Um processo semelhante ocorreu com os personagens “agentes
de saúde”, também representados como instâncias do poder público sob uma visão positiva, como
exemplificaremos com duas encenações: (a) um dos agentes de saúde enfrenta dificuldades em realizar
a visita a um terreno baldio e consegue mobilizar a comunidade e atingir seu objetivo, fazendo com
que todos aceitem fazer parte das condições materiais de prevenção à doença; (b) a mãe de um aluno
doente e seu vizinho mobilizam o agente de saúde do bairro e, juntos, partem para resolver a questão,
dirigindo-se ao dono do terreno baldio onde havia focos de proliferação do vetor.
Ainda nessa estrutura comum, diante de uma situação-problema relacionada à dengue, os
personagens recorriam, inicialmente, ao poder público, representado por educadores, estabelecendo
parceiras. Na sequência das ações, ou o problema era resolvido localmente (raramente) ou ocorria um
recurso ao poder executivo, cujas atitudes eram sempre de descaso ou protelatórias. O uso intenso da
ironia, de risos e vaias como meio de expressão durante as representações de personagens do poder
executivo é uma forma de registro adicional, possibilitada pela linguagem teatral, que sugere que tal
concepção encontra-se integrada ao pensamento desses educadores.
Em poucos momentos foram imaginadas novas estratégias de ação centradas na ação comunitária
como potencial via de solução do problema (eliminação de criadouros, por exemplo), reveladora de uma
dificuldade em se notar um perfil de corresponsabilidade como ação essencial no combate à dengue. O
encaminhamento recorrente dos problemas para instâncias superiores do poder executivo remete, em
parte, a uma situação na qual ainda não existe a apropriação, pelos indivíduos, da ideia de que a
artigos
Figura 1. Estrutura dramática recorrente observada nos jogos de cena.
T
Situação-problema: dengue
T
Mobilização Recurso
2. Solução local
T
Agentes de saúde e/ou professores
Mobilização Recurso
T
Representantes do Poder Executivo
local ou regional
T
1. Procrastinação ou indiferença
Depoimentos obtidos nas impressões coletivas nos permitiram corroborar, com razoável segurança, a
visão negativa que os educadores têm do poder executivo, especialmente em respostas à questão:
“vocês representam os personagens da forma que vocês acham que eles são, como eles deveriam ser,
ou nada disso?” Alguns comentários de professores, que se seguiram à pergunta, são ilustrativos: a) “só
que quando a gente viu a história do prefeito, a única coisa que nos veio à cabeça foi o descaso”; b)
“geralmente quem está no poder olha para seu próprio umbigo [...] a verba foi direcionada para calçar a
rua daquele [...] amigo dele [...]”; c) “é isso aí, a gente vai reclamar e depois não vai dar em nada”.
Percebe-se que, ao tornarem visível a figura do poder executivo sob o caráter de ironia ou fazerem-lhe
críticas diretas, os educadores mostravam acreditar que o discurso sobre melhoria da qualidade de vida
nas políticas públicas é mais retórico do que substancial. Nesse sentido, as possibilidades de sucesso de
medidas de prevenção e promoção da saúde parecem fortemente comprometidas, uma vez que
dependem da integração e da complementaridade das práticas desses dois segmentos do poder público,
além de outros atores sociais, percebidos, pelos educadores, como antagônicos. As origens da
insatisfação com o poder executivo são, certamente, múltiplas, e identificá-las extrapola o alcance do
presente trabalho. Nossos achados corroboram a percepção de Clark (1995), que, com base em sua
ampla experiência no campo, aponta a desconfiança popular em relação aos agentes públicos como um
dos fatores que contribui para o insucesso de campanhas de prevenção da dengue. Nos “jogos de
cena” e nas “impressões coletivas”, esta desconfiança parece focalizar mais os dirigentes investidos de
cargos executivos ou legislativos do que os servidores que atuam localmente nas ações de prevenção.
Não se pode descartar, porém, que a presença de professores de escolas públicas e de agentes
comunitários de saúde e de endemias entre os educadores participantes das oficinas tenha inibido a
expressão de desconfianças em relação, também, a esses servidores públicos.
As experiências dos grupos estudados e as encenações propostas mostraram aspectos das condições
de vida e explicitaram, em comum, o dilema da precariedade de serviços públicos no saneamento
básico. Entendemos que, por não conseguir identificar eficácia nas intervenções de órgãos oficiais de
assistência à saúde e setores afins, a visão que os educadores têm do poder público torna-se negativa.
Além disso, os educadores envolvidos na frustrante estatística da pouca eficácia da reversão da grande
incidência da doença, na carência de atualização profissional e de maiores informações acerca das
evoluções ou involuções epidemiológicas, reproduziram, muitas vezes, o discurso hegemônico de
“culpabilização da vítima” (Valla, 1999). Em algumas cenas, ficou evidente que se atribuía à própria
população a culpa pela proliferação do vetor e pela expansão da doença.
Os educadores envolvidos na Promoção da Saúde e na prevenção da dengue atuam e se sentem
isolados em sua vida profissional. Acreditamos, porém, que, por meio da Oficina, os participantes
perceberam seu isolamento e tiveram oportunidade de explicitá-lo e discuti-lo com seus pares, como
ficou evidente em depoimentos de agentes de saúde obtidos nas “impressões coletivas”: a) “Essa
oficina hoje para mim está sendo surpreendente. Porque toda oficina que eu venho é com agente de
endemias ..., estou vendo aqui agente de saúde. Eu acho que a gente tem que se integrar mais,
entendeu? ... então nós nunca tivemos esse leque para estar aqui conversando”; b) “...a primeira coisa
que eu estou percebendo aqui é essa integração entre nós...Veja bem, eu e o F., nós nos conhecemos
há muitos anos, bem uns vinte anos...desde que eu cheguei, há 25 anos, 26 anos atrás, e nós nunca
tínhamos parado nem para apertar a mão um do outro, estou mentindo?”. Essas falas corroboram, ainda,
a identificação das Oficinas como espaços que estimularam a reflexão sobre o isolamento, e sua
potencial superação por meio do estabelecimento de parcerias em ações de educação em saúde.
É importante destacar que os personagens dos agentes de saúde foram sempre representados por
professores, e vice-versa, o que mostra que os profissionais de cada categoria têm compreensão
adequada das funções da outra em relação à prevenção e combate à dengue. A representação positiva
nos “jogos de cena” e as reiteradas representações negativas do poder executivo parecem corroborar a
interpretação de que tanto a avaliação negativa deste último quanto a constante transferência de
responsabilidades fazem parte das representações que povoam o imaginário dos educadores.
A transferência de responsabilidades, ou seja, as acusações cruzadas entre sociedade civil e
instâncias políticas/públicas parecem ser “cortinas de fumaça” para as verdadeiras raízes do problema:
as ações isoladas das diversas instâncias envolvidas nas ações de promoção da saúde. Em face da
multiplicação de discursos, o que fica evidente é o equívoco em atribuir a uma única autoria os sucessos
e fracassos do combate à dengue. Uma complexa combinação primária de apoios é essencial no
processo de prevenção e combate à dengue. O conjunto de falas reunidas nas sessões de “jogos de
cenas” e “impressões coletivas” revelou, então, o desejo e a possibilidade de refletir sobre o que os
educadores gostariam que as autoridades públicas soubessem.
A experiência vivida nas oficinas deu visibilidade à possibilidade de ação colaborativa entre os
saberes técnicos e populares, atraindo, para si, a riqueza da imaginação criativa, elemento essencial para
que realidades sejam transformadas. Além disso, fomentou novas parcerias entre educadores em
momentos posteriores, como neste exemplo: um agente de endemias e uma professora, que atuavam
artigos
no mesmo bairro e não se conheciam, tomaram a iniciativa de elaborar um filme caseiro encenado por
eles mesmos. Nesse filme, narraram a rotina do agente de saúde, ressaltando temas tratados nas
oficinas, como: dificuldades do agente em realizar visitas domiciliares, a resistência da população em
aderir aos programas e a necessidade de maior integração entre os educadores em saúde.
Em entrevista aberta, o agente revelou que a oficina representou uma oportunidade de expor ideias
que tinham sobre como a prática de prevenção à dengue poderia se aproximar mais da realidade das
pessoas. Isso teria contribuído para que um outro olhar fosse lançado sobre os programas de saúde e
seus profissionais, e para que pudessem realizar ações complementares e eficientes: “Naquele dia a
gente combinou tudo, pensou no que ia fazer. Ela já tinha um trabalho com fotos e a gente pensou em
encenar isso, a gente fez o filme.” Identificamos, assim, os primeiros desdobramentos positivos das
oficinas como molas propulsoras da criação da integração entre educadores em uma ação preventiva e,
também, da apropriação por eles da linguagem teatral, utilizada na representação de personagens no
vídeo produzido.
A importância de se considerarem as concepções, crenças e práticas existentes em uma comunidade
para a eficácia de ações de prevenção e combate à dengue, voltadas para essas comunidades, tem sido
objeto de inúmeros estudos. Segundo Teixeira e Barreto (2008), um grande número de estudos sobre
educação e comunicação para o controle da dengue se baseia em modelos de comunicação nos quais o
conhecimento encontra-se concentrado, sendo necessário desenvolver meios e/ ou técnicas adequadas
para sua difusão, na expectativa de que esta se desdobre em mudanças de práticas e atitudes. Claro,
Tomassini, e Rosa (2004) analisaram 11 desses estudos, nos quais os conhecimentos e crenças foram
investigados sempre com base em questionários e entrevistas, enquanto as práticas eram mais
frequentemente inferidas a partir de inquéritos larvares domiciliares e peridomiciliares. Dentre as
conclusões de sua revisão, os autores destacaram a frequente dissociação entre conhecimentos
suficientes sobre a doença e práticas de prevenção inadequadas dos respondentes (Claro, Tomassini, e
Rosa, 2004). Resultados similares foram obtidos, também, em estudos posteriores àquela revisão
(Brassolatti, Andrade, 2004). Além disso, estudos realizados no Vietnã mostraram claramente que as
barreiras interpostas pelos conhecimentos e práticas populares existentes em uma comunidade podem
se mostrar intransponíveis para a implementação de ações de combate, mesmo que elas sejam
baseadas na participação da comunidade em sua execução (Phuanukoonnon et al., 2006). De fato,
estudos que relataram aprimoramento não apenas de conhecimentos, mas, também, de práticas de
prevenção, atribuem seu sucesso, ao menos em parte, ao envolvimento da comunidade desde as etapas
de planejamento até a implementação das ações realizadas (Toledo-Romani et al., 2006).
Considerações finais
As oficinas de jogos teatrais não buscam simplesmente ser produtos reprodutíveis, e sim estratégias
inventivas de ação no combate à dengue, no que se refere a ouvir o que populações ou grupos têm a
dizer e que, na complexidade das relações do processo saúde-doença, precisa ser levado em
consideração. Os resultados apresentados permitem um avanço na compreensão do modo como as
pessoas articulam as mensagens veiculadas sobre saúde e prevenção à dengue por meio de órgãos
oficiais, do ensino, ou da mídia, por meio das opiniões expressas de modo implícito nos “jogos de
cena” e corroborados explicitamente nas “impressões coletivas”. Com a pesquisa, foram criadas
possibilidades de esses educadores se prepararem para iniciativas de ordem social e serem levados à
reflexão sobre as contradições a partir de si próprios, deparando-se com a necessidade de uma ação
transformadora, conforme proposto por Dewey (2005) quando afirma a importância da conexão íntima
da arte com a experiência de vida.
Acreditamos que a arte pode oferecer recursos desejáveis, tais como: “descondicionar”
comportamentos, educar a sensibilidade e ser acessível a grupos numerosos de interessados,
colocando-os em contato com representações de situações de seu cotidiano e, portanto, com
questionamentos legítimos a respeito dos fenômenos da vida. Não pretendemos aprofundar o assunto
da aproximação dos discursos científico e artístico, mas apresentar uma experiência bem-sucedida da
discussão desse tema na prática. Mesmo cientes de certas limitações das oficinas de jogos teatrais aqui
discutidas, consideramos lícito concluir que, por sua forma de desenvolvimento e apresentação pouco
formais, elas se revelaram instrumentos com potencial para desvendar algumas das possíveis origens da
dissociação entre conhecimentos e práticas percebidas pelos educadores entre eles próprios e na
comunidade. Propomos que instrumentos diversificados, como, por exemplo, atividades lúdicas como as
oficinas, sejam utilizados não apenas para a transmissão ou compartilhamento de conhecimentos sobre
agravos à saúde, como tem sido relatado no caso da dengue (Vesga-Gomez, Manrique, 2010), mas,
também, como instrumentos adicionais na compreensão profunda das barreiras que se interpõem
localmente à efetivação das diferentes ações de prevenção e combate a tais agravos. Sugerimos,
portanto, que a operacionalização de oficinas de jogos teatrais pode fornecer importantes espaços de
escuta, propícios ao diagnóstico e análise coletiva de situações ligadas a problemas de saúde pública.
Colaboradores
Denise Figueira-Oliveira, Tania Araújo-Jorge e Mauricio Luz foram responsáveis pela
criação das oficinas, análise e discussão dos dados e elaboração do manuscrito. Tania
Araújo-Jorge cuidou da gestão e orientação dos recursos financeiros necessários à
pesquisa. Denise Figueira-Oliveira e Cinthia Mendonça estabeleceram parceria
intelectual e técnica na escolha dos exercícios da oficina, no trabalho de campo e na
execução dos jogos teatrais. Claudia Coutinho e Rosane Meirelles colaboraram na
consultoria sobre dengue.
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artigos
e sua relação com os imperativos contemporâneos
de embelezamento corporal *
Miquela Marcuzzo1
Santiago Pich2
Maria Glória Dittrich3
MARCUZZO, M.; PICH, S.; DITTRICH, M.G. Construction of body image among obese
subjects and its relationship with the contemporary imperatives for body beautification.
Interface - Comunic., Saude, Educ., v.16, n.43, p.943-54, out./dez. 2012.
Introdução
A sociedade contemporânea assiste deslumbrada à passagem dos “corpos perfeitos” que invadem
progressivamente todos os espaços da vida moderna. Sob a ótica de Poli Neto e Caponi (2007), a
expectativa das pessoas em relação a esses padrões de beleza é o que provavelmente interliga uma
variedade de fenômenos cada vez mais comuns, como: a maior incidência de distúrbios da imagem
corporal, as malhações e as cirurgias plásticas. Neste propósito, menciona-se a repercussão das
desordens da imagem corporal nos obesos, diante das facilidades prometidas à exaustão pelo mercado
da estética.
Quando se adentra no mundo das imagens contemporâneas, fica evidente que as mulheres sentem
muito mais do que os homens os efeitos desse processo. A cultura deste país exibe a mulher
permanentemente como forma de reforçar seus arquétipos de beleza corporal. Autores como Novaes,
Vilhena e Lemgruser (2003), Goldenberg (2006), Goldenberg e Ramos (2002) e Vigarello (2005)
consignam que a imagem de mulher se justapõe à de beleza e, como segundo corolário, à de saúde e
juventude. As imagens refletem corpos sexuados, respondendo sempre ao desejo do outro, ou corpos
medicalizados, lutando contra o cansaço e contra o envelhecimento e as limitações em relação à
dimensão corporal das pessoas obesas. Para a mulher, a beleza é representada como um dever cultural. E
ser bela é ser magra. O fato de afirmar-se, sem cessar, que as pessoas podem ser bonitas, se quiserem,
passa a ser normativo no mundo contemporâneo, a se constituir em um imperativo. Se historicamente as
mulheres preocupavam-se com sua beleza, hoje elas são responsáveis por ela. Contudo, em tempos
contemporâneos, os imperativos de embelezamento corporal ganham cada vez mais espaço entre o
público masculino, universo no qual a figura do “metrossexual” desponta como o ícone de beleza. Neste
caso, destacam-se outros atributos, como a definição e desenvolvimento muscular.
A publicidade aumenta o desejo que cada um possui de ter um corpo semelhante ao que ela sugere
de forma repetitiva, e, portanto, de poder transformá-lo através dos recursos tecnológicos.
Consequentemente, a estética corporal torna-se um dos maiores mercados da sociedade de consumo
(Montefusco, Severiano, Telles, 2009).
Os insumos da publicidade são reforçados pelas vicissitudes dispostas pela figuração oportunizada
pela era da tecnociência atual; exemplo disso é a possibilidade de edição gráfica do afamado
Photoshop, que, por sua vez, desempenha papel fundamental na construção de imagens midiáticas que
expõem corpos belos, e, segundo Sibilia (2005), constituem uma poderosa fonte de imagens corporais
no mundo contemporâneo.
O papel da mídia digital reforça e divulga os valores e atributos voltados para a busca de
instrumentos que permitam a construção do corpo a partir da visualidade de um corpo manipulado e
transformado em mercadoria. Esses valores creditam, ao ser imperfeito, a conquista de um corpo belo,
jovem, magro e, ao mesmo tempo, reafirmam que, para a conquista do corpo belo no mundo real, o
que prevalece é a necessidade de praticar exercícios físicos, desenvolver um cuidado com a
alimentação, estabelecer um comportamento e uma consciência dirigida a produtos e serviços
adequados à modelagem da aparência (Alves, 2007).
A multiplicação das técnicas corporais e a difusão crescente de modelos de beleza provocaram uma
pressão ainda mais prescritiva com relação ao autocontrole, suscitando, cada vez mais, o
desenvolvimento de distorções da imagem corporal (Novaes, Vilhena, Lemgruser; 2003). Diante disso,
se pode dizer que a prática do culto ao corpo se coloca como uma preocupação crescente para os
indívíduos com obesidade mórbida, pois veem-se cada vez mais distantes de terem o contorno corporal
atrelado aos apelos da mídia. Ademais, a projeção desenfreada de imagens estereotipadas, pelos
veículos de comunicação, acaba por submeter os obesos a um processo de descontentamento com o
corpo, que, por sua vez, ocasiona em intenso prejuízo ao processo de construção da imagem corporal.
Nesse sentido, destaca-se que a obra de Paul Schilder, a qual serviu de pilar para a construção do
presente artigo, propõe que a imagem corporal se constitui de três dimensões: a fisiológica, a libidinal e
a sociológica ou a sociologia da imagem corporal (Schilder, 1999). Orientou-se o olhar dos
pesquisadores concebendo o corpo como uma construção que é produzida no entretecer da história de
vida dos indivíduos, com os sentidos e significados presentes no universo social em que eles estão
imersos; nunca reduzido ao plano meramente individual, e tampouco sendo produto tão somente dos
artigos
determinantes sociais, mas sempre a partir da tensão entre esses polos. Considera-se, assim, o conceito
de imagem corporal como um valioso horizonte teórico para balizar este estudo, entendido como o
modo pelo qual o corpo se apresenta para a pessoa e ela o apreende não só cognitivamente, mas,
também, como uma representação constituída com base em seus desejos, suas emoções e na interação
com os outros (Schilder, 1999). Partindo-se da ideia de que, na atualidade, em virtude da força com a
qual se impõem os imperativos de embelezamento corporal e os parâmetros normalizadores que
caracterizam o “homem médio”, a dimensão sociológica ganha centralidade na configuração da
imagem corporal.
Em face das conjecturas acima delineadas e, ainda, considerando o impacto sobre a imagem corporal
dos obesos causado pelas imposições sociais relacionadas a valores da estética corporal difundidos na
alta modernidade, registra-se que este estudo buscou compreender a interferência dos imperativos de
estética corporal, veiculados no mundo contemporâneo, na constituição da imagem corporal de homens
e mulheres obesos com idades entre vinte e 43 anos. Ainda, os objetivos específicos para a pesquisa
foram: identificar as diferentes dimensões constitutivas da imagem corporal; compreender o processo da
veiculação dos valores de estética corporal do mundo contemporâneo; e analisar a relação entre a
história de vida dos sujeitos obesos e os imperativos de embelezamento corporal na atualidade.
O texto trata, primeiramente, sobre o olhar metodológico que estruturou a pesquisa;
posteriormente, apresenta a compreensão sobre a imagem corporal, concomitantemente à análise e
interpretação dos dados; nas considerações finais, sintetizam-se os resultados alcançados.
O olhar metodológico
Imagem corporal
artigos
(Campana, Betanho, Tavares, 2009).
Schilder (1999) caracteriza a imagem corporal em três dimensões que se relacionam entre si: a base
fisiológica, a estrutura libidinal e a dimensão sociológica.
Dimensão fisiológica
“Engraçado que tem hora que eu me vejo gorda e tem hora que eu acho que eu não tô
gorda. Sei lá, na realidade eu acho que é porque eu era magra quando era adolescente. Às
vezes eu me sinto como se eu tivesse 65 kg. Então eu acho que tá bom. Engraçado que eu
fico com esse pensamento”. (informação verbal fornecida por Maria em entrevista)
“Em lojas populares, lojas comuns tipo Renner e C&A eu não encontro de jeito nenhum,
principalmente por causa do meu peso, altura e estrutura óssea. Como eu fiz natação, tenho
ombros largos, então se eu for nesse tipo de loja assim as blusas ficam todas agarradinha.
Não consigo nem me mexer, nem se eu pegar o maior tamanho. Têm lojas que eu nem
entro, porque eu sei que não vai servir”. (informação verbal fornecida por Daniel em
entrevista)
A narração acima confirma a visão que os obesos possuem de si próprios e que é, ao mesmo tempo,
difundida pela indústria da moda: a de que os gordos não podem ser bonitos e que devem usar roupas
para disfarçar a sua gordura. Isso significa, para Cardoso e Costa (2007), que os obesos não podem
desfrutar da liberdade de comprar uma roupa pela qual se apaixonam, mas que têm de se limitar a
comprar “trapos que possam lhe servir”.
“Uma vez aqui foi no Pizza Deck fui tomar um choppinho. Ali tem uns cadeirões altos. Aí eu
sentei, encostei e a cadeira quebrou. E o pior que foi o braço, não foi nem o assento. Daí
todos falavam: olha ali o gordinho que quebrou a cadeira. Foi só apoiar ela pra sentar que
quebrou o braço. Foi porque era apertada mesmo. Eu me senti horrível, queria fazer igual
aquele avestruz que abre um buraco e se enfia dentro”. (informação verbal fornecida por
Adriano em entrevista)
Esta situação narrada vai ao encontro de outro problema sentido no íntimo pelos sujeitos obesos, que
é a prática cotidiana de atividades corporais. Elas fornecem subsídio para o enriquecimento da
consciência corporal. Em contrapartida, tem-se a figura do obeso mórbido, com sua expressão corporal
limitada, que, em face disto, pode sofrer “apagamentos” que geram lacunas na imagem corporal
(Matsuo et al., 2007).
Quando se aborda a temática das práticas corporais, é evidente a elevada prevalência da inatividade
física entre os obesos entrevistados. Nenhum dos sujeitos realizava regularmente qualquer prática
corporal. Essa ideia fica confirmada na seguinte fala:
“Quando eu estava com menos peso até me estimulava uma caminhada. [...] Então a vida de
uma pessoa obesa, ela não é..., por mais que uma pessoa diga que é feliz gordinho. É uma
mentira para ela mesmo, porque com certeza ela não é, porque quando ela era magra ela
estava vivendo uma vida que não está vivendo hoje. Então ainda que eu olhe não pelo lado
estético mais o da saúde, não tem comparação quando você está magro. É uma alegria de
viver que eu não tenho agora, estar magro é estar livre” [grifo nosso]. (informação verbal
fornecida por Guilherme em entrevista)
A prática regular de atividades corporais parece ser um artifício que possibilita o aumento das
possibilidades do corpo. Porém os sujeitos relutam em trilhar este caminho, em virtude da elevada
insegurança que têm de seus corpos. Essa percepção é ampliada pelos imperativos sociais do corpo
jovem e belo. Fato este que tem se apresentado ao longo deste estudo como um dos fatores pelos
quais estes indivíduos não conseguem se adaptar às práticas convencionais.
Ante estas exposições, é possível inferir uma série de disfunções do reconhecimento corporal,
conforme segue:
“Eu sou desajeitada, porque eu sou muito gorda. Qualquer coisa eu esbarro e derrubo
[mostrou os objetos em uma estante da sala]. Por ser muito grande eu tenho que equilibrar
assim, porque eu passo assim e vou levando as coisas, por causa do meu tamanho. Eu de pé
sou toda desajeitada, meus braços assim, eu passo e derrubo as coisas”. (informação verbal
fornecida por Alice em entrevista)
Dimensão libidinal
artigos
O corpo é subjetivamente construído mediante a interação contínua entre as tendências libidinais.
Ademais, a influência do fator emocional desempenha um importante papel na personalidade de cada
um, uma vez que coordena as tendências dos investimentos libidinais nas diversas partes do corpo,
inclusive nos órgãos sexuais. Tais investimentos são decisivos para a emergência de representações
intrapsíquicas, que vão constituindo as bases em função das quais irá se desenvolver a imagem corporal
de cada um e o consequente vínculo instituído entre o indivíduo e sua sexualidade (Bendassolli, 1998).
O investimento que o indivíduo direciona ao seu corpo e que, conforme Schilder (1999), baseia-se
num sistema de impulsos, tendências e fantasias, permite encontrar sua expressão na estrutura física do
corpo, assim como todo desejo ou propensão de investimento libidinal altera a estrutura da imagem
corporal, modificando, também, a percepção do próprio corpo nos seus aspectos físicos concretos,
como peso e volume.
Um dos aspectos centrais da estrutura libidinal são as zonas erógenas, que constituem o centro da
imagem corporal e determinam pontos no corpo para onde são dirigidas as emoções e o desejo. Por
meio da identificação destes pontos no modelo postural, o indivíduo tem contato mais íntimo consigo e
com o mundo, preenchendo funções em sua vida (Schilder, 1999). De maneira geral, nota-se que os
indivíduos obesos têm dificuldade não só em se relacionarem consigo mesmos, como também não
conseguem interagir com suas zonas erógenas.
Salienta-se que uma característica importante e comum entre os obesos é que estes apresentam
sentimentos conflituosos em relação ao seu corpo, os quais se manifestam na forma de um receio
explícito de se olharem no espelho, devido à insatisfação corporal.
A fala a seguir reforça tal posição, no momento em que Júlia explicita que evita o contato com o
espelho. Diz ela:
“Só mesmo quando eu saio do chuveiro, quando eu saio do Box. Meu pai fez um Box de
concreto, daí o espelho é atrás do Box. Quando eu saio assim, às vezes quando eu vou me
arrumar, assim que eu me arrumo no banheiro, daí eu sou obrigada a me olhar, porque se
não eu passo correndo. Se não eu só olho depois que eu tô com a roupa né. Pior daí quando
eu tô de roupa também acho feio. Olha, quando eu invoco eu não saio, porque não quero
que ninguém me olhe”. (informação verbal fornecida por Júlia em entrevista)
Igual situação é vivenciada por Alice, haja vista o desprazer demonstrado em se olhar no espelho:
“Nunca gostei de me olhar, tenho vergonha do meu corpo, mas foi mais quando eu cresci. Daí eu não
gosto de ficar me olhando né, eu evito porque eu não gosto”. Nesse caso, a depoente, que conta com
vinte anos de idade, evoca o despertar da sexualidade em um corpo obeso. Ela, ao iniciar suas relações
afetuosas, se diz sentir envergonhada com seu corpo frente à percepção do olhar do outro às suas zonas
erógenas. Segue seu relato: “Pelo fato de ser gordinha eu sempre tive dificuldades com minha
intimidade né. Atrapalha muito pelo tamanho da minha barriga. Eu nem consigo alcançar direito e ver
os meus órgãos. Eu tenho vergonha do meu corpo.”
É relevante considerar que esta problemática atinge ambos os sexos e, embora se revele como um
tabu entre os homens, aparece de maneira semelhante na hora de exposição dos corpos em ambientes
públicos em que o corpo aparece seminu, como na praia.
Postula-se, aqui, consoante Amaral (1994), que a imagem corporal, por propiciar a experimentação
da sexualidade, é um elemento imprescindível na construção da identidade sexual.
Os entrevistados percebem a obesidade como um obstáculo para a sexualidade, diante do
descontentamento que há com o corpo e pelos imperativos de beleza da atualidade. Logo, a obesidade
acaba repercutindo na autoimagem dos indivíduos, afetando, inclusive, a sexualidade e a qualidade dos
relacionamentos consigo mesmo e com o outro.
Alice, ao contrário, sente desejo pelo sexo oposto, porém percebe os limites que lhe impõe a sua
condição corporal:
“Eu nunca tive ‘relação’ com nenhum deles. Eles nunca me viram sem roupa porque eu não
gosto. Ele, o último, não falava nada, mas eu acho que isso atrapalhava meu namoro. Eu
tenho vontade, mas eu tenho vergonha. Se eles quiserem vai ser assim [...]. A minha barriga
incomoda bastante né e por isso eu não tinha intimidade com ele. Se eu emagrecesse uns
dez quilos acho que ia ser melhor”. (informação verbal fornecida por Alice em entrevista)
A força dos imperativos da magreza prevalece e traz consigo mais uma determinante para o
constrangimento do corpo obeso, em que a gordura aparece como um mecanismo para o
não-reconhecimento da sexualidade, construindo um muro entre a imagem corporal da pessoa obesa
e do outro.
Dimensão sociológica
Schilder (1999) concebe a imagem corporal como um fenômeno social, em que as emoções se
dirigem aos outros e são sempre sociais. Para se chegar à análise consistente da imagem corporal sob o
ponto de vista sociológico, se faz necessário o entendimento da formação da identidade corporal.
Conforme Giordani (2006), é possível perceber que a formação de uma identidade corporal nasce da
intercomunicação e das trocas sociais entre os indivíduos. O “eu” é uma estrutura social que se
desenvolve inteiramente numa experiência de comunicação. Num contexto existencial, a autora
visualiza a imagem corporal como a revelação de uma identidade, de um sujeito na história e de suas
relações concretas. Entretanto, Alberto (2007) faz algumas ressalvas, indicando que emoções,
pensamentos e determinadas atitudes estão sempre respaldadas por um aparato social, que dita regras.
O afastamento social vivido pelos obesos dificulta sobremaneira a progressão de sua imagem
corporal. Para Barros (1990 apud Morais et al., 2002), a pessoa com obesidade não sofre tanto a dor
física, mas a dor pelo desejo de um corpo magro. Ela sente que seu corpo é grotesco e sofre por ser
vista pelos demais com hostilidade.
Assim, os obesos reduzem suas experiências corporais por conta de suas dificuldades nos
relacionamentos interpessoais e a interação social.
Neste ponto, se fazem presentes situações em que os familiares se revelam como influenciadores
ativos no processo de compleição corporal dos sujeitos a cada quilo que adquirem, lembrando-os, a
todo instante, das representações corporais construídas pela sociedade, que radicaliza os ideais de
perfeição corporal.
A família aparece mais como uma fonte de apoio na maior parte dos relatos. Inclusive no papel de
harmonizadores, quando os obesos entrevistados referem histórias difíceis em que tiveram de passar
pelo fato de seu peso parecer importuno aos olhos da sociedade. A esse respeito, Alice relata
“Eu era maior que as outras crianças. Eu tinha seis anos nesta foto, as crianças já brincavam
comigo. [...] Elas sempre me chamavam de gorda, baleia, um monte de coisa. [...] Eu sempre
chorava, sempre falava pra minha mãe, sempre falava pro meu pai. Ele que ficava sempre
mais comigo né, quando eu morava lá, só que daí ele dizia pra mim não ligar, pra não dá
bola, pra mim não chorar [...]”. (informação verbal fornecida por Alice em entrevista)
Ao se ver insultada pela sua condição de obesa, Alice encontra, em seus familiares, uma referência
de amparo e proteção.
artigos
pessoas sobre diferentes aspectos que antes pareciam desnecessários, notadamente os de que a
aparência física é pautada em medidas corporais quiméricas representadas sob a forma de corpos
perfeitos.
Falar das possibilidades da mudança física é referir-se a um anseio social. A cirurgia plástica aparece
como uma delas, de maneira marcante entre as mulheres. Apesar da severa crítica endereçada a
modelos magérrimas, nos discursos femininos o desejo de aderir à moda do bisturi emerge fortemente:
“A única coisa que eu queria fazer era silicone. A lipoaspiração eu também já pensei em fazer
né, mas eu tenho muito medo assim né [...] Eu seria a pessoa mais operada, a minha mãe
vive fazendo cirurgia e olha que ela nem precisa né. Eu ia botar silicone, mas daí começaram
a falar pra mim que eu tava louca. [...] Se é uma coisa que eu sempre falo em botar é silicone.
Eu tenho o peito grande, mas daí eu ia colocar um pouquinho mais né [...] Quanto maior
melhor, claro”. (informação verbal fornecida por Júlia em entrevista)
No mundo das obesas referenciadas neste estudo, uma característica é comum: o desejo de obter
resultados sem fazer grande esforço. As entrevistadas enfrentariam todos os tipos de cirurgias plásticas
com o objetivo de ostentar uma aparência totalmente diferente da que possuem.
Nesta esfera, Poli Neto e Caponi (2007) afirmam que os intitulados médicos da beleza e a mídia
criam a definição de um padrão de beleza, que se define por medidas corporais facilmente alcançáveis
pelas modalidades cirúrgicas que são comercializadas pela medicina estética e divulgadas pela imprensa.
Salienta-se que essas definições da sociedade moderna acerca do corpo perfeito e a validade que o
olhar de outrem tem na formação dos corpos imaginários apareceram com um forte peso nas falas dos
entrevistados. Ao serem questionados especificamente sobre o pensar dos outros a respeito de si, os
sujeitos categoricamente remetem respostas intimamente ligadas à sua aparência física,
desconsiderando outro tipo de percepção que se possa ter a seu respeito. É possível confirmar tal
percepção na fala de Maria:
“Eu acho que as pessoas acham que eu sou feia assim sabe. Nunca me falaram. Mas já
falaram - Ela é tão bonita, tinha que emagrecer. [...] Tinha algumas pessoas que achavam
que eu era doente. Muitas pessoas perguntam pro meu marido porque que ele continua
casado comigo. Elas acham que ele tem que trocar de esposa só porque eu sou gorda, e não
foi um, dois, foram vários. Por isso eu tenho menos amigos [...]”. (informação verbal
fornecida por Maria em entrevista)
A percepção que Maria tem a respeito de seu corpo somente reforça os arquétipos sociais acerca da
idealização do corpo levantados por Gonçalves (2006). Segundo a referida autora, as pessoas gordas são
discriminadas na medida em que são tratadas como feias e doentes.
Os sujeitos desta pesquisa sustentam este parecer do autor, haja vista que a limitação social se faz
evidente em suas falas:
“Eu não saio de casa. [...] Eu tenho poucas amigas e a maioria das minhas amigas são
casadas. Eu às vezes vou na casa de alguma delas para conversar, mas sair de sair mesmo eu
não saio, de noite eu nunca saio. Eu não gosto de sair principalmente por causa do meu
peso. [...] Minha rotina é do trabalho para casa e lá de vez em quando eu vou na faculdade,
foi até por isso que eu escolhi a modalidade a distância. Ir para boate ou um barzinho assim
é bem raro”. (informação verbal fornecida por Joana em entrevista)
O relato de Joana, que denota este empecilho à sociabilidade, encontra-se exclusivamente apartado
pela sua condição de obesidade. Cabe mencionar que Joana, ao longo de toda entrevista, parece
bastante desmotivada com seu corpo, o que reforça a influência que os imperativos do corpo belo têm
sobre aqueles desviantes.
Torna-se importante, ao fim, fazer a ressalva de que, no momento da elaboração da obra de Schilder,
não se evidenciava a força do aparato midiático na construção da dimensão sociológica da imagem
corporal. Hoje, no entanto, há um maior investimento da mídia nos valores de estética corporal,
enaltecendo um tipo de representação corporal baseado nos corpos magros e uma preocupação
exagerada com a estética corporal.
Considerações finais
Este estudo possibilitou assentar que o conhecimento aprofundado a respeito das condições de vida
do grupo estudado foi determinante para concluir que: existem evidências que permitem sustentar a
hipótese quanto à decisiva influência dos imperativos de embelezamento corporal e dos parâmetros
antropométricos atribuídos ao “homem médio” na construção de cada uma das diferentes dimensões
que compõem a imagem corporal do sujeito obeso, de acordo com a perspectiva de Schilder (1999).
As expressões de insatisfação com o próprio corpo são enunciadas nas falas de todos os sujeitos, os
quais consideram suas formas abstraídas de beleza. Muitos deles, até mesmo, depreciam seu semblante
frente à comparação com os corpos da moda, realçando ainda mais as hipóteses levantadas nesta
pesquisa, notadamente a de que o universo contemporâneo impõe características físicas que são
incompatíveis com a maioria da humanidade, especialmente com a classe dos obesos mórbidos.
Convém salientar que a pesquisa, em nenhum momento, teve a pretensão de responder a toda
complexidade que envolve o fenômeno da constituição da imagem corporal. Assim sendo, as questões
trazidas à tona com o presente estudo dão margem a maiores reflexões, que não se limitam apenas a
constatar a correlação entre os possíveis comprometimentos na construção da imagem corporal e a
obesidade, mas também possibilitam a ampliação do olhar da saúde pública no que concerne a este mal
que a cada dia toma uma magnitude espantosa. Deste modo, para possibilitar o desenvolver dos corpos
imaginários dos obesos, é fundamental que os programas assegurem a identidade corporal destes de
forma a contribuírem para sua contextualização no mundo em que estão inseridos.
Este trabalho aponta, ainda, a necessidade de novas investigações abordarem pormenorizadamente
as implicações dos imperativos de beleza da contemporaneidade para com a comunidade obesa. Na
forma como foi apresentado nesta pesquisa, o grupo de pessoas com obesidade mórbida é o mais
afetado pelas manifestações da sociedade em prol de um corpo magro. Logo, há urgência de se
analisarem múltiplos aspectos voltados à distorção da imagem corporal, bem como as consequências
deste problema para a saúde dos obesos.
Colaboradores
Os autores Miquela Marcuzzo e Santiago Pich participaram, igualmente, da elaboração
do artigo, de sua discussão e redação, e da revisão do texto. Maria Glória Dittrich
participou da revisão do texto.
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Tenharim people in villages along the Marmelos river, state of Amazonas. Interface -
Comunic., Saude, Educ., v.16, n.43, p.957-66, out./dez. 2012.
The aim of this paper was to analyze the O objetivo deste trabalho foi analisar esse
process of development of alcoholism in processo de alcoolização nas aldeias do
villages along the Marmelos river using Marmelos utilizando o enfoque
an anthropological approach. The way in antropológico. A forma como os
which the Tenharim people drink is Tenharim bebem está relacionada,
related mainly to a rite of passage for sobretudo, a um rito de passagem
males, with rules that are well defined by masculino e com regras bem definidas
the families, with protection and control pelas famílias, com seus mecanismos de
mechanisms. It could be seen that proteção e controle. Foi possível notar *
Elaborado com base
development of alcoholism has been que a alcoolização vem sendo discutida em Pereira (2010);
discussed by these indigenous people, pelos indígenas, mas, com diferenças pesquisa aprovada pelo
but with differences regarding whether it quanto à definição como um problema Comitê de Ética em
Pesquisa da
is defined as a problem. This breaks up ou não, fato que fragmenta as ações Universidade Federal de
the actions implemented against the desenvolvidas contra a alcoolização Rondônia e pelo
development of problematic alcoholism. problemática. A posição de liminaridade Conselho Nacional de
Ética e Pesquisa, sob o
The position of liminality taken by those assumida pelos que consomem álcool
registro CONEP 15510,
who consume alcohol demonstrates that demonstra a necessidade de atendendo à Resolução
there is a need for social fortification of fortalecimento social da comunidade. 196/96 do Conselho
the community. Nacional de Saúde.
Palavras-chave: Saúde e Sociedade. Financiado pelo
Keywords: Health and Society. Alcoolização. Rito de Passagem. Tenharim. Ministério da Saúde/
DECIT/CNPq (Proc.
Development of alcoholism. Rite of Amazonas. 402532/2008-2
Passage. Tenharim. Amazonas. 1
Departamento de
Enfermagem,
Universidade Federal de
Rondônia. Campus, BR
364, KM 9,5. Porto
Velho, RO, Brasil.
78.900-000.
d.pri@bol.com.br
2
Departamento de
Ciências Sociais,
Universidade Federal de
Rondônia.
Introdução
Os Tenharim pertencem a um grupo maior, que se autodenomina Kagwahiva, povo indígena Tupi
que teria migrado, no século XIX, do Alto Tapajós para o oeste do Amazonas, devido a conflitos com
outros grupos indígenas. As Terras Indígenas (TI) Tenharim estão divididas em três grandes reservas,
com um total de 790 indígenas: do Marmelos, do Igarapé Preto e do Sepoti. A população do Marmelos,
com 272 indígenas, está distribuída em quatro aldeias. Organizam-se conforme um sistema de metades
exogâmicas, que recebem nomes de aves. Essas metades são: Mutum-Nanguera e Kwandu-Tarave.
As informações prévias de uma das lideranças é de que a alcoolização entre os Tenharim, em alguns
momentos e para alguns, havia tomado proporções consideradas por eles como negativas para a
comunidade indígena. Assim, empunha-se o desafio de conhecer as causas e motivações da
alcoolização, considerando esse processo como:
A Transamazônica, considerada como a “estrada brasileira para o etnogenocídio” (Davis, 1978, p.7),
artigos
foi o projeto de desenvolvimento que interferiu de maneira direta nas aldeias Tenharim do Marmelos.
Os contatos decorrentes da mineradora e da estrada intensificaram-se e levaram a uma significativa
modificação estrutural da aldeia, especialmente na forma de subsistência da comunidade.
Os índios Tenharim que viviam na aldeia Nhande’uhu, ao longo do rio Marmelos, se deslocaram para
as margens do traçado da Transamazônica, na tentativa de frearem as ações da construção da estrada.
Sem muitas opções de sustento e infraestrutura, os índios acabaram aceitando as ações paternalistas da
FUNAI: casas, mudança do local das roças, a introdução de novos alimentos manufaturados e de
objetos, como roupas (Silva, 2006; Peggion, 2005; Sampaio, 1997).
A Transamazônica era um ingrediente importante do milagre econômico e seria construída ao preço
que fosse necessário. Afinal, o curso de desenvolvimento da Amazônia atenderia interesses políticos e
econômicos, e não seriam os obstáculos naturais, incluindo aí os índios, que inviabilizariam o
“desenvolvimento”. A exploração da Amazônia visava atender os interesses, sobretudo, de
multinacionais e grandes fazendeiros beneficiados pelos incentivos fiscais e tributários da
Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) (Davis, 1978).
Na maioria das culturas indígenas, as bebidas fermentadas são consumidas como alimento ou de
maneira sagrada, podendo ou não causar desconfortos físicos ou sociais entre os membros da
comunidade indígena. A função da bebida fermentada é determinada pelo teor de álcool, podendo ser
classificada como fraca ou forte (Souza, Oliveira, Kohatsu, 2003).
Na revisão de literatura, foram encontradas três referências aos Tenharim e o uso de cauim - kawy
(forma como os sujeitos da pesquisa chamam as bebidas fermentadas produzidas artesanalmente). A
primeira, em 1924, refere-se ao consumo da bebida como um ato sem importância entre os Kagwahiva
(Nimuendajú, 1924). A segunda, apontada por um funcionário do Serviço de Proteção ao Índio (SPI),
em 1926, descreve o uso do cauim após as guerras, em rituais chamados de festa da quebra da cabeça
do inimigo, nos quais o objetivo de seu consumo não era embebedar (Freitas, 1926). E a terceira
referência era o mito de Bahira - o personagem central da mitologia Kagwahiva, quando, em uma das
festas realizadas por Bahira, o cauim de milho foi oferecido como alimento (Silva, 2006).
Além das referências anteriores, de acordo com as falas dos sujeitos, não há indícios do uso do cauim
com fins de cauinagem, ou seja, a utilização de cauim azedo em grande quantidade durante
comemorações (Peggion, 2005; Lima 1996). A bebida fermentada, produzida artesanalmente, e não
utilizada para fins de embriaguez não é exclusividade do povo indígena Tenharim. Entre grande parte dos
grupos de língua Jê e os índios do alto Xingu, encontram-se exceções para a fabricação e o uso do
cauim, como, por exemplo, os Matis (povo indígena da Amazônia Central). Entre eles, o cauim era feito
de macaxeira, quase sem teor alcoólico, e era utilizado cotidianamente como alimento (Souza, Garnelo,
2007).
Portanto, não houve uma substituição do cauim pela bebida alcoólica industrializada, como
encontrado em outras aldeias indígenas. O contato com as bebidas alcoólicas industrializadas foi em
função da construção da Transamazônica. Construção esta que proporcionou, aos Tenharim, acesso às
bebidas industrializadas e ao dinheiro para compra de produtos variados, entre eles, o álcool.
A utilização de cachaça pelos Tenharim foi realizada inicialmente sem normas quanto à idade, sexo,
motivo ou forma de utilização. Eles a utilizavam como quem descobre uma fonte poderosa para
sensações de relaxamento, desinibição e socialização. Porém, alguns apenas experimentaram e, devido
ao gosto que não era agradável, não mais consumiram.
O grande fluxo de pessoas que passava na estrada e a presença de transações comerciais próximas
aos acampamentos dos trabalhadores facilitavam o acesso, sobretudo, à cachaça.
Mas, o ato de beber não permaneceu de maneira descontrolada. Inicialmente, devido à interferência
da FUNAI e, posteriormente, com a definição de uma disciplina tradicional pelos próprios membros da
comunidade indígena, várias normas foram instituídas na tentativa de controlar ou amenizar os
problemas referenciados ao processo de alcoolização.
A forma de beber não pode ser considerada universal. Não é possível fazer uma avaliação do uso de
bebidas alcoólicas da mesma maneira em todas as populações indígenas. É necessário considerar: o
contexto social, ou seja, suas normas de conduta, a forma de punição, as dimensões de positivo e
negativo dessa comunidade (Souza, Garnelo, 2007). Para isso, é importante uma contextualização do
uso do álcool na cultura indígena até a atualidade.
O consumo das bebidas alcoólicas ocorre na aldeia ou na cidade. Em sua maioria, é de forma
coletiva, ou seja, em pequenos grupos de homens de uma mesma faixa etária ou posição social (jovens,
liderança, homens adultos), independente da metade exogâmica (Mutum ou Taravé) ou grau de
parentesco ao qual o indivíduo pertence.
Não há relatos de que mulheres utilizem álcool, pelo contrário, o seu uso está restrito aos homens,
que encontram maior liberdade de acesso às bebidas e permissão consensual para o seu consumo.
A ingestão de álcool entre os indígenas sempre ocorre de maneira socializada – grupal –, fato este
que contribui para o reforço da alcoolização coletiva. Esse fortalecimento numa relação coletiva contribui
para que seja utilizado mais álcool, levando, assim, a um estado de exclusão desse pequeno grupo do
restante da comunidade indígena (Sztutman, 2008; Acioli, 2002). Este fato pode ser constatado entre os
rapazes do Marmelos, que andam juntos e utilizam as bebidas especialmente à noite, quando as
famílias estão em suas casas.
Fora do ambiente da aldeia, o uso de bebidas também se configura de maneira coletiva. Junto a
não-indígenas ou outros indígenas, o uso do álcool está associado ao divertimento, sobretudo após o
trabalho ou estudo – “eu já bebi muito, na cidade a gente faz pra se entrosar melhor e na aldeia é só
de farra mesmo” (Jovem Tenharim, 17 anos).
Os adultos que se encontravam em uma posição de autônomos parecem utilizar o álcool como forma
de comprovar essa autonomia, e os jovens a utilizavam, em meio aos não-índios, como forma de
autoafirmação e aproximação. Mecanismo apontado, por Dal Poz (2003), como mobilidade social,
quando o indivíduo se despoja de costumes do seu grupo étnico para tornar-se membro de outro grupo
étnico.
Aquele que bebe sozinho e em qualquer momento do dia é considerado, pela comunidade, como
doente. Essa individualização no consumo das bebidas e a intensificação do contato com os não-índios,
por meio da permanência nos centros urbanos, contribui para que os indígenas assumam um padrão de
individualismo (Coloma, 2001). A substituição de um padrão coletivo para individual estabelece uma
mudança sociocultural que interfere nos campos da política, economia e cultura.
Quando bebem
Onde bebem
O consumo ocorre em um determinado espaço que, dependendo da situação, pode ter seus limites
ampliados ou diminuídos. As aldeias se configuram em uma região central: escola, campo de futebol,
casa de farinha; e área periférica: os rios, roças e mata. Para manter a discrição no ato de beber durante
as festas, no período do dia, os índios consomem o álcool embaixo de árvores afastadas, na beira do rio,
em regiões próprias de banho, e em cantos da estrada. Mas, à noite, quando a música já está tocando e
artigos
a dança iniciada, todos se aproximam do barracão de reuniões. Os que já estão alcoolizados
permanecem em grupos, sendo possível observar comportamentos extravagantes, incomuns aos
Tenharim em dias normais. Quanto mais a noite adentra, mais fácil é encontrar indígenas utilizando as
bebidas alcoólicas, de maneira mais exposta e explícita.
Diferente dos dias de festas, em dias de semana, o consumo é discreto – o que tornava o ato
praticamente imperceptível. Ocorria entre grupos de jovens, durante a noite e mais próximo às áreas
das casas, sobretudo na área do campo de futebol e do pedágio.
O que bebem
As bebidas alcoólicas utilizadas pelos Tenharim são escolhidas conforme a facilidade no acesso e
conservação. Na aldeia, a bebida mais utilizada é a cachaça, devido à possibilidade de consumo sem
refrigeração. Nas cidades, além da cachaça, outra bebida consumida é a cerveja.
Acesso às bebidas
Existem alguns fatores facilitadores para o consumo de bebidas alcoólicas pelos indígenas. Entre eles,
os mais importantes são: a proximidade das aldeias de pontos de venda e o baixo custo da bebida.
Os fatos determinantes para o acesso às bebidas pelos Tenharim foram: a criação de uma vila
chamada 180, que está a cinquenta km do Marmelos, e a aquisição de motos – meio de transporte
rápido e barato que proporciona acesso aos pontos de comércio dessa vila e ao longo da Transamazônica.
A permissividade para o ato de beber não é algo declarado. Mas a dinâmica familiar Tenharim
mantém uma característica de emancipação dos rapazes, conseguida anteriormente pela habilidade de
caçar, pescar, cultivar a terra e conhecer sobre as questões da natureza. Porém, atualmente, é marcada
pelo compromisso com os estudos e autonomia para ir à cidade. A cada membro é aconselhado o que
fazer, mas o indivíduo é responsável pelas suas atitudes. Os meninos, ao serem considerados prontos
para assumirem responsabilidades, são respeitados como sujeitos. A família passa a interferir se houver
extrapolações às regras de condutas, regras estas formuladas com base no consenso familiar. Apesar de
pertencerem a uma mesma aldeia, as famílias possuem variações quanto à forma de lidar com os
problemas, decisões e tensões.
“esses jovens não vão conseguir parar de beber depois que envelhecer e vão sentir o peso
da bebida depois de velho, isso se antes não receberem o castigo por meio de brigas com os
brancos ou entre os próprios parentes. Se eu tivesse seguido os costumes na alimentação,
não tivesse gastado dinheiro com bebida não estaria velho e doente como estou hoje”.
(idoso, líder Tenharim)
Do ponto de vista econômico, o uso do dinheiro para compra de bebidas alcoólicas e o estado de
depreciação física e mental para o trabalho e estudo, advindos do consumo, são considerados como um
fator negativo. Um dos problemas apontados pela comunidade Tenharim quanto ao uso do álcool está
relacionado ao gasto do dinheiro para compra de bebidas, deixando, assim, de prover à família o
necessário para a subsistência. Para alguns dos entrevistados, se o Tenharim utiliza o álcool, mas não
deixa faltar nada para sua família, os demais parentes não interferem em sua ação.
A influência da alcoolização no desempenho escolar dos jovens também foi apontada. Segundo eles,
as bebidas interferem na atenção e aprendizado, tornando-se um efeito negativo para os Tenharim, que
valorizam muito a educação, e a maioria dos jovens pretende dar sequência na educação formal visando
o nível Superior.
O último aspecto em relação às regras para o consumo é a flexibilidade em avaliar a conduta do
alcoolizado. Essa observação foi relatada também entre os Kaingáng, que relevam as ações decorrentes
de situações de embriaguez em dias de festa (Souza, Oliveira, Kohatsu, 2003).
Em dias de trabalho, considerados como impróprios para o consumo de álcool, os indígenas estão
artigos
inseridos em um universo de regras de condutas: o falar baixo, o andar discreto dos adultos e as
expressões comedidas são comportamentos esperados. Em dias cotidianos, não é comum ver grupos de
jovens brincando de empurrar, apresentando gestos extravagantes e manifestações de euforia, mas, em
dias de comemorações ou à noite, em pequenos grupos, a severidade dessas regras parece ser
afrouxada.
Esse fenômeno de se valorizar um mesmo evento de maneira diferente pode ser considerado como
remissão e inversão simbólica: “remissão cultural refere-se à maior permissividade social [...] e inversão
simbólica diz respeito ao cancelamento da identidade normal e a adoção temporária da identidade de
outra pessoa” (Dias, 2008, p.200).
A conotação de não saber o que está fazendo, proveniente da alcoolização, ameniza o rigor das
regras de conduta. Porém, se houver necessidade de assumir alguma atitude frente a alguma quebra de
regras de conduta, essa decisão cabe à família, e a liderança não interfere de modo direto.
A questão do alcoolismo em comunidades indígenas é uma problemática que pode ser encontrada
em muitas aldeias, porém os estudos que registram esse fato ainda são escassos. Guimarães e Grubits
(2007) revisaram as taxas de prevalência de uso de bebidas alcoólicas em comunidades indígenas. Entre
os Terena do Mato Grosso do Sul, encontraram uma prevalência de 10,1%, com índice maior entre os
índios acima de 15 anos e os que moravam mais próximo da cidade (Aguiar, Souza, 2001). Entre os
Kaingáng no Rio Tibagi (PR), encontraram uma prevalência de 29,9% de indígenas que fizeram uso de
bebidas alcoólicas no último ano, sendo a maior proporção entre homens (Coimbra Junior, Santos,
Escobar, 2003).
Mas, existe uma dificuldade em determinar se o uso de bebidas alcoólicas em uma comunidade
indígena se configura como um problema para a mesma, devido aos significados sociais e culturais
atribuídos ao ato de beber.
Buscando um conceito menos pragmático e evitando, assim, rotular os sujeitos que participaram
desta pesquisa, considerou-se o processo de alcoolização como um comportamento apreendido,
modelado socialmente e que, eventualmente, traz complicações na área da saúde física e do
desempenho social (Marlatt, 2004).
Um dos objetivos deste artigo, ao abordar os envolvidos no processo de alcoolização entre os
Tenharim, era definir o consumo como um problema ou, mesmo, como doença, partindo das
concepções da própria comunidade.
O conceito sobre o processo saúde-doença como ocorrência de estados de alternância entre
equilíbrio e desequilíbrio de fatores pode ser interpretado nas falas dos Tenharim do Marmelos. Os
conceitos sobre o uso abusivo de álcool podem ser resumidos de acordo com as frases ditas durante
uma conversa na escola: “não bebe porque isso não vai te trazer nada de bom” (Tenharim, 15 anos); “a
bebida só estraga a saúde da gente” (Tenharim, 17 anos); “quando você bebe você afasta sua família”
(Tenharim, 13 anos); “não pode estudar direito” (Tenharim, 15 anos); “a bebida não leva a nada”
(Tenharim, 16 anos).
Para eles, o alcoolista doente é aquele que usa o dinheiro para compra de bebidas mesmo após
constituir uma família, perde o respeito e sua posição social na comunidade. Também foi apontada,
como característica do individuo doente, a permanência na cidade em um estado de ou’yuga
(alcoolização), e ser classificado como aquele que denigre a imagem do grupo frente a outros
membros.
Portanto, nas descrições sobre os Tenharim doentes por causa do consumo de bebidas alcoólicas, são
apontados prejuízos nos aspectos sociais, econômicos e relacionados à identidade do índio Tenharim.
Assim, é possível constatar o caráter social do consumo de bebidas alcoólicas entre os Tenharim, o que
aponta para ações de prevenção e tratamento baseadas nas relações do grupo, e não apenas ações
individuais.
Considerações finais
A interpretação dada, pelos Tenharim, ao consumo abusivo de bebidas alcoólicas está relacionada,
sobretudo, à moral, no sentido de boa conduta segundo os preceitos estabelecidos pelo grupo. O
consumo socialmente admitido está relacionado a uma fase da juventude masculina, que deve cessar
quando o jovem se casa e assume seu novo papel de responsável por sua família. Assim, o ato de
consumir bebidas alcoólicas, entre os jovens Tenharim, pode ser relacionado ao rito de passagem da
infância para a vida adulta.
Porém, os Tenharim que entraram em contato com as bebidas alcoólicas e as utilizam individualmente
são como aqueles que iam para guerra e não conseguiam retornar à comunidade, não venciam os
desafios do isolamento – não completavam o rito de passagem da infância para a vida adulta.
A partir da descrição sobre o consumo de bebidas alcoólicas entre os Tenharim, é momento de
refletir sobre quais os possíveis caminhos a serem percorridos visando à prevenção e tratamento do
problema envolvendo o álcool. Para pensar em qualquer forma de prevenção e tratamento aos
alcoolistas considerados doentes, é preciso considerar que o consumo de bebidas alcoólicas é o
resultado entre a interação da substância, a disposição psicológica e o contexto do consumo. Da mesma
forma, a prevenção e tratamento não são de responsabilidade apenas da comunidade indígena, mas,
sim, de todos os órgãos envolvidos na questão indígena.
É inadiável o processo de discussão, entre os profissionais de saúde e os indígenas, para que sejam
definidos os papéis de cada um no que se refere a ações relacionadas ao consumo de álcool. É
indiscutível que cada setor governamental envolvido nas ações assistenciais considere o significado da
alcoolização a partir das referências da cultura Tenharim dos indígenas do rio Marmelos, e não apenas
sob a ótica reducionista e individualista do modelo biomédico. Para isso, é importante a elaboração de
um instrumento que possa quantificar os problemas relacionados ao álcool, identificando os grupos
vulneráveis e o uso racional de recursos de intervenção.
Os próprios Tenharim reconhecem a necessidade de se organizar o atendimento às pessoas com
problemas com o álcool, apontadas por eles como doentes. Assim, é necessária a realização de
capacitação da equipe multiprofissional que compreenda os aspectos socioculturais, para que atuem no
tratamento e prevenção de abuso de bebidas.
A relação entre o consumo de bebidas e a responsabilidade está presente na grande maioria dos
relatos dos Tenharim do Marmelos. Mas, é necessário que os próprios Tenharim reflitam sobre algumas
questões do seu universo cultural: como se cria responsabilidade? A responsabilidade está relacionada à
identidade? A inserção desse novo grupo – os jovens solteiros –, na sociedade indígena, vem ocorrendo
de maneira adequada? Os ritos de iniciação estão contribuindo para a constituição de um adulto que
mantém sua identidade Tenharim?
Não há, evidentemente, respostas prontas e soluções acabadas. O que se percebe são possíveis
caminhos e alternativas que devem ser discutidos e acordados entre todos os atores sociais envolvidos.
A colaboração e coesão dos lideres é o ponto inicial para a mobilização de organizações e da
comunidade indígena. O trabalho de prevenção e controle das consequências tidas pelos indígenas
como negativas não é uma tarefa fácil, e é fragilizada pelo despreparo dos envolvidos em abordarem o
tema. Reconhecer a alcoolização como um possível agravo importante à saúde e estabilidade social,
compreender as suas diversas interfaces, envolver a comunidade, considerar a sua ocorrência não como
individual, mas como parte do todo, são princípios que respeitam as especificidades de cada
comunidade, a sua realidade local, e proporcionam o desenvolvimento social sustentável.
Colaboradores
Os autores trabalharam juntos em todas as etapas da produção do manuscrito.
Referências
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El objetivo de este trabajo ha sido el de analizar el proceso de alcoholización en las
aldeas de los Marmelos utilizando como método el enfoque antropológico. La forma
como los Tenharim toman la bebida alcohólica está relacionada principalmente a un rito
del pasaje masculino y con normas bien definidas por las familias con sus mecanismos
de protección y control. Fue posible constatar que la alcoholización está siendo
investigada por los indígenas, pero con diferencias en la definición de que sea o no un
problema, lo que fragmenta las acciones desarrolladas la problemática del alcoholismo.
La posición liminar asumida por aquellos que consumen alcohol demuestra la
necesidad de fortalecimiento social de la comunidad.
Palabras clave: Salud y sociedad. Alcoholización. Rito de Pasaje. Tenharim. Amazonas.
artigos
do guia para a gestão autônoma da medicação
ONOCKO CAMPOS, R.T. et al. Multicenter adaptation of the guide for autonomous
management of medication. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.16, n.43, p.967-80,
out./dez. 2012.
Increasing use of psychotropic drugs and O uso crescente de psicofármacos e o Deivisson Vianna Dantas
dos Santos9, Luciana
low empowerment among users have baixo empowerment dos usuários
Togni de Lima e Silva
been shown to be critical factors in mostram-se críticos à qualificação da Surjus10 , Ricardo Lugon
qualifying mental healthcare in Brazil. assistência em Saúde Mental no Brasil. Arantes11, Bruno Ferrari
This study covering three Brazilian cities Este estudo, abrangendo três cidades Emerich12 , Thais Mikie
de Carvalho Otanari 13,
aimed to develop the Brazilian Guide to brasileiras, objetivou a elaboração do Sabrina Stefanello14
Autonomous Management of Medication Guia Brasileiro da Gestão Autônoma da 1,8-10,12-14
Departamento
(GGAM-BR), based on translation and Medicação (GGAM-BR), com base na de Saúde Coletiva,
adaptation of a guide developed in tradução e adaptação de guia Faculdade de Ciências
Médicas, Universidade
Canada, and to evaluate the effects of its desenvolvido no Canadá; e a avaliação Estadual de Campinas.
use on mental health workers’ training. dos efeitos do uso do GGAM-BR na Rua Tessália Vieira de
Intervention groups (IGs) were formed to formação de trabalhadores de saúde Camargo, 126. Cidade
mental. Constituíram-se grupos de Universitária, Campinas,
share experiences relating to drug
SP, Brasil. 13.083-887.
treatment, starting from topics proposed intervenção (GIs) para compartilhamento rosanaoc@mpc.com.br
in the guide. Focus groups were das experiências com tratamento 2,7
Departamento de
conducted before and after the IGs. medicamentoso, a partir dos temas Psicanálise e
propostos no guia; e foram realizados Psicopatologia, Instituto
Important changes in relation to the
de Psicologia,
original text of the Canadian guide were grupos focais antes e após os GIs. Universidade Federal do
implemented to take into account Importantes mudanças em relação ao Rio Grande do Sul
Brazilian realities. It was seen that the texto original do guia Canadense foram (UFRGS).
Brazilian version formed a powerful implementadas, levando em conta a
3,4
Departamento de
Psicologia, Instituto de
strategy for promoting users’ active realidade brasileira. Constatou-se que o Filosofia e Ciências
participation in managing their treatment GGAM-BR constitui estratégia potente de Humanas, Universidade
and the mental health clinic, and that it fomento à participação ativa dos usuários Federal Fluminense.
had a positive impact on healthcare na gestão do tratamento e do serviço,
5
Faculdade de Medicina
(campus Macaé),
workers’ training. incidindo positivamente na formação de Universidade Federal do
trabalhadores. Rio de Janeiro.
Keywords: Mental health. Mental health 6
Instituto de Psiquiatria,
workers’ training. Medication. Autonomy. Palavras-chave: Saúde mental. Formação Universidade Federal do
Psychotropic drugs. de trabalhadores de saúde mental. Rio de Janeiro.
Medicação. Autonomia. Psicotrópicos. 11
Residência Integrada
em Saúde Mental
Coletiva, UFRGS.
Introdução
artigos
psicofármacos. Uma das concepções centrais no Guia é a de que o tratamento em
saúde mental é mais do que o uso de medicamentos, e que as pessoas são mais
do que uma doença, não podendo ser reduzidas aos seus sintomas.
Entendendo que tal recurso possibilitaria o enfrentamento da utilização pouco
crítica de medicamentos também no Brasil, este estudo teve por objetivos, por um
lado, a elaboração do Guia Brasileiro da Gestão Autônoma da Medicação (GGAM-
BR), com base na tradução e adaptação do guia canadense, e sua aplicação em
Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) de três cidades brasileiras; por outro, a
avaliação dos efeitos do uso do GGAM na formação de trabalhadores de serviços
de saúde mental. E, ainda, objetivou estudar se o contexto brasileiro exigiria
adaptações importantes do material canadense ou se ele se aplicaria tal qual à
realidade brasileira.
Campo do estudo
15
Elaborado com base em
Este estudo envolveu quatro universidades públicas brasileiras, nas áreas de
Pesquisa avaliativa de medicina, saúde coletiva e psicologia, e foi realizado nas cidades do Rio de
saúde mental: Janeiro/RJ, Campinas/SP e Novo Hamburgo/RS, escolhidas por suas diferentes
instrumentos para a
qualificação da utilização trajetórias culturais, regionais e redes de saúde15. Por se tratar de uma pesquisa
de psicofármacos multicêntrica, em cada campo, contou-se com a participação de pesquisadores
e formação de recursos
humanos, de Rosana responsáveis e suas equipes, incluindo mestrandos, doutorandos, alunos de
Teresa Onocko graduação, residentes (de psiquiatria e multiprofissionais) e profissionais da rede
Campos; Eduardo
Passos; Erotildes
de saúde mental de cada cidade, além de usuários com participação ativa em
Leal; Analice todas as etapas do processo da pesquisa (Tabela 1).
Palombini; Octavio
Serpa; 2008 (Proc.
575197/2008-0, Edital
MCT/CNPq/CT-Saúde/
MS/SCTIE/DECIT nº 33/
2008 - Saúde Mental).
Metodologia
Reuniões
1ª versão
X multicêntricas X versão final
Diários de
X
campo
GI 20 encontros, 9 usuários Com sugestões
Rio de Janeiro e 3 pesquisadores provenientes dos diários
T T de campo
*Em Novo Hamburgo, foram realizados, em T0, GF com usuários e residentes e E com gestores; em T1, GF com usuários e residentes e E com
trabalhadores. Em Campinas, foram realizados GFs e E em todas as categorias propostas tanto em T0 como em T1. No Rio de Janeiro, foram
realizados, em T0, GF com usuários e familiares e E com gestores e trabalhadores; em T1, GF apenas com usuários.
Além dos GIs, realizaram-se grupos focais (GF) com usuários e familiares e entrevistas (E) com
artigos
gestores e trabalhadores, antes (GF0) e depois (GF1) dos grupos de intervenção, buscando aproximar-se
à experiência dos participantes com foco nos seguintes temas: uso de medicamentos psiquiátricos na
relação com a autonomia e os direitos dos usuários; valorização do contexto do usuário; capacidade de
gestão e compartilhamento de decisões (usuário e equipe); direitos do usuário, em especial no que se
refere à medicação (acesso, informação, recusa); tomada da palavra (voz do usuário no serviço e na
relação médico/paciente); experiência de uso de psicofármacos.
Os grupos focais e entrevistas foram audiogravados e transcritos integralmente. Essas transcrições
deram origem a narrativas (Onocko, Furtado, 2008). Os diários de campo dos GIs também foram
tomados e organizados como narrativas. As narrativas foram construídas por aqueles que haviam sido os
condutores de cada grupo e/ou entrevista e validadas, posteriormente, por outro pesquisador. Com os
usuários, as narrativas validadas dos GF0 e GF1 foram a eles apresentadas para uma validação final “ o
que temos chamado de grupo focal hermenêutico (Onocko Campos, 2012), com base nas formulações
de Ricoeur (1990) acerca da função da narrativa (Ricouer, 1997). Os usuários, no encontro com o texto
produzido com suas vozes, julgaram se seus relatos estavam ali contemplados, contribuindo para a
compreensão dos pesquisadores. As equipes de pesquisa de cada campo produziram uma primeira
análise do material oriundo de seu campo, organizando-o por vozes (usuários, trabalhadores, gestores,
familiares e residentes). Num segundo momento, foi realizada uma meta-análise de todos os campos
por voz e, posteriormente, uma comparação das contribuições dos diferentes campos, cumprindo com o
preceito hermenêutico de passar várias vezes pelo mesmo lugar, mas com uma compreensão diferente
(Gadamer, 1997).
A pesquisa, com aprovação pelo Comitê de Ética, respeitou os aspectos éticos e legais implicados no
trabalho com pessoas, sobretudo sendo as mesmas usuárias da rede de saúde mental.
Resultados
GGAM-BR
dicotomia operada pelos técnicos (trabalhadores e acadêmicos) que talvez não fizesse sentido aos
artigos
usuários. Ouviu-se, então, o depoimento de uma usuária sobre a importância dessa frase para a reflexão
que pôde fazer acerca de si mesma, enquanto outro usuário ponderava que não se pode negar que há
uma doença. Entre prós e contras, decidiu-se pela manutenção da frase. Garantir uma certa identidade
com o movimento canadense, que a tinha como mote, foi um dos argumentos para mantê-la, mas a
seu favor pesou, sobretudo, a defesa dos usuários de que era um dito importante para eles.
Outro termo que gerou impasse foi o de “necessidades básicas”. Durante os GIs, os usuários,
informados do sentido do termo, tiveram, a partir dele, oportunidade de uma participação ativa no
debate proposto. Tratava-se de um trecho do guia em que os usuários indicavam o que entendiam
como suas necessidades básicas e quais estavam sendo atendidas ou não. Porém, pesquisadores do
grupo têm, há muitos anos, problematizado o uso desse conceito na área da saúde coletiva, pois
defendem que há algo além de necessidades quando pensamos a existência humana. A decisão, nesse
caso, contemplou especialmente as impressões (o protagonismo) dos pesquisadores. O termo
“necessidades básicas” foi substituído por “o que você precisa pra viver” (Marques, 2012).
De modo geral, a versão final acolheu sugestões de acréscimos e alterações, simplificação de frases
e palavras e formulação de perguntas abertas - a fim de permitir que os usuários viessem a expressar o
saber próprio à sua experiência e que, com o aporte das informações pertinentes, se estabelecessem
trocas e reflexões entre os participantes de um grupo de intervenção com uso do guia.
Chamou atenção a necessidade de adaptação cultural, em especial com respeito a três aspectos: os
direitos cidadãos, o impacto da medicação nas relações amorosas e sexuais, e o acesso ao trabalho e à
geração de renda. Em relação ao primeiro aspecto, o não-reconhecimento de si como sujeito de
direitos exigiu maior detalhamento, para os usuários brasileiros, daquilo que se configurava como seu
direito no contexto do tratamento, desde, por exemplo, o direito de acesso à bula do medicamento que
lhe era ministrado até o direito de recusa do tratamento proposto. Quanto ao segundo e terceiro
aspectos, os usuários brasileiros insistiram na importância desses temas (relacionamento amoroso e/ou
sexual e trabalho ou geração de renda) e de sua inclusão de forma destacada no Guia, na medida
mesma em que o adoecimento e a medicação lhes privavam da possibilidade de exercício pleno desses
aspectos da vida. Em relação ao trabalho, valorizavam não somente a perspectiva de ganho financeiro,
mas a experiência de se sentirem úteis. Com respeito aos relacionamentos, levavam em conta tanto a
sua dimensão afetiva e duradoura quanto as condições para um desempenho sexual satisfatório.
A versão final do GGAM-BR também requereu uma importante adaptação da estrutura escrita,
valorizando-se frases curtas e simples, de fácil compreensão. Esse aspecto ressalta a distância entre
usuários canadenses e brasileiros no que toca ao perfil educacional.
Usuários
A falta de informação sobre a medicação perpassou todas as narrativas GF0. Os usuários relataram
dificuldades e receio em conversar com os médicos, vistos como quem detém autoridade. Após os GIs
(narrativas GF1), demonstraram maior conhecimento sobre o que tomam e para que, e passaram a
reconhecer autoridade em si próprios (advinda da experiência), e não apenas nos médicos. Mantiveram,
porém, a percepção de que os profissionais seriam superiores e possuiriam o poder de decisão sobre o
tratamento. Problematizaram, sobretudo, o modo como são atendidos, identificando razões para as
dificuldades que enfrentam, não referidas somente à postura do médico, mas também à dinâmica de
trabalho instituída. E, em todos os campos, ao longo dos GIs, houve usuários que, mobilizados pelas
discussões nos grupos, buscaram conversar com seus médicos, visando ajustes no uso de algum
medicamento.
Quanto à experiência pessoal relacionada à medicação, em GF0, os usuários identificaram que o
medicamento ajuda a combater as doenças e permite a realização de atividades cotidianas, mas
enfatizavam o incômodo com seus efeitos colaterais, bem como a preocupação com a grande
quantidade de fármacos de que fazem uso.
Em GF1, foi manifestação corrente que a medicação pudesse ser diminuída, mas não retirada,
persistindo a prioridade da prescrição medicamentosa na formulação do projeto terapêutico, mesmo se
as narrativas diziam de seus limites e danos.
Percebeu-se, em GF1, um interesse pelo tema dos direitos, ausente das discussões em GF0.
Apontaram o reconhecimento do direito de participar do tratamento, de ver seu prontuário e de obter
informações. Após os GIs, os usuários buscaram mais frequentemente participar da gestão dos seus
serviços. E, ainda, afirmaram que o GGAM ajudou a ampliar o leque de discussão sobre os direitos, não
ficando restrito à saúde, mas incluindo, também, as condições de vida e acesso à moradia.
Os usuários valorizaram o papel da família, dos amigos e do próprio CAPS no suporte ao tratamento.
Porém, expressaram enfrentar a estigmatização por parte desses mesmos atores. Dois aspectos
apareceram como determinantes das situações de estigma: ser visto como doente psiquiátrico e
vivenciar a perda ou redução da capacidade de lidar com situações corriqueiras de suas vidas.
Trabalhadores
Familiares
Houve diferenças no modo como este segmento foi acessado nos campos, por contingências de
cada local. Em Campinas, o GF0 contou com familiares dos dois GIs. No Rio, ocorreu apenas um grupo
no início do processo e, em Novo Hamburgo, os grupos com familiares não foram realizados.
As narrativas expressaram o desejo de conhecer melhor e participar mais ativamente do tratamento
proposto ao seu familiar. Os familiares ressentiam-se da ausência de espaços de escuta e de
compartilhamento de decisões. Consideraram que a proximidade entre equipe, usuários e família inibia
artigos
eventuais reclamações por parte dos familiares quanto aos cuidados despendidos, pois esse cuidado era
visto como um favor, não como um direito, o que se pode reportar a um tipo de vínculo, de caráter
paternalista, comum na sociedade brasileira.
Sobre a experiência da medicação, manifestaram dúvidas e incertezas, seja quanto a sua indicação
(“por que esquizofrênico toma remédio para epiléptico?”), seja quanto aos efeitos, na velhice, do seu
uso prolongado. Ressaltaram, também, o sofrimento da família em função do transtorno mental que
acomete um de seus membros, com anuência quanto à importância da oferta de tratamento
psicoterápico ao grupo familiar.
Quanto à influência das relações familiares no processo de adoecimento dos usuários, houve desde a
negação dessa influência até o seu reconhecimento, passando pela hipótese da hereditariedade da
doença. A negação de qualquer correlação entre a qualidade das relações familiares e os transtornos
mentais foi recorrente nas narrativas.
No que se refere à valorização do contexto de vida, houve concordância quanto à sua importância
para o bem-estar dos usuários. Porém, ora a ênfase era colocada num contexto de relações que
privilegiava os espaços religiosos (campo carioca), ora fazia-se referência a reuniões e eventos sociais
não necessariamente vinculados à religiosidade (campo campineiro), o que pode apontar para diferenças
culturais e políticas das cidades-campo do presente estudo. Tais diferenças entre os campos
apresentaram-se, também, em relação à temática dos direitos de usuários: enquanto um dos grupos
(campo campineiro) revelava conhecimento sobre o assunto, embora enfatizasse que havia uma
distância entre saber sobre um direito e poder exercê-lo de fato; no outro grupo (campo carioca), o
tema suscitou pouca conversa, revelando falta de interesse sobre o mesmo por parte significativa dos
participantes.
Gestores
O contato com a gestão nos diferentes serviços respeitou a disponibilidade e arranjos de gestão
singulares a cada campo: dois grupos focais com o Colegiado de Gestão do CAPS de Campinas; duas
entrevistas com a gestora do CAPS de Novo Hamburgo; e, no Rio de Janeiro, uma única entrevista com
a gestora do CAPS.
Houve consenso sobre a importância de a tomada de decisões do serviço ser construída com a
participação dos membros da equipe, embora sem referência a uma participação efetiva dos usuários e
de seus familiares. Nesse sentido, reconheceram-se tão somente aqueles direitos dos usuários que não
geram grandes confrontos com a equipe: o acesso aos serviços é um direito; a recusa à medicação, nem
sempre.
As narrativas manifestaram preocupações éticas e clínicas, no sentido de se construírem espaços que
potencializem o vínculo com o usuário quando este toma decisões sobre sua medicação sem
negociação com a equipe. Apontaram estratégias de manejo nos casos de usuários que suspendem a
medicação. Referiram-se seja a usuários que, tendo decidido não usar medicamentos, puderam manter-
se sob tratamento (sem medicação) pela equipe, seja a usuários para quem a medicação foi imposta
como meio de garantir sua integridade física ou a dos que estavam a sua volta. Apontaram, ainda,
estratégias para garantir e auxiliar o uso do medicamento para aqueles que não o faziam por
dificuldades com o manejo dos comprimidos: doses diárias no serviço, doses individuais para levar para
casa etc.
Foram valorizados recursos de aproximação dos trabalhadores à realidade dos usuários em
acompanhamento, como as visitas domiciliares, apesar de esses recursos serem quase integralmente
operados pela equipe de enfermagem.
Os gestores avaliaram que um grupo que se destina à discussão sobre medicação favorece o
questionamento de formas já naturalizadas na relação com os usuários, ao mesmo tempo em que
constitui uma ação no limite entre cuidado e controle.
Residentes
Foram consideradas as narrativas dos GFs de Campinas (quatro residentes em Psiquiatria da Unicamp,
do primeiro ano) e Novo Hamburgo (dois residentes do programa de Saúde Mental Coletiva da UFRGS,
também do primeiro ano, recém ingressos na Residência).
Foi unânime, entre os residentes, a opinião de que, quando o usuário interrompe a medicação, disso
não deveria decorrer a interrupção do tratamento. Embora, por um lado, afirmassem que, nesses casos,
é necessário repensar o tratamento proposto, por outro, indicaram como direção do trabalho a busca de
estratégias junto ao usuário que o levassem a retomar o uso do medicamento.
No tema da cogestão do projeto terapêutico, residentes multiprofissionais reportaram-na ao
empowerment da equipe, e não do usuário, enquanto os residentes de psiquiatria defenderam a
inevitabilidade da assimetria na relação médico-paciente, sustentando que o médico possui um
conhecimento (técnico) do qual o usuário carece.
Todos apontaram a importância do envolvimento e acompanhamento da família. Os residentes
médicos, porém, trouxeram reflexões específicas da prática de quem prescreve e diferenciaram os
usuários psicóticos dos demais, no quesito autonomia, condicionada, no caso, à qualidade do “juízo” do
paciente. Manifestaram, por outro lado, seu incômodo em relação aos efeitos colaterais que afetavam
aspectos importantes da vida do paciente. Afirmaram que, na sua formação, foram levados a considerar
o contexto do usuário - família, moradia, modo de vida, cultura e história -, porém de forma pontual ou
descolada da experiência.
No GF1, residentes multiprofissionais ampliaram a noção de contexto, entendendo que a família e
toda a rede de relações do usuário no território fazem parte do processo de saúde-doença; já os
residentes em psiquiatria referiram a importância do contexto na prescrição medicamentosa, quando é
preciso avaliar se o usuário tem condições econômicas de adquirir algum medicamento específico.
Houve discrepância nas narrativas sobre o tema dos direitos em um e outro grupo de residentes.
Residentes médicos afirmaram, tanto em GF0 como em GF1, que o médico e a família têm, por lei,
direito e obrigação de decidirem contra a vontade do usuário, quando avaliado que esse não tem
autonomia e põe em risco sua vida e/ou a de outros. Contudo, ponderaram que o usuário tem direito
de reclamar da conduta do médico, sendo que, no GF1, puderam especificar os lugares aos quais
dirigir-se para isso. Já os residentes multiprofissionais, embora reconhecendo que os usuários têm
direitos com relação ao seu tratamento, não souberam indicar qual legislação trata desses direitos.
Todos reconheceram os GIs como lugar privilegiado de escuta, em que acessaram aspectos de vida
dos usuários que não conheciam antes e que passaram a levar em conta em sua prática. Os residentes
multiprofissionais entenderam as vivências dos usuários como conhecimento a ser incluído no projeto
terapêutico. Os residentes médicos, por sua vez, mencionaram que a experiência GAM propiciou-lhes
uma escuta mais aberta, atenta ao contexto do usuário, mas sem referência à sua participação na
construção do projeto terapêutico (Otanari, 2011).
Discussão
consequência do trabalho com o GGAM. A falta de espaços formais, nos serviços, para informação aos
artigos
usuários sobre a medicação foi naturalizada, em um primeiro momento, pelos próprios usuários. Equipes
e gestores naturalizaram também a exclusiva competência do médico sobre essas questões, o que
configura um desafio a mais na busca de uma maior qualidade da assistência, de caráter integral. Essa
falta de capacitação e, mesmo, de interesse sobre a medicação, por parte dos profissionais não
médicos, coloca-se como um entrave à qualificação da assistência, indicativo de um campo temático
sobre o qual, no CAPS, não se discute. Isso contrasta com algumas experiências internacionais, inclusive
com a que deu origem ao instrumento que traduzimos e adaptamos (Rodriguez, Corin, Poirel, 2001).
Considerando que a medicação de que falamos não opera cura e, sim, controle de sintomas, cabe
questionar: em que momento o seu uso se tornaria “ótimo” para um dado sujeito em sofrimento?
Quais sintomas suprimir ou aliviar e em que grau? Qual a tolerância a efeitos indesejados que um dado
sujeito estará disposto a suportar e por quanto tempo? E como responder a essas questões sem a
participação do próprio usuário? Como operar adequadamente com o recurso psicofarmacológico sem
contar com alguma instância de análise da experiência de seu uso? Como abordar essa experiência, que
é do outro, sem se abrir à sua palavra?
Considerações finais
Pelo presente estudo, constatamos uma falta significativa de espaços para informação e reflexão
sobre a medicação nos CAPS participantes da pesquisa, assim como uma baixa qualificação, em geral,
dos trabalhadores desses serviços para apoiarem os usuários em relação a um tema tão relevante e de
tamanho impacto no seu dia a dia.
Também pudemos revelar a tensão ou contradição reinante nos serviços, com persistência do
estigma e manejos tutelares que se ancoram ainda na suposta “falta de racionalidade” dos pacientes
graves. O GGAM mostrou-se potente para instituir espaços de fala a respeito da medicação, chamando
a atenção da equipe e dos gestores sobre a importância desse tema, cujo enfrentamento não se
restringe à clínica, mas tem consequências éticas e políticas. Fez reafirmar os direitos dos usuários,
trazendo sua discussão à tona entre usuários, suas famílias e equipes. E, ainda, imprimiu, na relação com
o usuário, uma abordagem dinâmica, plasticamente adaptada ao momento singular da vida de cada um.
A relevância e abrangência de seus efeitos são indicativas de que a GAM não se reduz ao uso do guia
como instrumento técnico, como protocolo de passos a nortear a discussão sobre medicação e direitos
dos usuários. O GGAM-BR deve ser entendido como um dispositivo complexo, que envolve o serviço
de saúde mental como um todo, em suas várias dimensões, desde a política à gestão, ao cuidado, à
ambiência e ao controle social, considerando o cuidado à saúde como processo relacional.
Assim, interessa-nos acompanhar o modo como o produto principal desta pesquisa será doravante
utilizado, em consonância com as ideias e o processo de trabalho que lhe deram origem. O GGAM-BR
resultou de uma construção coletiva, em que se somaram a trajetória do grupo canadense e a dos
diversos grupos de pesquisa brasileiros participantes, em interlocução com gestores, trabalhadores,
residentes, usuários e seus familiares. Pretendemos que o seu uso siga ocorrendo junto aos serviços e
em grupo, na perspectiva de participação ativa de todos os envolvidos, convocando ao diálogo os seus
diversos atores. Com esta preocupação, na sequência desta pesquisa, demos início a nova investigação
em diferentes CAPS de Campinas, região metropolitana de Porto Alegre e Rio de Janeiro, em grupos de
intervenção com uso do GGAM-BR, com vistas à validação desse instrumento e à construção de
estratégias para sua disseminação junto aos serviços de saúde mental, preservando seu caráter
participativo e cogestivo – dentre estas estratégias, a redação de um manual de uso do guia.
Consideramos fundamental, para esse propósito, que o Guia possa ser disponibilizado nos espaços de
formação de trabalhadores de saúde, como residências médicas e multiprofissionais e processos de
educação permanente.
Para concluir, como se tratou de uma pesquisa qualitativa, não nos referimos a seus possíveis vieses
e, sim, a suas limitações. Dentre elas, o fato de não termos podido contar com um campo na região
Norte/Nordeste do país não nos permitiu abranger uma diversidade maior das trajetórias culturais e
políticas que compõem o território nacional. Também a participação de residentes nos grupos GAM foi
menor que a planejada, pela dificuldade de fazer coincidir o cronograma da pesquisa com o das
respectivas residências. E, ainda, algumas diferenças entre os campos apontam para a complexidade e o
desafio de se realizar pesquisa qualitativa multicêntrica, uma vez que a padronização sucumbe ante as
singularidades de cada campo. Assim, as condições de entrada nos serviços, de recrutamento de
participantes, entre outras, variaram necessariamente de acordo com a conformação dos serviços em
cada cidade e com a capacidade de negociação dos pesquisadores. Contudo, os achados foram tão
coincidentes em relação aos aspectos apontados como resultados que consideramos ter atingido um
grau de saturação apropriado ao objeto desta investigação.
Por último, destacamos que a adaptação de material internacionalmente reconhecido não se faz sem
um prolongado processo de elaboração. Meras traduções e testes podem não servir para adequar esses
instrumentos à realidade brasileira ou à de outros países em desenvolvimento. Fatores como nível de
escolarização e renda, grau de validez dos direitos em termos de cidadania, questões culturais como o
valor atribuído à sensualidade, conforme mostrado pelos nossos sujeitos de pesquisa, indicam que as
adaptações qualitativas têm um caminho a ser explorado na saúde coletiva. Nesse sentido, cabe
considerar que a incorporação de avanços produzidos por nossos colegas de países mais desenvolvidos
talvez requeira, sempre, uma certa dose de antropofagia.
Colaboradores
Os autores trabalharam juntos em todas as etapas do manuscrito.
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out./dez. 2012.
El uso creciente de psicofármacos y la baja autorización de usuarios son críticos para la
cualificación de la asistencia en Salud Mental. Este estudio, realizado en tres ciudades
brasileñas, tuvo como objetivo la elaboración del Guía Brasileño de Gestión Autónoma
de la Medicación (GGAM-BR), basándose en la traducción y adaptación del GGAM
desarrollado en Canadá; y la evaluación de los efectos del uso del GGAM en la
formación de trabajadores de salud mental. Fueron realizados grupos de intervención
(GIs), compartiendo experiencias a partir del Guía y grupos focales antes y después de
los GIs. Importantes cambios con relación al texto original fueron implementados,
considerando la realidad brasileña. El GAM es potente para fomentar la participación
activa de los usuarios en la gestión del tratamiento y del servicio en que se atienden e
incide positivamente en la formación de los trabajadores.
Palabras clave: Salud mental. Formación de trabajadores de salud mental. Medicación.
Autonomía. Psicofármacos.
artigos
no processo de socialização profissional:
por uma formação ética*
Mirelle Finkler1
João Carlos Caetano2
Flávia Regina Souza Ramos3
FINKLER, M.; CAETANO, J.C.; RAMOS, F.R.S. Ethical-pedagogical care in the process of
professional socialization: towards ethical education. Interface - Comunic., Saude,
Educ., v.16, n.43, p.981-93, out./dez. 2012.
Introdução
artigos
professores e na organização das aulas (Cortina, 2003), bem como os efeitos da produção do cuidado
para o outro e para si, vinculando-se ao desenvolvimento de atitudes, valores e ideologias. O currículo
oculto consiste, portanto, na transmissão de uma cultura particular através de processos de socialização
pelos quais o estudante toma para si, como próprios, os modos de comportamento e os valores
dominantes no grupo profissional ou social. Trata-se de um processo quase imperceptível e
concomitante com a aprendizagem formal, através do qual o estudante incorpora a cultura social/
profissional, identifica os atributos que gozam de prestígio profissional e adquire uma escala de valores
(Galli, 1989).
Para Appel (1982), a hegemonia – a preservação e o controle de determinadas formas de ideologia –
é produzida e reproduzida pelo corpus formal do conhecimento escolar e, também, pelo ensino oculto.
Os estudantes aprendem essas normas sociais sobretudo por tomarem parte nos encontros e tarefas
diárias da vida na sala de aula; muitas das quais serão empregadas em áreas da vida futura, o que
documenta como a escolarização contribui para o ajustamento individual a uma determinada ordem
social, política e econômica. A transmissão dos conhecimentos científicos, desvinculada da estrutura da
comunidade na qual se desenvolveu e que atua para criticá-lo, leva os estudantes a interiorizarem uma
visão que possui pouca força para questionar a legitimidade das suposições tácitas sobre os conflitos
interpessoais que dirigem suas vidas e as situações educacionais, econômicas e políticas. Isto reforça seu
quietismo e justifica as regras fundamentais de pensamento que fazem com que qualquer outra visão
do conhecimento pareça não natural.
Estas questões precisam ser exploradas se queremos conhecer como ocorre a formação ética dos
estudantes, pois estão intimamente relacionadas com a educação moral e com o desenvolvimento da
capacidade de crítica e de reflexão, no âmbito universitário, que tomam parte no processo de processo
de socialização profissional.
O desenvolvimento moral pode ser entendido como o processo de valoração de atos,
comportamentos e características do indivíduo, tais como: a capacidade de refletir sobre aspectos morais
e realizar julgamentos pessoais de ordem moral, escolhendo entre o que é certo e errado, justo ou
injusto, bom ou mau. É através do desenvolvimento moral do estudante que a dimensão ética da
formação profissional se processa, devendo buscar uma capacidade de raciocínio autônomo que
contribua para uma atuação profissional capaz de conviver em uma sociedade democrática e pluralista, e
direcionada a buscar relações sociais mais justas e humanizadas (Rego, 2003).
Por formação ética, ou melhor, pela dimensão ética da formação profissional, entende-se o ensino/
aprendizagem/ vivência da ética em bases não deontológicas, compromissado com o desenvolvimento
e a realização de valores humanizadores e com a conformação da identidade profissional durante a
graduação. Ou seja, envolve tudo aquilo que contribui para que o profissional pense, aja e reaja às
situações profissionais de determinada forma ou com determinado padrão de atitudes (Rego, 2003).
A dimensão ética da formação profissional estende-se desde as influências do processo de
socialização primária, que se inicia precocemente na infância, até as questões diretamente
relacionadas ao desenvolvimento moral, que acontece durante a graduação, passando pelo mundo da
profissão e do trabalho em saúde, pelas particularidades da formação profissional em saúde, pelo
processo de socialização profissional e pelo currículo formal e oculto. Na interface destes
conceitos, o objeto desta pesquisa pôde ser delimitado em um marco conceitual (Finkler, Caetano,
Ramos, 2012), direcionando a busca de estratégias metodológicas que possibilitassem compreender
como vem sendo desenvolvida a dimensão ética dos futuros profissionais de saúde, mais
especificamente, de estudantes de Odontologia.
Neste texto, discutem-se achados de pesquisa relacionados à categoria temática “cuidado”, que
emergiu da análise dos elementos presentes no currículo oculto que foram investigados, tais como: as
relações intersubjetivas (questões de poder, de lideranças e de relacionamentos entre docentes,
estudantes e pacientes), os modelos profissionais e as vivências acadêmicas. A reflexão sobre os
cuidados necessários com os estudantes, e também com seus professores, pretende sensibilizar para a
criação de estratégias humanizadoras do processo de socialização profissional.
Método
Tabela 1. Total de cursos/faculdades de Odontologia selecionadas para a amostra, por financiamento e por regiões.
Respeitada esta distribuição, a seleção dos cursos foi definida intencionalmente, para que faculdades
de relevância destacada no cenário nacional fossem incluídas, bem como algumas participantes do Pró-
Saúde – o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde. Isto porque a
amostragem em pesquisa qualitativa deve se esforçar para que a escolha do lócus e do grupo de
sujeitos contenha o conjunto das experiências e expressões que se pretende objetivar com a pesquisa,
do que decorre que o conhecimento, as experiências e os contatos anteriores do pesquisador são
pontos de partida. Nestes casos, a representatividade numérica é menos importante do que a análise da
questão-problema sob várias perspectivas, pontos de vista e de observação, sendo que a validade destas
amostragens consiste na capacidade de objetivar o objeto empiricamente (Minayo, 1999).
Dos 17 cursos selecionados, apenas dois privados da região sudeste se recusaram a participar,
ficando a amostra composta por 15 faculdades, sendo cinco públicas (uma de cada região) e dez
privadas (uma no nordeste, outra no centro-oeste, seis no sudeste e duas no sul). Deste modo,
considerou-se a perda pouco significativa para a composição adequada da amostra.
A partir dos primeiros resultados, alcançados por meio de um questionário aplicado aos
coordenadores (Finkler, Caetano, Ramos, 2011), elegeram-se os dois cursos cuja classificação inicial
demonstrou estarem em situações mais distintas entre si sobre como têm desenvolvido a dimensão
ética da formação de seus estudantes (um público e o outro privado, de diferentes regiões, não
identificadas para assegurar o anonimato). Vale ressaltar que o objetivo não consistia em realizar
comparações entre os cursos selecionados, mas somar evidências para este estudo de caso nacional, a
partir de uma aproximação mais concreta com a realidade acadêmico-pedagógica.
Para tanto, foram realizados: entrevistas semidirigidas com professores e estudantes, observação
direta de atividades acadêmicas, e grupos focais com alunos, permitindo a triangulação dos achados. Em
todas estas estratégias, a amostragem foi delimitada pelo critério de saturação dos dados.
4
As demais categorias A metodologia desenvolvida permitiu a compreensão dos fatores vivenciados no
artigos
temáticas estiveram
relacionadas a ambiente acadêmico que tomam parte na formação ética dos estudantes, resultando
“modelos em três grandes categorias temáticas4, entre as quais a categoria intitulada
profissionais,
mercados de trabalho,
“cuidado”, que é discutida a seguir.
imagens e posições
de poder” e à “ética
no processo de
socialização Resultados e discussão
profissional” (Finkler,
2009).
Cuidar possui múltiplos sentidos, assumidos de diversos modos pelas práticas
profissionais, com maior ou menor relevância, especialmente quando se trata de
produzir cuidado em saúde ou produzir conhecimento e fundamentação acerca do
cuidado (Henriques, Acioli, 2004). Aqui, assume-se a perspectiva de cuidado como
preocupação, atenção, disponibilidade, escuta e apoio, reconhecendo-se que o bem-
estar, o crescimento e o viver melhor do outro (no caso, o estudante) são
fundamentais nas decisões sobre como agir nas relações.
Parte-se da premissa de que o cuidado em si é uma das formas mais relevantes
de atuação na formação ética do ser humano, pois quem foi cuidado e se sente
cuidado terá mais condições de cuidar dos outros. Ao mesmo tempo, a escola é um
espaço de cuidado compartilhado, de intervenções significativas para a construção de
vínculos que permitam desenvolver o cuidado nas relações consigo e com os outros
(Scortegagna, Alvarez, 2008).
O cuidado com os estudantes (e também a falta de cuidado) foi uma das
questões mais significativas que emergiram da análise dos dados. Entre os cuidados
percebidos, destaca-se a disponibilidade de apoio institucional de caráter
psicopedagógico e de assistência social, e a adoção da figura do tutor como um
professor que deve se aproximar mais da turma e de cada um dos estudantes,
mediando a resolução de conflitos (muito embora este papel requeira uma assessoria
psicológica para que possa ir além do bom senso e do senso comum ao adentrar no
universo psíquico dos acadêmicos).
“Tem aluno aqui que a gente se pergunta se está aqui para estudar
artigos
ou para traficar... Eles ameaçam a gente no corredor... Têm casos que
se aborda a família, têm casos que a gente deixa passar pela
periculosidade [...] a gente deixa se formar rápido para sair”.
(entrevista com professor do curso privado)
se faz mais isso. A gente tenta fazer o mais enxuto possível”. (entrevista com o professor 1
artigos
do curso privado)
O Projeto de Lei 3627/2004, se aprovado, forçará a tomada de outras medidas, pois prevê a reserva
compulsória de, no mínimo, 50% das vagas das universidades federais para estudantes que tenham
cursado integralmente o Ensino Médio em escolas públicas, incluindo proporcionalidade para grupos
étnicos/ raciais de acordo com a proporção em cada unidade federada (Brasil, 2004). Se o conflito ético,
engendrado até então pela presença de alguns estudantes de menor renda, não produziu mudanças
significativas nos cursos, a crise que a entrada de um maior número destes alunos provocará não dará
alternativa aos cursos exceto pensar em estratégias urgentes para lidar com a questão, como idealiza um
dos estudantes:
“O meu sonho era montar um banco de materiais aqui na Faculdade. Que o centro
acadêmico pudesse emprestar (materiais) e conversar com os professores para rever a lista”.
(entrevista com estudante do curso público)
Mas para além das preocupações meramente técnicas acerca de como possibilitar a conclusão do
curso por estes estudantes, será preciso, também, enfrentar o desafio ético que se coloca – uma vez
que é possível ouvir, entre docentes, uma crítica ao “empobrecimento” dos cursos e da própria
profissão pela inclusão de estudantes de mais baixa renda, o que parece querer legitimar a ordem social
vigente e a manutenção do status quo de determinados interessados, ao menosprezar o conflito latente
e as mudanças que se fazem necessárias.
Esta visão hegemônica e interessada, que se revela descomprometida com a função da universidade
enquanto instância de transformação da sociedade a que deveria servir, remete-nos a uma avaliação
também insatisfatória sobre a formação ética de nossos professores. Se, para aprenderem a cuidar,
nossos estudantes precisam ser cuidados, o mesmo se pode afirmar em relação aos seus docentes.
A capacitação, o interesse e o desempenho dos professores influenciando a dimensão ética da
formação profissional foi outro ponto bastante evidenciado na coleta de dados. Evidentemente, há uma
grande variação no quanto os docentes se dedicam, havendo professores que se entregam ao curso,
engajando-se no planejamento das atividades acadêmicas, buscando uma participação ativa e coletiva e
atuando de forma autocrítica, enquanto outros demonstram menos interesse e comprometimento.
“Parecem assim... que é uma seita, porque eles vendem a alma para a faculdade, ou seja, se
dedicam demais [...] os professores na aula tem uma postura de seriedade muito grande”.
(entrevista com estudante do curso público)
“Isso aqui é minha vida e a minha vida não pode ser de qualquer jeito [...] Eu não tenho
aquela coisa de ensinar só para quem quer, sabe? Eu tento ainda sensibilizar quem não quer.
Eu dou aula e quero que todo mundo preste atenção! Eu quero que todo mundo esteja
lendo... eu sei que é querer demais. Às vezes, falo: “gente eu tenho que lutar para ser
professora, eu tenho que lutar para ensinar!” [...] Tem professor que vem pegar um salário”.
(entrevista com o professor 4 do curso privado)
Uma vez que os professores são tomados como modelos de atuação profissional (Martínez, Estrada,
Bara, 2002) – suas condutas, mais ou menos responsáveis e comprometidas, e o cuidado que exercem
com os pacientes das clínicas odontológicas de ensino e com os próprios estudantes –, acabam por
influenciar a formação de seus estudantes, seu julgamento do que é certo ou errado, do que é normal,
enfim, do que é aceitável. Além disto, a maior ou menor dedicação dos professores também repercute
no entusiasmo da instituição frente às mudanças curriculares e nas possibilidades de avanços, à medida
que o corpo docente se conscientiza e se empenha na tarefa.
Pode-se, assim, compreender os diferentes níveis de mudanças na formação realizadas pelos cursos
de Odontologia, ou seja, porque, em algumas faculdades, as mudanças têm sido mais superficiais,
enquanto, em outras, têm ocorrido de forma mais significativa. Mas também as diferentes visões e
interesses, às vezes favoráveis à manutenção do status quo, são relevantes.
“É interessante ver o seguinte: a reforma curricular foi querida por todos... Efetivamente
participaram, mas não com a mesma visão [...] determinados professores, determinadas
disciplinas, mais tradicionais, dentro da clínica, aquela coisa toda... não tinha essa visão [da
importância do trabalho multidisciplinar e integrado] e eu achei que elas também não
modificaram a visão”. (entrevista com o professor 4 do curso público)
“Teve professor que pediu a demissão porque não conseguiu se adequar a esse novo estilo:
é mais flexível, é mais interdisciplinar, você conversa mais, você põe mais o pensamento...“.
(entrevista com o professor 4 do curso privado)
Por outro lado, os estudantes (quase todos ainda adolescentes) comportam-se, de um modo geral,
de forma indisciplinada e desrespeitosa, demonstrando pouco interesse, além de desmotivação.
Determinadas atitudes parecem querer desafiar o professor, de um modo parecido com o que fazem as
crianças quando testam os limites estabelecidos pelos pais. É preciso lembrar que a socialização
profissional não deixa de ser um processo de educação ou de desenvolvimento moral, como é também
a socialização primária na infância precoce, onde a passagem da coerção à cooperação, ou seja, da
submissão às ordens externas (heteronomia) para a autonomia, é um ponto essencial.
Embora Piaget considerasse que a socialização era limitada à infância e que a adolescência seria o
período biográfico de conclusão deste processo, Dubar (2005) alertou para a necessidade de se
considerar a socialização como um processo permanente e mais complexo, pois se prolonga por toda a
vida. Quando os estudantes demonstram que ainda não são autônomos, que ainda não interiorizaram as
normas sociais pelos processos de assimilação e acomodação, como explicava Piaget, é preciso que os
docentes efetivamente cuidem deste processo, estimulando-os a refletir (consigo mesmos, e, ao
mesmo tempo, com os demais) para que desenvolvam sua autonomia moral.
No entanto, os estudantes - ávidos por alguém que os ajude a se estruturarem e a se desenvolverem
- estão acostumados, predominantemente, com a educação paternalista da socialização primária, aquela
em que “o pai” decide pelo bem do filho, mas sem sua participação ou concordância. Talvez isto
também explique por que os professores que cobram mais, que são mais paternalistas e menos abertos
ao diálogo e à negociação, são frequentemente os mais valorizados pelos estudantes.
O comportamento docente reforça a situação problemática ao permitir a indisciplina dos estudantes,
tanto por ignorá-la quanto por não tomar atitudes que efetivamente interrompam o círculo vicioso que se
estabelece entre o seu mau comportamento e a atitude do professor. Tudo isto remete ao fundamental
papel do docente na dimensão ética da formação profissional, porque, se ele desestimula o respeito a si
e aos colegas que querem aprender ao ser permissivo, contribui para que isso passe em branco na vida
estudantil: mais uma oportunidade perdida, já que muitos não “trazem” esta educação de casa.
O professor, por sua vez, por não ter tido a oportunidade ou o interesse de fazer uma reflexão
aprofundada sobre os aspectos ético-pedagógicos do fazer acadêmico, emprega apenas o seu bom
senso no que deveria ser uma atitude pedagógica refletida e intencional. Assim como aprendeu a
ensinar a sua matéria, o docente deveria, também, ter aprendido a trabalhar com valores e
comportamentos. Uma vez que esta intencionalidade colaboraria na construção da personalidade dos
estudantes de forma integral, tratar-se-ia de uma tarefa pedagógica em seu sentido mais completo
(Martínez, Estrada, Bara, 2002).
A realidade observada demonstra que muitos professores sentem-se perdidos: demonstram saber
que devem fazer algo, mas não sabem o que ou como fazê-lo. Ainda que possam estar bem-
intencionados, sua disposição não é suficiente: é preciso que se preparem para tanto. Neste sentido, o
Modelo de Aprendizagem Ética na Universidade, apresentado por Martínez, Estrada e Bara (2002), que
propõe que a aprendizagem universitária seja em si uma aprendizagem ética pode ser de grande valia.
Indo além, é preciso que os professores (e os demais envolvidos nos cursos, como seus funcionários)
se sintam respaldados institucionalmente para tomarem atitudes mais firmes frente aos comportamentos
imaturos ou não éticos dos estudantes, pois a autonomia reduzida favorece a postura daqueles que
artigos
fecham os olhos ou ignoram os problemas como uma forma de autoproteção, e incrementa o desgaste
psíquico dos envolvidos.
Por fim, é preciso assumir o desafio de cuidar dos cuidadores/ formadores, qualificando-os para a
formação de pessoas com os mesmos atributos. Isto exige que cada um dos envolvidos leve a cabo, em
si mesmo, todo um processo de humanização, que inclui: a aquisição de conhecimentos sobre o amplo
mundo dos valores, o desenvolvimento de certas habilidades, como a comunicação interpessoal, o
autocontrole emocional, a capacidade de escuta e a empatia, e, sobretudo, o aprimoramento de
atitudes e de traços de caráter, com o amadurecimento psicológico e humano (Gracia, 2004).
Considerações finais
Colaboradores
Mirelle Finkler idealizou o trabalho, coletou e analisou os dados e redigiu o texto. João
Carlos Caetano e Flávia Regina Souza Ramos orientaram a pesquisa e aprovaram a
redação final do artigo.
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Yanik Carla Araújo de Oliveira1
Gabriela Maria Cavalcanti Costa2
Alexsandro Silva Coura3
Renata de Oliveira Cartaxo4
Inacia Sátiro Xavier de França5
OLIVEIRA, Y.C.A. et al. Brazilian sign language in the training of nursing, physiotherapy
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Educ., v.16, n.43, p.995-1008, out./dez. 2012.
Graduação em Saúde
language and its linguistic structure, linguística, a abordagem prática de Pública, Universidade
practical approaches to communication comunicação, política e legislações Estadual da Paraíba. AE
and inclusive policies and legislation. inclusivas. Porém, essa realidade segue 04, módulo J,
paralela a respostas imprecisas no tocante Residencial Sports Club,
However, this reality existed alongside
torre II, apto. 2003.
imprecise responses regarding à organização do componente, formação Guará II. Brasília, DF,
organization of this component and do profissional em Libras e suas Brasil. 71.070-704.
professional education in sign language atribuições. yanikaraujo@
yahoo.com.br
and its attributions.
Palavras-chave: Linguagem de sinais. 3
Programa de Pós-
Keywords: Sign language. Health human Capacitação de recursos humanos em Graduação em
Enfermagem,
resource training. Nursing. Dentistry. saúde. Enfermagem. Odontologia. Universidade Federal do
Physiotherapy. Fisioterapia. Rio Grande do Norte.
Introdução
No Brasil, a preocupação com a inclusão social dos grupos vulneráveis passou a ser consistente no
final do século passado. Dentre esses grupos, as pessoas com algum tipo de deficiência enfrentam
dificuldade para realizar algumas atividades da vida diária e para usufruir de bens e serviços de saúde
(Souza, Porrozzi, 2009).
Um tipo de deficiência que causa muitas adversidades no processo de socialização é a limitação
auditiva (Souza, Porrozzi, 2009). A pessoa surda vivencia um grave problema sensorial que resulta em
dificuldade de comunicação através da linguagem oral tradicional, gerando a necessidade do
desenvolvimento de habilidades em outro canal de expressão, como a Língua Brasileira de Sinais (Libras)
(Quadros, 2004). Essas pessoas formam, linguística e culturalmente, um grupo minoritário, no entanto,
grande parte dos cursos de saúde desconsidera essa faceta social, enfocando a deficiência auditiva
apenas no âmbito da patologia (Chaveiro, Barbosa, Porto, 2008).
O censo demográfico brasileiro realizado em 2010 contabilizou 5.735.099 pessoas com problemas
relacionados à perda auditiva. Esse fato chama a atenção para a necessidade do desenvolvimento de
estratégias que assegurem a comunicação do surdo com a sociedade plural e, em especial, com os
profissionais de saúde. Isto porque, quando os surdos procuram os serviços de saúde, se deparam com
condições que interferem de maneira negativa na qualidade do processo de comunicação e,
consequentemente, na assistência prestada (Oliveira, Lopes, Pinto, 2009).
Na tentativa de atender às demandas das pessoas com deficiência auditiva, o Estado sancionou a Lei
nº 10.436/2002, que reconhece a Libras como sistema linguístico da comunidade surda brasileira (Brasil,
2002c), e o Decreto nº 5.626/2005 que estabeleceu
Art 3o A Libras deve ser inserida como disciplina curricular obrigatória nos cursos de
formação de professores para o exercício do magistério, em nível médio e superior, e nos
cursos de Fonoaudiologia, de instituições de ensino, públicas e privadas, do sistema federal
de ensino e dos sistemas de ensino dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
§ 2o A Libras constituir-se-á em disciplina curricular optativa nos demais cursos de educação
superior e na educação profissional, a partir de um ano da publicação deste Decreto. (Brasil,
2005, p.1)
O Conselho Nacional de Educação (CNE) e as Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos (DCNs) de
Graduação em Enfermagem, Fisioterapia e Odontologia elencam as recomendações a serem observadas
na organização curricular das Instituições do Sistema de Educação Superior do país, objetivando garantir
os conhecimentos gerais e específicos requeridos para o exercício da profissão com competências e
habilidades.
Apesar de tais recomendações não citarem diretamente a Libras, mencionam que o projeto
pedagógico deve formar um profissional dotado dos conhecimentos requeridos para o exercício das
competências e habilidades gerais, dentre elas a comunicação. Além disso, as recomendações do CNE e
as DCNs objetivam garantir uma formação que atenda às necessidades sociais da saúde, com ênfase no
Sistema Único de Saúde (SUS), assegurando a integralidade e humanização da assistência (Brasil, 2002a,
2002b, 2001), tendo em vista que o processo comunicacional é “um dos desafios enfrentados na
humanização em saúde” (Deslandes, Mitre, 2009, p.641).
De acordo com Sacristán (2000), um currículo é um conjunto de conteúdos teóricos e práticos
selecionados, e criteriosamente organizados, para promover o desenvolvimento de habilidades e
competências intelectuais e profissionais nos alunos. Esse processo deve ser permanente e estimular a
autonomia dos discentes, considerando as demandas e necessidades prevalentes no processo saúde/
doença do cidadão, da família e da comunidade. Logo, a matriz curricular precisa estar integrada à
realidade epidemiológica e profissional da região e do país, contribuindo para a integralidade das ações
do cuidar.
Nessa perspectiva, se tem em vista a considerável prevalência de pessoas surdas no Brasil, em
especial na Paraíba, que se apresenta em segundo lugar no ranking dos estados com a maior proporção
de indivíduos com deficiência, com mais de 48 mil pessoas tendo relatado grande dificuldade ou
artigos
incapacidade de ouvir (IBGE, 2010). Portanto, torna-se necessária a discussão sobre o oferecimento da
Libras aos estudantes de graduação da área de saúde, sendo a justificativa para tal necessidade de
ordem epidemiológica.
Destarte, selecionou-se o objeto “inserção da Libras no projeto pedagógico dos cursos da área de
saúde”, com apoio nas seguintes indagações: As Instituições de Ensino Superior (IES) já inseriram a
Libras na matriz curricular das graduações em Enfermagem, Fisioterapia e Odontologia? Se já inseriram,
que parâmetros norteiam esse componente na perspectiva da integralidade e humanização da
assistência?
A comunicação efetiva, por meio do uso adequado das técnicas da comunicação interpessoal, é
condição imprescindível para que o profissional, especialmente o enfermeiro, possa ajudar o paciente a
atender suas demandas em saúde (Silva, 2006). O estudo se justifica pela lacuna de investigações
relacionadas com as dificuldades do surdo para acessar os serviços de saúde devido às barreiras da
comunicação. E, também, pela valorização do processo de ensino-aprendizagem da Libras, com o
objetivo de formar recursos humanos capacitados a proverem o cuidado humanístico aos surdos.
Nessa perspectiva, este estudo pretendeu analisar se, nos projetos pedagógicos dos cursos de
graduação em Enfermagem, Fisioterapia e Odontologia, está incluso o componente Libras na matriz
curricular, e quais parâmetros norteiam esta ação educativa na formação dos profissionais, com vistas a
assegurar a integralidade e humanização da assistência.
Metodologia
Quadro 1. Adequação dos projetos pedagógicos às suas respectivas Diretrizes Curriculares Nacionais
Recomendações das DCNs para o perfil de egressos nos projetos pedagógicos Cursos com DCN em comum
dos cursos de Enfermagem, Fisioterapia e Odontologia
Comum às três DCNs
Formação generalista, humanista, crítica e reflexiva. E1; E2; E3; E4; E5; E6; E7; E8; E9;
E10; E11; E14; E15; F1; F2; F3;
F5; F6; F7. O1; O2; O3.
Enfermagem
Profissional qualificado para o exercício de Enfermagem com base no rigor científico E1; E2; E3; E4; E5; E6; E10; E11;
e intelectual. E12; E13; E14; E15.
Pautado em princípios éticos. E4; E5; E7; E10; E11; E14; E15.
Capaz de conhecer e intervir sobre os problemas/situações de saúde/doença mais E4; E11; E12; E14.
prevalentes no perfil epidemiológico nacional, com ênfase na sua região de atuação,
identificando as dimensões biopsicossociais dos seus determinantes.
Capacitado a atuar com senso de responsabilidade social e compromisso com a E4; E6; E7; E11; E12; E13; E14;
cidadania, como promotor da saúde integral do ser humano. E15.
Capaz de ter como objeto de estudo o movimento humano em todas as suas formas F2; F7.
de expressão e potencialidades, quer nas alterações patológicas, cinético-funcionais,
quer nas suas repercussões psíquicas e orgânicas, objetivando preservar, desenvolver,
restaurar a integridade de órgãos, sistemas e funções, desde a elaboração do
diagnóstico físico e funcional, eleição e execução dos procedimentos fisioterapêuticos
pertinentes a cada situação.
Odontologia
Capacitado ao exercício de atividades referentes à saúde bucal da população. O3.
Compreensão da realidade social, cultural e econômica do seu meio, dirigindo sua O1.
atuação para a transformação da realidade em benefício da sociedade.
Quadro 2. Distribuição dos cursos por instituição e oferecimento do componente curricular LIBRAS
artigos
Codificação Curso Situação da IES Titulação Oferecimento de LIBRAS - Início
E1 Enfermagem Privada Bacharelado Sim – 2011
E2 Enfermagem Privada Bacharelado Sim – 2011
E3 Enfermagem Privada Bacharelado Não
E4 Enfermagem Pública Bacharelado e licenciatura Não
E5 Enfermagem Privada Bacharelado Sim – 2010
E6 Enfermagem Privada Bacharelado Sim – 2009
E7 Enfermagem Privada Bacharelado Sim – 2011
E8 Enfermagem Privada Bacharelado Sim – 2010
E9 Enfermagem Pública Bacharelado e licenciatura Não
E10 Enfermagem Privada Bacharelado Sim – 2009
E11 Enfermagem Privada Bacharelado Sim – 2006
E12 Enfermagem Privada Bacharelado Sim – 2010
E13 Enfermagem Pública Bacharelado Não - 2012 (previsão)
E14 Enfermagem Privada Bacharelado Não
F1 Fisioterapia Pública Bacharelado Sim – 2011
F2 Fisioterapia Privada Bacharelado Sim – 2011
F3 Fisioterapia Pública Bacharelado Não
F4 Fisioterapia Privada Bacharelado Sim – 2007
F5 Fisioterapia Privada Bacharelado Não
F6 Fisioterapia Privada Bacharelado Sim – 2010
F7 Fisioterapia Privada Bacharelado Sim – 2010
O1 Odontologia Pública Bacharelado Não
O2 Odontologia Pública Bacharelado Não
O3 Odontologia Privada Bacharelado Sim – 2009
3) Tratamento dos Resultados Obtidos e Interpretação – Nesta fase, as categorias foram analisadas e
interpretadas em confronto com os resultados obtidos em outros estudos, por outros pesquisadores.
O estudo seguiu a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Portanto, assegurou-se o
anonimato das instituições e sujeitos colaboradores, além de se garantir ao informante a participação
voluntária, após instrução sobre o objetivo da pesquisa e assinatura do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido em duas vias.
Resultados
Quadro 3. Perfil do componente curricular LIBRAS nos cursos de Enfermagem, Fisioterapia e Odontologia da Paraíba; *C =
codificação dos coordenadores
C* Semestre Classificação do componente curricular Carga horária
E2 A partir do 2º Optativo 60h
E5 Qualquer um Optativo 60h
E6 7º e 8º Optativo 40h
E7 8º Não respondido 40h
E8 2º Optativo 60h
E10 2º Complementar 45h
E11 Qualquer um Optativo 40h
E12 Qualquer um Optativo 40h
F1 Qualquer um Optativo 40h
F2 Qualquer um Optativo 40h
F4 3º Optativo 54h
F6 4º Optativo 22h
F7 - Optativo 40h
O3 Qualquer um Optativo 60h
Quadro 4. Categorias emergidas da relação entre as ementas e os objetivos do componente LIBRAS nos cursos
Fisioterapia e três de Odontologia. Destaca-se que este componente não é ofertado por nove cursos,
sendo seis de IES públicas e três de instituições privadas.
Em relação aos cursos de Enfermagem, 11 são de instituições privadas e três são de públicas. A
maioria deles (n=8) oferece o componente curricular Libras. Já os cursos de Fisioterapia, cinco são de
instituições privadas e dois são de públicas, dentre os quais, cinco oferecem esse componente
curricular. Quanto aos cursos de Odontologia, um é de instituição privada e dois são de públicas, e
somente um oferece a Libras. Dentre as IES pesquisadas, apenas duas (E4, E9) possuem o curso de
licenciatura, ambas são públicas e o componente curricular Libras não está sendo oferecido.
Os cursos E11 e F4 oferecem o componente curricular Libras desde 2006 e 2007, respectivamente.
Além da Libras inserida na matriz do currículo, o E10 tem um projeto de extensão em relação à Libras
em um hospital público de João Pessoa; e o E11 oferece, aos alunos, inserção em um centro de
referência para o atendimento em saúde de pessoas surdas na capital do estado.
Os coordenadores dos cursos E2, E7 e F2 responderam que o componente Libras já consta no
currículo, entretanto ainda não foi disponibilizado aos estudantes. Os demais cursos (n=12) incluíram a
Libras no currículo a partir de 2009.
No Quadro 3, são destacadas as características do componente curricular Libras dos cursos (n=14),
artigos
indicando-se: curso, disponibilidade semestral do componente, classificação e carga horária.
Os coordenadores dos cursos E8, E10, E11, E12, F2, F4 e F6 citaram a vinculação de professor
qualificado com especialização e experiência na interpretação da Libras; o coordenador de O3 afirmou a
qualificação de mestre de seus docentes. Esses docentes desenvolvem atividades acadêmicas e
pedagógicas, atuando como facilitadores do processo ensino-aprendizagem desse componente.
Neste estudo foi encontrado um quantitativo expressivo (58%) de oferecimento da Libras como
componente curricular optativo entre as IES pesquisadas, com cargas horárias que variaram de 22 a 60
horas, bem como ementas que tratam dos aspectos cultural, legal, linguístico, prático, e com aplicações
ao atendimento em saúde. Porém, essa realidade seguia paralela a respostas imprecisas quanto à
organização do componente, formação do profissional de Libras e suas atribuições.
Em relatos dos coordenadores cujos cursos ofereceram a Libras a partir de 2010, registrados em
diários de campo, constatou-se ainda que a “exigência” do MEC foi condição determinante para a
implantação ágil do componente no currículo dos cursos de saúde.
Os conteúdos das ementas investigadas abordam temas como: a cultura da comunidade surda, a
Libras e sua estrutura linguística, a abordagem prática de comunicação, política e legislações inclusivas.
No Quadro 4, constam as categorias temáticas emergentes da relação entre a ementa do
componente Libras e o objetivo do processo ensino-aprendizagem da Libras informado pelos
coordenadores, destacando-se os cursos em que houve essa relação.
Discussão
artigos
destacam-se os seguintes trechos extraídos das ementas:
“[...] estudo da língua de sinais, para a comunicação no cotidiano com o surdo.” (O3)
Esses recortes, representativos da maioria das ementas dos cursos investigados, focam a atuação
direta do profissional para com o paciente, compreendendo seu contexto biológico, social e cultural.
Para Santos (2003), uma instituição educacional ressignificada dentro do paradigma inclusivo
necessita compreender que não é a quantidade de conteúdos que garante uma boa formação, mas,
sim, todo um conjunto de fatores: pedagógicos, culturais e sociais. Nessa perspectiva, as ementas
coletadas apresentam a preocupação das IES em contextualizar o tema em questão, bem como de
contribuir para o entendimento da cultura dos surdos.
Em seu estudo, Santos e Shiratori (2004) desvelam as necessidades de saúde da comunidade surda e
revelam a comunicação como a maior barreira enfrentada por estes usuários em serviços de saúde.
Segundo seus entrevistados, o estabelecimento da comunicação profissional/paciente facilitaria bastante
o esclarecimento de suas dúvidas durante o atendimento.
Salienta-se que o acesso ainda é um problema que vem sendo enfrentado na implantação plena e
no funcionamento de serviços de saúde, pois algumas barreiras dificultam a entrada do usuário na
atenção à saúde. No caso da comunidade surda, a barreira de comunicação com profissionais não
conhecedores da Libras influi diretamente na utilização dos serviços e na resolução dos problemas
(Freire et al., 2009).
Nesse sentido, Santos e Shiratori (2004) evidenciam que o entendimento do contexto social e de
vida do surdo, bem como o relacionamento com o profissional de saúde ficam extremamente
comprometidos, devido à não-construção de “elos” acarretada pelo despreparo dos serviços e
profissionais de saúde para atender esta clientela.
Em relação à categoria Legislação aplicada: bases para atuação profissional, as ementas
expressaram:
Nesse sentido, a categoria Libras nas ciências da saúde: uma prática aplicada enfoca a
valorização atribuída pelos cursos ao uso da Libras pelos profissionais de saúde:
Os recortes expressam a preocupação com a aprendizagem dos sinais da Libras próprios para atuação
no trabalho, refletindo a importância da comunicação eficaz entre profissionais de saúde e a pessoa
surda.
Sendo a Libras uma língua de expressão de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria,
faz-se necessário um entendimento prático de sinais do seu sistema linguístico para transmissão de
ideias e fatos (Brasil, 2002c).
Essa necessidade também é citada por Cardoso, Rodrigues e Bachion (2006), quando afirmam que a
tentativa de comunicação dos profissionais de saúde com essa clientela se dá por meio de formas
rudimentares e, frequentemente, há necessidade de que um acompanhante esteja presente para fazer
a intermediação.
Outro ator de destaque neste processo de intermediação entre pessoas surdas e os profissionais de
saúde são os tradutores/intérpretes de Libras, que se comunicam com os pacientes surdos e buscam
repassar as informações da maneira mais precisa, evitando a presença de uma terceira pessoa que não
seja profissional. Esses profissionais podem minimizar as dificuldades enfrentadas pelos surdos, os quais
apresentam necessidades específicas e, por isso, encontram barreiras para participar plenamente de
várias atividades sociais regulares, devido ao obstáculo da comunicação (Olah, Olah, 2010).
Todavia, existem algumas críticas e limitações para a atuação dos intérpretes. Sua presença durante o
atendimento pode aumentar o constrangimento, colocar maior risco ao direito de sigilo e privacidade,
bem como à qualidade das informações repassadas (Chaveiro et al., 2010), já que na saúde há
conhecimentos e uma linguagem técnica específicos da área, e que podem ser desconhecidos pelo
intérprete, comprometendo a transmissão da informação ao paciente. Outra crítica à participação de
intérpretes está relacionada com o estabelecimento dos vínculos. Freire et al. (2009) destacam a
dificuldade de formação de vínculo profissional/usuário quando não se estabelece a comunicação direta
entre os mesmos.
Uma estratégia para minimizar tal problemática pode ser o estabelecimento de sinais padronizados.
Souza e Pozzori (2009) ressaltam a necessidade da Libras no âmbito da saúde para popularizar e
padronizar sinais específicos e passíveis de identificação pelo surdo. Citam ainda que novas palavras
estão sendo incorporadas no dicionário de Libras, através da criação de uma apostila com sinais
específicos apropriados referentes à área da saúde.
Portanto, a utilização da Libras deve tornar-se uma prática aplicada, pois os profissionais da saúde
relatam que não se sentem preparados para atender pacientes surdos por não conseguirem estabelecer
uma comunicação efetiva, fator que causa desconforto tanto aos profissionais quanto aos pacientes
(Oliveira, Lopes, Pinto, 2009; Pagliuca, Fiúza, Rebouças, 2007).
Assim, no caso específico do surdo e da assistência em saúde, acredita-se que a capacitação de
recursos humanos para estabelecer uma comunicação eficaz com esse paciente possibilita que o
profissional entenda as suas necessidades, compreenda-o como ser holístico e preste assistência
adequada, minimizando seu sofrimento (Pagliuca, Fiúza, Rebouças, 2007). Nesse contexto, é importante
que haja um entendimento, por parte de estudantes e profissionais, sobre a importância de se estudar
Libras como língua que pode melhorar sua atuação laboral.
Além de reconhecer a relevância da Libras para a assistência em saúde, na categoria Libras: uma
nova língua, uma nova estrutura, as ementas destacaram as características da estrutura da Libras:
“[...] morfologia da língua de sinais, datilologia e alfabeto manual. O nome próprio [...]
artigos
Libras em contexto versus língua portuguesa falada e escrita. [...] partículas de negação e
textos para interpretação.” (E6)
“[...] estrutura gramatical; análise textual [...]; sinais gerais; tempo; verbos; substantivos,
adjetivos.” (E11)
Como relata Martins (2008), ainda há uma incompreensão sobre o reconhecimento da Libras como a
língua oficial da comunidade surda. Ela possui uma estrutura diferente dos padrões tradicionais e
clássicos da linguística. A compreensão dessa estrutura foi uma citação unânime nas ementas estudadas,
evidenciando a importância dada ao conhecimento da construção do signo (significante e significado) na
composição verbal e gramatical próprias da língua, porém em apenas três cursos (E5; E6; E7) os
objetivos corroboram as ementas.
Dessa forma, considerando o momento de incorporação da Libras no currículo dos profissionais de
saúde, é importante que haja uma constante avaliação de como está se dando seu planejamento e
implantação, devido à necessidade da formação de profissionais com visão integral do cuidado em
saúde, inclusive para a comunidade surda, compreendendo seu contexto social, conhecendo a
legislação vigente e estabelecendo uma comunicação eficiente para a construção do vínculo
profissional/paciente.
Considerações finais
Colaboradores
As autoras Yanik Carla Araújo de Oliveira e Renata de Oliveira Cartaxo
responsabilizaram-se por: coleta de dados, análise, escrita e aprovação final do artigo.
Os autores Alexsandro Silva Coura, Gabriela Maria Cavalcanti Costa e Inacia Sátiro
Xavier de França responsabilizaram-se por: concepção, desenho, revisão crítica e
aprovação final do artigo.
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artigos
trastorno de déficit de atención e hiperactividad
Celia Iriart1
Lisbeth Iglesias Ríos2
Si bien el TDAH es un trastorno definido hace varias décadas, su más reciente redefinición y la
extensa difusión de la que está siendo objeto desde finales de la década del noventa nos indica un
cambio que requiere ser analizado. De acuerdo a documentos oficiales y artículos científicos, la cantidad
de niños diagnosticados y tratados con el Trastorno por Déficit de Atención con o sin Hiperactividad
(TDAH) aumentó considerablemente en los países latinoamericanos desde comienzos de la década del
2000, con un acentuado crecimiento hacia finales de la misma (Ortega et al., 2010; Frenk Mora et al.,
2002). Estos datos de aumento en la prevalencia del TDAH no se basan en investigaciones
epidemiológicas nacionales en países latinoamericanos, sino en estudios parciales generalmente basados
en casos clínicos, en extrapolaciones de las prevalencias publicadas en la bibliografía anglosajona, o en
datos de aumento del consumo de las drogas usadas para tratarlo. Este proceso acompaña la tendencia
que se consolidó en los Estados Unidos, país donde primero se difunde la idea de que el TDAH está
subdiagnosticado (Center for Disease Control and Prevention, 2011).
El aumento de niños diagnosticados parece correlacionarse con las estrategias que el complejo
médico-industrial, especialmente la industria farmacéutica, generó para contrarrestar las reformas que el
capital financiero desarrolló, a partir de la década del noventa, con su entrada como administrador de
programas de salud y planes de cobertura de atención médica. Estas reformas se desarrollaron primero
en los Estados Unidos y luego se exportaron a numerosos países de América Latina, Asia, y Europa.
Ambos procesos han sido extensamente estudiados por Iriart junto a otros colegas (Iriart, Franco, Merhy,
2011; Iriart, Merhy, Waitzkin, 2000). Aquí presentamos una breve síntesis basada en esas
investigaciones para contextualizar los análisis relacionados con el TDAH.
Durante las décadas previas a la implantación de las reformas sectoriales bajo la hegemonía de los
grupos financieros, la industria farmacéutica dirigió sus estrategias promocionales a los médicos. Así fue
como la utilización de servicios y productos biomédicos estuvo determinada en gran medida por la
oferta de los mismos a través de estos profesionales. La comprensión de esta situación por parte de los
grupos financieros que instalaron las reformas denominadas de atención gerenciada, generó estrategias
de contención de gastos basadas en el control del uso de servicios y tratamientos. A partir de estos
cambios en la administración de coberturas médicas, el complejo médico-industrial, especialmente la
industria farmacéutica, inició una serie de estrategias para restablecer su liderazgo en la
conceptualización del proceso salud-enfermedad-atención y en el mercado de salud. Una de las
estrategias estuvo centrada en radicalizar a su favor el concepto de consumidor que las reformas basadas
en la atención gerenciada habían cooptado de sus promotores iniciales, los grupos que cuestionaban el
poder médico en los setentas (Critser, 2005). Con el objeto de utilizar para sus fines comerciales el
concepto de consumidor, la industria farmacéutica utilizó diversos mecanismos para establecer una
relación directa con los potenciales usuarios de sus productos que analizaremos en la siguiente sección.
Sin embargo, como veremos las estrategias de la industria farmacéutica para dirigir sus mensajes al
público tienen implicaciones mucho más profundas en nuestras sociedades ya que se inscriben en
procesos de creación de nuevas subjetividades que radicalizan la medicalización, y que siguiendo a otros
autores vamos a denominar biomedicalización (Clarke et al., 2010). Consideramos que el concepto de
biomedicalización ofrece una mejor interpretación de los profundos cambios operados en la década del
noventa en la conceptualización del proceso salud-enfermedad-atención. La medicalización implica la
expansión del diagnóstico y tratamiento médico de situaciones previamente no consideradas problemas
de salud, como por ejemplo, la reproducción humana. La biomedicalización, por su parte, supone la
internalización de la necesidad de autocontrol y vigilancia por parte de los individuos mismos, no
requiriendo necesariamente la intervención médica. No se trata, solamente, de definir, detectar y tratar
procesos mórbidos, sino de estar alerta de potenciales riesgos e indicios que pueden derivar en una
patología. En el caso del TDAH, por ejemplo, la disponibilidad de sencillos métodos de diagnóstico y la
extensa información en internet y otros medios puestos al servicio de padres, maestros y profesionales no
especializados facilita la difusión del mismo, el autocontrol y la vigilancia.
En base a lo previamente introducido, el objetivo del artículo es aportar una lectura crítica desde la
salud colectiva sobre el TDAH contextualizándolo en los procesos antes descriptos. Para ello, primero
sintetizaremos los principales elementos de la reforma relacionados con el tema, luego examinaremos
artigos
el concepto de biomedicalización en relación al TDAH, posteriormente presentaremos una reflexión
crítica acerca de la construcción del TDAH como un problema de salud pública y, finalmente,
analizaremos los cambios en las definiciones diagnósticas y las diferentes clasificaciones utilizadas que
determinan el número de niños incluidos en este diagnóstico.
Método
Para esta investigación usamos metodología analítica para reinterpretar datos secundarios e
investigaciones desarrollados por otros autores que analizan el aumento de la prevalencia de niños
diagnosticados con TDAH en las últimas dos décadas. Partimos de la premisa de la existencia de una
anomalía en la forma en que se define, cuantifica y trata este problema desde las corrientes
hegemónicas de la psiquiatría basadas en concepciones neurobiológicas. Sin esto no es posible explicar
el aumento de niños diagnosticados y tratados por este trastorno en un corto período de tiempo en el
cual no han surgido nuevos métodos diagnósticos considerados “objetivos”, tal el caso de marcadores
bioquímicos, pruebas neuropsicológicas o genéticas, o estudios de neuroimágenes
Recurrimos a fuentes primarias de información tales como portales en la red y blogs para
ejemplificar la información que el público recibe y los debates existentes. Los estudios de los que
participara una de las autoras (Iriart) fueron utilizados para contextualizar los análisis sobre el TDAH en
los procesos de reforma sectorial. Revisamos las bases de datos Scielo, PubMed, JSTOR y PsycINFO
cubriendo el período enero 1990 a mayo 2011 usando los siguientes términos en español, inglés y
portugués: “trastorno por déficit de atención e hiperactividad (TDAH)”, “DSM”, “Clasificacion
Internacional de Enfermedades (CIE)”, “industria farmacéutica”, “mercadotecnia”, y “medicalización”.
También usamos como fuente la literatura citada por los autores analizados cuando consideramos que
era útil para profundizar el análisis. Sin embargo, queremos destacar que este artículo no usa la
metodología de revisión sistemática, por lo cual seleccionamos aquellas fuentes que aportaban al análisis
que nos proponemos desarrollar en este artículo. Por ello la lista de referencias en el artículo incluye
solo las más relevantes de la extensa revisión realizada, cuidando de incluir autores de diversos campos
y las más recientes en cada tema descripto. Usamos la revisión bibliográfica para seleccionar materiales
que describen el proceso histórico, político y económico que permitió dar mayor visibilidad al trastorno,
y para describir cómo, en la actualidad, se están usando los medios de comunicación por parte de
grupos no profesionales, como así también por organismos gubernamentales, y compañías farmacéuticas
para expandir el conocimiento sobre este trastorno y proveer instrumentos no científicos a la población
para realizar un primer diagnóstico del problema. Asimismo, la revisión bibliográfica nos permitió
analizar los cambios en la definición del TDAH y las diferencias en la prevalencia según la clasificación
usada. Analizamos críticamente los datos de prevalencia oficialmente publicados en los Estados Unidos
por ser la fuente más utilizada por los medios de comunicación y por los investigadores al informar
sobre la prevalencia del trastorno también en los países latinoamericanos.
artigos
con el trastorno posibilita nuevas formas de sociabilidad que están determinadas por el padecimiento,
de ahí que las denominemos biosociabilidades. Internet ofrece una gran oferta de herramientas, tales
como, portales, redes sociales (facebook, twitter) y blogs, para intercambiar o debatir acerca de temas
específicos como el TDHA. Estos fórums en la red están muchas veces promovidos por la industria
farmacéutica o por asociaciones de pacientes o profesionales (Children and Adults With Attention-
Deficit/Hyperactivity Disorder, 2011). Sin embargo, es importante destacar que no todas estas nuevas
identidades implican la aceptación de los discursos y las prácticas biomedicalizadoras. Algunos de estos
grupos/fórums cuestionan el mandato moral y otras formas de biomedicalización (Death from Ritalin,
2011; The Natural Child Project, 2011). El proceso no es unidireccional y diferentes tipos de discursos
son creados por una multiplicidad de individuos y organizaciones. Sin embargo, al identificarse en base a
la biosocialidad creada alrededor del TDHA o los medicamentos utilizados, estos grupos si bien con un
mensaje cuestionador, no escapan a esta construcción de agrupamientos biosociales, que, como señala
Ortega (2004), sustituyen progresivamente los agrupamientos tradicionales de clase, religión u
orientación política.
Nuevos desarrollos organizacionales y regulaciones pueden cambiar la situación que, en la
actualidad, hegemoniza el complejo médico-industrial en torno a procesos de salud-enfermedad. Más
acceso a información sobre temas de salud favorece la democratización de este campo, el problema es
qué tipo de información se trasmite, quién genera los datos, cómo se construyen y difunden los
mismos, y qué intereses movilizan su circulación. La diseminación descontextualizada de información
sobre salud reproduce la biomedicalización y genera un sentido común en el cual, en el caso del TDAH,
padres y maestros se ven compelidos a actuar según esta ideología de control individual. Esto genera
una profunda mercantilización del sufrimiento infantil, ya que los padres, convertidos en consumidores,
buscarán los servicios de los profesionales recomendados en los sitios, o si recurren a otros, irán
muñidos de información que les permitirá describir más precisamente signos y síntomas conducentes al
diagnóstico del TDAH y posiblemente a la medicación.
En esta sección ubicamos el problema de la creciente difusión del TDHA en los procesos
estructurales que crearon las condiciones de posibilidad para que emerja un nuevo discurso sobre este
trastorno y analizamos los procesos de subjetivación que la biomedicalización genera. A continuación
analizaremos cómo los datos son producidos, interpretados y difundidos, facilitando que se instituya una
nueva verdad sobre el TDHA, y sean utilizados para legitimar los discursos biomedicalizadores por parte
de organismos gubernamentales y organizaciones de la sociedad civil.
Según las definiciones más recientes, el TDAH es un trastorno psiquiátrico neuro-conductual que se
caracteriza por el desarrollo de niveles inapropiados de inatención y/o hiperactividad, los que resultan
en incapacidad de funcionar adecuadamente en espacios escolares, familiares y sociales (CDC, 2011).
La forma de diagnóstico más difundido se basa en la detección de los siguientes síntomas:
hiperactividad, falta de atención e impulsividad. El diagnóstico del TDAH se realiza solo en base a
observaciones del comportamiento de los niños, ya que no existen pruebas definidas como objetivas
(marcadores bioquímicos, pruebas neuropsicológicas o genéticas, o estudios de neuroimágenes) capaces
de detectar los supuestos desequilibrios bioquímicos (Wannmacher, 2006). La disminución de síntomas
en los niños diagnosticados con TDAH cuando se les administra psicoestimulantes ha sido difundida
como la forma de confirmar el diagnóstico (Mayes, Rafalovich, 2007). Sin embargo, como estos
mismos autores muestran, Judith Rapaport, una de las primeras investigadoras en recibir fondos de los
Institutos Nacionales de Salud de los Estados Unidos para investigar el TDAH, demostró ya en la década
del setenta, que la administración de psicoestimulantes tenía similares efectos en niños diagnosticados y
no diagnosticados con el trastorno.
A partir de la década del sesenta el gobierno federal de los Estados Unidos otorgó los primeros
subsidios para investigación básica y epidemiológica sobre el TDAH con la finalidad de entender tanto la
etiología del trastorno, como las dimensiones del problema, los grupos más
afectados y los efectos de la medicación (Mayes, Rafalovich, 2007). Esto generó
una mayor visibilidad del trastorno que poco a poco pasó de los ámbitos de la
salud a los ámbitos educacionales desde donde se demandó reconocer a los niños
diagnosticados con TDAH como discapacitados y elegibles para recibir educación
especial. En 1991, el Departamento de Educación de los Estados Unidos
implementó la ampliación del Acta de Discapacidades Individuales en la Educación
(Individuals with Disabilities Education Act) para incluir a los niños con TDAH. Esto
facilitó la aceptación social del TDAH dentro de las escuelas, así como un influjo
de fondos y recursos humanos destinados a las mismas, ya que más niños fueron
identificados para recibir educación especial (Davila, Williams, MacDonalt, 1991).
Los procesos descriptos anteriormente generaron un creciente aumento de
niños diagnosticados y tratados en los Estados Unidos a partir de los noventas,
fenómeno que se expande a otros países a partir de la década del 2000. América
Latina no es la excepción; en esa región se puede observar una creciente
proliferación de sitios en la red de asociaciones de profesionales, de familiares, de
educadores y de empresas farmacéuticas que mimetizan los desarrollados en los
Estados Unidos (ABDA, 2011; Fundación TDAH, 2011; Janssen-Cilag, 2010). En
los últimos años, América Latina también ha visto el crecimiento de la divulgación
del TDHA a través los medios de comunicación (Ortega et al., 2010). Asimismo,
ha crecido el número de artículos sobre el trastorno publicados en revistas 4
Las estadísticas que
científicas latinoamericanas4. Las campañas de concientización sobre este trastorno presenta Scielo, por
ejemplo, al realizar una
financiadas por asociaciones de pacientes y de profesionales que se ocupan del búsqueda usando la sigla
tema y por las farmacéuticas que producen los medicamentos para el tratamiento TDHA o desglosándola,
muestra que entre 1995
del TDAH han aumentado en las escuelas, hospitales y otros ámbitos comunitarios y 2003 el número de
(Faraone et al., 2010). artículos que se
El argumento de quienes defienden la necesidad de que padres, educadores y encuentran llegan a un
máximo de 6 en el 2003,
la población en general se concienticen sobre este problema es que el aumento en el 2004 aumentan a
de casos diagnosticados y tratados muestra el éxito y la necesidad de estas 16 y llegan a 31 en el
2010. Reconocemos que
campañas para identificar niños que padecen el trastorno (AAP, 2010). Este estas estadísticas no son
argumento, así como el difundido uso de los datos de prevalencia generados en exactas, pero nos
permiten ver la creciente
los Estados Unidos para presentar el problema en otros países, pone de manifiesto tendencia en el número
la importancia de desarrollar un análisis crítico de cómo se construyen y reportan de artículos publicados
los datos de prevalencia del TDAH que presenta el CDC en su sitio de la red sobre el tema.
(CDC, 2011).
El CDC establece la prevalencia del TDAH en los Estados Unidos en base a la
información recolectada en la Encuesta Nacional de Salud de los Niños (NSCH, por
sus siglas en inglés). Esta encuesta se toma a una muestra al azar de números de
teléfonos fijos. La encuesta es respondida por el adulto más informado sobre las
condiciones de salud del niño seleccionado para integrar la muestra. La pregunta
que se les hace en la encuesta telefónica es “si un médico u otro profesional de
salud le ha informado alguna vez que su hijo tiene TDAH”, si la respuesta es
afirmativa, se les pregunta “si el niño actualmente toma medicación para el
TDAH” (énfasis agregado).
La metodología, como el mismo CDC lo señala, tiene importantes limitaciones
(Visser et al., 2010 ). Por un lado, se excluyen domicilios donde no hay teléfono
fijo y aquellos entrevistados que no aceptan participar. Por otro, el tipo de
preguntas supone la capacidad de los padres de recordar el diagnóstico, no
confundirlo con otro, reconocer la severidad del problema y ser veraces en la
respuesta. En la encuesta del 2007 se agregaron tres preguntas: “si el niño tiene
en la actualidad TDAH”, “la severidad del caso (leve, moderado, y severo)”; y “si
el niño toma medicación para el trastorno”.
artigos
sitio del CDC corresponde a la encuesta del 2007 (Visser et al., 2010 ). Esta encuesta nacional recolectó
datos de salud de 91.642 niños de 4 a 17 años de edad. El número de entrevistas con información
completa en relación al TDAH fue de 63.123 casos. Usando las respuestas a la pregunta de si el niño
alguna vez fue diagnosticado con TDAH, el CDC reporta en su página principal sobre el TDAH, un
aumento del 22% de los casos entre el 2003 y el 2007, ya que las respuestas afirmativas a esa pregunta
aumentaron del 7,8% al 9,5%. Sin embargo, si se considera la pregunta agregada en el 2007, de si el
niño tenía el trastorno al momento de la entrevista, las respuestas positivas fueron considerablemente
menos, ya que el 7,2% de los niños padecían el trastorno según los entrevistados. Asimismo, de los
niños cuyos padres informaron que tenían TDAH al momento de la entrevista, en casi la mitad de los
casos (46,7%) la condición fue reportada como leve, en el 39,5% moderada y solo en el 13,8% de los
casos severa. El 66,3% de los niños cuyos padres reportaron que tenían TDAH recibía medicación al
momento de la entrevista, de los cuales, el 56,4% eran casos considerados leves, el 71,6% moderados,
y el 85,9% severos.
Hasta aquí los datos que se pueden analizar e informar sobre el TDAH con la encuesta realizada en
los Estados Unidos. Esto nos lleva a preguntarnos si es correcto que se priorice informar al público que
hubo un aumento en la prevalencia de casos reportados por los padres del trastorno entre el 2003 y el
2007, como lo hace el CDC en su página y lo indica el título del artículo oficial donde se reportan los
datos en mayor detalle. Usando la definición de prevalencia como el número de casos de una
enfermedad o evento en una población en un momento dado, el dato que debería publicarse para el
2007 es el de 7,2% (casos actuales de niños con el trastorno reportados por los padres). Asimismo, si el
CDC quiere reportar alguna comparación con años anteriores debería aclarar que para propósitos
comparativos se ven obligados a usar la pregunta de “si el niño alguna vez fue diagnosticado con
TDAH” y no la agregada en el 2007 “de si el niño tenía el trastorno al momento de la entrevista”
debido a la falta de información para esta pregunta en años anteriores.
Los medios de comunicación, aun los que ofrecen análisis críticos del problema, recurren a estos
sitios generados por organismos gubernamentales cuando precisan información para encuadrar noticias o
sus propias investigaciones sobre el TDAH (Democracy Now, 2011). Estos datos se toman como
verdades incuestionables y facilitan la circulación de un discurso alarmista e incorrecto que se difunde
por los medios de comunicación, y construye el sentido común alrededor de este problema. La
utilización de generalizaciones estadísticas dificulta, por un lado, el entendimiento de las reales
dimensiones del problema y, por el otro, favorece su rápida difusión. La creación de la preocupación
colectiva alrededor de un tema lleva, muchas veces, a que los gobiernos inviertan fondos escasos en
tratarlos o difundir información, que deberían destinarse a otros problemas que afectan a un número
mayor de niños. Pero tal vez, lo más grave es que al facilitarse la difusión de la concepción del TDAH
como una disfunción biológica del niño que puede ser tratada con medicación, se genera una sensación
de alivio social ya que nadie es responsable y no hay nada que revisar a nivel de la vida social y familiar.
Este alivio sería menor si se comprende cómo estos procesos favorecen la internacionalización del
control y regulación de los cuerpos que responde a una forma de gobernabilidad biomédica.
Gobernabilidad entendida en el sentido foucaultiano de formas particulares de poder, generalmente
definidas por saberes especializados que implican monitorear, observar, medir, y normalizar individuos y
poblaciones. Este poder no descansa en una coerción forzada, sino en mecanismos difusos, tal el caso
de los discursos que prometen felicidad o salud a través de ciertas formas de conducta personal que
requieren, entre otras cosas, autovigilancia y autorregulación (Clarke et al., 2010). En el caso del TDAH
la promesa es un niño tranquilo, atento, y sociable que obtenga buenos resultados escolares y no
problematice el espacio educativo, familiar y social. Por esto consideramos importante analizar a
continuación como se realiza la construcción histórica y social de la definición y del diagnóstico del
TDHA, ya que estas dos variables determinan la cantidad de casos diagnosticados y el tratamiento
adoptado que conlleva a formas particulares de regulación social.
comparación con las versiones anteriores del mismo manual (DSM III y DSM III-R),
artigos
independientemente del país donde se haya llevado a cabo el estudio (Polanczyk et al., 2007). El
diagnóstico del TDAH usando la CIE-10 es más restrictivo y requiere una mayor precisión
sintomatológica (Tripp et al., 1999). La CIE-10 requiere que el niño muestre síntomas en las tres
dimensiones del TDAH (inatención, hiperactividad e impulsividad) y estos síntomas deben observarse
tanto en la escuela como en el hogar. En contraste, usando el DSM-IV se pueden diagnosticar con
TDAH niños que muestran síntomas en una sola dimensión, por ejemplo, inatención, y requiere que
solo alguno de los síntomas se presente tanto en la casa como en la escuela. Asimismo, el DSM-IV
permite diagnosticar TDAH junto con otros trastornos psiquiátricos concomitantes, lo que no está
aceptado por la CIE-10 (Moffitt, Melchior, 2007). También se ha reportado que la aplicación del criterio
del DSM IV y su énfasis en los subtipos de TDAH parece incrementar la frecuencia con que se
diagnostica este trastorno (Skounti, Philalithis, Galanakis, 2007).
A pesar de los avances científicos en las áreas de neurociencias, la mayoría de los diagnósticos
psiquiátricos permanecen intrínsecamente ligados al juicio subjetivo del clínico y a la forma en que el
paciente pueda comunicar sus síntomas (Strauss, 1996). Asimismo, los criterios del DSM-IV no toman
en cuenta diferencias de género, socioculturales o variaciones en las etapas del desarrollo de los niños,
lo que puede llevar a diferentes observadores a interpretar el mismo comportamiento de manera
distinta (Rohde et al., 2005). Jablensky (1999) argumenta que el DSM está basado en la suposición de
que los trastornos psiquiátricos forman categorías discretas. El DSM requiere juicios categóricos de “si/
no” con respecto a si el paciente muestra un comportamiento específico de los síntomas listados para
un determinado trastorno. Esto dificulta la consideración de relaciones complejas entre los aspectos
culturales y sociales con relación a la salud mental (Mezzich, Fabrega Junior, Kleinman, 1992). La
evidencia que se requiere para hacer un diagnóstico con el DSM es primariamente fenomenológica y de
descripción del comportamiento.
Otro elemento controversial del DSM-IV son los lazos financieros de sus autores con la industria
farmacéutica. Un estudio publicado en 2006 demostró que de los 170 miembros del panel del DSM, 95
(56%) tenían uno o más lazos financieros con la industria farmacéutica. El estudio indica que las
relaciones financieras entre los autores del DSM-IV y las compañías farmacéuticas son especialmente
fuertes en aquellas áreas diagnósticas donde los medicamentos son la primera línea de tratamiento.
(Cosgrove et al., 2006) Asimismo, la industria farmacéutica ha sido eficaz en convencer a los seguros
médicos de que los tratamientos con medicamentos son menos costosos que las terapias psicológicas y
los ha llevado en muchos casos a negar este tipo de cobertura a sus asegurados (Horwitz, 2010).
Hasta aquí hemos analizado que tanto los datos de prevalencia del TDAH como las definiciones del
trastorno usadas para el diagnóstico, no son elementos objetivos o verdades inmutables en el tiempo y
espacio. Estas son construcciones elaboradas por determinados grupos profesionales e investigadores
influenciados por el discurso científico que hegemoniza una época, país o región y que se instala como
la verdad acerca de un saber en salud. Asimismo, las definiciones de las categorías diagnósticas están,
en muchos casos, influenciadas por los intereses económicos y las relaciones financieras que los grupos
que lideran las organizaciones profesionales, así como las de pacientes, mantienen con el complejo
médico-industrial. El problema es que el común de la población, muchos investigadores y profesionales
de salud desconocen estos procesos y el discurso hegemónico se transforma en la verdad sobre el saber
en salud, en este caso en torno al TDAH. Esto legitima las formas diagnósticas, los tratamientos, y la
construcción y circulación de los datos estadísticos, así como la creación de nuevas biosocialidades.
Conclusiones
En este artículo presentamos un análisis que contextualiza la problemática del TDAH en los procesos
de reacomodamiento que el complejo médico-industrial ha realizado para mantener o acrecentar su
participación económica. Estos procesos los encuadramos en la profundización de la medicalización,
definida como biomedicalización y analizamos cómo la forma en que el problema del TDAH se define,
cuantifica y presenta al público contribuye a la biomedicalización de la infancia.
Colaboradores
Las dos autoras, Celia Iriart y Lisbeth Iglesias Ríos participaron igualmente de la
elaboración del artículo en lo que hace a revisiones bibliográficas, análisis y redacción
del manuscrito. Celia Iriart contribuyó con el diseño del estudio, y análisis e
interpretación de fuentes de información primarias y secundarias. Las dos autoras
leyeron y aprobaron la versión final.
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O artigo analisa criticamente o aumento das crianças diagnosticadas e tratadas por
Transtorno de Déficit de Atenção de Hiperatividade (TDAH). As análises vinculam este
crescente fenômeno às estratégias da indústria farmacêutica para se reposicionarem na
liderança da conceituação do processo saúde-doença-atenção e no mercado de saúde.
Utilizamos métodos analítico-interpretativos para estudar dados primários e
secundários, e realizar uma extensa revisão bibliográfica. À luz do conceito da
biomedicalização, analisamos os mecanismos subjetivo-ideológicos que facilitaram que
este discurso se institua como uma nova verdade sobre este transtorno e seja
legitimado pelos organismos governamentais e organizações da sociedade civil. A
biomedicalização do sofrimento infantil dificulta que se revelem as profundas
mudanças socioeconômicas, políticas e ideológico-culturais que têm transformado
radicalmente nossas sociedades nas últimas décadas.
Palavras-chave: Transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH).
Biomedicalização. Consumidor de saúde. DSM. Complexo médico-industrial. Uso de
medicamentos.
artigos
uma revolução em Saúde Pública?*
O humano pode ser considerado como apenas mais um tipo de ser vivo terrestre (Savulescu, 2009).
Ainda que soe reducionista, a natureza humana pode ser concebida meramente pela dotação de
faculdades cognitivas e emocionais, conforme defende Pinker (2002), associadas a outras características
(por exemplo, bioquímicas, físicas, comportamentais) compartilhadas pelos espécimes sadios do Homo
Sapiens, o que apontaria, exclusivamente, para os chamados universais biológicos, bem como para dada
concepção de normalidade.
Tal questionável perspectiva apoia-se em aspectos numéricos e normativos. Aqueles referem-se à
observação de traços fenotípicos mais comuns na espécie; estes concernem àquilo que constituiria um
indivíduo não defeituoso, que desfruta de um ‘bom’ funcionamento das funções biológicas tidas como
mais importantes, o que, hipoteticamente, favoreceria o florescimento humano.
Malgrado haja uma relação inextrincável entre biologia, diferenças culturais, ambientais e individuais,
criando uma interdependência biologia-ambiente (Dupré, 2001), o humano seria, fundamentalmente, a
expressão daquilo que a biologia permite. A biologia delimitaria, inclusive, como a interação do humano
com o meio ambiente pode influenciá-lo.
A biologia humana é ambígua, conferindo à espécie certas capacidades de alta complexidade
(linguagem, raciocínio etc.), mas, também, impingindo certos limites. Deficiências, doenças e a morte
são exemplos. Estas poderiam ser interpretadas como índices de precariedade e vulnerabilidade
igualmente inerentes à condição humana, isto é, fariam parte da normalidade biológica humana, o que
contestaria a perspectiva supracitada. Um ponto que deve ser sublinhado é que, contígua aos juízos de
fato, há a presença de juízos de valor a partir dos quais é escolhido o que deve constituir a natureza
humana, distinguindo o que deve ser combatido ou promovido, o ‘mal’ e o ‘bem’. Assim, ainda que
doenças e deficiências façam parte da natureza humana, a humanidade vem travando uma luta
incessante contra elas (Porter, 2004), expressando um juízo de valor acerca dessas facetas da condição
humana.
Sem analisar o polêmico debate sobre a natureza humana, tampouco endossar um reducionismo
biológico (Dupré, 2001; Goldsmith, 1991), para nós, o mais importante é ressaltar que, embora
qualquer ser vivo tenha limites biológicos, o humano é o único que os problematiza, o que sugere uma
valoração negativa deles. Os meios criados para contorná-los ou, no limite, superá-los - por meio dos
quais o humano parece tencionar tornar a sua vida ‘melhor’, mais ‘segura’, ‘feliz’, longínqua ou, quiçá,
ilimitada - são indícios disso.
Como identificadoras do humano, ainda que parcialmente, são essas características/capacidades de
julgar e manipular que ressaltamos neste artigo, as quais se traduzem em duas iniciativas que serão
examinadas quanto às suas características e efeitos para o campo da Saúde Pública, a saber: o par
biotecnociência-biotecnologias e o pensamento transumanista.
Nossos objetivos são: (1) definir os conceitos de biotecnociência e biotecnologia, analisando
criticamente seus potenciais; (2) descrever os aspectos gerais do movimento transumanista, refletindo
sobre suas controvertidas ideias; (3) especular sobre algumas implicações da biotecnociência associada
ao transumanismo para o campo da Saúde Pública.
O controle, promoção e melhoramento da vida parecem ser uma obsessão exclusivamente humana
(Bostrom, 2005a; Porter, 2004). Isto pode ser constatado em iniciativas individuais ou de conjunto, de
cunho científico ou não, para: prevenir e curar doenças e deficiências; promover a ‘saúde’; contornar o
processo de envelhecimento; aperfeiçoar capacidades; ou alcançar, no limite, a imortalidade.
Dentre as formas que os humanos inventaram para buscar esses fins, as biociências possuem grande
destaque. Uma parcela bastante representativa dos humanos tem investido nelas, subescrevendo a ideia
de que a vida pode ser racional e artificialmente manipulada.
artigos
a noção de Saúde Pública, um conjunto de medidas historicamente relevante. Como uma miríade de
estratégias governamentais de esquadrinhamento, vigilância, prevenção e tratamento voltadas para uma
população – que não está restrita ao determinante biológico, mas também atenta aos sociais –, ela
desponta, pelo menos desde o século XVIII, como uma das mais intensivas e extensivas medidas de
promoção da vida (Foucault, 2007) e de construção da subjetividade humanas (Ferreira Neto et al.,
2011).
Os recentes avanços biotecnocientíficos são interpretados, por alguns, como capazes de revolucionar
os modos como a vida humana tem sido compreendida, manipulada e promovida. Expandindo-se para
além da terapia, eles aguçam, sobremaneira, a imaginação acerca do ‘aperfeiçoamento’ humano.
Conforme Vilaça e Palma (2011) analisam criticamente, as possibilidades de alteração associadas a ele
ampliam-se, suscitando transformações importantes no que tange ao poder do homem sobre si mesmo.
Isto suscita dilemas epistemológicos, éticos e políticos que não são propriamente novos, uma vez que
os sonhos de perfeição são, há muito, criticados. Entre riscos e benefícios, bem como ameaças e
promessas, estamos perenemente diante de ambiguidades desconcertantes que impõem uma constante
reflexão crítica.
Quanto aos possíveis benefícios que a biotecnociência já tem oportunizado e poderá disponibilizar,
especialmente em razão dos avanços da genética, destacam-se: o tratamento de ‘males’, como
deficiências e doenças, e a promoção de ‘bens’, como a saúde e o bem-estar.
Embora não saibamos se tal interpretação ou percepção é universal, parece-nos razoável considerar
doenças e deficiências como características naturais, logo, inerentes à condição biológica do humano.
Todavia, elas são tidas como índices de precariedade e imperfeição, sendo consideradas males. Aqui,
elas serão compreendidas como expressões dos limites biológicos humanos com os quais não lidamos,
no mínimo, de modo confortável. Em nível diverso, elas representam empecilhos à existência humana,
pois impingem restrições, dor e sofrimento.
As propaladas revolução biotecnológica e Era genética inaugurariam, hipoteticamente, um novo e
promissor estágio quanto aos meios de tratamento desses males. Supõe-se que ingressaremos numa
fase marcada pela maior eficácia dos seus tratamentos (Buchanan et al., 2001) ou, no extremo, até
mesmo pelo seu desaparecimento, haja vista a superação dos limites biológico-estruturais humanos
(Bostrom, 2005a). A radicalização da previdência pelas terapias genéticas pré-nascimento; os fármacos
individualizados e sem reações adversas; a cura de males ou sua absoluta erradicação; o
aperfeiçoamento de capacidades físicas, mentais, psicológicas e morais estão no horizonte
biotecnocientífico de possibilidades e metas.
Entretanto, se, por um lado, as biotecnologias são consideradas como algo sobre o qual deveríamos
investir; por outro, elas vêm sendo alvo de críticas. Uma das vertentes filosóficas que têm refletido
sobre essa ambiguidade, sobretudo no que se refere às consequências das novas biotecnologias para o
futuro humano, é o chamado transumanismo.
Os transumanistas, grosso modo, creditam à biotecnociência o poder de ‘melhorar’ a vida humana,
ainda que isso implique uma nova forma de vida: a pós-humana. Esta seria marcada pela superação dos
limites humanos biologicamente estruturados (físicos, mentais, psicológicos, comportamentais) e pela
consequente maximização de capacidades, visando ao prolongamento da vida, à elevação dos níveis de
‘saúde’ e ‘bem-estar’, evitando dor e sofrimento desnecessários e involuntários (Bostrom, 2003). O
transumanismo defende um amplo, mas normativamente responsável, desenvolvimento de
biotecnologias, investindo nas ideias de Human Plus (humanos ‘mais’, ‘positivados’) e Human
Enhancement (‘aperfeiçoamento’ humano).
Na interface biotecnociência-transumanismo está, então, uma ambígua e controvertida forma de
lidar com a vida humana. A seguir, encetamos o cumprimento dos nossos objetivos para responder à
questão central deste artigo.
A biotecnologia tem uma história secular, sendo aplicada a diversos âmbitos (Morris, 2006).
Contudo, as gerações da metade do século XX em diante têm assistido a um inédito aceleramento das
transformações da ciência e da técnica, incluindo o impressionante desenvolvimento da biotecnologia.
Fukuyama (2003), que defendera o fim da história e o último homem, chega a afirmar que tal
desenvolvimento é capaz de reiniciar, noutras bases, a história da humanidade.
Os potenciais biotecnológicos geram dilemas éticos relativamente novos acerca da relação entre
ciência e técnica, especialmente no tocante à manipulação e instrumentalização da vida humana
(Habermas, 2004). Conforme ressalta Jonas (1997), uma indiferenciação entre ciência e técnica,
pautada por fins pragmáticos, tem estreitado o horizonte da reflexão especulativa. É como se a reflexão
tivesse sido colonizada pela razão instrumental-calculadora de tipo meios-fins, dando especial lugar à
tecnociência. Típica da modernidade, essa modalidade de razão e seus efeitos possuem críticos. Jürgen
Habermas, ao analisar a racionalidade moderna, afirma que o capitalismo tardio é caracterizado por uma
união indissociável entre ciência e técnica (Habermas, 1997). No contexto da ideologia capitalista, como
há uma tecnicização da ciência e uma cientificação da técnica, “cria-se assim uma perspectiva na qual a
evolução do sistema social parece estar determinada pela lógica do progresso técnico-científico”
(Habermas, 1997, p.73 – grifo do autor). A medicina parece influenciada por essa lógica. É importante,
assim, compreendê-la no contexto biotecnocientífico.
A relevância dos saberes e práticas médicos, por exemplo, sobre o discurso de verdade acerca da
saúde e do bem-estar, repercute fortemente sobre a prescrição e proscrição de estilos de vida,
exercendo poder medicalizador e normalizador sobre indivíduos e populações (Foucault, 2007). Sob um
enfoque pragmático, o que está na mira da biotecnociência são os fins práticos, como o tratamento ou
cura de doenças, o alívio da dor e do sofrimento, ou a promoção da saúde.
Segundo Schramm (2005), a biotecnociência pode ser entendida como um conjunto de ferramentas
teóricas, técnicas, industriais e institucionais que visa a pesquisar e transformar seres e processos vivos,
conforme o parâmetro da saúde, objetivando, grosso modo, promover um genérico bem-estar de
indivíduos e populações. Ela é um neologismo que indica a interação entre sistemas complexos nos
quais se constituem os seres e os ambientes vivos, a fim de agir sobre eles, por meio de um sistema
técnico e informacional, bem como de dispositivos que objetivam orientar tal intervenção (Schramm,
2010). Como “[...] um paradigma científico, que cria as condições de possibilidade e orienta o
conhecimento dos fenômenos e processos vivos, assim como as intervenções que visam a seu controle
e transformação”, a biotecnociência “refere-se, em particular, às atividades da medicina e da biologia
amplamente entendidas, dos sistemas de informação e comunicação, da biopolítica, e a suas
interações” (Schramm, 2010, p.191).
Conforme Schramm (2010), tecnociência e biotecnociência diferenciam-se. Concluindo sua análise
sobre o temor relativo à biotecnociência, ele aduz o paradoxo inerente à tecnociência, a saber, que ela
pode gerar novos riscos ao tentar superar antigos, para afirmar que
[...] a biotecnociência tem algo a mais, pois é a tecnociência aplicada a organismos vivos,
inclusive aos organismos humanos. Assim sendo, a diferença entre tecnociência e
biotecnociência reside no fato de que a biotecnociência manipula sistemas vivos que,
contrariamente aos sistemas não vivos, são sistemas autopoiéticos, em princípio
“renováveis”, graças ao metabolismo [...] e à reprodução [...]. (Schramm, 2010, p.195-196.
Grifo no original)
Ainda que não fique claro o porquê de a biotecnociência lidar com recursos renováveis e
autopoiéticos seria suficiente para não a temermos; Schramm (2010, p.196) assevera que
artigos
verdadeira revolução cognitiva, técnica e prática.
3
Um caso recentemente biotecnocientífico o poder de solapar a dignidade, a autenticidade e a autonomia
artigos
publicado refere-se a
pesquisas estadunidenses humanas.
na Guatemala, Diante do potencial biotecnocientífico, é razoável surgirem questões, tais
envolvendo a deliberada
contaminação de
como: devemos apostar em um novo estágio da evolução humana, fruto da
guatemaltecos por manipulação racional do patrimônio genético humano? Os riscos potenciais, que
doenças sexualmente
transmissíveis.
sequer são integralmente previsíveis, não seriam um chamado à prudência e ao
bioconservadorismo? É razoável levar a meta do ‘melhoramento’ humano em
frente, buscando a superação da dor, do sofrimento e dos limites
biológico-estruturais-estruturantes do humano?
Contrariamente aos bioconservadores, os transumanistas, grupo igualmente
variado de pensadores, apostam em um futuro biotecnocientífico e pós-humano,
em que a fronteira terapia-eugenia seja superada. O transumanismo defende o
amplo desenvolvimento da biotecnociência e das biotecnologias, o que o torna
controvertido e digno da abordagem a seguir.
significativamente diferentes, de tal modo que não são mais humanos em qualquer aspecto significativo”
(p.214). Segundo Bostrom (2005b, p.203), os pós-humanos são “seres que podem ter saúde sem fim,
faculdades intelectuais muito maiores do que as dos seres humanos atuais – e, talvez, sensibilidade ou
modalidades de sensibilidade inteiramente novas – assim como a habilidade de controlar suas próprias
emoções”. Tal estágio seria alcançado pela aplicação de técnicas de manipulação e artificialização da vida,
o que é visto pelos transumanistas como uma possibilidade promissora e tangível.
Uma espécie de abertura otimista ao horizonte biotecnocientífico para dar um plus na humanidade
(torná-la mais ‘feliz’, mais longeva, mais ‘saudável’ etc.) pode estar suscitando uma perigosa
simplificação do pensamento transumanista. Segundo seus críticos, ele seria absoluta e acriteriosamente
favorável ao irrestrito uso das biotecnologias, colocando o humano à disposição delas. Mas, segundo
argumentam os transumanistas, o objetivo seria justamente o oposto, quer dizer, subordinar a
biotecnociência aos interesses dos humanos.
Os transumanistas não são ingênuos e inconsequentes tecnicistas. A lista de valores reguladores da
biotecnociência sugerida por Bostrom (s./d.) comprova isto. A biotecnologia deve vir associada a uma
preocupação crítica permanente. Quer dizer, deve existir uma gama de meios tanto para avaliar
presumivelmente as consequências quanto para criteriosamente indisponibilizar certas técnicas, caso
apresentem, concretamente, algum malefício ao humano (Bostrom, s./d.).
Para Bostrom (2003), embora as biotecnologias (nanotecnologia molecular, inteligência artificial,
neurofarmacologia etc.) possam gerar benesses, os transumanistas estão atentos aos riscos e malefícios,
uma vez que eles “reconhecem que algumas dessas tecnologias podem causar grande dano à vida
humana, oferecendo riscos até mesmo à sobrevivência da nossa espécie” (Bostrom, 2003, p.5).
Como se vê, os conceitos de malefício e benefício, ambos relativamente vagos, norteiam o debate.
Portanto, cabe problematizá-los. Por exemplo, pode-se considerar que tornar as pessoas mais longevas,
vivendo cento e cinquenta anos ou mais, com a saúde preservada, sem doenças ou sofrimento, seja
algo benéfico. Mas, em contrapartida, o resultado deste ‘bem’ poderia ser um ‘mal’, pois um aumento
demográfico poderia acarretar problemas em termos, por exemplo, de oferta de recursos necessários à
sobrevivência, como alimentos, água, trabalho e espaço. Ou seja, uma mesma intervenção pode gerar
efeitos ambíguos, relativamente benéficos e relativamente maléficos, cabendo, portanto, avaliá-los
ampla, diligente e criticamente.
Inobstante a importante observação, em suma, o transumanismo é um humanismo de cunho
tecnocientífico, que visa a promover a disponibilização de recursos, para que os sujeitos, no uso da sua
liberdade e baseados em informações, usem novas formas de tratamento, decidindo sobre o
(auto)aperfeiçoamento, bem como sobre a seleção da descendência. Suas prioridades envolvem o
combate às doenças e deficiências, bem como a promoção da saúde e o bem-estar através das
biotecnologias, quer isso represente uma terapia quer um aperfeiçoamento, coadunando-se com a
opção de tratar as doenças e deficiências como males. Nesse sentido, as iniciativas de evitá-las ou curá-
las seriam um bem à humanidade. Vejamos, então, alguns argumentos que ajudam a ratificar esse
entendimento.
Glover (2006) analisa a deficiência como uma limitação funcional, não sendo mera desvantagem
socialmente construída. Deficiência não envolve qualquer forma de limitação funcional, mas apenas
aquelas que comprometem capacidades indispensáveis ao florescimento humano, o qual, por sua vez,
está relacionado à normalidade biológica. Para ele, a deficiência compromete a normalidade,
envolvendo uma limitação funcional que, por si mesma ou na combinação com alguma desvantagem
social, prejudicaria a capacidade de qualquer ser humano exercer o estado pujante atinente à espécie.
Carmichael (2003) afirma que uma deficiência gera, seguramente, um intenso sofrimento tanto à
família quanto ao indivíduo que foi vitimado, por exemplo, por um ‘acidente genético’. Citando a
Fragile X Syndrome, relativa a uma deficiência intelectual que compromete a capacidade de
aprendizagem do indivíduo, ela argumenta que o acesso a biotécnicas decorrentes do Projeto Genoma
Humano, como, por exemplo, o Diagnóstico genético pré-implantacional, pode ser a forma mais
confiável de prevenir deficiências até o presente estágio do conhecimento humano. Parece-lhe, e
também a nós, completamente aceitável e, sobretudo, moralmente justificável que os pais utilizem
técnicas disponíveis para evitar uma deficiência ou, mesmo, diagnosticar futuros males, e decidir levar
ou não uma gestação adiante, caso não haja possibilidade de cura. Caso haja, seria praticamente uma
artigos
obrigação moral aplicá-la.
Se a deficiência impõe um encurtamento do horizonte humano de florescimento e impinge dor e
sofrimento ampliados, parece-nos racional, razoável e beneficente buscar evitá-la, quer tratando, quer
evitando o nascimento. Em ambos os casos, os pais, assessorados por médicos e outros profissionais da
saúde, tomariam a decisão – complexa, por sinal – de evitar seu próprio sofrimento, assim como o da sua
descendência. Numa expressão partilhada pelos transumanistas, deve-se garantir a oportunidade da
escolha genética, até mesmo como uma forma de promover a justiça, pois as deficiências e doenças
constituem uma forma de desigualdade entre os humanos (Bostrom, 2005b; Buchanan et al., 2001).
Para Glover (2006), a deficiência e a doença devem ser compreendidas em contraste com a
normalidade, o que expressa dada concepção de normalidade biológica. Esta é compreendida como um
conceito numérico, mas também normativo. Segundo ele, por exemplo, ainda que a maior parte dos
humanos seja infectada com o HIV/Aids, continuaremos a vê-lo como causador de uma doença, algo
anormal.
Indubitavelmente, o campo da fronteira entre o normal e o patológico é tenso. Em que pesem
diferentes cientistas ou filósofos utilizarem a noção de doença, a ausência de uma definição precisa ou
consensual faz com que ele se refira a ideias, objetos e interpretações distintos. Caprara (2003)
desenvolve, à luz da hermenêutica filosófica, uma argumentação no sentido de que há uma diversidade
considerável de significações de doença. Há divergência, por exemplo, em relação ao que a constitui e/
ou causa; a que tipo de experiência ou fenômeno refere-se; que simbolismos a caracterizam; e qual a
sua relação com a saúde. Isso poderia levar a inferir que algo identificado como doença por um
indivíduo ou sociedade, provocando, em tese, dor e sofrimento não apenas físicos, mas de outras
ordens (psicológica, social, mental), poderia não ser assim percebido em outros casos, não causando tais
sensações.
De fato, essa conclusão é plausível, pois, como está vastamente argumentado na literatura sobre o
tema, a fenomenologia da doença compreende múltiplos fatores. Contudo, parece-nos que o termo
doença remete-se, via de regra, à percepção de um mal, de algo indesejável. A fim de corroborar tal
entendimento, mencionaremos, apenas, alguns aspectos antropológico-semânticos e etimológicos
atinentes à doença.
Gomes, Mendonça e Pontes (2002), a partir da análise antropológica de Laplantine, explicam que
este autor destacava que a língua francesa possui uma só palavra para designar doença: maladie. A
língua inglesa, entretanto, dispõe de três vocábulos: disease, que poderia significar como a doença é
compreendida pelo conhecimento médico; illness, que designaria, de um modo, a doença como é
experimentada subjetivamente pelo doente, e, de outro, como tem sido vivenciada pela sociedade
através dos comportamentos socioculturais associados à doença; e, por fim, sickness, que diz respeito a
algo menos grave e mais incerto, como o mal-estar.
Em português, os termos doença ou enfermidade têm sido empregados sem distinção. A origem
etimológica do vocábulo doença deriva de algumas palavras latinas (dolentia, de dolens) que significam
‘dor’; ‘que se aflige e causa dor’; ‘doer, sentir dor, sofrer física e moralmente’. Por outro lado,
enfermidade (infirmitas, atis, de infirmus) tem suas origens em algo que exprime ‘fraqueza, debilidade,
compleição fraca’.
Em resumo, ainda que haja variâncias hermenêuticas, sociais, culturais e fenomenológicas, a
expressão doença, desde a sua origem, envolve a atribuição de um sentido negativo, não definindo algo
bom, ‘positivo’ ou ‘desejável’, um bem. Assim, a promoção do ‘bem saúde’ pode ser comprometida
pela ocorrência de deficiências, de modo que é criada uma espécie de ‘círculo maléfico’ que a
biotecnociência pode interromper.
Quanto à responsabilidade de evitar o ‘mal doença’, em síntese, para o posicionamento da Nova
Saúde Pública, especificamente após a Carta de Ottawa, os sujeitos adoecem porque ‘são fracos de
vontade’ e merecem o seu sofrimento, uma vez que seriam capazes de cuidar de sua própria saúde e,
portanto, responsáveis pelo seu destino e alvo justificado de repulsa moral, caso adoeçam. Assim, o
foco no autocuidado tornou-se a armadilha do higienismo (Gaudenzi, Schramm, 2010; Ortega, 2003).
Cumpre sublinhar, porém, que o novo paradigma instituído pela Nova Saúde Pública (Gaudenzi,
Schramm, 2010) tem de pressupor o gozo de certas capacidades humanas básicas (físicas, mentais e
psicológicas) ligadas, por exemplo, à ‘autonomia’. Quanto a isso, é pertinente aduzir uma observação
de Carmichael (2003). Segundo ela, os indivíduos acometidos por aquela síndrome são incapazes de
prover a própria saúde, ficando completamente dependentes do cuidado alheio. Ou seja, algumas
deficiências são capazes de minar certas funções biológicas fundamentais, comprometendo a
sobrevivência de dado indivíduo, tornando-o radicalmente dependente dos outros para prover a sua
saúde. Assim, o paradigma do autocuidado enfrentaria um grande óbice.
Esse caso mostra como a biotecnologia pode – isto é, carrega em si o potencial de –, contribuir para
certa concepção de melhoramento vital, qual seja, gerar uma vida ‘mais autônoma’, que goze de certas
condições de possibilidade da promoção da saúde. Como argumenta Bostrom (2005b), em nome da
dignidade pós-humana, seria amplamente justificável o incentivo de pesquisas que possam produzir
novas técnicas de diagnose e terapia, ampliando, assim, a possibilidade de escolha humana sobre o que
fazer da sua existência, visando à melhor vida possível, o que pode alterar alguns paradigmas do campo
da Saúde Pública.
Como em um futuro cenário biotecnocientífico podem ocorrer importantes mudanças quanto aos
modos de promoção da saúde e do bem-estar, um dos campos afetados seria o da Saúde Pública.
Petersen e Luptom (2000) afirmam que, apesar do âmbito de aplicação da Nova Saúde Pública e de seu
impacto sobre um desmesurado número de aspectos da vida cotidiana, surpreendentemente, ainda tem
ocorrido pouca análise crítica a respeito de determinadas questões. Pouca atenção tem sido dada à
análise dos princípios fundamentais, dos conhecimentos, dos discursos de verdade e das práticas que
cercam as intervenções relativas ao campo, bem como às potenciais mudanças frente àquele futuro
cenário.
As mudanças relativas à Saúde Pública são uma constante na história. Em seu clássico “Uma História
da Saúde Pública”, Rosen (1994) sustenta uma periodização marcada por acontecimentos históricos de
grande magnitude que permitiram determinadas guinadas nas formas de lidar com a saúde das
populações. Por exemplo, se, na Idade Média, apregoava-se um conhecimento sobre a saúde baseado
em preceitos religiosos; no Renascimento, foi possível observar, especialmente por conta das obras de
Vesálio e Harvey, a construção das bases médico-científicas da anatomia e fisiologia; nos séculos XVIII e
XIX, por sua vez, tornou-se oportuno o uso das estatísticas oficiais, através de uma espécie de ‘política
aritmética’. Por seu turno, as descobertas de Pasteur e Koch, principalmente, deram início à Era
Bacteriológica, cujo elemento específico da doença foi descoberto. A causa, decorrente da presença de
microrganismos (vírus, bactérias, bacilos etc.), pôde, enfim, ser conhecida e eliminada ou prevenida.
Em que pesem algumas dessas ideias terem sido superadas, outras permanecem, mesmo em
essência. A ideia do determinismo de causa e efeito, presente na Era Bacteriológica, por exemplo,
expandiu-se de tal modo que, mesmo quando o elemento não é suficiente e/ou necessário, como na
associação entre sedentarismo e doenças cardiovasculares, o conhecimento científico não se esquiva de
estabelecer esse nexo. O mesmo poderia ser afirmado em relação aos cálculos estatísticos que, cada
vez mais, fortalecem as associações entre determinados eventos e tornam-se imprescindíveis na
construção das análises sobre saúde.
Talvez se possa asseverar que o momento atual seja regido por um pensamento fundamentado nos
comportamentos de risco. A transição epidemiológica que os países desenvolvidos e, quiçá, os em
desenvolvimento experimentaram, alterou o curso das doenças mais prevalentes. Se outrora as doenças
infectocontagiosas eram aquelas de maior ocorrência, atualmente, nos grandes centros, preponderam as
crônico-degenerativas. Esse é o novo foco da Saúde Pública. Os discursos, agora, dizem respeito às
prescrições de ‘estilo de vida’ e ‘comportamentos’ estabelecidos a partir do conhecimento dos ‘fatores
de risco’ (Ortega, 2008). Ocorre que a responsabilidade pelo cuidado da saúde já não mais pertence
somente ao Estado, e, sim, ao próprio sujeito, que, diante das inúmeras informações médico-científicas
disponíveis, deve ser capaz de alterar seus hábitos de vida, não importando se há uma confusão entre
artigos
os achados e as probabilidades de um evento. É nesse sentido que as condutas moralmente
responsáveis são aquelas opostas aos comportamentos arriscados à saúde e à vida, e, portanto, não se
prevenir é considerado um ato social negativo (Gaudenzi, Schramm, 2010). Desse modo, Petersen e
Luptom (2000) advogam que a Nova Saúde Pública pode ser vista como a mais recente de uma série de
regimes de poder e conhecimento que se estabeleceram com vistas a regular e vigiar os corpos
individuais e sociais.
Porém, possivelmente, o desafio agora seja outro. No campo da saúde, as técnicas e conhecimentos
biotecnocientíficos têm criado as condições de possibilidade para se conhecerem, com maior
profundidade, os fenômenos e processos vivos, orientando as intervenções de um modo relativamente
novo. Schramm (2010) destaca que a incorporação dessas transformações necessita vir acompanhada,
igualmente, de novos questionamentos a respeito das intervenções humanas sobre a vida, tanto em seu
sentido orgânico quanto em suas dimensões simbólicas e imaginárias. O próprio significado de saúde e
seus determinantes podem adquirir (ou deveriam) nova roupagem, em razão dos incontestáveis avanços
em áreas como nanotecnologia, tecnologia da informação, genética e robótica, as quais permitirão
alterar o corpo humano para além dos limites típicos da espécie (Wolbring, 2006).
Ao que parece, contudo, traços característicos presentes na Nova Saúde Pública deverão
permanecer: a noção medicalizante de saúde, que induz a acreditar que todas as dificuldades
relacionadas à saúde são problemas médicos; a ideia de que a saúde é caracterizada pelo
funcionamento do sistema biológico; o pensamento de que é o indivíduo quem deve cuidar de si
apropriadamente, diante dos recursos científicos e tecnológicos disponíveis e, portanto, capaz de
desencadear uma obsessão pela ‘boa’ saúde; e a ideia de que a vida humana está sob constante
risco, que pode e deve ser controlado.
Por outro lado, é possível que se encontre um sistema de promoção da saúde e prevenção de
doenças baseado em intervenções de outro tipo, personalizada, individualizada, ou seja, um modelo de
serviço pessoal de saúde (Buchanan et al., 2001). Esta noção pode vir acompanhando a nova genética,
um dos mais importantes empreendimentos desse cenário biotecnocientífico, e a farmacogenética, um
de seus possíveis desdobramentos. Este campo diz respeito à possibilidade de se descobrirem e
produzirem medicamentos específicos para um determinado sujeito, o que lhe garantiria uma terapia
individualizada com menor risco de reações adversas (Golstein, Tate, Sisodiya, 2003).
Pode haver, outrossim, um recrudescimento e uma matização da responsabilização do indivíduo.
Quanto ao primeiro aspecto, o indivíduo não teria como se eximir, visto que ele poderia, se quisesse,
usar sobre si mesmo (liberdade morfológica) as biotecnologias para sanar quase quaisquer problemas
para a sua saúde. Caso não o fizesse, por escolha, e não por impossibilidade, a sociedade julgaria seu
ato, a despeito de ser preciso maior debate, como moralmente inadequado. Quanto ao segundo,
porque o indivíduo que não aplicasse as biotecnologias na constituição da sua descendência (liberdade
reprodutiva), e caso esta desenvolvesse algum problema de saúde evitável, sua condenação moral seria
quase que incontornável, pelo mesmo motivo supracitado.
Em resumo, não nos parece que possamos dar uma resposta positiva à questão de se a
biotecnociência representará uma completa revolução no campo da Saúde Pública. Ainda que haja
novidades, elas não representarão, de acordo com a presente análise, uma guinada radical que deixará
para trás todos os elementos que a constituíram até então. Ao contrário, parece-nos que a lógica mais
adequada para especular sobre as mudanças que, indubitavelmente, serão geradas é a da continuidade/
descontinuidade, conforme apontamos. Quer dizer, aquilo que a biotecnociência representará insere-se
num continuum epistemológico, histórico, político etc., ao mesmo tempo em que cria cisões nele,
oferecendo novas possibilidades e apresentando novos dilemas.
Colaboradores
Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito.
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global health, and disabled people. Can. J. Public Health, v.97, n.5, p.405-8, 2006.
artigos
na promoção de práticas alimentares saudáveis*
LARA, B.R.; PAIVA, V.S.F. The psychosocial dimension in promoting healthy dietary
practices. Interface - Comunic., Saude, Educ., v.16, n.43, p.1039-54, out./dez. 2012.
This paper critically examines how the Este artigo analisa criticamente como é
psychosocial dimension is dealt with in abordada a dimensão psicossocial na
promoting healthy dietary practices. A promoção de práticas alimentares
search was carried out in Lilacs and in saudáveis. Realizou-se busca no Lilacs e
Medline’s multipurpose mode, from 2000 no modo multipurpose do Medline, de
to 2011, using the terms intervention, 2000 a 2011, utilizando os termos
health promotion and psychosocial, and intervenção, promoção da saúde,
all terms relating to nutrition. It was psicossocial e todos aqueles correlatos à
observed that during this last decade, nutrição. Observou-se que nesta última
sociocognitive approaches and models of década as abordagens sociocognitivas e
rational belief still predominated in this modelos de crença racional ainda
field. Intervention studies focusing on the predominam nesse campo, prevalecendo
individual prevailed, with less attention trabalhos de intervenção focados no
paid to the broader social context that indivíduo e pouco críticos ao contexto
produces dietary practices. It can be social mais amplo que produz práticas
concluded that for healthy dietary alimentares. Conclui-se que para a
practices to be promoted within the promoção de práticas alimentares
context of comprehensive healthcare, the saudáveis no contexto de assistência
debate about what can be called integral, o debate sobre o que chamamos
de psicossocial deve ser ampliado para
*
Elaborado com base
psychosocial needs to be broadened to
em Lara (2010)
incorporate the recent contributions from incorporar as contribuições recentes das 1
Núcleo de Estudos para
healthcare approaches based on human abordagens em saúde com base nos a Prevenção da Aids
rights, with awareness of the direitos humanos, atentas à (NEPAIDS). Av. Prof.
multidimensionalidade do processo Mello Moraes 1721,
multidimensionality of the
Bloco A-Sala 117,
health-disease-care process. saúde-doença-cuidado. Cidade Universitária. São
Paulo, SP, Brasil.
Keywords: Health promotion. Palavras-chave: Promoção da saúde. 04.560-012.
Psychosocial. Care. Dietary and Psicossocial. Cuidado. Educação alimentar brunarl@usp.br
nutritional education. Human rights. e nutricional. Direitos Humanos. 2
Departamento de
Psicologia Social e do
Trabalho, Instituto de
Psicologia, Universidade
de São Paulo.
Introdução
promoção da saúde do
visão mais naturalizada do processo saúde-doença3, a MPS está mais fortemente modelo de HND passou a
atenta à dimensão política e social desse processo. Mais ainda, no modelo de ser duramente criticada:
a multicausalidade e os
HND a promoção da saúde é um dos momentos da prevenção de doenças, determinantes sociais e
consistindo na melhoria geral das condições de vida de indivíduos, famílias e políticos do processo
saúde-doença-cuidado
comunidades, beneficiando a saúde e qualidade de vida e tornando-os mais teriam sido mal
resistentes a processos patogênicos (Ayres, 2009, grifo nosso), ou seja, a saúde é incorporados ao modelo
concebida como ausência de doenças, e as estratégias de promoção da saúde – a própria noção de
HND implicaria em um
adotadas por esse modelo propõem, em geral, “medidas gerais, educativas, que curso “natural” da
objetivam melhorar a resistência, o bem-estar geral dos indivíduos [...] para que doença, o que impediria
uma compreensão mais
resistam à agressão dos agentes” (Westphal, 2006, p.641), não alterando de fato politizada dos
as condições de vida de indivíduos e comunidades. A MPS, em comparação, deixa determinantes do
processo
de ser um momento na organização de ações de prevenção e passa a ser utilizada saúde-doença-cuidado
como norte de um movimento de renovação das práticas de saúde e da própria (Ayres, 2009).
artigos
reconstruindo suas bases filosóficas e métodos (Ayres, 2009).
Em 1998 a OMS definiu saúde na perspectiva da promoção da saúde como
recurso à vida individual, social e econômica4 (Traverso-Yépes, 2007). Ou seja, não
4
WORLD HEALTH
ORGANIZATION. WHO.
se trata apenas de prevenir e evitar doenças, porque a saúde deixa de ser um fim
Health promotion em si mesmo, para compor um recurso da vida cotidiana. A MPS traz uma
glossary. WHO: Geneve, compreensão dinâmica dos determinantes do processo saúde-doença-cuidado
1998. Disponível em:
<http://www.ldb.org/vl/ (Sícoli, Nascimento, 2003): determinantes sociais, econômicos, ambientais e
top/glossary.pdf>. biológicos compõem um processo sinérgico, complexo, e sua ação só pode ser
Acesso em: 9 jun. 2012.
compreendida em suas interconexões. Além disso, evocando processos de
transformação social para além de atividades educativas voltadas para a prevenção
de doenças, o princípio da equidade é incorporado, bem como a participação
social, empoderamento individual e coletivo e a sustentabilidade das ações.
Quando a MPS procura envolver as pessoas como parceiros na busca por melhores
condições de vida, altera-se o sentido da promoção da saúde no modelo de HND,
em que as pessoas são “público-alvo” de ações focadas na prevenção de doenças.
Assim, embora tanto a promoção da saúde no modelo de HND como no da
MPS permitam falar em uma dimensão psicossocial do processo saúde-doença-
cuidado, essa dimensão será abordada de maneira diferente em cada uma dessas
propostas de promoção da saúde. Cientes dessas diferenças, as autores do
presente trabalho fazem uma revisão de intervenções que levam em conta a
dimensão psicossocial na promoção de práticas alimentares saudáveis indexadas no
Medline e Lilacs a fim de identificar as diferentes concepções de dimensão
psicossocial presentes nessas intervenções. Finalmente, são feitos alguns
apontamentos em relação aos modelos de promoção da saúde com os quais cada
uma dessas concepções dialogam.
França-Jr, 2004; Spink, 1992) e que se aproximou do referencial dos Direitos Humanos em saúde
(Ayres, Paiva, França Júnior, 2011; Santos, 2011; Paiva, 2010; Ayres et al., 2006; Mann, Tarantola,
1996), tem desenvolvido programas de promoção da saúde integral junto a diferentes comunidades e
segmentos da população, e aparece fortemente em artigos e capítulos no campo da chamada Resposta
Brasileira à Aids ou do Programa de Atenção à Saúde da Mulher (PAISM) (Berkman et al., 2005). Não
discriminação e participação de usuários são princípios centrais dessas abordagens, assim como o
princípio do acesso universal, da aceitabilidade e qualidade das ações em saúde, assegurando que as
populações socialmente mais vulneráveis consigam ser atendidas em suas necessidades de saúde
(Gruskin, Tarantola, 2008).
A vertente focada na mudança de estilos de vida dialoga com a promoção da saúde característica do
modelo de HND, uma vez que se baseia principalmente em medidas educativas e tem como finalidade
evitar o adoecimento. A segunda vertente, construcionista, alinha-se à MPS. Essa vertente busca
transformar as condições objetivas de vida, concebendo saúde como recurso à vida cotidiana, e não
como ausência de doença. Mais ainda, reconhece a necessidade de transformações sociais e políticas,
considerando que o processo saúde-doença não é natural, mas atravessado por essas questões,
ressaltando a necessidade de ações programáticas e sustentáveis para enfrentar a iniquidade e garantir
melhores condições de vida para a população. Assim como na proposta da MPS, que compreende os
determinantes do processo saúde-doença de maneira dinâmica, a vertente construcionista também
compreende a dimensão psicossocial desse processo como interação entre dimensões mutuamente
implicadas: a dimensão individual, social e programática. Como proposta de ação, essa vertente atua
capacitando indivíduos e comunidades para que reconheçam necessidades e aspirações e atuem no
sentido de buscar as modificações necessárias, de maneira semelhante ao que propõe a MPS.
A maior parte dos artigos disponíveis sobre a promoção de práticas alimentares saudáveis se alinhava
à vertente focada na mudança de estilos de vida, propondo intervenções de base sociocognitiva e
comportamental, que assumem que as percepções, crenças e conhecimento contribuem em graus
variados para a performance (ou não) de determinado comportamento (Crossley, 2000) ou ainda,
concebendo estágios de mudança, que combinam psicoterapia e estratégias de modificação de
comportamento. Localizamos um artigo alinhado aos modelos ecológicos de promoção da saúde (Goh
et al., 2009), modelos que, ao proporem mudanças comportamentais, destacam a interação entre o
indivíduo e o seu ambiente social e físico (Parker et al., 2004).
Os trabalhos na perspectiva da primeira vertente adotavam diferentes construtos como “fatores
psicossociais”, como se pode observar no Quadro 1. Exceto nos dois últimos, a referência é o indivíduo.
Além dos construtos elencados na primeira coluna do Quadro 1, como “determinantes
psicossociais”, mencionam também preferências alimentares (Anderson-Bill et al., 2011; Tuuri et al.,
2009; Van Duyn et al., 2001), resiliência (Clark et al., 2011), depressão (Clark et al., 2011; Zemper et
al., 2003), problemas de ajustamento relacionados a perdas no trabalho e casamento e satisfação com a
vida (Zemper et al., 2003). Um dos artigos mencionava aferição de fatores psicossociais em seu resumo,
sem maior detalhamento (Rimmer et al., 2000).
Os trabalhos de intervenção analisados podem também ser categorizados de acordo com o seu
alcance e modalidade: intervenções individuais que utilizam estratégias de promoção da saúde
realizadas a distância, por computador, correio e/ou telefone (Anderson-Bill et al., 2011; Robroek et al.,
2010; Elder et al., 2009; Portnoy et al., 2008; Van Keulen et al., 2008; Van Duyn et al., 2001),
intervenções face a face realizadas com grupos específicos (Clark et al., 2011; Bonnel, 2003; Zemper et
al., 2003; Langenberg et al., 2000; Rimmer et al., 2000), intervenções com base na família ou escola
(Chen et al., 2010; Pearson et al., 2010; Goh et al., 2009; Tuuri et al., 2009; Burgess-Champoux et al.,
2008; Haerens et al., 2008; Saksvig et al., 2005; Verheijden et al., 2003; Parcel et al., 2003) e,
finalmente, intervenções de base comunitária (Gittelsohn et al., 2010; Mead et al., 2010; Campbell et
al., 2007).
artigos
Quadro 1. Construtos psicossociais nos trabalhos analisados
TRA = Theory of Reasoned Action – Teoria da Ação Racional; TPB = Theory of Planned Behavior – Teoria do Comportamento Planejado;
TM = Transtheoretical Model – Modelo Transteórico; HBM = Health Belief model – Modelo de Crenças em Saúde
*
Modelos identificados a partir da abordagem explicitada nos artigos analisados e descrições dos construtos em Montaño, Kasprzyk e Taplin,
(2002), Prochaska, Redding e Evers (2002), e Strecher e Rosenstock (2002)
Nesses trabalhos que visam promover mudanças no comportamento dos indivíduos, não questionam
as condições sociais que tornam determinados indivíduos ou comunidades mais vulneráveis a piores
condições de alimentação. Em intervenção descrita por Verheijden et al. (2003), por exemplo, que
ofereceu aconselhamento nutricional familiar, os participantes avaliavam se alimentos com pouca
gordura eram caros. Esse item do instrumento aferia a “atitude” dos indivíduos diante da proposta de
mudança de comportamento. Como descrito no Quadro 1, a “atitude” dos indivíduos estaria
relacionada às suas crenças. Nessa perspectiva a desigualdade de acesso aos alimentos com menos
gordura que fundamenta essa crença deixa de ser abordada – apenas a crença é objeto da intervenção.
Alternativamente, uma abordagem psicossocial construcionista, baseada em uma concepção de saúde
implicada na proteção dos direitos humanos, essa questão diria menos sobre crenças do indivíduo e
mais sobre o contexto objetivo que torna os indivíduos mais vulneráveis a piores condições de
alimentação. Acredita-se que, ao não observar as condições concretas de produção da desigualdade, se
corre o risco de responsabilizar o indivíduo que não adere às práticas propostas e perder de vista que
aquele indivíduo vive em um contexto que não favorece que a saúde seja um recurso cotidiano.
O estudo-intervenção de Langenberg et al. (2000) com mulheres de baixa renda atendidas pelo
Special Supplement Nutritional Program for Women (WIC) nos Estados Unidos, visava aumentar o
consumo de frutas e vegetais, transformando os “fatores psicossociais” que impediriam a mudança do
comportamento alimentar que seriam: a “atitude” das mulheres diante de frutas e vegetais, seu “nível
de conhecimento” sobre as recomendações nacionais para o consumo desses alimentos, “barreiras
percebidas” para o aumento do consumo e “sentimentos de autoeficácia” para fazer mudanças. A
educação por pares (mulheres que já tinham participado do programa ou eram étnica ou socialmente do
mesmo grupo das participantes) indica preocupação com a adequação e a especificidade do grupo
abordado. Por outro lado, a condição de pobreza dessas mulheres não era tratada como um problema da
ordem do social, mas como uma barreira que seria superável pela orientação. Se alimentos saudáveis
eram caros, as educadoras deveriam fornecer estratégias para comer de maneira saudável mesmo em
situação de pobreza. Assim, as “barreiras percebidas” não ajudavam a desvelar uma situação de
vulnerabilidade social a piores condições de alimentação, mas eram abordadas com táticas para a
mudança de comportamento individual, sem que sua existência fosse eticamente questionada. Para
aquelas participantes, obter receitas e informações sobre frutas e vegetais mais acessíveis era importante
e possível porém, quando os autores fazem apontamentos para as políticas públicas, sua proposta
fundamenta-se na transmissão de informação, sem levar em conta a dificuldade de acesso a
determinados alimentos. Focaliza-se a mudança das crenças, conhecimentos e, consequentemente, dos
comportamentos, e as questões sociais não são abordadas.
Em estudo sobre efeitos de uma intervenção para um grupo de mulheres afro-americanas
sobreviventes de derrame, Rimmer et al. (2000) observaram barreiras importantes aos objetivos de sua
intervenção: custo elevado do programa, falta de transporte e de lugares em que as participantes
pudessem se exercitar. No contexto do estudo essas barreiras foram eliminadas: o programa era
gratuito, bem como o transporte para o local do estudo, onde as participantes fariam os exercícios com
todos os recursos necessários, mas não se questionaram suas origens estruturais ou a necessidade de
lidar diretamente com esse fato depois da intervenção. Ou seja, nessa perspectiva o fato de obstáculos
socioestruturais impedirem a promoção da saúde no cotidiano das participantes não se transforma em
desafio teórico-metodológico central, nem se discute o futuro do programa, sua institucionalização e
sustentabilidade.
Indivíduos em situação de pobreza e vulnerabilidade social específica – sem trabalho, com baixo
nível educacional, com filhos pequenos, pertencentes a grupos em que para superar essa condição
enfrentam processos de discriminação adicional de direitos como as mulheres negras estudadas (ou
ainda deficientes físicos ou homossexuais, como a literatura construcionista tem demonstrado) devem
ser apoiados como pessoas concebidas como sujeitos de seu cotidiano e com direito a uma vida
saudável para si e seus entes significativos. A compreensão da dimensão psicossocial com um olhar mais
denso para a dimensão social permitiria aos profissionais envolvidos com a intervenção tratar dos limites
estruturais, programáticos/institucionais que sustentam a maior probabilidade de alimentação
inadequada desses segmentos. Essa vertente de intervenções não inclui a noção de que essas pessoas
5
O “direito à devem ser acolhidas e cuidadas como sujeitos do direito à alimentação adequada5
artigos
alimentação adequada”
implica garantir aos – direito não garantido nos Estados Unidos, país em que a maior parte desses
indivíduos e grupos que modelos foi testada, apesar de sua equiparação aos demais direitos do homem e
estejam impossibilitados
de usufruir o direito à
reconhecimento de que todos os Estados têm de respeitar, proteger e realizar esse
alimentação adequada a direito (Belik, 2003).
provisão desse direito
diretamente pelos
A questão da desigualdade social e seus efeitos objetivos não é abordada nem
Estados. na discussão dos limites das intervenções. Anderson-Bill et al. (2011), por
exemplo, realizaram uma intervenção a distância, pela internet, e excluíram de sua
amostra pessoas com contraindicação para a realização de atividades físicas (idade
avançada, problemas de saúde e obesidade mórbida). Os autores destacam que a
maior parte dos interessados excluídos do estudo eram negros, aspecto não
analisado no artigo apesar de a literatura norte-americana, mais até do que a
brasileira, discutir com frequência como raça e etnia estão implicadas no processo
saúde-doença, reconhecendo uma história social, e não apenas uma história
individual ou natural, atribuível à cor da pele (Ayres, Paiva, França Júnior, 2011).
Já no caso das intervenções realizadas em escolas (Tuuri et al., 2009; Haerens
et al., 2008; Saksvig et al., 2005; Parcel et al., 2003), partiu-se da necessidade de
abordar a instituição e, portanto, membros da comunidade escolar foram incluídos
na proposição e avaliação das intervenções, mostrando clara preocupação com a
dimensão programática e com a participação da comunidade. Nessa direção,
chama a atenção o estudo de Haerens et al. (2008), realizado na Bélgica, que
considera relevante a sustentabilidade do programa, preparando os funcionários da
escola para realizá-lo, algo fundamental para a efetiva transformação programática.
Porém, o limite da intervenção é ainda apenas o espaço escolar e as avaliações são
feitas com base em dados individuais (com aferição de “determinantes
psicossociais”) e dentro do espaço escolar (“clima” da escola), não se
considerando o necessário imbricamento dinâmico de questões socioeconômicas e
políticas (estruturais e programáticas) que ampliaria a compreensão dinâmica da
comunidade para além do espaço próximo.
Trabalhos realizados com famílias (Chen et al., 2010; Pearson et al., 2010;
Burgess-Champoux et al., 2008; Verheijden et al., 2003) expressam essa mesma
perspectiva. Justificam-se intervenções no ambiente familiar para que crianças
possam ter um ambiente no qual a alimentação saudável é estimulada: frutas e
vegetais ficariam à disposição e pais atuariam como modelos para que a criança
aprenda aqueles comportamentos. Porém, será que os pais dessas crianças têm,
eles mesmos, acesso a frutas e vegetais? Teriam consciência da ação cotidiana dos
fortes interesses políticos e econômicos que, pela televisão, produzem a cultura
do “valor” de seus produtos industrializados? O contexto social mais amplo não é
abordado e, mais importante, não se introduz como parte das informações a
serem discutidas a noção de que o meio social é resultado da produção de
homens e mulheres ao longo da história. Na concepção da vertente psicossocial
construcionista, por outro lado, o “meio” não pode ser tratado como um meio
natural, mas algo a ser também modificado por indivíduos concebidos como
sujeitos portadores de direitos.
Os trabalhos de base comunitária, de qualquer modo, demonstram maior
cuidado na adaptação da intervenção à cultura local dos participantes e ressaltam a
importância de envolver efetivamente a comunidade da qual esses participantes
fazem parte. Não são, entretanto, muito diferentes quando definem
determinantes “psicossociais” como características da dimensão individual e
naturalizam (porque não questionam) as suas determinações macrossociais.
Alguns pesquisadores usam a noção de “empowerment” (Clark et al., 2011;
Goh et al., 2009) que, especialmente nos EUA, significa empoderamento
individual, fortalecer o poder da vontade, com pouca referência à história de produção da desigualdade
social (Paiva, 1996). Um agente externo, um profissional de saúde, empodera indivíduos e comunidades
oferecendo informações e treinamento para que possam promover mudanças em suas vidas e pretende
que a intervenção transforme indivíduos em senhores de sua vida cotidiana, adotando práticas
alimentares, ou atividades físicas pré-definidas como mais saudáveis, desconsiderando as desigualdades
sociais, de gênero e raciais que atravessam as práticas e cotidianos dos participantes – e dos profissionais
de saúde – nas ações de promoção de práticas alimentares saudáveis. Avalia-se que indivíduos que não
adequam seus comportamentos durante a intervenção não estariam preparados para a mudança
(estariam em estágio inicial) ou que não aprenderam como deveriam, ou ainda, que não há nada a fazer
– a não ser criar condições ideais, controlar fatores que atrapalham a eficácia da intervenção sem maior
preocupação com sua sustentabilidade ou institucionalização.
Poucos artigos enfatizam o contexto mais amplo da intervenção que realizaram ou a impossibilidade
de generalização de seus achados (Gittelsohn et al., 2010; Pearson et al., 2010; Elder et al., 2009) e
consideram de maneira mais interessante a dimensão social na análise, indicando certa elaboração
quanto a obstáculos que excedem o plano individual. Elder et al. (2009) incluem na discussão sobre
intervenção com mulheres latinas vivendo nos Estados Unidos a consideração de que barreiras
econômicas, sociais e outras “barreiras ambientais” poderiam ter desencorajado as mulheres a manter
as mudanças comportamentais introduzidas pela intervenção. Reconhecem barreiras que são limites do
contexto e não de “capacidades” ainda não desenvolvidas pelo indivíduo. Pearson et al. (2010), em
trabalho de promoção da saúde com pais e jovens, têm o cuidado de mencionar que sua intervenção,
baseada no envio de material impresso, atingiu pessoas com bom nível educacional, e que seus
resultados não podem ser generalizados.
Finalmente, entre os trabalhos mais atentos à dimensão estrutural e programática, destacamos a
intervenção de Gittelsohn et al. (2010), que procurou provocar alterações nos fatores psicossociais
dedicando-se ao contexto: os autores promoveram mudanças na oferta, preços e divulgação de
alimentos mais saudáveis em lojas e supermercados de uma comunidade de baixa renda, acompanhadas
de intervenções pontuais com o público que frequentava essas lojas. Não conseguiram medir alteração
significativa nos fatores psicossociais avaliados pelo estudo (“conhecimento”, “autoeficácia” e
“intenção”). Destacamos que, apesar da relevância de intervenções como essa, a comunidade não
participou da construção da intervenção e, aparentemente, a relação entre os indivíduos e contexto
social, mediada por crenças (na perspectiva da abordagem sociocognitiva), é naturalizada: não são
considerados sentidos e significados intersubjetivamente construídos, alteram-se preços e divulgação de
alimentos mais saudáveis e espera-se que os indivíduos passem a conhecer mais, se sintam mais
capazes e fortaleçam a intenção de consumir esses alimentos.
Discussão
entre profissionais de saúde e entre as pessoas que gostariam de se alimentar melhor. Lara (2010), em
artigos
trabalho com um grupo de ajuda mútua para a discussão de peso, alimentação e saúde, relata que as
mulheres que participavam do grupo acreditavam que emagrecer só dependia delas e de sua força de
vontade, bem como alguns profissionais de saúde que atendiam essas mulheres demonstravam esse
tipo de posicionamento. Não há intenção de enfrentar dificuldades impostas pelo contexto, como, por
exemplo, a má qualidade da merenda servida na escola. Pelo contrário, diante de inadequações do
contexto, é o indivíduo que deve ser “criativo” e se adaptar. Nos trabalhos analisados, mesmo quando
se levavam em conta construtos como “barreiras percebidas”, o enfoque era adaptativo: o indivíduo é
ensinado a conviver com as barreiras e contorná-las da melhor maneira possível, sem que sua existência
seja questionada, como se as barreiras fossem naturais e inevitáveis, e não resultado de ação humana.
Seguindo essa linha, os trabalhos que abordam a dimensão psicossocial nessa vertente dos estilos de
vida enfatizam que as pessoas podem mudar suas práticas alimentares se tiverem o conhecimento e
habilidade necessárias, o que sabemos não ser suficiente quando se trata de alimentação. Pessoas que
aprenderam como deveriam se alimentar e estratégias para manter uma boa alimentação podem
enfrentar dificuldades das mais diversas ordens, mas seu conhecimento e habilidades não garantirão a
manutenção de uma boa alimentação. Esse tipo de compreensão de processo psicossocial pode levar à
culpabilização e, eventualmente, à desesperança especialmente aqueles que não têm condições sociais
de realizar as mudanças precisas desenhadas pelos programas. Lara (2010) discute que algumas pessoas
sentiam vergonha por não estarem conseguindo mudar suas práticas alimentares e isso fazia com que
faltassem às reuniões do grupo ou desistissem de participar.
Assim, embora esses modelos de abordagem da dimensão psicossocial reconheçam que disposições,
cognições e crenças dos indivíduos são influenciadas por determinantes sociais e psicológicos, não
avançam na compreensão de que as pessoas participam ativamente da construção dos contextos. Sem
essa compreensão, os contextos continuam sendo compreendidos à maneira ecológica, como
ambientes que podem ser alterados para promover saúde mas que, em última instância, não guardam
qualquer vestígio das relações sociais, políticas e econômicas sobre as quais historicamente se
estruturaram. Não é por outro motivo que as estratégias são fundamentalmente psicoeducativas,
voltadas a ampliar o conhecimento a respeito dos riscos e benefícios de seus comportamentos e
desenvolver habilidades específicas, melhorar a atitude, apoiar intenções e promover melhora da
autoeficácia, como observamos nas principais estratégias de promoção da saúde do modelo de HND.
Um limite do presente trabalho é o fato de que o caminho que a busca pela literatura seguiu
privilegiou a literatura norte-americana (especialmente estudos realizados nos Estados Unidos) ou de
países desenvolvidos, como Reino Unido, Bélgica e Holanda, onde encontramos estudos que
declaradamente faziam referência a aspectos ou a uma dimensão psicossocial. Outros estudos são
necessários para avaliar se há outros enfoques para a dimensão psicossocial em intervenções promotoras
de práticas alimentares saudáveis que não necessariamente utilizem o termo “psicossocial”. Talvez
outras nomenclaturas estejam em uso em diferentes correntes teóricas, de maneira que essa avaliação
se faz necessária. Para o presente trabalho, interessava conhecer a concepção de dimensão psicossocial
que estava fundamentando intervenções promotoras de práticas alimentares saudáveis, mas há trabalhos
que não utilizam o termo “psicossocial” e que certamente pensam o indivíduo em sociedade, sendo
necessário realizar uma revisão mais ampla de estratégias de promoção da saúde no campo da
alimentação para avaliar como outras abordagens têm abordado a interação entre indivíduo e sociedade.
Para trabalhar com a promoção de práticas alimentares saudáveis no paradigma da MPS, a vertente
psicossocial construcionista parece mais interessante para a intervenção no processo saúde-doença-
cuidado. A vertente psicossocial construcionista reconheceu a virada epistemológica validada desde o
século XX, que concebe a vida social como produzida historicamente pelos homens e mulheres que
nele habitam; e reconhece que o “meio” é atravessado por desigualdades sociais de diversas ordens até
então naturalizadas (de gênero, de raça, de idade); reconhece que relações desiguais são sustentadas
por uma rede de significados, sentidos e práticas discursivas que, assim como foram construídos pela
ação humana, podem ser reconstruídos e resignificados. Mais importante, tem demonstrado em outros
campos que essa é uma referência conceitual e ético-política relevante para informar as técnicas e
práticas, e a ser disseminada também para participantes de programas de promoção da saúde.
Caminha para uma mais forte politização de suas ações, em contraposição ao modelo de HND, no
qual predomina, como vimos, uma leitura mais técnica e individual dos problemas e de suas soluções
(Ayres, 2002).
Mais especificamente, entre as possibilidades dessa vertente, destacamos a compreensão da
dimensão psicossocial no quadro da vulnerabilidade e dos direitos humanos, concebida como sinergia
de três dimensões mutuamente implicadas na produção do adoecer e na promoção da saúde: a
dimensão individual, a social e a programática da vulnerabilidade ao sobrepeso, por exemplo (Paiva,
Ayres, Gruskin, 2010; Paiva, 2009, 2006; Ayres et al., 2006; Ayres et al., 2003; Berkman et al., 2005),
como ilustrado na Figura 1.
O plano individual é definido como o plano intersubjetivo e da pessoa que é sujeito de direitos, não
existindo separado do plano social ou programático, assim como a pessoa não existe fora de seu
contexto (Paiva, 2009). A abordagem psicossocial nesse quadro desafia-nos a reconhecer que, para a
pessoa em condições de grande vulnerabilidade social e individual, a presença e ação de um programa
de qualidade são fundamentais, como pudemos observar em programas brasileiros nos campos da aids e
da saúde da mulher.
A desigualdade é considerada elemento central na produção do processo saúde-doença,
estabelecendo-se estreito diálogo com o quadro dos direitos humanos (França Júnior, Ayres, 2003),
observável nas existências intersubjetivas dos usuários com programas de saúde ou em sua vida
cotidiana. Como discutiram Kalichman e Diniz (2009), seu sucesso depende da validação do direito à
saúde como direito universal, como se fez no caso da aids, algo mais difícil de ser compreendido em
países nos quais a reforma sanitária não consegue se estabelecer.
A concepção de indivíduo dessa perspectiva significa a pessoa como sujeito do direito à saúde
artigos
integral e à alimentação adequada. O desenho de uma intervenção psicossocial no campo das práticas
alimentares nesse quadro valorizará o saber prático dos sujeitos da intervenção, porque usuários são os
maiores especialistas em sua vida cotidiana e contexto específico, contexto que pode mudar para além
do espaço próximo.
No Quadro 2 estabelecemos uma comparação entre os princípios da MPS e a proposta de
abordagem da dimensão psicossocial no quadro da vulnerabilidade e dos direitos humanos. Essa
perspectiva alinha-se mais adequadamente à MPS do que os modelos classificados na vertente
psicossocial focada em estilos de vida.
Em condições concretas de desigualdade na realização de direitos fundamentais como o direito à
alimentação adequada, saúde integral, ao cuidado e à prevenção, é responsabilidade de programas de
saúde e seus profissionais (e não do indivíduo apenas) garantir menor vulnerabilidade social e individual
à obesidade ou à desnutrição. Especialmente em contextos de desigualdade extrema, abordagens
focadas em estilo de vida e mudança de comportamento dos indivíduos terão pouca efetividade.
Quadro 2. Princípios da moderna Promoção da Saúde e estratégias compatíveis de redução da vulnerabilidade a partir de uma
abordagem psicossocial construcionista baseada no quadro da vulnerabilidade e dos direitos humanos
Considerações finais
psicossocial que enfatiza os estilos de vida na cadeia multicausal dos processos de adoecimento. Suas
ações visam comportamentos individuais e o contexto social é concebido como “ambiente” no sentido
de uma ecologia e geografia sem pessoas, cujos sentidos e significados são naturalizados.
Tal como são manejados, os construtos utilizados nesses modelos têm uma concepção mais estreita
do que necessário da dimensão psicossocial do processo saúde-doença-cuidado. A dimensão social é
levada em conta como formadora de comportamentos e cognição, predisposições e obstáculos que
serão trabalhados apenas no âmbito individual. Na maior parte dos trabalhos analisados, sua construção
social, política e histórica não é abordada.
Embora em alguns trabalhos haja referência à necessidade de ação por meio da organização social, a
leitura dos problemas e soluções resulta em passos a serem seguidos para obtenção de êxito técnico no
plano individual, contemplando especialmente atividades educativas e comportamentais, aproximando
as intervenções propostas às práticas de saúde no modelo de HND.
Finalmente, para aprofundar o diálogo com a MPS, a vertente que aborda a dimensão psicossocial
desde uma perspectiva construcionista e que pensa o processo saúde-doença baseada no quadro da
vulnerabilidade e dos direitos humanos parece mais interessante para pensar na promoção de mudanças
sustentáveis em contextos objetivos e intersubjetivos marcados pela desigualdade e desrespeito aos
direitos humanos, em especial o direito à saúde integral.
Colaboradores
As autoras trabalharam juntas em todas as etapas de produção do manuscrito.
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artigos
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Introdução
O tema “saúde bucal” envolve uma reflexão que perpassa os limites da cavidade bucal. Pode ser
entendida a partir de suas dimensões funcionais e estética, e, também, do contexto social, seus
condicionantes e necessidades coletivas (Kovaleski, Freitas, Botazzo, 2006). Acrescenta-se a isso a
concepção de bucalidade, a qual diz respeito à expressão dos trabalhos sociais da boca humana e sua
articulação aos modos como se vive e atua na sociedade (Botazzo, 2006, 2000).
Sabe-se que os meios de comunicação têm, hoje, um grande papel na determinação dos
pensamentos e comportamentos dos indivíduos, sendo uma das instituições mais eficazes de
manutenção da hegemonia dos valores e práticas da sociedade atual (Bydlowski, Westphal, Bicudo
Pereira, 2004). Entretanto, a comunicação de massa concebe uma importante função educativa, uma
vez que grande parte dos conhecimentos indispensáveis à vida, como, por exemplo, as informações em
saúde pública, chegam aos cidadãos de forma mediada (Gentilli, 2005).
Desse modo, a informação jornalística tem suma relevância no suprimento da necessidade social da
informação. Porém, compreende-se que a notícia é um produto e, por conseguinte, é estruturada e
comercializada como tal. Sendo assim, as matérias de saúde e saúde bucal não fogem a essa regra e,
para potencializar essa lógica, são produtos que vendem consideravelmente bem e que, além disso,
estimulam o consumo de outras mercadorias, bens e serviços (Bydlowski, Westphal, Bicudo Pereira,
2004).
Entende-se que um enfoque consumista compromete o desenvolvimento do potencial de promoção
da saúde dos meios de comunicação, ao se distanciarem tanto dos problemas que realmente afligem a
população quanto de sua causalidade múltipla (Xavier, 2005; Bydlowski, Westphal, Bicudo Pereira, 2004).
Alguns estudos abordam a divulgação midiática da saúde bucal identificando, no padrão de
noticiabilidade da temática, uma subutilização do potencial educativo da mesma, além de uma
persuasão quanto ao padrão estético ideal do sorriso, gerando um processo de alienação necessário ao
estímulo ao consumo (Amorim, Beatrice, Vicente da Silva, 2006; Sinhorini, Garbin, Oliveira, 2005;
Carvalho, Bicudo Pereira, 1994; Noguerol et al., 1992). Diante do exposto, este estudo objetiva
compreender como as informações sobre saúde bucal são veiculadas na mídia impressa do Espírito Santo
- Brasil, a fim de analisar se a potência midiática está explorando de forma crítica a educação, a
promoção da saúde e o consumismo em saúde bucal.
Metodologia
Trata-se de uma pesquisa exploratória documental, com abordagem qualitativa, a qual considera o
contexto do problema de estudo e ocupa-se mais com significados do que com a frequência dos fatos
(Tobar, Yalour, 2001). Além disso, é o tipo de pesquisa indicada para estudos de comunicação com
análise de documentos (Rozemberg, 2006). O material pesquisado foi composto por todas as matérias
relacionadas à saúde bucal veiculadas entre março de 2004 e junho de 2009, nos jornais impressos
diários de maior circulação no estado do Espírito Santo: A Gazeta e A Tribuna, onde a pauta de saúde
bucal é frequente (Cavaca et al., 2012). O período selecionado, de cinco anos, possibilita a verificação
do panorama de noticiabilidade da saúde bucal no estado e corresponde a uma época de muitos
investimentos na área de saúde bucal no Brasil, tendo se destacado pelo desenvolvimento da Política
Nacional de Saúde Bucal (PNSB – comumente chamada de Brasil Sorridente) do governo federal, iniciada
em 2004 e desenvolvida até os dias atuais (Brasil, 2004).
Realizou-se um levantamento retrospectivo das matérias que apresentavam, em seu conteúdo, as
seguintes palavras-chave: dentista, odontologia e saúde bucal. Tais descritores foram escolhidos por
abrangerem significativamente a seleção de matérias que abordam, de alguma maneira, a saúde bucal
em seu conteúdo.
Para coleta de dados do jornal A Tribuna, utilizou-se o banco de dados digital fornecido pelo jornal,
enquanto a seleção das notícias foi feita por intermédio de um Programa de Busca Inteligente
artigos
Espírito Santo (UFES). Tal programa utiliza a busca de informações baseada não apenas em palavras-
chave, mas considerando a semântica subjacente à consulta feita pelo usuário, resgatando a informação
mediante sucessivas aproximações, o que facilita o processo de busca (Azevedo et al., 2005). Em
relação às matérias do jornal A Gazeta, estas foram selecionadas por meio de programa de busca do
próprio jornal, com as palavras-chave correspondentes à temática.
Organização do material
Totalizaram 392 as matérias publicadas acerca do foco em questão. Destas, 178 foram selecionadas
no jornal A Gazeta e 214 no jornal A Tribuna. Tendo sido selecionados, os textos, após impressos em
papel A4, foram identificados e numerados de acordo com o jornal veiculado e respectiva data de
publicação.
Uma vez organizado, o material empírico foi submetido à análise de conteúdo temática, a qual
consiste “[...] em descobrir os <<núcleos de sentido>>que compõem a comunicação e cuja
presença, ou frequência de aparição, podem significar alguma coisa para o objetivo analítico escolhido”
(Bardin, 2009, p.131, grifo da autora). A análise de conteúdo tem capacidade para produzir inferências
de um texto focal para seu contexto social de maneira objetivada (Minayo, 2008). Pode, além disso, ser
utilizada para detectar tendências e modelos na análise de critérios de noticiabilidade, enquadramentos
e agendamentos na pesquisa jornalística, estabelecendo alguns parâmetros culturais implícitos e a lógica
organizacional por trás das mensagens (Herscovitz, 2007; Shoemaker, Reese, 1996).
Dessa maneira, como preconizado por Bardin (2009), organizou-se a análise de conteúdo em três
etapas básicas:
A pré-análise: é a fase de organização, a qual permite considerar as intuições e sistematizar as
ideias iniciais. Iniciou-se pela leitura flutuante dos 392 documentos, por meio da qual se estabeleceu
contato com o material e deixou-se invadir por impressões e orientações. Com base nisso, foram
selecionados 95 textos. O corpus, composto pelos documentos eleitos para serem submetidos aos
procedimentos analíticos, foi definido pela seleção das matérias dotadas de caráter educativo,
atendendo-se às regras de exaustividade, representatividade, homogeneidade e pertinência –
defendidas por Bardin (2009) – totalizando 66 matérias (Figura 1).
A exploração do material: trata-se da aplicação sistemática das decisões tomadas na pré-análise,
composta pela codificação e pela categorização do material. A unidade de registro selecionada foi
“tema”, que, em sua pluralidade, foi identificado no corpus, recortado dos textos dos periódicos e
transcrito em uma grade de análise, sendo então classificado em categorias definidas com base nas
peculiaridades das matérias.
O tratamento dos resultados, inferência e interpretação: emergiram da análise 14 categorias
empíricas, que foram agrupadas por questões metodológicas e conceituais em sete categorias analíticas
estruturantes dos resultados (Quadro 1). Assim, a análise dos materiais obtidos permitiu a interpretação
das mensagens latentes dos artigos e as suas inferências, baseadas nas teorias propostas.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde da UFES.
A autorização formal para a realização da pesquisa foi concedida pelos jornais selecionados para tal fim.
Resultados e discussão
Verificou-se, com base nos resultados, uma grande variedade de assuntos relacionados à saúde bucal
abordados nos periódicos capixabas. Tais temas foram extraídos do material empírico e agrupados em
categorias, as quais foram segmentadas em subcategorias, sistematizadas e definidas de acordo com o
Quadro 1. Cada uma delas será discutida, com o fim de se obter uma compreensão mais aprofundada
da temática.
PRÉ-ANÁLISE
Leitura flutuante
392 matérias
Primeiras impressões T
T Referenciação dos índices
Escolha dos documentos
T Temas de saúde bucal
T
T
95 matérias Formulação das
T
T
hipóteses e objetivos T
Elaboração
dos indicadores
T Maneira como os assuntos
Constituição do corpus T são abordados
66 matérias Dimensão e direção
T
de análises
Regras de recorte
Categorização
T
Preparação do material Codificação
Nova numeração,
ordenação e seleção de T
temas Testar as técnicas
T
T
T
EXPLORAÇÃO DO MATERIAL
Administração das
T
técnicas no corpus
Quadro 1. Categorias, subcategorias e suas definições baseadas na análise de conteúdo das matérias dos jornais A Gazeta
e A Tribuna, veiculadas no período de 2004-2009, Espírito Santo, Brasil
Responsabilização do indivíduo
artigos
Constataram-se, em algumas matérias, discursos de responsabilização e culpabilização do indivíduo
pelo seu estado de saúde bucal, como os que seguem:
(G127a) “Você sabe escovar os dentes? [...] Todo mundo sabe que é importante escovar os
dentes, mas será que todos estão alfabetizados com as lições corretas para fazer isso?”
Neste exemplo, chama atenção o pressuposto de que toda a população esteja ciente da importância
da escovação dental, associado ao questionamento da existência de uma alfabetização geral sobre as
boas práticas de escovação. Além disso, após considerar que o indivíduo, ao executar a técnica de
forma errada, pode ficar com o “sorriso amarelo”, a matéria traz uma advertência imperativa:
(G127b) “[...] Se isso acontecer, não vá botar a culpa só na coitada da escova. Segundo os
dentistas, a maior ‘cárie’ dos dentes pode ser quem escolheu a escova na prateleira: você”.
Essa abordagem “responsabilizante” com certa conotação “ameaçadora” também é discutida por
Lefévre (1999), ao afirmar que, na mídia brasileira atual, verificamos a prevalência de matérias de saúde
que responsabilizam o indivíduo pela “sua” saúde individual e estimulam o consumo de produtos
“redutores do sofrimento” ou “melhoradores” do desempenho físico e mental. Isso gera um processo
de alienação, em vez de trazer um impacto positivo.
Paralelamente, Castiel e Diaz (2007) argumentam que os discursos sobre a saúde não dizem respeito
tão somente a dimensões de saúde. Outrossim, incorporam modos de pensar, escrever e abordar a
saúde a partir de um contexto histórico, legitimado pela ordem econômica, política e social pelos quais
são sustentados. Dessa forma, percebe-se, atualmente, a existência de discursos culpabilizantes e
autoritários sobre a saúde, que se estende também à saúde bucal, em que são ressaltadas as
responsabilidades individuais quanto à adoção de comportamentos saudáveis e a priorização de condutas
preventivas.
Apesar do entendimento de que não se deve isentar o indivíduo das responsabilidades sobre a sua
saúde e suas escolhas, uma perspectiva responsabilizante unilateral é considerada inadequada, devido
ao seu caráter individualista, parcial, e pela desconsideração da complexidade dos determinantes sociais
da saúde. Isso porque nem sempre a adoção de comportamentos de risco ou de situações de vida
insalubres se dá por escolhas pessoais, mas, sim, por falta de opção da população e pela ausência de
acesso a serviços de saúde adequados, as quais configuram as iniquidades sociais (Bydlowski, Westphal,
Bicudo Pereira, 2004).
Além disso, a excessiva repetição dessa abordagem, que reforça certa culpabilização do indivíduo
em relação à sua própria saúde, pode fazer com que as pessoas decidam “parar de ouvir” as questões
de saúde discutidas na mídia, causando um desestímulo aos sujeitos (Xavier, 2005).
Realidades extremas
Nesta categoria, buscou-se discutir as distintas e distantes realidades sociais divulgadas pela mídia.
De um lado, encontramos a expressão da parcela da população “Sem dentes e sem opção” (G155) e,
de outro, é retratada a realidade de que “Para quem pode pagar, o céu é o limite” (G156). Essa dupla
abordagem do tema, adotada pelo objeto de estudo, por meio de matérias consecutivas em uma
mesma edição, retrata a desigualdade social em saúde presente na sociedade brasileira: (G155a)
“Nunca tive condições de pagar dentista particular. Quando cheguei ao posto me disseram que o jeito
era arrancar meu dente, não questionei. Depois disso, foi um atrás do outro”.
Observa-se, nessa fala, o retrato de uma realidade odontológica presente em grande parcela da
população, como se observa no seguinte trecho: (G155b) “[...] Como ele, outros 460 mil capixabas –
quase meio milhão de pessoas – vivem sem um único dente na boca”.
Dados divulgados pela Pesquisa Nacional de Saúde Bucal (Brasil, 2011) corroboram com essa
afirmação, indicando que mais de três milhões de idosos necessitam de prótese total nas duas arcadas,
e outros quatro milhões necessitam de prótese total em uma das arcadas (Brasil, 2011). Cabe ressaltar
que a perda dentária é um dos mais graves problemas da saúde bucal dos brasileiros. Admite-se que a
extração dentária representa uma atividade marcante da prática odontológica ao longo da história,
todavia, constitui uma mutilação bucal, pois perder os dentes não é natural do envelhecimento e nem
uma fatalidade biológica, devendo ser encarada como um problema a ser enfrentado mediante o
estabelecimento de estratégias políticas e tecnologias para preservação dental adequadas (Narvai,
Frazão, 2008).
A questão perpassa também um certo posicionamento acrítico da Odontologia, para deixar bem
claro, da ação política de seus principais atores. Esses atores apresentam uma dificuldade de interação
interdisciplinar e política, quanto ao entendimento da implicação social da Odontologia como prática,
demonstrando, por exemplo, pouca capacidade de entendimento da cárie (e das doenças bucais de
uma forma geral) como socialmente produzidas e determinadas. Além disso, percebe-se que o
desenvolvimento científico e tecnológico da profissão acontece historicamente sem interferir muito na
doença (Kovaleski, Freitas, Botazzo, 2006; Freitas, 2001).
Outro ponto embutido nessa problemática é a discriminação e as dificuldades enfrentadas pelos
mutilados bucais no mercado de trabalho, como descrito a seguir:
(G156b) [...] “Ser aceito no mercado de trabalho é um desafio que os desdentados têm de
enfrentar. E não é preciso ser completamente ‘banguela’ para se sentir excluído.
Dependendo da localização, um dente a menos pode significar a perda de emprego”.
Tais flagelos, tão veiculados nos jornais, ilustram as desigualdades sociais em saúde e as iniquidades
em saúde bucal. As primeiras são entendidas como as diferenças no estado de saúde entre grupos
definidos por características sociais, tais como: riqueza, educação, ocupação, raça e etnia, gênero,
condições do local de moradia ou trabalho (Barata, 2009). Já as iniquidades dizem respeito às diferentes
distribuições de condições de saúde bucal e do acesso a bens e serviços odontológicos (Moysés, 2000).
De acordo com Moreira, Nations e Alves (2007), a condição bucal não permite apenas um registro
quantitativo, mas, também, uma história vivida. Sujeitos pobres, com baixa escolaridade e menor
inserção no mercado de trabalho, carregam marcas dentárias que expressam uma realidade objetiva e
outra subjetiva, velada, as quais representam chagas da injustiça impressas na dentição. Ser pobre e ter
aparência bucal precária amplificam as desigualdades existentes, contribuindo para a continuação do
círculo vicioso do estigma e da discriminação social.
A outra face das condições bucais é abordada com base no seguinte depoimento:
(G156) “Se por um lado quem depende dos serviços públicos tem dificuldades até para
manter os dentes na boca, quem pode pagar por um dentista especializado tem o céu como
limite. Implantes, facetas de porcelana, clareamentos, são alguns dos recursos da
odontologia estética para garantir um sorriso perfeito”.
(G17) “Você já entra na sala desconfiado. Minutos depois, o dentista ‘cega’ seus olhos com
artigos
uma luz intensa. Os pés suam frio. Na hora da anestesia, as mãos se agarram firmes no
‘braço’ da cadeira. Mas nada é pior do que quando ele liga aquele terrível ‘motorzinho’ e se
aproxima com a broca”.
Entende-se que o tratamento odontológico pode ser desconfortável em alguns casos, porém tais
significações sociais, amplamente exploradas pela mídia, são influenciadas pelo imaginário da
corporação odontológica brasileira, a partir das configurações históricas e na produção social do
cirurgião-dentista e do dentista prático, herdeiros das tradições empíricas do cirurgião-barbeiro. Esses
profissionais desenvolveram seus procedimentos cotidianos impregnados de conexões simbólicas e
tendo como elemento dinamizador do imaginário popular o ato odontológico original: a extração
dentária. Esta, quando não indicada corretamente, caracteriza-se como mutilação humana, contribuindo
para a associação do tratamento dentário ao sofrimento e à angústia (Emmerich, 2000). Esse imaginário
popular da figura do dentista associado ao medo e à dor é frequentemente explorado pela mídia
(Henriquez, 1993), o que alimenta a perpetuação desse estigma relacionado com a Odontologia, sendo
um verdadeiro flagelo para os indivíduos.
Outra questão identificada no estudo foi a divulgação do “enfrentamento” desse medo de dentista
perante a motivação estética de um sorriso bonito e do uso de novas tecnologias odontológicas, como
se pode notar:
Patologização da halitose
Os odores bucais são fatores de preocupação para os indivíduos e carregam consigo fortes valores
culturais (Elias, Ferriani, 2006). A halitose, conhecida popularmente como “mau hálito” ou “bafo”,
representa um fenômeno que acompanha o homem na sua trajetória social-histórica e pode possuir
etiologias múltiplas, tanto por razões fisiológicas, como por razões patológicas, locais ou sistêmicas,
devendo todas as possíveis causas serem investigadas e o tratamento direcionado de acordo com cada
causa (Emmerich, Castiel, 2012).
Contudo, identifica-se, na sociedade contemporânea, um clima paranoide de preocupação aliado a
uma divulgação midiática ostensiva em relação ao “risco de estar com mau hálito” e sobre as “formas
mais eficazes de preveni-lo”. Neste estudo, tal questão foi identificada nos seguintes trechos:
(G21a) “Cerca de 60% dos brasileiros convivem diariamente com ele, mas ninguém gosta
de falar sobre o assunto que, muitas vezes, causa situações constrangedoras”.
Verifica-se que essa inquietação quanto aos maus odores bucais é abordada a partir de uma
estigmatização do mal-estar social inerente ao problema. Reflete-se, entretanto, que essa
espetacularização desnecessária da questão está, subliminarmente, associada à tentativa biopolítica de
tornar os sujeitos mais sociáveis e, também, à comercialização de “mercadorias” para melhor aceitação
no mercado de trabalho, à autoaceitação e ao maior “conforto” social (Emmerich, Castiel, 2012).
Além disso, verificou-se a divulgação de uma gama de produtos “aliviadores das mazelas”
provocadas pela halitose, como por exemplo: (G91a) “Pessoa com mau hálito pode ser avisada por
e-mail [...] O nome do serviço é SOS Mau Hálito”.
É evidente que se devem buscar maneiras eficazes de tratar o desconforto provocado pela halitose,
bem como identificar possíveis problemas sistêmicos que estejam provocando o mau odor bucal.
Entretanto, o que se questiona são as motivações midiáticas na divulgação do controle do problema
(para não afetar os relacionamentos e a ascensão social), priorizando a busca de produtos com eficácia
rápida e impactos afetivos bombásticos, em vez da valorização da saúde bucal como um todo
(Emmerich, Castiel, 2012). Além disso, essa patologização da halitose pode se tornar um fator de
autocontrole socialmente incutido, totalmente desconexo do contexto social em que se insere o
indivíduo, podendo significar “precariedades do excesso” de preocupações com o corpo, destituindo-o
de características humanas, por essência, e reforçando o discurso autoritário de culpabilização do sujeito
pela sua saúde (Castiel, Diaz, 2007; Castiel, Vasconcellos-Silva, 2006).
Valorização estética
Verificou-se, a partir dos resultados, uma acentuada valorização midiática da estética do sorriso,
como se confere nos trechos seguintes:
(G74) “[...] Ter um sorriso perfeito é hoje quase uma obrigação no meio social e no mercado
de trabalho”.
(T84) “Em busca do sorriso perfeito [...] A busca por um sorriso perfeito tem levado mais
pacientes aos consultórios de dentistas do que cáries, canais e dores de dentes”.
Além disso, percebeu-se a menção explícita da prescrição midiática da busca de “saber estético”
especializado, assim como a exaltação dos custos de um belo sorriso, como se vê a seguir:
(G156) “A gerente de vendas ‘X’ se orgulha de exibir um sorriso perfeito. E não era para
menos. Nos últimos anos, ela gastou mais de R$ 10 mil para ficar com os dentes bonitos e
branquinhos”.
Essa divulgação midiática ostensiva de questões estéticas reflete os valores sociais relacionados aos
desejos e vaidades, os quais contribuem para a produção de um padrão estético utópico e de uma
Odontologia sem fronteiras, sem crises nem recessão econômica, com mercado aberto e crescente
(Emmerich, Castiel, 2009a; Amorim, Beatrice, Vicente da Silva, 2006). Percebe-se que até mesmo o
nome fantasia “Brasil Sorridente”, da Política Nacional de Saúde Bucal (Brasil, 2004), caracteriza
simbolicamente o “sorriso” como um elemento da saúde bucal, mas pode contribuir para fomentar o
imaginário da aparência estética facial idealizada.
Além disso, o direcionamento midiático, com extrema valorização consumista, aos potenciais
clientes de tratamentos estéticos odontológicos, perpetua a imagem do objeto odontológico de seus
sonhos – perfeito, extraordinário, “global ou hollywoodiano” –, levando à procura de cirurgiões-
dentistas (muitas vezes anunciados na própria mídia) com essa demanda estética estereotipada.
(T136a) “Tecnologia a serviço do sorriso [...] Novas técnicas e a evolução dos materiais
ajudam os profissionais da odontologia a garantirem sorrisos mais perfeitos”.
A influência midiática no consumo e nos valores estéticos da população pode ser entendida por
artigos
meio do modelo teórico de mercado simbólico, desenvolvido por Araújo (2004), no qual se admite que
a comunicação opera à maneira de um mercado, em que estão presentes múltiplos e heterogêneos
discursos que disputam o poder de fazer prevalecer determinada visão da realidade. Dessa forma,
mediante a propaganda e a publicidade implícitas no conteúdo midiático, difundem-se determinados
discursos (no caso, o estético-dependente) em detrimento de outros (que problematizam a saúde
integral, por exemplo), constituindo-se hegemonias de sentidos, sobre modos de vir e intervir na
realidade (Rangel-S, 2007). Nesse caso, parafraseando Castiel e Vanconcellos-Silva (2006), convertem-
se excessos em escassez, na ausência de sentidos. No caso, excesso de estética em escassez de
percepção crítica das reais demandas em saúde bucal.
(G147) “A cárie e o jeito de morar [...] Quem diria...o surgimento da cárie dentária na
infância também está atribuído a fatores sociodemográficos, como o número de pessoas por
quarto de dormir”.
(G156) “Como priorizar a saúde bucal quando não se tem nem o que comer direito?”
Essa articulação do adoecer bucal com as condições sociais da existência foi discutida nas
Conferências Nacionais de Saúde Bucal (CNSB). No relatório da 3ª CNSB foi apresentada a análise de
que as imagens do corpo humano, dentre elas as da boca e dos dentes, são expressões e símbolos da
chaga da exclusão social. Seja pelos problemas de saúde localizados na boca, seja pela dificuldade de
acesso aos serviços assistenciais, dentes e gengivas revelam o resultado das condições de vida precárias
de milhões de pessoas em nosso país (Brasil, 2005).
Outro trecho representativo, referente ao determinante social relacionado ao ambiente em que a
pessoa vive e a saúde bucal, é assim descrito:
(G45) “No caso dos capixabas, principalmente os moradores da área urbana da grande
Vitória, o respirador oral sofre ainda mais. Isso porque essa é uma região muito poluída,
com grande incidência de pó de minério vindo das fábricas”.
Entende-se que o local de moradia (tomando o espaço geográfico como indicativo de condições de
vida da população que nela reside) e os fatores ambientais (urbanização, poluição atmosférica e dos
corpos hídricos) também influenciam nos eventos de saúde e, consequentemente, de saúde bucal (Brasil,
2008). Em um contexto mais amplo, a posição social dos indivíduos e grupos sociais, medida por
indicadores de classe social, como escolaridade e classes ocupacionais, ou a partir das condições de vida
em determinados espaços geográficos, são poderosos determinantes do estado de saúde das populações,
atuando sobre o perfil de morbidade e de mortalidade e também sobre o acesso e utilização dos serviços
de saúde (Barata, 2009). Nesse contexto, percebe-se uma abordagem bem fundamentada da mídia, uma
vez que as matérias apontam fatores que estão para além da responsabilidade individual, ou seja, as
questões geográficas e ambientais que interferem diretamente no processo de adoecimento do cidadão.
Sabe-se da estreita relação da saúde bucal com a saúde geral dos indivíduos. Entretanto, a prática
odontológica não exercita uma interdisciplinaridade, expondo seus limites de compreensão dos fatores
externos à boca, sobretudo no que diz respeito aos determinados ou potencializados pela sociedade
(Kovaleski, Freitas, Botazzo, 2006). Sendo assim, os fragmentos seguintes problematizam essa questão:
Prevenção e hábitos
Questões relacionadas aos hábitos de higiene e alimentares e à prevenção das doenças bucais foram
destacadas no estudo, como se pode atestar:
(G131) “Arroz e feijão podem prevenir cárie [...] O consumo dos alimentos proporciona
dose diária de flúor, que ajuda no controle da doença”.
(G169) “A cárie de mamadeira está relacionada, também, com outros hábitos introduzidos
pelas mães, como por exemplo, chupetas com mel, açúcares e xaropes, e o uso da
mamadeira por tempo prolongado”.
(G127) “Questão de hábito. Não basta usar a escova. Para preservar os dentes, é preciso
higienizar do jeito certo”.
Nessa acepção, a matéria que privilegia práticas alimentares triviais, como o consumo do arroz e
artigos
feijão, que se configura como a dieta básica da maioria dos brasileiros, denota uma sensibilidade do
discurso jornalístico com o contexto socioeconômico da população. Também é importante salientar que
reportagens que apontam hábitos equivocados e que podem comprometer a saúde trazem significantes
contribuições para a prevenção e a promoção da saúde bucal, desde que problematizados de maneira
crítica. A divulgação midiática da prevenção na saúde bucal teve destaque, ainda, nas seguintes falas:
(T11) “Dentistas defendem que, mesmo com amostras de maior eficácia em cremes dentais,
o principal para evitar as cáries é a escovação”.
A Política Nacional de Saúde Bucal (PNSB) contém diretrizes que apontam para a reorganização da
atenção à saúde bucal em todos os níveis de atenção. Dentre suas ações efetivas de promoção da saúde
e prevenção, propõe a articulação com diversos atores sociais na identificação e difusão de informações
sobre fatores de proteção à saúde (Brasil, 2004). Ressalta-se o significativo papel da mídia, mediante seu
potencial de pautar o tema saúde bucal no cotidiano da população (Wolf, 1999), propagar essas
informações relevantes por intermédio de seu potencial educativo (Gentilli, 2005) e de influenciar a
opinião pública. Cria, assim, uma doxa coletiva, entendida como uma opinião consensual, a qual é
permanentemente reestruturada e construída na sociedade pelos meios de comunicação (Xavier, 2006).
No entanto, para que a mídia exerça esse papel educativo de maneira efetiva, deve-se atentar para
que o discurso adotado não determine uma “mercadorização” do cuidar de si, sob o imperativo da
autorresponsabilização da saúde, uma vez que o papel dos governos, das empresas e da sociedade, na
prevenção e na promoção da saúde, deve ser também considerado (Vasconcellos-Silva et al., 2010).
Considerações finais
A compreensão de como as matérias sobre saúde bucal são divulgadas na mídia impressa capixaba
perpassou a problematização de diversos fatores sociais, culturais, políticos, biológicos e econômicos. Tal
rede, multifatorial, destaca a determinação social como fator peremptório da saúde bucal, constatando-
se, assim, a importância de se buscar uma comunicação midiática que considere essas dimensões sócio-
históricas na abordagem da temática.
Além disso, pôde-se refletir e concluir que a mídia, ao veicular uma valorização estética exacerbada,
perpetua um mercado simbólico centrado nos desejos e vaidades, ancorados numa filosofia consumista,
que não só distancia a percepção do objeto odontológico como um objeto coletivo e determinado
socialmente, como também fomenta, no imaginário popular, uma demanda estética utópica
descontextualizada das reais necessidades e possibilidades da saúde da população como um todo.
Dessa forma, almeja-se uma divulgação midiática que exerça sua potência de educação e promoção
da saúde bucal de forma interativa e dialógica, considerando as diversas realidades existentes naquele
contexto social e incitando a conscientização crítica dos indivíduos, em vez de responsabilizá-los e
culpabilizá-los pela sua saúde. O discurso midiático poderia, assim, contribuir para uma conscientização
do indivíduo, fundamentando-se nos princípios da corresponsabilidade, sendo o cidadão e o Estado
corresponsáveis pela promoção da saúde para que se possa estabelecer uma relação de alteridade. Além
disso, espera-se um esclarecimento popular sobre a assistência pública de saúde bucal no SUS, o acesso
e a organização desses serviços no estado do Espírito Santo e no Brasil.
Cabe ressaltar que, como assevera Foucault (2007), o poder é exercido por meio das microrrelações
sociais presentes em instituições, como a escola, a família, a religião e a mídia. No entanto, onde há
poder há resistência, sendo cada um de nós titular de determinado poder e, portanto, ‘veiculador’
desse poder. Nesse sentido, as relações interativas entre os sujeitos desenvolvem suas estratégias de
exercício de tal poder em prol de suas necessidades, de suas opiniões e de seus desejos, podendo se
contrapor à mídia em seus interesses.
Portanto, para garantir a qualidade das informações em saúde bucal, torna-se indispensável o
aprimoramento de um olhar crítico da sociedade para a divulgação midiática, assim como também se faz
necessário que se exerça um controle social efetivo na luta por uma comunicação em saúde
contextualizada e em conformidade com os interesses sociais. Afinal, o comprometimento com uma
comunicação em saúde de qualidade exige, basicamente, coragem para encontrar soluções, e não,
simplesmente, se apontarem culpados.
Colaboradores
Aline Guio Cavaca responsabilizou-se pela coleta, análise e interpretação do material
empírico e pela redação do artigo. Victor Gentilli responsabilizou-se pela análise e
interpretação dos dados e pela revisão crítica e aprovação da versão final do artigo.
Eliana Martins Marcolino responsabilizou-se pela revisão crítica e pela aprovação da
versão final do artigo, e Adauto Emmerich responsabilizou-se pela análise e
interpretação dos dados, revisão crítica e aprovação da versão final do artigo.
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Fue realizada una investigación qualitativa para entender como las informaciones sobre la
Salud Bucal son difundidas por los medios de comunicación impresos en el estado del
Espírito Santo – Brasil, utilizando análisis del contenido de 66 reportajes publicados de
marzo 2004 a junio 2009, en los periódicos A Gazeta e A Tribuna. Los materiales empíricos
originaron siete categorias: responsabilización del indivíduo, realidades extremas,
imaginario popular del dentista y de consultorio, su patología de la halitosis, valoración
estética, determinantes de la salud bucal, prevención y hábitos. El planteamiento em los
medios de comunicación de la salud bucal tiene una complejidad de factores sociales,
culturales, políticos, biológicos, económicos, que pone de relieve la importancia de una
comunicación contextuada con los intereses de la sociedad, interactiva y dialógica que
explore su potência crítica en la educación y promoción de la salud, transmitiendo de
manera consciente el consumismo en Salud Bucal.
Palabras clave: Salud Bucal. Comunicación en salud. Medios de comunicación de masas.
Salud Pública.
artigos
prática relatada pelos profissionais da rede SUS de Santa Catarina, Brasil
Introdução
As pesquisas sobre a TC no contexto da saúde coletiva têm se voltado para as repercussões desse
instrumento na vida do usuário. Alguns estudos abordam a realidade da Atenção Básica, nos grupos
específicos de TC ou nos grupos temáticos que ocorrem nas unidades de saúde, como grupos com
gestantes ou idosos, e que incorporam essa metodologia (Andrade et al., 2010; Filha et al., 2009;
Guimarães, Vala, 2009; Rocha et al., 2009; Souza et al., 2007; Victor et al., 2007; Guimarães, 2006;
Holanda, 2006). Outros estudos se voltam para o contexto dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS),
artigos
indicando a TC como um instrumento capaz de fomentar a construção da rede e explorar os recursos do
território (Filha, Carvalho, 2010; Mota, 2007; Machado, 2006). Alguns autores discorrem ainda sobre a
necessidade de capacitação dos profissionais da Estratégia Saúde da Família (ESF) para a promoção de
um atendimento integral, o que requer lidar, também, com as demandas de saúde mental, apontando a
TC como um instrumento que pode responder parcialmente a essa demanda profissional (Silva, 2010;
Soares, 2008; Fukui, Machetti, 2004).
A TC praticada no âmbito do SUS traz inovações às práticas grupais: importa mais a experiência de
vida das pessoas do que o saber técnico, todos detêm conhecimento, sem hierarquizações das relações
interpessoais, sendo desejável que as pessoas compartilhem sentimentos. Nesse espaço, a identidade
do terapeuta comunitário prevalece sobre a identidade do profissional de saúde, essa é a essência da
proposta que pretende fortalecer vínculos e humanizar as relações entre a comunidade e os
profissionais.
Tal forma de atuar é congruente com a proposta da clínica ampliada e com o enfoque transdisciplinar
em saúde. De acordo com Campos (2005), a clínica ampliada, uma das diretrizes da PNH (Brasil, 2008),
requer que o profissional construa vínculos duradouros com os usuários e se aproxime das redes
familiares e sociais dos mesmos. Através da elucidação dos aspectos orgânicos, subjetivos e sociais de
cada sujeito, é possível respeitar a singularidade de cada caso. O enfoque transdisciplinar (Lopes, 2009),
por sua vez, faz dialogar diversas formas de saber e vários níveis de realidade, trazendo importantes
contribuições para a prática clínica, já que, filosoficamente, todo membro da equipe é considerado um
parceiro de igual para igual, e suas habilidades profissionais, qualidades pessoais, valores, tradições
culturais, emoções, conhecimento, treino e experiências de vida são atributos valiosos para o
funcionamento do grupo, incluindo o doente.
O acolhimento, uma das diretrizes da PNH, é percebido, por Tesser, Poli Neto e Campos (2010),
como uma proposta para a melhoria das relações dos serviços de saúde com os usuários, concretizado
no encontro do usuário que procura o serviço espontaneamente com profissionais de saúde e
caracterizado pela escuta, processamento da demanda e busca de resolução. Essas formas de atenção à
demanda espontânea propõem-se a servir de elo entre as necessidades dos usuários e as várias
possibilidades de cuidado. A ideia é retirar do médico o papel de único protagonista do cuidado, ampliar
a clínica realizada pelos outros profissionais e incluir outras abordagens e explicações, além das
biomédicas, para os adoecimentos e demandas. Daí a necessidade de se ampliar a oferta de serviços e
de cuidados, sendo desejável a oferta e invenção de rituais de encontro, espaços terapêuticos
individuais e coletivos, o que requer estímulo institucional e um processo de educação permanente e
capacitação clínica para os profissionais. O acolhimento pode chegar a auxiliar a desmedicalização
quando, além da habilidade clínica, houver: trabalho conjunto em equipe, construção de projetos
terapêuticos e avaliações de riscos/vulnerabilidades individuais e coletivas, e consideração de elementos
da vida familiar e social, para uma abordagem ampliada dos problemas.
Gomes e Merhy (2011), através de revisão de artigos sobre Educação Popular em Saúde e
discorrendo sobre as redes de apoio social no território, afirmam que a TC pode integrar ações de
prevenção e promoção à saúde que tomam como foco o sujeito, e não as doenças. No entanto, os
autores defendem que tais práticas não podem ser desenvolvidas de forma desarticulada de outros
modos de luta social, para evitar que seu resultado seja mera resignação ou culpabilização dos sujeitos.
Por isso, o terapeuta comunitário deve: reforçar vínculos entre as pessoas, mobilizar recursos e
competências locais, respeitar as distintas culturas, promover redes de proteção e inclusão, e favorecer a
conscientização social. Articular atividades dentro da comunidade e entre esta e a rede mais ampla
auxilia não só a divulgação da TC, mas a resolução de problemas e a realização de encaminhamentos
necessários. A criação de uma equipe de trabalho comunitário pode auxiliar nas articulações necessárias,
sendo o trabalho orientado para o incremento da autonomia de indivíduos, grupos e redes (Luisi, 2006).
Somente essas articulações intersetoriais do terapeuta comunitário são capazes de proporcionar o
empoderamento psicológico e comunitário. Segundo Carvalho (2004), o empoderamento psicológico é
um sentimento de maior controle sobre a própria vida que os indivíduos experimentam através do
pertencimento a distintos grupos, e que pode ocorrer sem que as pessoas participem de ações políticas
coletivas. Já o empoderamento comunitário (Carvalho, Gastaldo, 2008) demanda novos modos de fazer
saúde, nos quais os usuários sejam percebidos na sua singularidade de sujeitos portadores de direito,
implicando o enfrentamento das causas da iniquidade social, a legitimação de grupos marginalizados e a
remoção de barreiras que limitam a produção de uma vida saudável para distintos grupos sociais.
O empoderamento comunitário é um enfoque congruente ao de promoção da saúde tal como
enunciado por Buss (2003), para quem, inicialmente, a promoção caracteriza um nível de atenção da
medicina preventiva e evolui para um enfoque político e técnico em torno do processo saúde-doença-
cuidado. Tal enfoque está associado a valores como: vida, saúde, solidariedade, equidade (distribuição
de renda e acesso a bens e serviços), democracia, cidadania, desenvolvimento, participação e parceria,
sendo complementar ao enfoque da prevenção. A promoção da saúde identifica e enfrenta os
macrodeterminantes do processo de saúde-doença e busca transformá-los na direção da saúde, tendo
como objetivo contínuo um nível ótimo de saúde. Para tanto, fazem-se necessários: o protagonismo de
indivíduos não técnicos e de movimentos sociais, ações combinadas de políticas públicas, modificações
de estilos de vida e intervenção ambiental. Saúde é sinônimo de bem-estar e qualidade de vida, estado
dinâmico socialmente produzido.
O pensamento de Paulo Freire é um dos eixos teóricos da TC e a base da Educação Popular,
caracterizada por Vasconcelos (2004) como um saber importante para a construção da participação
popular, servindo não apenas para a criação de uma nova consciência sanitária, como, também, para
uma democratização mais radical das políticas públicas. Não é apenas um estilo de comunicação e
ensino, mas, também, um instrumento de gestão participativa de ação social. É, ainda, o jeito brasileiro
de fazer promoção da saúde. O autor ressalta a importância de que a Educação Popular deixe de ser
uma prática social que acontece de forma pontual no SUS, por meio da luta heroica de alguns
profissionais e de movimentos sociais, para ser generalizada amplamente nos diversos serviços de
saúde. Uma das estratégias apontadas para isto é o apoio a iniciativas de formação profissional que
busquem reorientar as atitudes dos trabalhadores de saúde na relação com a população, de forma a
problematizar vivências, compartilhar iniciativas de enfrentamento e busca de soluções, e valorizar a
curiosidade na busca de entendimento das raízes das questões sociais mais importantes.
Na visão de Albuquerque e Stotz (2004), apesar de a educação popular se destacar dentre as formas
alternativas de educação em saúde, podendo constituir-se um instrumento auxiliar na incorporação de
novas práticas por profissionais e serviços de saúde, no dia a dia pouca ou nenhuma importância é dada
às ações educativas. Trabalhos em grupos são, muitas vezes, marginalizados, profissionais envolvidos
desacreditados e desestimulados, a infraestrutura escassa e de difícil acesso. São grandes as dificuldades
das equipes de saúde para efetivarem uma prática cotidiana de promoção através de ações educativas.
Quando isso acontece, dá-se, muitas vezes, de acordo com o interesse individual dos profissionais,
dificilmente estimulando a autonomia e a conscientização das comunidades. Os relatos de experiências
de educação popular em saúde nos serviços frequentemente referem-se à “falta de apoio” das
coordenações ou das secretarias municipais e estaduais, refletindo o sentimento dos profissionais de
estarem solitários no desenvolvimento deste trabalho.
A educação para a saúde tem enfrentado grandes desafios criados pelas suas próprias e contraditórias
proposições, em que assumem lugar de destaque: a promoção da livre escolha e, simultaneamente, do
ditar de escolhas saudáveis; a necessidade de compatibilizar a livre escolha com as opções ditadas pela
medicina; a promoção da autonomia; o advogar de determinadas racionalidades, e a aceitação de
escolhas individuais, mesmo se não forem compatíveis com uma vida saudável. A maioria das ações de
educação para a saúde continua centrada na prevenção de doenças e na responsabilização individual,
não considerando as causas sociais da falta de saúde com a ênfase desejada. As práticas de educação
para a saúde têm privilegiado a informação, assumindo ser possível modificar o comportamento
individual pela comunicação de mensagens e através de múltiplas estratégias de argumentação, onde se
acentuam os efeitos nocivos sobre a saúde, se contrapõem estilos de vida mais saudáveis, se apela à
responsabilidade social do portador de determinado risco (Mendes, 2009).
Método
artigos
Este estudo caracterizou-se como exploratório e descritivo. Participaram 27 profissionais de saúde,
capacitados em um curso de Terapia Comunitária, oferecido pela Secretaria de Estado da Saúde de Santa
Catarina, em parceria com o MS. Realizado entre 2009 e 2010, o curso disponibilizou 35 vagas e
priorizou capacitar trabalhadores da saúde e da assistência social da região do Vale do Itajaí, devido às
enchentes e desastres ambientais ocorridos em 2008. O critério de inclusão dos sujeitos nesse estudo foi
atuação profissional em serviços vinculados às Secretarias de Saúde dos municípios contemplados com o
curso. Dos 28 profissionais que foram contatados, apenas um recusou-se em participar do estudo.
Para a coleta de dados, foram realizadas entrevistas individuais semidirigidas, gravadas e,
posteriormente, transcritas. As questões do roteiro, pelo fato de suscitarem um discurso direto e
simples, permitiram uma análise por categorias, desmembrando o texto em unidades temáticas.
Tomando como referência o trabalho de Bardin (1977), a análise de conteúdo temática categorial seguiu
três etapas: Pré-análise; Exploração do material textual; Tratamento dos resultados, inferência e
interpretação. A sistematização dos resultados foi pautada por procedimentos propostos por Oliveira
(2008) e está expressa no Quadro 1.
Resultados e discussão
Participaram deste estudo 27 profissionais de saúde da rede SUS de Santa Catarina, dos quais 17
(62,97%) são da região do Vale do Itajaí, das cidades de Apiúna, Blumenau, Gaspar, Indaial, Itajaí,
Rodeio e Timbó. Dez (37,03%) profissionais são da região do Litoral, das cidades de Florianópolis e
Palhoça.
Dentre os participantes, 20 (74,07%) são do sexo feminino e sete (25,93%) do sexo masculino, a
maioria na faixa etária de trinta e 39 anos (12 - 44,44%), seguidos por participantes com idade entre
vinte e 29 anos (7 - 25,93%), entre quarenta e 49 anos (5 - 18,52%), sendo somente três (11,11%)
participantes pertencentes à faixa etária de cinquenta a 59 anos.
Em relação à renda familiar, 15 (55,56%) profissionais enquadram-se na categoria que compreende
entre cinco e dez salários-mínimos, seis (22,22%) têm renda familiar até cinco salários-mínimos, e seis
(22,22%) têm renda familiar superior a dez salários-mínimos.
A maioria dos sujeitos tem especialização latu sensu (17 - 62,96%), seguidos por profissionais com
curso Superior completo (9 - 33,33%), e por um (3,71%) profissional com curso técnico.
Em relação aos cargos ocupados, a maioria atua em equipes técnicas (21 - 77,78%) e o restante na
gestão (4 - 14, 81%) e em coordenações de serviços (2 - 7,41%). A maioria dos profissionais tem
experiência no cargo entre um e cinco anos (15 - 55,56%), seguidos por profissionais com experiência
entre seis e dez anos (6 - 22,22%), com experiência menor que um ano (4 - 14,81%) e superior a dez
anos (2 - 7,41%).
Dentre os serviços a que estão vinculados, encontram-se serviços da Atenção Primária, onde atuam
dez (37,04%) sujeitos, serviços da Atenção Secundária (basicamente os CAPS), onde atuam 13
(48,15%) entrevistados, e instituições de gestão dos serviços de saúde, onde atuam quatro (14,81%)
profissionais.
A partir da Análise de Conteúdo temática categorial (Bardin, 1977), foram obtidos 29 temas,
compostos de trezentas e dez unidades de registro, que se agruparam em cinco categorias: Práticas de
TC, Estratégias de Implantação, Dificuldades, Elementos Facilitadores e Benefícios. A seguir, serão
detalhados os conteúdos de cada categoria, bem como alguns aspectos relevantes emergentes no
processo de categorização do conteúdo.
Quadro 1. Demonstrativo do processo de construção das categorias temáticas – operacionalização proposta por Oliveira
(2008)
27 Autonomia 09 07
28 Atenção humanizada 09 08
29 Congruência com a realidade do SUS 07 07
30 Empoderamento 06 05
Práticas de TC
artigos
Essa categoria contém 48 (15,48%) unidades de registro, agrupadas em cinco temas que expressam
os diferentes usos que os profissionais relataram ter dado à TC a partir de sua realidade concreta de
trabalho, englobando práticas decorridas (27 grupos) e práticas perpetuadas até o momento da coleta de
dados (vinte grupos).
A TC é predominantemente aplicada no contexto da Atenção Básica, sendo também utilizada nos
CAPS, em grupos específicos ou aplicando seu formato metodológico a outros grupos temáticos
oferecidos nos serviços.
Outro uso que os profissionais relatam fazer dessa metodologia é aplicar algum de seus preceitos a
outras práticas por eles desenvolvidas. Nesse caso, a TC não é realizada tal como proposto pela
formação, com todas as suas etapas e regras, mas alguns aprendizados que os profissionais consideram
relevantes passam a ser norteadores de outras práticas desenvolvidas no âmbito da saúde coletiva, como
o preceito da horizontalidade:
“Na verdade, a seqüência eu não utilizo, mas tiro bastante coisas da TC para passar para eles
(usuários). Tudo o que eu aprendi no grupo, da simplicidade, de estar junto com eles, de
não achar que é profissional e que está acima, então eu procuro sempre olhar por esse lado.
Eu já vinha tentando fazer isso, mas a TC me ensinou a mostrar para eles esse lado, que para
mim é muito importante, mais importante do que qualquer outra teoria”. (Sujeito 01)
Estratégias de implantação
Essa categoria contém 16 (5,16%) unidades de registro, agrupadas em cinco temas relativos aos
procedimentos adotados pelos sujeitos com a finalidade de efetivar a prática da TC em seu cotidiano de
trabalho.
Dentre as estratégias utilizadas, foram relatadas: realização de grupos com profissionais dos
serviços, para que conhecessem a proposta e pudessem divulgá-la para os usuários ou, até mesmo,
para que pudessem fazer encaminhamentos para esse espaço coletivo; auxílio dos Agentes
Comunitários de Saúde (ACS’s), para divulgarem o grupo nas áreas de abrangência dos serviços;
elaboração de um projeto para a gestão local, para formalizar a nova proposta e obter autorização
para aplicá-la; capacitação de ACS’s para atuarem como coterapeutas, e divulgação através de
panfletos e cartazes.
Tais estratégias de implantação restringiram-se ao setor saúde, pois, como já relatado, os sujeitos
encontram dificuldades para fazerem articulações com instituições comunitárias e movimentos sociais.
Os profissionais que têm mais condições para realizar essa articulação, por conta das práticas diárias de
visitas domiciliares, são os ACS’s, daí a importância de capacitar essa categoria para a condução de
trabalhos grupais.
Dificuldades
Essa categoria contém oitenta (25,81%) unidades de registro, agrupadas em sete temas que
classificam as dificuldades percebidas pelos profissionais de saúde para inserir a TC na rede SUS de Santa
Catarina.
Um dos temas presentes nessa categoria é a resistência dos usuários a trabalhos grupais,
característica atribuída à predominância de um modelo biomédico que se reflete na expectativa por
atendimento individual. E, num grupo que se propõe a acolher sofrimentos e dificuldades, tal expectativa
faz-se ainda mais notável já que os usuários têm receio de expor suas fragilidades e vulnerabilidades no
contexto coletivo, diante de pessoas conhecidas. Além disso, a proposta da TC é nova, ainda pouco
difundida, e esse desconhecimento a nível social traz prejuízos para a adesão dos usuários.
Conforme os profissionais relatam, parece ainda não haver uma cultura de grupo entre os usuários e
seus familiares, o que corrobora a dificuldade de adesão aos encontros de TC, apontada por Filha e
Carvalho (2010). Para tal impasse, pode-se buscar respaldo na reflexão que realiza Mendes (2009) a
respeito da preponderância de modelos de educação em saúde caracterizados por relações grupais
hierarquizadas e centrados na prevenção de doenças e na responsabilização individual, sem considerar
as causas sociais de saúde com a ênfase desejada.
É preciso apontar, também, a necessidade de se avaliarem os usuários previamente ao
encaminhamento aos grupos de TC, de forma que os critérios do encaminhamento não se restrinjam à
oferta de tal atividade grupal e visem, prioritariamente, os benefícios advindos de tais encontros. Além
disso, tal avaliação prévia garante certa vinculação entre usuário e profissional de saúde, potencializando
a adesão ao grupo.
A sobrecarga de trabalho é outro fator apontado como dificuldade, já que a TC precisa ser
agregada às várias demandas profissionais, o que nem sempre é possível. Como existem poucos
terapeutas comunitários capacitados, muitas vezes, não existe auxílio para planejar e executar as
dinâmicas dos grupos, sobretudo quando desvinculados dos serviços de saúde, em instituições da
comunidade.
Foram relatadas dificuldades decorrentes do formato metodológico da TC, pois algumas
padronizações em relação à sua condução não responderam às demandas de contextos grupais
específicos. Em determinados contextos, os usuários não conseguem seguir as regras do grupo, têm
dificuldades com sua proposta mais lúdica ou têm dificuldades para entender o papel do profissional de
saúde quando ocupa o lugar de terapeuta comunitário, conforme evidencia a seguinte passagem:
“Por mais que o terapeuta e o co-terapeuta ficassem mais livres, como mediadores mesmo,
que é o que a proposta traz, algumas pessoas colocaram que queriam ir para lá para ouvir
mais, queriam saber mais da gente já que estavam acompanhadas de duas profissionais.
Aquilo ficou tão marcado, porque a gente discutia tanto essa questão de sair do lugar, e a
gente tentou tanto sair desse lugar para depois ouvir do usuário ‘eu estou aqui com duas
profissionais e vocês não trazem nada a mais do que eu já sei? Eu não quero ouvir os meus
vizinhos, eu queria saber mais sobre a depressão, sobre os transtornos de ansiedade’. Eles
queriam o saber técnico e não o saber popular, por mais que a gente explicasse a proposta”.
(Sujeito 10)
artigos
ações combinadas de políticas públicas, modificações de estilos de vida e intervenção ambiental.
Também geraram dificuldades fatores classificados como decorrentes da estrutura e do processo
de trabalho dos profissionais. A falta de espaços apropriados para trabalhos grupais nos serviços,
contraditoriamente às demandas da saúde coletiva, constitui um fator que dificulta e, em alguns casos,
inviabiliza a realização da TC. Outras situações decorrentes do processo de trabalho, tais como férias e
mudança de serviço dos profissionais, interrompem provisória ou definitivamente os grupos,
prejudicando a vinculação entre os usuários e destes com os profissionais que são referência naquele
contexto grupal. Esse tema inclui, ainda, a resolução do Conselho Federal de Assistência Social (CFESS
569, de 25 de março de 2010) que dispõe sobre a vedação da realização de terapias associadas ao título
e/ou ao exercício profissional do assistente social.
A falta de apoio da gestão local também dificulta a prática da TC pelos profissionais de saúde. A
difusão dessa prática integrativa de cuidado requer investimentos em novas capacitações e incentivos
para que os profissionais capacitados possam fazer um trabalho que não se limite aos serviços onde
atuam, envolvendo e integrando as comunidades de forma mais ampla. Finalmente, a falta de apoio
dos demais profissionais do serviço, atribuída ao desconhecimento dessa tecnologia de cuidado, e
problemas pessoais são também apontados como obstáculos para a efetivação dessa nova proposta.
As dificuldades relatadas corroboram a desvalorização das ações educativas no cotidiano dos serviços,
elucidada por Albuquerque e Stotz (2004), segundo os quais se evidencia: na marginalização do
trabalho grupal, na falta de estímulo aos profissionais envolvidos, na ausência de infraestrutura
adequada, e na falta de apoio das secretarias municipais e estaduais de saúde. As práticas de promoção
através de ações educativas são, assim, delegadas ao interesse individual daqueles que persistem e que
sozinhos, dificilmente, conseguem estimular a autonomia e a conscientização das comunidades.
Elementos facilitadores
Essa categoria contém apenas 11 (3,55%) unidades de registro, agrupadas em quatro temas que
expressam os fatores que auxiliaram a inserção da TC no contexto da saúde coletiva.
Dentre os temas apresentados, encontram-se: receptividade dos usuários e demais profissionais do
serviço; vinculação prévia dos usuários ao serviço; presença de um profissional que auxilie a condução
do grupo, e apoio da gestão local.
Benefícios
Essa categoria contém 155 (50,00%) unidades de registro, agrupadas em dez temas relativos aos
benefícios proporcionados pela TC na percepção dos profissionais de saúde.
O benefício mais frequente na análise das entrevistas é o efeito terapêutico dos grupos,
proporcionado pela configuração de um espaço para a expressão da fala e dos sentimentos e para a
troca de experiências, com ênfase nas estratégias de enfrentamento relatadas. Os profissionais
percebem que esse espaço coletivo proporciona qualidade de vida para seus integrantes.
De acordo com Guimarães e Valla (2009), essa metodologia favorece a troca de estratégias de
enfrentamento dos problemas e fortalece as redes de apoio familiar e social. Além disso, a legitimação
do conhecimento produzido a partir das experiências de vida possibilita o empoderamento dos
participantes.
A TC também contribui para o fomento das práticas grupais, otimizando vínculos entre os
usuários e desses com os terapeutas comunitários, o que reflete positivamente nas dinâmicas e reforça a
importância do trabalho com grupos para os demais profissionais dos serviços. Os profissionais
capacitados a consideram uma metodologia de fácil aplicação, uma ferramenta de trabalho que
proporciona segurança para a condução de grupos e que pode ser ajustada de acordo com a experiência
de quem está conduzindo e de acordo com as peculiaridades dos diversos coletivos. As inovações que
fazem parte desse novo formato grupal, com destaque para o apelo ao lúdico, são também percebidas
como um incentivo à participação dos usuários, essencialmente porque a TC é um espaço inclusivo que
não restringe a participação de ninguém, como expressa um dos entrevistados: “ah, não é só para
gestante, não é só para hipertenso, e sim ter essa riqueza de possibilidade foi muito legal” (Sujeito 04).
Tendo como um de seus eixos teóricos o pensamento de Paulo Freire e pautada pelo preceito de
horizontalidade das relações grupais, a TC pode contribuir para aquilo que Vasconcelos (2004) considera
a redefinição da prática médica, através da valorização dos saberes e práticas dos sujeitos, usualmente
desconsiderados devido à sua origem popular.
Essa metodologia de trabalho com grupos possibilita aos profissionais problematizarem vivências,
compartilharem iniciativas de enfrentamento e buscarem entendimento das raízes das questões sociais.
Essa atuação diferenciada se aproxima do enfoque transdisciplinar elucidado por Lopes (2009), em que,
além das habilidades profissionais, são valorizadas qualidades pessoais, valores, tradições culturais,
emoções, conhecimentos, treino e experiência de vida, como atributos valiosos para o funcionamento
do grupo.
Outro benefício da TC é a atenção às demandas de saúde mental sem que lhes seja imposto um
viés medicalizante. Esse espaço de escuta e de ajuda mútua é por si só resolutivo para algumas
demandas, prevenindo que se cronifiquem, além de facilitar o encaminhamento de demandas que
necessitam de atenção especializada. Os profissionais relatam sentir mais segurança para abordar
questões relativas à saúde mental e passam a conhecer melhor e a valorizar o contexto de vida dos
usuários.
O estudo de Filha et al. (2009) aponta a aprendizagem de estratégias de promoção de saúde mental
e de prevenção de transtornos decorrente da participação em grupos de TC. Para os autores, tal prática
tem facilitado o trabalho dos profissionais da equipe de saúde da família no sentido de melhorar seu
relacionamento com a comunidade e entender suas necessidades. Também Soares (2008) afirma que a
TC confere, aos profissionais, compreensão e paciência para lidarem com as demandas de saúde
mental.
Consideravelmente frequente é, também, o fomento às redes sociais que a TC promove. A
leitura que os profissionais fazem da realidade em que estão inseridos e do atual modo de vida é que as
pessoas estão muito solitárias, sem vínculos comunitários e, muitas vezes, sem vínculos familiares. O
grupo de TC é uma oportunidade de resgatar vínculos interpessoais e de se sentir mais integrado à
comunidade, conforme aponta um dos sujeitos desse estudo:
O fortalecimento das redes de apoio familiar e social, a melhoria dos vínculos familiares e
comunitários e das redes de apoio e solidariedade são resultados comuns a outros estudos já realizados
sobre a TC (Andrade et al., 2010; Silva, 2010; Filha et al., 2009; Guimarães, Valla, 2009; Guimarães,
2006; Holanda, 2006). A proximidade com redes familiares e sociais dos pacientes e a construção de
vínculos duradouros com os usuários contribuem para a eficácia das intervenções clínicas, possibilitando
a construção de uma clínica ampliada, que alcança aspectos subjetivos e sociais de cada sujeito e
respeita a singularidade de cada caso (Campos, 2005).
Além disso, o conceito de território aplica-se à questão manicomial. Territorializar é uma proposta
central para transformar, efetivamente, a realidade manicomial, propiciando condições para que os
indivíduos possam estabelecer relações de troca. A partir do paradigma da desinstitucionalização, a
participação da comunidade passa a ser fundamental para a ação de saúde mental, oferecendo uma
artigos
infinidade de recursos e de possibilidades para os sujeitos (Mota, 2007).
O empoderamento dos integrantes da TC parece estar relacionado com a horizontalidade das
relações, configurando um grupo que se constrói, se gerencia, se corresponsabiliza pelas mudanças que
precisam ser operadas e que valoriza as contribuições de cada pessoa. As pessoas são valorizadas por
sua experiência de vida, o que faz com que a identidade predominante no grupo não seja a de doente,
como manifesta um dos profissionais entrevistados:
“Então as pessoas já não vêm por conta disso, às vezes mesmo tendo a acessibilidade não
acessa o serviço porque não se reconhece como doente [...] E na TC, mesmo acontecendo no
posto mas eles vinham lá para conversar com os amigos, conversar sobre algum outro tema,
de um outro sofrimento. Esse ponto foi muito interessante. Então é mais ou menos isso que
eu atribuo, um outro tipo de laço distinto do que um conteúdo programático educacional da
unidade de saúde”. (Sujeito 20)
É possível entender o empoderamento descrito pelos profissionais participantes desse estudo como
um empoderamento psicológico, tal como explicitado por Carvalho (2004), como um sentimento de
maior controle sobre a própria vida que os indivíduos experimentam através do pertencimento a
distintos grupos, e que pode ocorrer sem que participem de ações políticas coletivas. Derivam do
empoderamento psicológico (Carvalho, Gastaldo, 2008) estratégias de promoção que buscam fortalecer
a autoestima e a capacidade de adaptação ao meio, e que procuram desenvolver mecanismos de
autoajuda e de solidariedade.
Essas estratégias de promoção se assemelham aos benefícios advindos dos encontros de TC, cuja
proposta, segundo Camargo (2005), parte do entendimento de que indivíduos e grupos sociais dispõem
de mecanismos próprios para superarem as adversidades contextuais.
O princípio da horizontalidade também promove acolhimento, pois todos têm a capacidade de
ajudar, de ensinar e de aprender, gerando um sentimento de igualdade que estimula a participação.
Como o terapeuta comunitário não tem a função de transmitir conhecimento, ele se coloca numa
relação de igualdade com os demais integrantes do grupo, preocupando-se apenas em conduzir
algumas etapas metodológicas para que o grupo siga um formato. Esse lugar ocupado pelos profissionais
de saúde promove uma atenção humanizada, que se contrapõe a um olhar técnico.
Para Tesser, Poli Neto e Campos (2010), o acolhimento busca ampliar a clínica e incluir outras
abordagens e explicações além das biomédicas para os adoecimentos e demandas. Para garantir a
resolubilidade dos problemas de forma multidisciplinar e intersetorial, no entanto, a habilidade clínica
não é prescindível, deve estar atrelada ao trabalho em equipe, à construção de projetos terapêuticos e
de avaliações de riscos/vulnerabilidades individuais e coletivas, que considerem elementos da vida
familiar e social, o que permite concluir que a TC deve somar-se a outros dispositivos para que,
realmente, possa acolher as demandas de saúde da população.
Para finalizar, outro benefício da TC é a congruência com a realidade do SUS, já que pode ser
aplicada em diversos contextos, com um objetivo focado e brevemente atingido e requerendo poucos
recursos para a sua implantação. Além disso, permite trabalhar algumas demandas sem necessidade de
encaminhamento a profissionais especializados.
Considerações finais
Tendo como um de seus eixos teóricos o pensamento de Paulo Freire e pautada pelo preceito de
horizontalidade das relações grupais, a TC pode contribuir para a redefinição da prática médica, através
da valorização dos saberes e práticas dos sujeitos usualmente desconsiderados devido à sua origem
popular. Essa metodologia de trabalho com grupos possibilita aos profissionais problematizarem
vivências, compartilharem iniciativas de enfrentamento e buscarem entendimento das raízes das
Colaboradores
Os autores Cristina dos Santos Padilha e Walter Ferreira de Oliveira participaram,
igualmente, da elaboração do artigo, de sua discussão e redação, e da revisão do texto.
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artigos
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profesionales del SUS de Santa Catarina, Brasil. Interface - Comunic., Saude, Educ.,
v.16, n.43, p.1069-83, out./dez. 2012.
El objetivo de este estudio, de naturaleza exploratoria y descriptiva, es describir las
prácticas de la Terapia comunitaria relatadas por 27 profesionales de la red del Sistema
Único de Salud (SUS) de Santa Catarina, Brasil. La recolección de datos utilizó la
entrevista individual semi-dirigida y empleó el análisis de contenido categorial
temático. Los resultados fueron agrupados en cinco categorías: Prácticas de terapia
comunitaria; estrategias de implantación; dificultades; elementos facilitadores; y
beneficios. Se concluye que la Terapia comunitaria puede contribuir con la construcción
de una clínica ampliada y la valorización de los recursos del territorio. Sin embargo, es
necesario que la actuación del terapeuta comunitario sea extendida a un equipo multi-
disciplinario, dialogue con otros dispositivos, reciba el apoyo de las gestiones de los
servicios y haga alianzas con otras políticas públicas, ampliando su campo de acción
para otros sectores.
Palabras clave: Terapia comunitaria. SUS. Profesionales de salud. Prácticas de salud.
Intervención psico-social.
espaço aberto
limites da deficiência no espaço urbano*
Introdução
Pontos de ancoragem
Senhor E – o caso
com todas as instalações apropriadas. Eu era gerente administrativo de uma empresa [em
espaço aberto
Goiânia], alto salário, de bem com a vida e [...]”. (senhor E, 2008)
A produção da deficiência
Para o senhor E, a etiologia do diabetes inclui determinadas circunstâncias da vida e sua inserção
social, além de fatores biológicos.
“Em 87, com aquele advento do [...] acidente nuclear com o césio-137. Foi a primeira vez
que se manifestou a diabete. Isso daí puxou meu tapete. No Japão, em 2000, mais ou
menos, com uma fagulha de metal [...] perdi a visão parcial. Fiquei, acredito, com uns 30%
de visão em um olho. E isso prejudicava, porque eu operava máquinas, empilhadeira,
máquinas pesadas, com grande responsabilidade. Isso tudo me afetou o psíquico-
emocional [sic] e, novamente, a diabete se manifestou. E, ah, um pequeno ferimento no
pé, que eu estou tratando em casa. Quando eu fui internado com alto grau de diabete –
quase em coma. Aí, normalizou a diabete, e começou o tratamento desse ferimento. E os
médicos fazendo exames, devido a esse, porque não encontravam a causa dessa diarreia.
Dentro do hospital, permanecia com isso daí. E houve a primeira amputação. Ah, deu
trombose. Ou amputava, ou eu morria. E eu também não estava me alimentando. Com o
psíquico-emocional muito abalado, eu não estava querendo saber de nada. A segunda
perna também feriu, levando o alimento para minha mãe, na cama, um tombo no Congresso
do Sebrae que levei, terminou de [ri] resultou na amputação. Alguns erros médicos, algumas
coisas que [...] e tive a segunda perna amputada”. (senhor E, 2008, grifos nossos)
As rupturas
“Perdi emprego, perdi minha posição social, me afetou meu psíquico-emocional. Voltei
para Campo Grande, fiquei uma época desempregado, porque minha carteira constava
Goiânia – minha carteira de trabalho –, então, era discriminado, quer queira, quer não.
Alterou meu modo de vida – o casamento, inclusive. Isso até 94. Falecimento do meu pai,
Plano Real e uma festa que não teve o êxito esperado, devido a um forte temporal que
arrasou – e, no ramo de eventos, é igual a eleição: você trabalha para um dia só. E isso
alterou novamente o psíquico-emocional; o segundo casamento já estava meio abalado [...]
o Japão foi a minha solução”. (senhor E, 2008)
Modos de sobrevivência
Ligando-se a um modo possível para atender suas necessidades, rearticula sua capacidade para a
reorganização do trabalho.
“Voltei a trabalhar numa firma como vendedor autônomo; eu cobria uma região do Mato
Grosso do Sul. Viajava o mês inteiro, com as despesas todas pagas, carro da firma, hotéis, e
isso aí, para você fazer um controle, já é difícil, mas, em compensação, o psíquico-emocional
alto, a autoestima subiu, e desapareceu a diabete. Levei minha vida normal. Casei-me pela
segunda vez. Montei uma nova firma. Voltei a ser empresário [...] no ramo de vinho. Lá
[Japão], trabalhando com atividades diárias e diversas. Além de fábrica, eu transportava
pessoas. Ah, fazia, escrevia para jornais locais destinados a essa colônia latino-americana.
Frequentando programas de rádio. Escrevendo com esse diferencial que eu tenho, que é
humor, irreverência e criatividade. Permaneci nesses sete anos. O último ano de permanência
A construção de sentido
No entanto, o senhor E é o outro sobre quem é importante pensar, e a questão que se coloca é a da
espaço aberto
alteridade, pois é sempre sobre a relação com o outro que se está a falar e, portanto, pode ser
entendido como problema central. Além disso, tem-se a concepção de que a vida é vivida nas
fronteiras entre a particularidade de nossa experiência individual e o social.
O “outro” era encarnado na figura do senhor E, que, dadas as determinações sociais, históricas e
culturais, se materializava naquele sujeito e naquela linguagem, definidos ambos num contexto de luta
pela sobrevivência.
O outro foi sujeito múltiplo inserido na história, na sociedade e na cultura pela linguagem. Diversas
vezes, o senhor E contou suas histórias conscientemente, dando ênfase a determinados episódios,
mudando a entonação e enfatizando seu “psíquico-emocional” abalado.
Tudo isso deu um rumo aos nossos encontros, sem, contudo, provocar tensão. Afinal, qual é o lugar
da pesquisadora?
A tensão do drama
Depois de algum tempo sem contato com o senhor E, recebi a notícia de sua morte. Ele esteve
internado na Santa Casa por cerca de dez dias, com gastroenterocolite difusa e broncopneumonia. No
hospital, estava sem documentos, e constava apenas que vinha de determinado albergue.
Frequentemente, em caso de óbito, o morador de rua é destinado para estudo em laboratórios de
anatomia de cursos de medicina, e isso quase aconteceu com o senhor E. No entanto, uma amiga e
agente educacional do Albergue Z, ao procurá-lo, soube do ocorrido, foi até a Santa Casa e, depois de
um trâmite intrincado, conseguiu liberar o corpo. A mesma amiga chamou a filha mais velha do senhor E,
que mora em Goiânia, e ligou para as pessoas que constavam da agenda dele. O enterro ocorreu depois
de três dias de sua morte, no cemitério de Vila Formosa, na região Leste da cidade, na ala gratuita.
O procedimento fúnebre geralmente consiste em o corpo ser levado por um carro da funerária do
necrotério do hospital até o cemitério, onde é velado por, pelo menos, dez minutos e, depois,
enterrado.
No caso do funeral do senhor E, houve inúmeros intervenientes; por exemplo, não se dispunha, na
ocasião, de uma viatura que o levasse ao túmulo, resultando num “velório” de três horas. Isso se deveu
ao fato de que as dez pessoas que compareceram ao funeral exigiram uma solução alegando que o caso
era passível de denúncia na mídia.
Considerações finais
configurando o signo da dor. Com a ferida exposta no próprio corpo, condensa a contradição,
apresentando o trágico como lugar de resistência.
O senhor E concebia o albergue como recurso e direito. Sua participação na organização material e
simbólica do lugar em que vivia favorecia sua validação como ator social. Sua trajetória não linear,
conflitiva, aberta ao acaso, buscava, em cada signo ou pessoa, ponte de acesso para o mundo do
tamanho de seus projetos.
Encontrar modos de superação implica estabelecer uma rede social, ou, na expressão vygotskiana,
ser incorporado à vida comum, pois, quando as pessoas se juntam, assemelham-se e aumentam sua
potência para encarar as adversidades. As redes sociais imprimem uma nova ordem igualitária e
concorrem para a sustentabilidade da vida cotidiana. Foi isso que mais ouvi nas entrevistas: romperam
com a família, perderam o emprego, mas continuaram abertos a outras possibilidades de vinculação.
A ética certamente sustenta essas redes, na medida em que estão atreladas à necessidade mais
urgente do momento – entrar em relação com os outros a ponto de sensibilizá-los. Além disso, se
ocupam de situações de um cotidiano traduzido por um comportamento responsável, em que criam,
decidem e desenvolvem ações para enfrentar a lógica excludente do sistema.
São sobreviventes que resistiram às condições desfavoráveis e tentam recuperar a vida, sair da
passividade para a atividade na construção/ transformação da realidade por meio de processos miúdos e
pela produção de sentido para suas experiências. A competência imaginativa do senhor E tornou-se uma
estratégia de sobrevivência, na medida em que lhe possibilitava uma expansão de horizontes e de
convivência.
Contudo, a sobreposição de acometimentos – doença crônica, pobreza, deficiência, isolamento,
lentidão e negligência do serviço público de saúde – acarretou a irreversibilidade das condições
desfavoráveis de vida do senhor E.
Embora a verdadeira estrutura da vida seja narrativa, dramática e inteiriça, essa realidade foi muito
além – a provisoriedade, a descontinuidade, a precariedade, a contradição e a inconclusão se tornaram
as características por excelência deste trabalho.
Na dinâmica interativa e discursiva tecida nos encontros, fui inteiramente absorvida pelo que vi.
Fiquei sem palavras, também. Na busca de conhecer a realidade escondida, nas palavras de Smolka, dei
visibilidade ao underground.
A morte do senhor E não é um fato isolado, é emblemática de uma prática decorrente de uma
política pública. Sua história traz subsídios para a discussão e o enfrentamento da pobreza, bem como
da produção da deficiência.
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sociológico da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006.
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(Obras Completas, Tomo V).
espaço aberto
Este artigo trata do segmento populacional urbano identificado como morador de rua,
que é também pessoa com deficiência. É um contingente que pode ser considerado
duplamente excluído: pela pobreza e pela deficiência, cujas consequências sociais
marcam e comprometem profundamente a vida dessas pessoas. Esse contexto adverso
acarreta questões que merecem aprofundamento, assim como ganhar visibilidade. A
relevância do tema inspirou um arranjo de investigação que procurou conhecer,
compreender e refletir sobre demandas por meio de histórias individuais entrelaçadas
na história social.
Palavras-chave: Pessoa com deficiência. Pobreza. Institucionalização. Política pública.
Concrete poetry in prose on the asphalt: handicap limits in the urban space
This article deals with the urban population segment identified as homeless and
disabled that is also. This contingent can be considered to be doubly excluded:
through poverty and through disability. The social consequences of these factors
deeply scar and compromise these people’s lives. This adverse context gives rise to
issues that deserve to be explored and gain visibility. The relevance of this subject
inspired an investigative arrangement that sought to get to know, understand and
reflect upon demands through individual stories that are intertwined with social
history.
Keywords: People with disabilities. Poverty. Institutionalization. Public policy.
espaço aberto
das equipes de saúde da família em saúde mental:
a experiência de Pernambuco, Brasil*
Introdução
sujeito na sua existência e em relação às suas condições de vida. Reconhece que os portadores de
transtornos mentais têm direito a um tratamento efetivo, e não apenas à administração de fármacos ou
psicoterapias (Amarante, 1995).
Lentamente, essas experiências passaram a influenciar a assistência psiquiátrica brasileira. O ano de
1978 costuma ser identificado como o de início efetivo do movimento social pelos direitos dos
pacientes psiquiátricos no Brasil. Denominado Reforma Psiquiátrica Brasileira (Brasil, 2005), promoveu
ampla mudança no atendimento em saúde mental, garantindo o acesso da população aos serviços e o
respeito aos seus direitos e liberdade (Brasil, 2010b). A criação do Sistema Único de Saúde (SUS), por
meio da promulgação da Constituição de 1988, possibilitou incluir, nas suas diretrizes, questões
associadas à desospitalização e à garantia de cidadania dos doentes mentais (Facundes et al., 2010).
Em 6 de abril de 2001, o Congresso Nacional decretou a Lei 10.216, que dispõe sobre a proteção e
os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, e redireciona o modelo assistencial em saúde
mental. O novo modelo prevê que as terapias saiam do escopo medicamentoso exclusivo ou
preponderante, de forma que o sujeito ganhe destaque como participante principal do tratamento,
juntamente com a família e a sociedade, instaurando um Modelo Psicossocial de Cuidado (Brasil, 2001a).
Em síntese, o paradigma psiquiátrico fundamenta-se no princípio doença-cura, em uma organização
de serviços estratificada e hierarquizada, que busca a remissão dos sintomas. O paradigma psicossocial
compreende o processo de saúde-doença como algo complexo e que demanda uma abordagem
interdisciplinar. Isso faz com que a saúde mental seja situada na saúde coletiva, sendo a integralidade, a
intersetorialidade e a territorialidade eixos norteadores das práticas em saúde (Dimenstein, Galvão,
Severo, 2009).
Um dos pilares da Reforma Psiquiátrica foi a criação dos serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico,
tais como: Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), leitos psiquiátricos em hospitais gerais, oficinas e
residências terapêuticas (Brasil, 2005). O CAPS é considerado o serviço substitutivo mais característico da
reforma. Seu objetivo é oferecer acompanhamento clínico e reinserção social dos usuários por meio do
trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e fortalecimento dos laços familiares e comunitários. Deve ser
lugar de referência e tratamento para pessoas acometidas por enfermidades mentais, cuja severidade
e/ou persistência justifiquem o cuidado intensivo, comunitário, personalizado e promotor da vida.
Apesar de estratégico, o CAPS não deve ser o único tipo de serviço de atenção em saúde mental
ofertado no SUS. Isso deve ser feito dentro de uma rede de cuidados, incluindo a atenção primária,
mais especificamente a Estratégia de Saúde da Família (Brasil, 2010b; Neves, Lucchese, Munari, 2010;
Dimenstein, Galvão, Severo, 2009; Büchele et al., 2006; Brêda et al., 2004; Feneric, Pereira, Zeoula,
2004).
A Saúde da Família pretende transformar o paradigma dominante da queixa/conduta em busca ativa,
prevenção e controle das morbidades e promoção da saúde na atenção primária. Além disso, é norteada
pelos mesmos princípios que orientam a Estratégia da Atenção Psicossocial (Yasui, Costa-Rosa, 2008) no
campo da saúde mental, ou seja, ambas sugerem: a corresponsabilização do cuidado entre profissionais
de saúde, usuários e familiares; a proposição de ações intersetoriais, que atuem nos determinantes dos
padrões de saúde da população; o desenvolvimento de projetos terapêuticos singulares, que
contemplem a diversidade cultural e subjetiva dos usuários; e um modo de trabalho ancorado em
práticas de acolhimento e vínculo, superando as perspectivas tecnicistas de trabalho e gestão em saúde
(Dimenstein, Galvão, Severo, 2009).
Pesquisas sugerem que é possível resolver 85% dos problemas de saúde na atenção primária (Brasil,
2001b), o que diminuiria o fluxo intenso de clientes para os setores especializados. Se, em média, um
em cada três usuários atendidos nas Unidades de Saúde da Família (USFs) tem transtorno mental, e 50%
dos pacientes atendidos pelos generalistas sofrem somatizações, é importante que as equipes de saúde
estejam preparadas para lidar com essas situações (Barban, Oliveira, 2007). Entretanto, a saúde mental
sempre foi concebida como especialidade, focada em recursos terapêuticos e na institucionalização.
Portanto, sua inclusão na Estratégia de Saúde da Família pode ser caracterizada como uma situação-
complexa ou situação-problema a ser superada (Neves, Lucchese, Manari, 2010). A falta de recursos
humanos, de conhecimentos sobre a relação entre atenção primária e saúde mental, e/ou de
capacitações, na área, acabam por prejudicar o desenvolvimento da ação integral pelas equipes de
espaço aberto
saúde da família, fazendo prevalecer a lógica do encaminhamento. Isso acontece, sobretudo, porque
muitos profissionais de saúde não se sentem aptos, confortáveis e seguros para lidar com saúde mental
na atenção primária (Dimenstein, Galvão, Severo, 2009; Vecchia, Martins, 2009; Barban, Oliveira, 2007;
Nunes, Jucá, Valentim, 2007; Büchele et al., 2006; Brasil, 2005; 2003).
A WHO lembra que, nos países em desenvolvimento, a carência de especialistas e trabalhadores de
saúde com os conhecimentos e aptidões necessários para identificação e tratamento dos transtornos
mentais constitui uma significativa barreira à prestação de serviços. Além disso, com a integração dos
cuidados em saúde mental ao sistema de saúde geral, a tendência é aumentar a procura por
generalistas. Logo, é importante que tenham conhecimentos na área de saúde mental (WHO, 2001).
Para superar essas dificuldades, muitas vezes relacionadas à maneira como os profissionais de saúde
são formados, é necessário desenvolver neles habilidades para saber fazer, dentre outros, acolhimento,
vínculos afetivos e de compromisso com a pessoa e a família em sofrimento psíquico. Os serviços de
saúde e as instituições de ensino devem auxiliar nesse processo de transformação (Neves, Lucchese,
Manari, 2010) fazendo uso de estratégias que proponham, por exemplo, a capacitação em saúde
mental e o apoio aos profissionais que atuam na atenção primária. Nesse contexto, a internet mostra-se
como uma possibilidade promissora (Graeff-Martins, 2008; WHO, 2001).
As tecnologias da informação, especialmente a internet, por meio das suas redes e comunidades
sociais virtuais, são poderosos instrumentos para a comunicação e o acesso às informações sobre saúde
(WHO, 2001).
A telessaúde é uma modalidade que vem sendo amplamente utilizada no mundo. Definida como
atenção à saúde a distância (WHO, 2010), pode ser útil em diferentes cenários: para dar suporte à
decisão clínica, oferecer consultas e diagnóstico a distância – teleassistência; para promover a educação
por meio de aulas ou palestras transmitidas em tempo real, por vídeo ou webconferência, ou de forma
assíncrona – tele-educação; e, até mesmo, para favorecer a gestão dos serviços de saúde – telegestão
(McLaren, 2003). A tele-educação tem sido bastante empregada para proporcionar a educação
profissional continuada, especialmente às comunidades localizadas distantes dos grandes centros
urbanos (Knowles, 2008; Zollo et al., 1999; Curran, Fleet, Kirby, 2006).
O Brasil dispõe de um Programa Nacional de Telessaúde. Teve início com a publicação da Portaria nº
35, de 04 de janeiro de 2007, que instituiu o Projeto Piloto de Telessaúde Aplicado à Atenção
Primária e a criação de nove Núcleos de Telessaúde, situados nos estados do Amazonas, Ceará,
Pernambuco, Goiás, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Cada
Núcleo de Telessaúde conectou-se a cem pontos de telessaúde instalados em Unidades Básicas de
Saúde, distribuídos pelo território dos estados. Em 2010, com a Portaria nº 402, de 24 de fevereiro,
instituiu-se o Programa Telessaúde Brasil em âmbito nacional (Brasil, 2010a), recentemente redefinido e
ampliado por meio da Portaria nº 2.546, de 27 de outubro de 2011, que o denominou Programa
Nacional Telessaúde Brasil Redes (Brasil, 2011).
O Programa Telessaúde Brasil Redes propõe integrar as equipes de saúde da família aos centros
universitários de referência para melhorar a qualidade dos serviços prestados na atenção primária,
diminuindo os custos da saúde por meio da qualificação profissional, redução da quantidade de
deslocamentos desnecessários de pacientes e de profissionais e por meio do aumento de atividades de
prevenção das doenças. As ações de apoio à assistência à saúde e de educação permanente das equipes
de saúde visam à educação para o trabalho e mudanças de práticas que resultem na qualidade do
atendimento na atenção primária (Brasil, 2010a).
O objetivo deste artigo é apresentar as estratégias para a implementação e a avaliação de um serviço
de telemedicina, ou telessaúde, os Seminários por Webconferência em Saúde Mental, oferecidos pela
Rede de Núcleos de Telessaúde de Pernambuco (RedeNUTES), vinculada ao Programa Telessaúde Brasil
Redes, para as equipes de saúde da família.
O ambiente virtual também dispõe das apresentações eletrônicas utilizadas durante os seminários e
espaço aberto
de materiais complementares (textos, imagens e vídeos) indicados pelos teleconsultores.
Até 2009, a RedeNUTES transmitia quatro seminários por semana nas seguintes áreas temáticas:
Saúde da Criança e do Adolescente, Temas Gerais em Saúde Coletiva, Enfermagem e Saúde Mental.
Optou-se por trabalhar a Saúde Mental na RedeNUTES porque as equipes de saúde parceiras
frequentemente expressam dificuldades para a identificação e o acompanhamento das pessoas com
transtornos mentais. Dessa forma, os seminários incentivam a discussão sobre saúde mental; colocam as
equipes de saúde em contato com experts da área; apresentam as competências dos profissionais, e
discutem as ações possíveis na Estratégia de Saúde da Família.
A definição final dos temas e dos palestrantes que apresentarão os seminários é feita em conjunto
com a Gerência de Atenção à Saúde Mental (GASAM) da Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco.
O Quadro 1 apresenta a agenda de seminários apresentados ao longo do ano de 2009, totalizando 39
sessões.
Ao final de cada sessão, os seminários foram avaliados por meio de um questionário disponibilizado
no AVA RedeNUTES. As avaliações ocorreram no período de janeiro a dezembro de 2009, abrangendo
as 39 sessões. O Quadro 2 apresenta o modelo de questionário utilizado.
Dos 1422 profissionais que participaram dos seminários, 27% responderam à avaliação. Os
resultados demonstram que: a metodologia utilizada durante os seminários (slides ou roda de conversa)
foi aprovada por 97% dos participantes; 87% deles se mostraram satisfeitos com a carga horária das
sessões (uma hora); os teleconsultores foram considerados ótimos ou bons por 91% dos respondentes;
82% classificaram como bom o grau de compreensão dos temas abordados; durante os seminários,
84% dos participantes não relataram dúvidas sobre o tema abordado ou tiveram suas dúvidas totalmente
esclarecidas; 95% consideraram que os Seminários em Saúde Mental contribuíram para o
desenvolvimento das suas atividades profissionais.
Dentre os que responderam sobre os problemas encontrados durante os seminários, o maior
inconveniente citado foi a qualidade da conectividade (66%), que influencia diretamente na qualidade
do áudio e do vídeo.
Discussão e conclusões
Quadro 1. Assuntos apresentados nos Seminários em Saúde Mental da RedeNUTES, janeiro a dezembro de 2009
Data Tema
espaço aberto
Quadro 2. Modelo de questionário utilizado para avaliação dos Seminários, RedeNUTES, 2009
Município/Formação
1 Aspectos relacionados ao conteúdo/Palestrante
Aspectos Técnicos
10 Qual dos itens à direita dificultaram sua participação nos Seminários Áudio
por Webconferência em Saúde Mental? Imagem
Dificuldade no uso do Software (Adobe®
Connect™)
Organização dos Seminários
Infraestrutura
Nenhum
Sugestões em Geral
Nas primeiras sessões, os participantes se demonstraram surpresos ao perceberem que não seria
utilizada uma apresentação eletrônica (slides), mas, com o tempo, a surpresa foi dando espaço para
maior envolvimento e diálogo. Acredita-se que três fatores foram decisivos para o sucesso da
abordagem: definição das temáticas que seriam discutidas a partir das necessidades das equipes de
saúde; o teleconsultor-moderador era especialista em psiquiatria, com vasta experiência em atenção
primária, saúde da família e atividades em grupo; e, por fim, todas as sessões ocorreram com o
mesmo teleconsultor-moderador, o que favoreceu a criação de um vínculo entre ele e as equipes de
saúde, que se sentiam confortáveis em expor suas dúvidas e dificuldades.
No entanto, a implementação da tele-educação ainda enfrenta obstáculos em Pernambuco. Um
deles é a conectividade. No estado, 80% dos pontos de telessaúde têm velocidade de conexão igual ou
inferior a 256 Kbps. O ideal para sessões por webconferência é velocidade superior a 512 Kbps. Neste
estudo, mais da metade dos profissionais participantes tiveram algum tipo de problema com a internet.
Importante ressaltar que a baixa qualidade de conexão não afetou, na maioria das vezes, a parte visual
da apresentação dos seminários quando o formato usado era apresentação eletrônica, ou seja, imagens
estáticas. Entretanto, nos seminários que usaram roda de conversa ou quando tentou-se transmitir filmes
relacionados ao tema em questão, por exemplo, a baixa qualidade da conexão dificultou ou inviabilizou
a tentativa.
Outro desafio é a inserção de novas tecnologias no dia a dia dos profissionais de saúde,
especialmente dos médicos. Observou-se um baixo percentual de médicos (representaram 5% dos
participantes) nos Seminários em Saúde Mental, entretanto, eles compuseram nosso principal público-
alvo ao longo das sessões. Saliente-se que é na atenção primária que ocorre um contato mais próximo
entre os profissionais de saúde e os usuários, pois é a porta de entrada do SUS, logo, deve oferecer
oportunidade para o atendimento eficaz. Capacitações contínuas podem contribuir para a melhoria da
sua resolubilidade. Considerando-se que, para muitos, essa é a primeira experiência em capacitação
mediada pelo computador, acredita-se que é necessário um tempo maior para que entendam a
importância do serviço.
Por fim, a produção de conteúdos educativos que realmente façam a diferença para os envolvidos no
processo e a avaliação do seu impacto são outros grandes desafios (Geissbuhler, Bagayoko, Ly, 2007).
Fatores sociais, econômicos e geográficos podem influenciar a satisfação com os serviços de tele-
educação, por isso, a avaliação desses programas é essencial. Poucos trabalhos, no entanto, avaliaram e
publicaram experiências dessa natureza, sobretudo em países em desenvolvimento (Kiviat, 2007;
Pradeep, 2006), daí a importância deste artigo. Faz-se necessário dar continuidade aos estudos que
possibilitem analisar os diferentes aspectos técnicos, socioeconômicos, culturais e políticos que
influenciam a introdução da telessaúde como uma prática regular no dia a dia dos serviços, gestores e
profissionais de saúde; bem como o impacto da telessaúde no perfil epidemiológico e nos
encaminhamentos de pacientes para as redes de referência.
Colaboradores
Magdala de Araújo Novaes e Josiane Lemos Machiavelli participaram da concepção e
desenho do artigo, análise e interpretação dos dados, redação do artigo, revisão crítica
do conteúdo intelectual e aprovação final da versão a ser publicada; Amadeu Sá de
Campos, Filipe Villa Verde e Tereza Roberta Rodrigues participaram da concepção do
artigo, análise e interpretação dos dados, redação do artigo e aprovação final da versão
a ser publicada.
Agradecimentos
espaço aberto
Aos colaboradores do Instituto Nacional de Psiquiatria do Desenvolvimento para
Infância e Adolescência (INPD) e da RedeNUTES, vinculada ao Programa Telessaúde
Brasil Redes; à Gerência de Atenção à Saúde Mental da Secretaria Estadual de Saúde de
Pernambuco; aos teleconsultores que apresentaram os Seminários por Webconferência
na área de Saúde Mental.
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espaço aberto
dos estudantes de medicina na atenção em saúde
de pessoas surdas
Luiza Santos Moreira da Costa1
Natália Chilinque Zambão da Silva2
Introdução
comunicação com pacientes surdos oralizados e com os que apresentam deficiência auditiva, é de
pouca ajuda para os surdos pré-linguísticos (que ficaram surdos antes da aquisição da linguagem), sendo
a língua de sinais sua primeira língua. Quanto à comunicação escrita, Almeida (2007) aponta que,
embora a maioria dos surdos possa ler, eles nem sempre entendem o significado de diversas palavras,
ou confundem o significado, em especial dos homônimos, como: partir (ir embora/dividir), além das
muitas expressões idiomáticas. Menos de 10% das mulheres surdas que participaram da investigação
realizada em Chesire (Reino Unido), sobre desigualdades no acesso aos cuidados de saúde enfrentadas
por mulheres surdas (Ubido, Huntington, Warburton, 2002), informaram que costumam compreender
tudo o que os médicos lhes dizem quando vão sozinhas às consultas.
Como resultado desse desconhecimento em relação à pessoa surda, o profissional de saúde acaba
falhando em ver o paciente surdo como alguém que poderia contribuir no processo do cuidado da sua
própria saúde; isto é, ignora o indivíduo enquanto fonte potencial de informação clínica (Eddey, Robey,
2005). Os surdos avaliam que alguns médicos acreditam que não adiantaria explicar porque o surdo não
seria capaz de entender (Costa et al., 2009). Muitas vezes, a comunicação durante toda a consulta se
dá apenas entre o médico e o acompanhante. Em entrevista realizada com surdos com domínio apenas
da língua de sinais como forma de se comunicar, um dos relatos exemplificou bem essa falta de
autonomia e de independência do paciente surdo, que, além de depender de uma terceira pessoa para
acompanhá-lo às consultas, não toma parte nas negociações terapêuticas:
Fui ao médico quando tinha problema dos rins. Não entendia nada do que o médico
falava. Minha mãe teve que ir comigo para me ajudar. O médico falava e fiquei
perdida; perguntava para minha mãe o que ele falou. Ela me dizia para esperar que em
casa me contaria. Então, em casa, minha mãe me contou, mas resumidamente, e no
consultório minha mãe e o médico falaram muito e ela só me contou muito pouco.
(Costa et al., 2009, p.168)
Se, por um lado, os surdos que usam língua de sinais se sentem mais seguros com a presença de
um(a) intérprete (Steinberg et al., 2002) durante as consultas e, mesmo, na sala de parto, por outro
queixam-se de falta de privacidade com a presença do intérprete na consulta com um ginecologista.
Conversando com pessoas surdas, também ouvimos relatos de exemplos positivos, como o de uma
surda bilíngue. O médico foi atencioso, falou devagar e, quando ela não entendia, o médico não se
furtava a repetir ou à solicitação que escrevesse (Costa et al., 2009).
Visando alterar o cenário aqui apresentado, a partir do início deste século vem crescendo o número
de experiências interessantes nas escolas médicas australianas, americanas, do Reino Unido, da África do
Sul e da Croácia, dentre outras, buscando incluir temas ligados à deficiência nos currículos médicos. São
realizadas atividades voltadas à promoção de atitudes positivas em relação à pessoa com deficiência, ao
conhecimento a respeito desse grupo, e/ou desenvolvimento de habilidades de comunicação ou de
exame clínico de pacientes com sequela de lesão medular, e produção de material de apoio. Pessoas
com deficiência, seus familiares e organizações que lutam por seus direitos vêm participando do
planejamento da inclusão curricular. Seminários; aulas formais, vivências; visitas domiciliares; e
participação de pessoas com deficiência sendo entrevistadas pelos estudantes; atuando como tutores ou
pacientes-padronizados, estão entre as abordagens mais frequentes (Duggan et al., 2009; Symons,
McGuigan, Akl, 2009; Tracy, Iacono, 2008; Eddey, Robey, 2005; Martin et al., 2005; Byron et al., 2005;
Minihan et al., 2004; Vlak et al., 2004; Thistlethwaite, Ewart, 2003; Sabharwal, Brownell, 2001; Byron,
Dieppe, 2000; Sabharwal, Sebastian, Lanquette, 2000; Henley, 1999; Conill, 1988; Mitchell et al., 1984).
A importância do ensino de comunicação nos cursos de graduação em medicina como campo de
conhecimento a ser contemplado nos projetos pedagógicos da formação de futuros médicos já é
reconhecida. Justifica-se pelos resultados de pesquisas sobre a relação médico-paciente, e de
importantes discussões, especialmente em fóruns internacionais, e das recomendações das novas
Diretrizes Curriculares Nacionais (Rossi, Batista, 2006), embora ainda não incluam as particularidades da
comunicação com pessoas não verbais. Os mesmos autores apontaram ainda, em sua investigação sobre
o ensino da comunicação em Medicina, que a atividade prática junto ao paciente desempenha um
espaço aberto
atitudes e comportamentos no cotidiano do ensino, seja de professores ou de outros médicos em
atividade, notadamente no internato, seria a principal responsável pela aprendizagem desta habilidade
pelos alunos. Mas, no caso da comunicação com pessoas com deficiência, se os médicos e professores
não tiveram, em sua formação, esse conteúdo, que modelos os estudantes estariam observando?
No Brasil já existem esforços em chamar a atenção para essa lacuna (Costa et al., 2009; Costa,
Botelho, Souza, 2008; Silva, Costa, 2008; Vieira et al., 2008; Chaveiro, 2007; Chelini et al., 2006;
Costa, 2005; Ferreira, Koifman, Costa, 2005). Na Universidade Federal Fluminense (UFF), desde o ano
de 2004, a atenção integral à saúde da pessoa com deficiência e sua inclusão social passaram a fazer
parte das disciplinas Trabalho de Campo Supervisionado I e Saúde e Sociedade III, dirigidas,
respectivamente, aos 2º. e 3º. períodos do curso médico. O presente relato refere-se à inclusão do
tema Deficiência na disciplina Saúde e Sociedade III, desde 2007, inaugurando o treinamento de
habilidades de comunicação considerando pessoas surdas.
O objetivo deste artigo é chamar a atenção de profissionais de saúde e docentes que atuam na
formação de recursos humanos na área da saúde, trazendo visibilidade para a pessoa com deficiência –
no caso específico, para a pessoa surda – nos currículos do curso médico, apresentando o relato de
experiência de inclusão de atividades dirigidas a capacitar futuros médicos para se comunicarem com
pessoas surdas. Partimos dos seguintes pressupostos que orientaram e justificaram a inclusão proposta:
– A Comunicação Competente faz parte do Aconselhamento em Saúde preconizado pelo Ministério
da Saúde (Filgueiras, Deslandes, 1999). Em relação às pessoas com deficiência, significa: comunicar-se
com pacientes que apresentem déficits na comunicação verbal; evitar fala infantilizada; compreender os
valores e necessidades das pessoas com deficiência, e sentir-se confortável com pacientes, inclusive
com deficiências complexas, entre outros (Eddey, Robey, 2005);
– A assistência integral à saúde da pessoa com deficiência não se restringe à prestada em
instituições específicas de reabilitação, mas ao atendimento na rede de serviços, nos diversos níveis de
complexidade e especialidades médicas, segundo a Política Nacional de Saúde da Pessoa com
Deficiência (Brasil, 2006; 2002);
– A capacitação de recursos humanos para o desenvolvimento das ações decorrentes dessa Política
inclui a necessidade de que sejam incorporadas disciplinas e conteúdos de reabilitação e atenção à
saúde das pessoas com deficiência nos currículos de graduação da área da saúde (Brasil, 2002). As
Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina apontam que a formação do
médico tem por objetivo dotar o profissional de conhecimentos requeridos para o exercício de
competências e habilidades que incluem, no item Comunicação, tanto a comunicação verbal quanto
não verbal, permitindo comunicar-se adequadamente com os pacientes e seus familiares; e o uso de
técnicas apropriadas de comunicação para informar e educar seus pacientes, familiares e comunidade
em relação à promoção da saúde, prevenção, tratamento e reabilitação das doenças (Brasil, 2001);
– Filosofia do Movimento de Vida Independente, segundo a qual a pessoa com deficiência é que
deve ter o controle da situação e da sua vida; ter o direito de realizar escolhas (Paula, 2008);
– “Nada sobre nós sem nós” – significa que nenhum resultado a respeito das pessoas com
deficiência deverá ser gerado sem a plena participação das próprias pessoas com deficiência (Sassaki,
2007).
Na disciplina Saúde e Sociedade III, dirigida ao terceiro período do curso médico da UFF, entre 2007
e 2010, participaram, das aulas de Comunicação competente, pessoas surdas e com sequela de
encefalopatia crônica da infância (disartria e espasticidade). Serão aqui descritas as atividades que
tiveram por objetivo: promover o conhecimento sobre aspectos relacionados à comunicação de pessoas
surdas; desenvolver habilidades de comunicação com surdos que se comunicam de diferentes formas, e
promover atitudes positivas em relação a pessoas com deficiência, em especial, pessoas surdas.
Nos sete semestres, 553 estudantes participaram dessas atividades (75 no 1º semestre e 78 no 2º de
2007; 84 no 1º. semestre e 78 no 2º de 2008; 83 no 1º semestre e 78 no 2º de 2009; e 77 no 1º
semestre de 2010). O tema ocupou duas aulas, com duração de três horas cada uma. Na primeira aula,
teórica, foram discutidos os textos: Considering the Culture of Disability in Cultural Competence (Eddey,
Robey, 2005); Encontro do Paciente Surdo que usa Língua de Sinais com os Profissionais da Saúde
(Chaveiro, 2007), e A Língua Brasileira de Sinais - Libras (Felipe, 2005). Nesse mesmo dia, também
foram ensinados alguns sinais relativos ao corpo humano, sexo e doenças sexualmente transmissíveis,
apresentados em vídeo. A segunda aula foi ocupada com vivência planejada por duas professoras de
Biologia, ouvintes, e três profissionais surdos do Núcleo de Orientação à Saúde do Surdo, do Instituto
Nacional de Educação de Surdos, que também participaram das dramatizações. A Associação de Pais e
Amigos dos Deficientes da Audição de Niterói disponibilizou tradutor/intérprete de Língua Brasileira de
Sinais (Libras), que, além de intermediar a comunicação entre a turma e os profissionais surdos,
participou da dramatização. Foram propostas quatro situações de busca por atendimento médico, de
acordo com a forma de comunicação do paciente: 1) surdo oralizado; 2) surdo que se comunica através
da Libras acompanhado de intérprete; 3) outro que vai à consulta sozinho; e 4) surdo que não aprendeu
Libras, nem português, não sabe fazer leitura labial e não fala.
A dramatização começa com uma “paciente” surda sentada no espaço representando a sala de
espera. O aluno, voluntário no papel de médico, não sabe ainda a forma de comunicação da
“paciente”. Os próprios surdos escolheram os temas da consulta: busca por método anticoncepcional,
dengue, DST e sintomas gastrointestinais, chamando a atenção, durante cada consulta, para termos de
difícil compreensão pelos surdos. Apesar de apenas quatro estudantes de cada turma terem participado
diretamente da experiência enquanto “médicos”, a partir das dificuldades encontradas para se
comunicar com o “paciente” surdo, os demais colegas de turma propunham soluções.
Ao final de cada “consulta”, foram apontadas e discutidas as dificuldades sentidas pelos “pacientes”
e pelos “médicos”, assim como formas de reduzi-las. Como fechamento da atividade, os estudantes
conversaram com os convidados surdos, conhecendo um pouco sobre suas vidas.
Com o objetivo de avaliar o que representou para os estudantes esse contato direto com tutores
surdos e realizar os ajustes necessários, solicitamos que cada aluno, individualmente, escrevesse, de
forma livre e anônima, uma avaliação dessa atividade, a ser entregue na aula seguinte. Será apresentada
aqui a análise das avaliações dos estudantes do 1º. e 2º. semestres de 2008, e do 1º. semestre de
2009, que puderam ser recuperadas a partir de arquivo digital, ou seja, de 245 estudantes.
Optou-se pela análise qualitativa dos dados através da técnica de análise categorial (Gomes, 1997;
Bardin, 1977). A partir da leitura flutuante das avaliações, foram destacados temas organizados nas
categorias: Atitudes; Habilidades; e Conhecimentos – tomando-se como referência os três grandes
objetivos da proposta de inclusão curricular de ensino médico sobre como cuidar de pessoas com
deficiência, na escola médica da Universidade de Búfalo (Symons, McGuigan, Akl, 2009).
Resultados
As categorias e subcategorias serão apresentadas utilizando-se trechos dos relatos dos estudantes
para exemplificá-las:
Atitudes
Esta categoria traduz a forma como a pessoa surda é vista: desenvolvimento de um olhar para a
pessoa surda, vendo a pessoa para além da surdez; respeito e valorização dos direitos e desejos dessas
pessoas; e exame de suas próprias atitudes a respeito da surdez.
. A pessoa surda sob um novo olhar:
espaço aberto
assume apenas uma característica diferencial”.
“A aula foi importante para quebrar a premissa de que os surdos são ‘coitados’ ou dignos de
pena. O que pudemos ver é que eles são pessoas normais que levam uma vida normal, mas
apresentam uma limitação que, muitas vezes, não é respeitada pela sociedade”.
“Esta ‘aula prática’ é muito importante porque tira a idéia de que o fato de a pessoa ser
surda limita sua capacidade de entendimento.”
Habilidades
“Através desta experiência conseguimos ter um pouco de contato com as dificuldades dos
surdos e do desafio que é estabelecer uma boa relação médico-paciente nessas
circunstâncias. Dentre elas, a que mais chamou a minha atenção foi aquela em que o
intérprete estava presente, pois neste momento, há o risco de a atenção e a comunicação se
estabelecerem entre o médico e o intérprete, e não com o paciente”.
“Com as dramatizações, mais do que novas informações, fomos desafiados a aplicar o que
havíamos discutido ou o que pensávamos saber. Dessa forma fomos obrigados a criar outros
mecanismos de comunicação quando o que conhecíamos não foi suficiente; situação esta
que acontecerá no cotidiano da prática médica”.
Conhecimentos
Essa categoria diz respeito à construção de um conhecimento geral sobre surdez: frequência e
causas mais comuns; impacto da surdez no indivíduo e em sua família; e consequências de entraves na
comunicação médico-paciente. Nessa categoria, a ênfase dos estudantes recaiu mais na forma como os
conhecimentos foram adquiridos do que no conteúdo.
. Risco de atendimento com entraves na comunicação:
“Uma simples consulta médica, sem a devida comunicação, acaba sendo desrespeitosa ao
paciente, além de ser prejudicial no caso de indicação de como usar o medicamento poder
ser entendida da maneira errada”.
Discussão
espaço aberto
A mudança de percepção da pessoa surda a partir da falta, ou do que se pensa
faltar a ela, para alguém sendo visto como diferente dos outros apenas por não
ouvir, de acordo com os resultados apresentados, parece resultar da presença de
tutores surdos e do espaço aberto ao diálogo entre estes e os estudantes. Quando
não é oferecida ao estudante de medicina a oportunidade de aprender a se
comunicar com pessoas surdas, é como se essas pessoas não existissem. Mesmo
quando encontram pacientes surdos em estágios e plantões, a tendência, de
acordo com este conjunto de dados, parece ser a reprodução de equívocos já
descritos, com todos os seus riscos, por falta de uma comunicação eficiente.
Através dos relatos dos estudantes, ficou claro que se sentiram mais seguros e
menos desconfortáveis com a possibilidade de atenderem pessoas surdas, a partir
do que aprenderam em curtíssimo tempo. Os estudantes se mostraram receptivos
à inclusão de temas ligados a pessoas com deficiência no currículo de graduação
em medicina, sugerindo, inclusive, que essa inclusão não fosse pontual, com o
que concordamos.
Interessante também foi terem percebido que as dificuldades de comunicação
encontradas no atendimento da pessoa surda são semelhantes às que surgem na
anamnese de pacientes estrangeiros que não conhecem a língua portuguesa.
Durante a discussão em aula, uma das alunas citou o exemplo de uma mulher que
procurou atendimento para seu filho na Unidade de Saúde. Recém-chegada de
um país asiático, não sabia português, e a dificuldade de comunicação foi muito
semelhante à encontrada com pessoas surdas, percebendo a aplicação das
habilidades adquiridas, também, a outros grupos de pacientes.
A única crítica negativa presente nas avaliações dos estudantes foi quanto ao
número de estudantes em sala durante a dinâmica. Por conta da disponibilidade
dos profissionais do NOSS de participarem de apenas uma atividade por semestre,
não foi possível dividir a turma, o que teria sido o ideal.
Conclusão
Colaboradores
As autoras trabalharam juntas em todas as etapas de produção do manuscrito.
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espaço aberto
Developing medical students’ attitudes, knowledge and skills in healthcare
for deaf people
Not knowing deaf people, lacking communication skills and presenting negative
attitudes towards them may lead to risks to these patients’ health. An inclusion
experience on the topic of deafness in an academic discipline directed towards
students at the Fluminense Federal University is described here. During two classes
in the module Health and Society III, from 2007 to 2010, 553 second-year medical
students were exposed to readings, discussions, video and experiences with
participation by deaf people. Freeform anonymous evaluations were requested.
Analysis on these evaluations revealed themes relating to acquisition of knowledge,
communication skills and positive attitudes towards deaf patients. Direct contact
with deaf people was shown to be essential for promoting positive attitudes. It is
important not only to sensitize medical students, but to provide them with tools to
ensure deaf patients’ autonomy and independence.
Keywords: Medical education. Deaf. Communication skills.
livros
o risco: uma introdução aos riscos em saúde. Rio de Janeiro:
Fiocruz, 2010.
teórico-metodológicos densos e uma leitura crítica Discute-se, ainda, a ‘noção funcional’ de risco,
de mundo, sensível aos imperativos da sociedade articulada ao emprego de indicadores
manufaturadora de riscos em larga escala (Beck, epidemiológicos, para comparações intra- e
2011) que habitamos e que nos habita. intergrupos quando se busca medir a morbidade
Entre os aspectos abordados no livro, de coletivos populacionais. Os pesquisadores
destacamos o enfoque dado ao papel da difusão lembram que essa dimensão quantificadora dos
científico-midiática de informações relativas ao fatores de risco à saúde vem acompanhada de
risco. Em particular, devido à geração de uma determinada racionalidade, prevalente nas
espécie de sentimento coletivo que sinaliza um maneiras de explicar os processos de
cotidiano irremediavelmente eivado de situações adoecimento.
perigosas, do qual estaríamos (e Na mesma seção, os termos ‘risco’,
permaneceríamos) à mercê, se não nos ‘associação’ e ‘causalidade’ (e as relações entre
prevenirmos 24 horas por dia, ao longo da vida. eles) são pormenorizados, levando-se em conta
O exponencial crescimento de estudos sobre o sua recorrência no discurso epidemiológico
tema nos meios de comunicação também é dominante, que homogeniza e reduz os
problematizado: a relação de interdependência fenômenos da tríade saúde-doença-cuidado a
com esse tipo de informação do público mecanismos de apreensão lógica, estatística.
(receptor), persuadido pelas ‘descobertas mais O segundo capítulo examina a questão do
recentes’ da ciência que, em última análise, estilo de vida saudável, vinculada a certas
levam-no a buscar e tornar-se consumidor de abordagens discursivas de promoção da saúde.
produtos e/ou serviços (em geral, disponíveis no Destaca que, em geral, estas se mantêm numa
mercado) sob a promessa de que estes evitariam posição hegemônica de culpabilização da vítima. E
problemas de toda ordem. analisa com rigor a perspectiva
Contudo, apesar de as expectativas e desejos comportamentalista de promoção da saúde,
contemporâneos serem capturados pelos fortes criticando as estratégias de redução dos riscos a
apelos retóricos anunciados por instâncias como o ela conectada.
complexo médico-industrial e suas estratégias A relação entre posturas arriscadas e estilos de
institucionais de determinação/avaliação/ vida é posta em xeque justamente porque não
gerenciamento dos riscos, raramente conseguimos considera a processualidade da ambiência social,
aplacar nossas angústias diante das ameaças nem consegue apreender e decodificar emoções,
onipresentes, por mais que nos esforcemos no desejos e sensações que influenciam e amoldam
cumprimento rigoroso de preceitos preventivos comportamentos. O cerne da problematização
receitados. Pelo contrário, a despeito de tanta recai sobre a tirânica apologia à ‘vida ativa’,
‘recomendação especialista’ a circular, a ansiedade ‘saudável’, sustentada, em boa parte, por
parece só crescer no dia a dia. Segundo os argumentações de estudos epidemiológicos que
autores, esse ‘ambiente riscofóbico’ incita as evocam a noção de ‘autonomia pessoal’ como
pessoas a assumirem comportamentos que sinônimo de autocuidado e circunscrita apenas a
incorporam ou excluem determinados ‘estilos de perspectivas individualizantes. Também são tecidas
vida’, os quais implicam a administração de modos críticas sobre o modo como a promoção da saúde
de viver nem sempre acessíveis/viáveis à maioria vem empregando tais discursos para demonizar o
da população. sedentarismo e reafirmar incansavelmente (a
A obra está organizada em quatro capítulos e despeito dos contextos vividos) que ‘atividade
compõe a coleção Temas em Saúde. No primeiro física é sinônimo de saúde’.
capítulo, são tratados aspectos teórico- O mote do terceiro capítulo centra-se nos
metodológicos do conceito de risco, sua efeitos que a presença do risco genético produz
aplicabilidade nas diversas áreas e as disciplinas no campo sanitário. Práticas médicas como as de
que dele fazem uso: a economia, a (des)aconselhamento da gravidez de mulheres,
epidemiologia, a engenharia e as ciências sociais. baseado nas atuais testagens genéticas pré-natais,
Nas três primeiras predomina o enfoque a fim de se evitar/detectar condições
quantitativo; na última, as abordagens qualitativas supostamente indesejáveis e/ou perigosas, são
são as mais frequentes. ilustrativas de tais repercussões. Os autores
livros
de colonização social que extrapola a própria área modificações corporais que os legitimem
da saúde. Inúmeras interpretações análogas, socialmente.
restritivas, medicalizantes, vêm sendo aplicadas Outra noção trabalhada criticamente é a da
em esferas não correlatas, sem falar na ‘responsabilidade pessoal’. Tomada como
discriminação genética dirigida a famílias e estratégia central nas campanhas e programas de
pessoas. Mencionam, ainda, que, nos meios de prevenção aos riscos, ela tem sido utilizada para
comunicação de massa, as explicações genéticas execrar os sujeitos que não demonstram
têm servido para doutrinar moralmente fatos, capacidade de vigiar-se, autorregular-se. Os
desejos e aspectos da vida humana (por exemplo, autores contrapõem essa perspectiva à ideia de
a obesidade, preferências sexuais, práticas livre-arbítrio (como direito inalienável de decidir,
estéticas, criminalidade etc.), estratégias essas fazer escolhas) e à questão da
que, em outros tempos históricos, foram desrresponsabilização do Estado com o bem-estar
rechaçadas e reconhecidas como eugênicas. social dos cidadãos governados sob sua tutela.
O quarto e último capítulo se ocupa do debate A tematização da longevidade dá fecho ao
sociocultural sobre o risco (já destacado no início livro, como mais uma das metáforas
deste texto), a partir de sua disseminação contemporâneas a partir da qual se pode
midiática, da velocidade das tecnologias de contrastar a conflitiva premência de viver correndo
informação e dos consequentes excessos daí riscos com o imperativo de lidar de modo
originados, que acabam por aumentar em nós a prudente e racional com esse quadro.
sensação de ameaça cotidiana em distintas esferas Enfim, trata-se de uma importante obra,
do viver. Também é abordada a problemática do recomendada não só aos pesquisadores da saúde
risco na adolescência. Tal como o resto da coletiva, mas, também, de outras áreas, uma vez
sociedade, exposto aos apelos do consumismo e que oferta análises ricas e multifacetadas sobre o
do individualismo, os adolescentes, em busca de risco, levadas a cabo com o rigor e didatismo
suas identidades, tornam-se mais suscetíveis, por necessários, inclusive àqueles ainda ‘não-iniciados’
exemplo, ao uso de substâncias ou de no estudo do tema.
Referências
BECK, U. Sociedade de risco: rumo a uma outra
modernidade. 2.ed. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2011.
CASTIEL, L.D.; GUILAM, M.C.F.; FERREIRA, M.S.
Correndo o risco: uma introdução aos riscos em
saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010.
LOPES, C.R. Risco, conceito fundamental em
permanente discussão. Radis, n.106, 2011.
Disponível em: <http://www.ensp.fiocruz.br/radis/
revista-radis/106/reportagens/risco-conceito-
fundamental-em-permanente-discussao>. Acesso
em: 20 jul. 2011.
teses
estudo antropológico de uma enfermaria cirúrgica em Campinas, SP, Brasil
Structural and symbolic dimensions of a hospital space:
anthropological study in a surgical ward at Campinas, Sao Paulo State, Brazil
Dimensiones estructurales y simbólicas de un espacio hospitalario:
estudio antropológico de una unidad quirúrgica en Campinas, São Paulo, Brasil
teses
que mostrou ser uma resposta ética e humanística ações de cuidado; e se estrutura em dezessete
na forma de fazer ciência, visto que teve a pressupostos teóricos, relacionados com cinco
preocupação de beneficiar os sujeitos conceitos básicos: ser humano; processo saúde/
pesquisados, pois foram cuidados enquanto doença; enfermagem; ambiente; cuidado
participavam da pesquisa. espiritual. Além disso, segue os passos de
Trata-se de uma pesquisa realizada com três construção e estabelecimento do cuidado
pacientes, com o diagnóstico de câncer, espiritual, de cuidado propriamente dito, e de
hospitalizados em um hospital público, terciário, manutenção e análise do cuidado espiritual,
da cidade de Fortaleza-Ceará. A pesquisa foi estruturados em três etapas: Khronos – fase de
dividida em duas etapas: [1] a coleta de dados, construção; Kairós – fase de busca; Aión – fase de
realizada durante o processo de cuidar, por meio integração.
da relação de ajuda enfermeiro/ paciente; [2] a Este modelo contempla o cuidado total, mas
produção do modelo, com base nos dados enfatiza o espiritual, porque, perscrutando as
analisados e confrontados com o referencial virtudes e valores humanos, tem como foco
teórico. O processo de construção deste modelo central a busca e o encontro do sentido da vida.
foi realizado utilizando-se, de forma integrada, as O presente trabalho não é a única possibilidade
categorias criadas do conteúdo dos diálogos e dos de cuidado espiritual, tampouco tem a pretensão
comentários das interações, conforme recomenda de ser a única e a última verdade sobre o assunto.
Bardin. A construção do modelo foi discutida e Antes, convidamos todos a conhecerem,
apresentada em três elementos do cuidado aplicarem, validarem, criticarem, ampliarem,
espiritual: os componentes; o desenvolvimento; a contestarem ou rejeitarem esta tese, se assim
culminância. julgarem procedente.
Esta tese foi submetida ao Comitê de Ética em
Pesquisa e observou, irrestritamente, os princípios Michell Ângelo Marques Araújo
norteadores da pesquisa envolvendo seres Tese (Doutorado), 2011
humanos, conforme a Resolução 196/1996, do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem,
Conselho Nacional de Saúde. O modelo de Departamento de Enfermagem, Universidade Federal
cuidado produzido fundamenta-se filosoficamente do Ceará. micenf@yahoo.com.br
Saúde sexual e reprodutiva de mulheres vivendo com HIV/Aids atendidas em hospital dia
Sexual and reproductive health of women living with HIV/Aids attended to at the outpatient hospital
Salud sexual y reproductiva de mujeres con VIH/Sida atendidas en un hospital de día
Tendo em vista o avanço da epidemia de aids por seus parceiros ou ex-parceiros fixos. A
entre as mulheres, com maior concentração de mediana do tempo de diagnóstico da infecção
casos na faixa reprodutiva, objetivou-se analisar pelo HIV foi de oito anos, e 79,9% estavam em
aspectos da saúde sexual e reprodutiva de terapia antirretroviral.
mulheres infectadas pelo HIV/aids atendidas em Observou-se elevada prevalência de alterações
serviço especializado do interior do Estado de São da microbiota vaginal (51,8%), DST (87,0%) e
Paulo. Entre outubro de 2008 e dezembro de citologia oncótica alterada (21,2%). Isoladamente,
2010, foi realizado estudo transversal, descritivo e a infecção pelo HPV foi a DST mais prevalente
analítico que contemplou, também, abordagem (83,6%), seguida da infecção pela Chlamydia
qualitativa, visando atender ao objetivo de trachomatis (24,6%), tricomoníase (14,7%) e
descrever a vivência da sexualidade das mulheres sífilis (1,1%). A maioria (71,0%) das mulheres
investigadas. Incluiu-se o conjunto das mulheres relatou mudanças na vida sexual após o
vivendo com HIV/aids, em seguimento no diagnóstico da infecção pelo HIV, inclusive
referido serviço, que aceitaram participar da inatividade sexual (23,9%).
pesquisa (n=184). Identificaram-se diferentes níveis de satisfação
Os dados foram obtidos pela própria com a vida sexual e dificuldades para iniciar e
pesquisadora, por meio de entrevista que manter um relacionamento afetivo-sexual. A
contemplou questões abertas e fechadas e exame diminuição da qualidade da vida sexual
ginecológico. Para o diagnóstico do padrão da relacionou-se tanto a alterações da resposta sexual
microbiota vaginal, de doenças sexualmente quanto à modificação no repertório das práticas
transmissíveis (DST) e alterações citológicas do sexuais, justificada, dentre outros motivos: pela
colo uterino, empregaram-se métodos padrão- tensão durante a relação sexual em função do
ouro. Os dados foram analisados por meio da medo de transmitirem o HIV a seus parceiros não
estatística descritiva e associações foram infectados, de se reinfectarem e/ou adquirirem
verificadas pelo teste qui-quadrado ou exato de outras DST; insegurança quanto à proteção
Fisher. oferecida pelo preservativo, e comprometimento
Os depoimentos das participantes sobre a vida da autoimagem. Entre as dificuldades para iniciar e
sexual, após o conhecimento da infecção pelo manter um relacionamento, destacaram-se: a
HIV, foram analisados empregando-se os rejeição e o dilema de revelar o diagnóstico ao
pressupostos da Análise de Conteúdo, segundo parceiro; sentimentos negativos, como mágoa,
Bardin. Predominaram as mulheres brancas, com decepção, raiva; e, especialmente, a dificuldade
idade entre trinta e 59 anos, com união estável e de negociação do uso do preservativo, claramente
baixo nível de escolaridade, procedentes de 45 relacionada às diferenças de poder e gênero.
municípios do interior paulista. 94,0% delas foram Observaram-se alterações no padrão de uso de
infectadas pela via sexual e, entre estas, 84,2% métodos contraceptivos, e 29,4% das mulheres
teses
vem contribuir para o planejamento de ações mais Infecções por HIV. Síndrome de imunodeficiência adquirida.
Doenças sexualmente transmissíveis. Neoplasia
abrangentes, voltadas à promoção da saúde intraepitelial cervical.
integral das mulheres vivendo com HIV/aids, na
Keywords: Sexual and reproductive health. Women. HIV
medida em que levanta uma série de infections. Acquired Immunodeficiency Syndrome. Sexually
necessidades reais, relativas à saúde sexual e transmitted diseases. Cervical intraepithelial neoplasia.
reprodutiva, e ao contexto sociocultural e Palabras clave: Salud sexual y reproductiva. Mujeres.
programático de vulnerabilidade. Infecciones por VIH. Síndrome de inmunodeficiencia
adquirida. Enfermedades de transmisión sexual. Neoplasia
Marli Teresinha Cassamassimo Duarte intraepitelial cervical.
Tese (Doutorado), 2012.
Programa de Pós-graduação em Doenças Tropicais,
Faculdade de Medicina de Botucatu, Unesp.
mtduarte@fmb.unesp.br Recebido em 25/06/12. Aprovado em 28/07/12.
A medicalização do social:
um estudo sobre a prescrição de psicofármacos na rede pública de saúde
The medicalization of the social: a study of psychotropic drugs prescription in public health
La medicalización de lo social: estudio sobre la prescripción de psicofármacos en la red publica de salud
prescrição de psicofármacos, e que não há constitucional brasileiro, corre o risco, nos termos
qualquer sinal de alta nos tratamentos daquele em que vem sendo praticado nos serviços
serviço no qual seus usuários permanecem, públicos de saúde mental, de constituir-se numa
indeterminadamente, sob medicação forma de drogadição da população, promovida por
psicofarmacológica. Por fim, ainda que longe de aparelhos de estado que, ao contrário de
cobrir toda a extensão da temática abordada, à cumprirem direitos constitucionais de cidadania,
guisa de conclusão, apresentamos uma acabariam por colocar em risco a própria
preocupação inquietante: a expansão do alcance autonomia da população ao promoverem sua
de instituições de atendimento em saúde mental dependência a drogas distribuídas pelos serviços
que reproduzam o modelo médico tradicional, estatais de saúde pública.
como aquela de nosso estudo, poderá realizar as
tendências tão pretéritas de expandir o Daniele de Andrade Ferrazza
atendimento psiquiátrico para amplos Dissertação (Mestrado), 2009
contingentes populacionais, o que, em nossos Programa de Pós-graduação em Psicologia,
dias, significará a extensão da medicação Faculdade de Ciências e Letras, Universidade
psicofarmacológica para a população em geral. Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho (Unesp),
Nesse âmbito, podemos pensar que até mesmo o campus de Assis. Com apoio da Fapesp.
direito universal à saúde, estabelecido no direito danieleferrazza@yahoo.com.br
criação
Ricardo Pozzo1
URBE FÁGICA
Projeto fotográfico com base nas teorias de Georg Simmel, Vilém Flusser
e Jean Baudrillard, que tenta provocar, em um hipotético observador
aleatório, a constatação de que os estímulos provenientes da realidade
são, e cada vez mais, excessivos o suficiente para que as contradições
sociais costurem o abismo entre o discurso e as práticas cotidianas.
Inserido numa realidade pragmática, mergulhado em um oceano absurdo
de estímulos e informação, o habitante da urbe, como nos diz Simmel,
não possui capacidade psicobiológica suficiente para que surja, em
sua consciência, o elo crítico que o faria estacar em sua atividade
autômata e perceber as contradições no todo do ciclo social.
Identificado pelo discurso midiático maniqueísta, ora como algoz, ora
vítima, muitas vezes simultaneamente nas duas posições, o habitante da
urbe, psicoburgês, torna-se presa de uma rotina de manutenção da pólis,
estando sempre um passo aquém de suas obrigações, ao mesmo tempo
em que seus anseios primitivos, negados por uma moral de conduta, são
estimulados pela publicidade. Essa dicotomia restringe sua percepção do
processo natural em seu entorno, no qual está inserido, deixando então
de considerar os caminhos e limites que o impediriam de sobrecarregar o
sistema orgânico, permitindo compreender-se como sujeito dentro da
extrema fluidez em que ocorrem as experiências vividas em si e em
sociedade.
Como Flusser nos convida a perceber, o fotografo é similar a um caçador
na tundra ou, no caso do projeto urbe fágica, em busca do instantâneo 1
Rua Miguel Odia Fagundes, 28,
que, no cotidiano revele as contradições de nosso contrato social. Fazendinha. Curitiba, PR, Brasil.
81.320-150.
terradosempre2006@ gmail.com
https://twitter.com/RicardoPozzo
http://olhares.uol.com.br/elquetzal
http://www.cronopios.com.br/site/poesia.asp?id=5556
http://www.curitibacultura.com.br/noticias/entrevistas/o-pozzo-e-a-poesia-na-urbe-0
http://www.mallarmargens.com/2012/09/fotocorpos-por-ricardo-pozzo.html
Ricardo Pozzo, Corpus, Projeto Urbe fágica, s/d
criação
Urbe[m] Samsara
Escatológica cosmogonia
a cada quadra
Urbe[m] Samsara
subjetividade
individualizada!
www.poeteias.blogspot.com.br/2012/02/urbem-samsara.htlm
criação
Poetic reflections on education
Reflexiones poéticas sobre la educación
Vazio
Se por profissão
Montasse carros
– como seria do gosto do Senhor Reitor –
Não haveria problemas
Que eles
Das fábricas
Saem prontos e acabados
Com os parafusos
Todos apertados
Aqueles com defeito
Recall
Que se cuidem!
1
Programa de
Pois o trânsito Pós-Graduação em
É perigoso Educação, Universidade
Tuiuti do Paraná. Rua
Sydnei Rangel Santos,
238, Santo Inácio.
Curitiba, PR, Brasil.
82.010-330.
fausto.santos@utp.br
Réquiem
Quem trabalha
Quer condições de trabalho
A ferramenta
O instrumento
O salário
Todos se mexem
Para todos os lados
Todos caminham
Aos esbarrões
Para lugar nenhum
Cuspidos
Todos saem formados
Com suas becas de filó
Exemplares vulgares
De um saber decadente
Restou apenas
A ilusão de um saber fragmentado
E o tilintar opaco das moedas
Pseudo
A pseudo-intelectual
De esquerda
Gostava
De dizer:
“Nada me sabe
Melhor
A não ser
Eu mesma”
Soberba
criação
Ai, ai
Professora querida
Sala de aula
Power point
Maquinaria
Gráficos
Tabelas
Esquemas
Ai, ai
Professora querida
Como será
Que seria
Se
Ao invés
De tanta metodologia
A sua aula tivesse
Um pouco
Um pouquinho mais
De melodia...
Academia
A Academia
É douta
Por demais
Impressionada
Pelo seu próprio saber
Onanisticamente
Produz fantasias
Simulacros verdadeiros
Da sua própria vaidade.
A Academia
É operosa
Ciosa
Dos seus compromissos
Quer um país melhor
Muito mais bonito
criação
Unfinished Odyssey
Odissea inacabada
O abismo da tristeza...
III) Pausando...
Medicado torpe ia
Trabalhar um zumbi
Quase clara a magia
Do vivo em vigília dormir
Camisa de força na veia
De química que o cérebro incendeia
E contém, sustém, em férreo desdém
criação
Porém... mudança de médico... Sem aconchego se chegou e foi ao choque
Em excesso se medica... Não sutil mas protegido,
Overdose química anestesiado toque,
Neuronal alquimia Que a memória comeu
Serotonina explode por alguns dias de chofre.
Supernovas iluminam
E voa voa a mente E se passa um mês de presente
No delírio imprudente Em contatos, diálogos e fatos
Corre corre em vexame Artes falas cores e novas alas
Fugindo em palavras, De não furtivas alternativas,
Da tristeza desmame, Delineiam-se em fundo horizonte
Em que sol esperança nasce
Novos sentidos se fazem... Ouro-vivo além de toda lembrança
Arauto do infinito E pra frente novo impulso
Lutador das forças do bem... Se arrasta no pulso...
Voa fundo e alto a cabeça... Não avulso...
O peso maior
Perigando-se expondo-se explosão Expulso.
Correndo e andando:
Não como antes,
Agora pra frente
Enfrentando o presente,
Não mais do momento ausente
Mas enraizado no atual instante.
Olhando adiante
À vida assente -
Pés no chão então
Se quer sempre
Estar sem ilusão...
E vai de antemão,
Cerrando,
tentando acertar com precisão,
Cada gesto com a mão
Expressão.
VIII) Novo momento
A cada dia,
Tentar novo tempo;
Descoberta
Da nova flora
Que surge:
A riqueza do momento.
cartas
da ‘saúde-doença’ na sociedade pós-genômica *
Desse panorama, têm resultado transformações aceleradas e em perspectiva planetária, não apenas
de setores-chave do mundo atual, mas, sobretudo, de valores singulares que, até pouco tempo,
sustentavam e dotavam de sentido a convivência em coletividade. Está em curso uma radicalização da
condição humana que torna ambíguas e fluidas as distinções ontológicas entre pessoas e coisas; que
expropria nossas subjetividades; que conduz, invariavelmente, ao sofrimento do corpo e da alma
(Skrabanek, 1994).
Some-se a isso, o fervoroso individualismo tardo-moderno que o capitalismo líquido acolhe,
exacerbando assimetrias socioeconômicas, culturais e políticas, e deslocando as fronteiras da
responsabilidade pública do Estado Moderno para a dimensão molecular dos sujeitos – que deveriam ser
protagonistas-beneficiários das políticas de bem-estar social nesse modelo de governança, ao invés de
se tornarem ‘alvos’ da responsabilização por sua própria sorte.
E claro, é preciso mencionar, também, a ditadura midiática, da qual já falava Noam Chomsky há
décadas, estabelecida pelos meios de comunicação de massa em estreita comunhão com a ideologia do
capital, a serviço da ‘desinformação’ e do fomento de ideias que volatilizam os debates críticos acerca
de questões na ordem do dia. A “fabricação do consenso” despolitizador, para usar uma expressão
chomskyana, encontra-se amalgamada a todas as instâncias do cotidiano; desde as micropolíticas
discursivas que edificam comportamentos consumistas, como meta primeira da existência humana, até o
ditame das macroestruturas de poder das megacorporações e governos, cujas escolhas decisórias vertem
de forma implacável sobre populações e grupos marginalizados (Chomsky, Herman, 1988).
Não podemos perder de vista que as ‘patologias sociais’, das quais padecem países desiguais como o
Brasil, têm gerado corpos enfermos e agonizantes, governamentalizados por retóricas e práticas que nos
distanciam da capacidade de escapar e resistir às armadilhas da subjugação neoliberal, de toda ordem.
Indiscutivelmente, há um enorme lastro de vinculações entre as problemáticas relativas ao processo
saúde-doença-cuidado e à gestão política da vida exercida pelas instituições sociais do nosso tempo. A
pujança valorativa do meio acadêmico sobre o contexto anunciado se reafirma na própria realidade dos
acontecimentos do dia a dia.
Esse cenário complexo e delicado demanda dos pesquisadores – sobretudo no campo sanitário – a
ampliação de reflexões e pesquisas eticamente comprometidas em dar respostas relevantes às agruras
societárias do novo século; ou, pelo menos, dispostas a enfrentá-las e indagá-las de maneira crítica, tal
como o empreendimento investigativo de Gaudenzi e Ortega (2012).
Não se trata de desqualificar o acúmulo da produção científica em saúde, nem de outorgar ao campo
a função de redentor dos males que a humanidade enfrenta. Todavia, é premente, sim, tensionar os
muitos dilemas imbricados na própria gênese dos saberes da ciência, cujos investimentos públicos têm
se misturado de forma maciça a interesses mercadológicos, bélicos e midiáticos. Em geral, quando
detectadas, tais interfaces ainda emergem de maneira difusa, tímida, quando não rechaçadas ou
desprezadas por representantes do espaço acadêmico.
As ‘trilhas’ ofertadas pelo trabalho de Gaudenzi e Ortega (2012) são valiosas porque deságuam em
linhas de fuga: propõem reformulações matriciais insurgentes, mestiças, intelectualmente inquietantes e
contextualmente relevantes; e sinalizam a necessidade de se alargarem as fronteiras de criticidade e as
arenas sociais para incitar o debate/embate de tais questões.
O exercício de politizar conceitos e ideias em espaços de formação humana – seja na universidade,
nos serviços públicos ou na gestão em saúde – implicados com as práticas sociais, constitui e fortalece
parte do processo estratégico de resistência à medicalização nefasta, que, cada vez mais, se alastra e
invade as esferas da vida contemporânea.
Marcos Bagrichevsky1
Adriana Estevão2
relemos o manuscrito, mas nada podia ser feito [...]. (Fulano, ARTIGO EM PERIÓDICO: TEIXEIRA, R.R. Modelos
Sicrano, 2008, p.56). comunicacionais e práticas de saúde. Interface – Comunic.,
c Vários autores citados em sequência: do mais recente para Saude, Educ., v.1, n.1, p.7-40, 1997.
o mais antigo, separados por ponto e vírgula: (Pedra, 1997; *Apenas o título do periódico é destacado, em negrito.
Torres, 1995; Saviani, 1994). **Obrigatório indicar, após o volume e o número, as páginas
d Textos com dois autores: Almeida e Binder, 2004 (no corpo em que o artigo foi publicado.
do texto); Almeida, Binder, 2004 (dentro dos parênteses). TESES E DISSERTAÇÕES: IYDA, M. Mudanças nas relações
e Textos com três autores: Levanthal, Singer e Jones (no corpo de produção e migração: o caso de Botucatu e São Manuel.
do texto); Levanthal, Singer, Jones (dentro dos parênteses). 1979. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Saúde Pública,
f Textos com mais de três autores: Guérin et al., 2004 (dentro Universidade de São Paulo, São Paulo. 1979.
e fora dos parênteses). *Sem indicação do número de páginas.
g Documentos do mesmo autor publicados no mesmo ano: RESUMOS EM ANAIS DE EVENTOS: PAIM, J.S. O SUS no
acrescentar letras minúsculas, em ordem alfabética, após a ensino médico: retórica ou realidade. In: CONGRESSO
data e sem espaçamento (Campos, 1987a, 1987b). BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO MÉDICA, 33., 1995, São Paulo.
Anais... São Paulo, 1995. p.5.
REFERÊNCIAS *Apenas a palavra Anais é destacada, em negrito.
Todos os autores citados no texto devem constar das **Quando o trabalho for consultado on-line, mencionar o
referências listadas ao final do manuscrito, em ordem endereço eletrônico: Disponível em:<...>. Acesso em (dia,
alfabética, seguindo normas adaptadas da ABNT (NBR 6023/ mês, ano).
2002). Exemplos: ***Quando o trabalho for consultado em material impresso,
LIVROS: FREIRE, P. Pedagogia da indignação: cartas colocar página inicial e final.
pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Ed. Unesp, 2000. DOCUMENTOS ELETRÔNICOS: WAGNER, C.D.; PERSSON,
* Título sempre destacado em negrito; sub-título, não. P.B. Chaos in cardiovascular system: an update. Cardiovasc.
**Sem indicação do número de páginas. Res., v.40, p.257-64, 1998. Disponível em: <http://
***A segunda e demais referências de um mesmo autor (ou www.probe.br/science.html>. Acesso em: 20 jun. 1999.
autores) devem ser substituídas por um traço sublinear (seis * Apenas o título do periódico é destacado, em negrito.
espaços) e ponto, sempre da mais recente para a mais antiga. **Os autores devem verificar se os endereços eletrônicos
Se mudar de página, é preciso repetir o nome do autor. Se for (URL) citados no texto ainda estão ativos.
o mesmo autor, mas com colaboradores, não vale o Nota: se a referência incluir o DOI, este deve ser mantido. Só
travessão. Ex: neste caso (quando a citação for tirada do SciELO, sempre
Freire, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à vem o Doi junto; em outros casos, nem sempre).
prática educativa. 27.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.
(Coleção Leitura). ILUSTRAÇÕES:
______. Extensão ou comunicação? 10.ed. Rio de Janeiro: Imagens, figuras ou desenhos devem estar em formato tiff ou
Paz e Terra, 1997. jpeg, com resolução mínima de 200 dpi, tamanho máximo 16
**** Dois ou três autores, separar com ponto e vírgula; mais x 20 cm, em tons de cinza, com legenda e fonte arial 9.
de três autores, indicar o primeiro autor, acrescentando-se a Tabelas e gráficos-torre podem ser produzidos em Word ou
expressão et al. Ex.: Excel. Outros tipos de gráficos (pizza, evolução...) devem ser
CUNHA, M.I.; LEITE, D.B.C. Decisões pedagógicas e produzidos em programa de imagem (photoshop ou corel
estruturas de poder na Universidade. Campinas: Papirus, draw). Todas as ilustrações devem estar em arquivos
1996. (Magistério: Formação e Trabalho Pedagógico). separados e serão inseridas no sistema como documentos
FREIRE, M. et al. (Orgs.). Avaliação e planejamento: a suplementares, com respectivas legendas e numeração. No
prática educativa em questão. Instrumentos metodológicos II. texto deve haver indicação do local de inserção de cada uma
São Paulo: Espaço Pedagógico, 1997. (Seminários) delas.
CAPÍTULO DE LIVRO: Nota: em manuscrito que contenha ilustrações deve ser
QUÉAU, P. O tempo do virtual. In: PARENTE, A. (Org.). inserida no sistema, também como documento suplementar,
Imagem máquina: a era das tecnologias do virtual. Rio de uma cópia do texto, na versão PDF, com todas as ilustrações
Janeiro: Ed. 34, 1996. p.91-9. incluídas devidamente localizadas no corpo do texto.
* Apenas o título do livro é destacado, em negrito. As submissões devem ser realizadas on-line no endereço:
**Obrigatório indicar, ao final, a página inicial e final do http://submission.scielo.br/index.php/icse/login
capítulo citado.
Casos específicos ANÁLISE E APROVAÇÃO DOS ORIGINAIS
1 Autor do livro igual ao autor do capítulo: HARTZ, Z.M.A. Todo texto enviado para publicação será submetido a uma
Explorando novos caminhos na pesquisa avaliativa das ações pré-avaliação inicial, pelo Corpo Editorial. Uma vez aprovado,
de saúde. In: ______ (Org.). Avaliação em saúde: dos será encaminhado à revisão por pares (no mínimo dois
modelos conceituais à prática na análise da implantação dos relatores). O material será devolvido ao (s) autor (es) caso os
programas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1997. p.19-28. relatores sugiram mudanças e/ou correções. Em caso de
2 Autor do livro diferente do autor do capítulo: VALLA, divergência de pareceres, o texto será encaminhado a um
V.V.; GUIMARÃES, M.B.; LACERDA, A. Religiosidade, apoio terceiro relator, para arbitragem. A decisão final sobre o
social e cuidado integral à saúde: uma proposta de mérito do trabalho é de responsabilidade do Corpo Editorial
investigação voltada para as classes populares. In: PINHEIRO, (editores e editores associados).
R.; MATTOS, R.A. (Orgs.). Cuidado: as fronteiras da A publicação do trabalho implica a cessão integral dos direitos
integralidade. Rio de Janeiro: Hucitec/Abrasco, 2004. p.103- autorais à Interface - Comunicação, Saúde, Educação. Não
18. é permitida a reprodução parcial ou total de artigos e matérias
3 Autor é uma entidade: BRASIL. Ministério da Educação e publicadas, sem a prévia autorização dos editores.
do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Os textos são de responsabilidade dos autores, não
Parâmetros curriculares nacionais: meio ambiente e saúde. coincidindo, necessariamente, com o ponto de vista dos
3.ed. Brasília: SEF, 2001. editores e do Conselho Editorial da revista.
4 Séries e coleções: MIGLIORI, R. Paradigmas e educação.
São Paulo: Aquariana, 1993. (Visão do futuro, v.1).
instructions for authors
PROJECT AND EDITORIAL POLICY The cover page must contain the paper’s title (in Portuguese,
Spanish and English) and the authors’ personal information in
INTERFACE - Communication, Health, Education publishes the following order:
original analytical articles or essays, critical reviews and notes Major author: institution to which he/she is affiliated –
on research (unpublished texts); it also edits debates and Department, Unit, University (only one, written in full).
interviews, in addition to publishing the abstracts of Complete address for correspondence, phone number, e-mail.
dissertations and theses, notes on events and subjects of Co-authors: institution to which each one is affiliated –
interest. The editors reserve themselves the right to make Department, Unit, University (only one, written in full). E-mail.
changes and/or cuts in the material submitted to the journal, Note: in case of having no institutional affiliation, the
in order to adjust it to its standards, maintaining the style and professional activity must be informed. Authors’ scientific
content. degree is not required.
All papers submitted to Interface have to follow the The names of the authors immediately below the title of the
instructions described below. text are limited to eight. In case there are more, they must
appear in a footnote.
FORM AND PREPARATION OF MANUSCRIPTS Also in a footnote, the authors need to indicate whether the
text is unpublished, whether it was the result of a grant,
SECTIONS whether it results from a master’s thesis or doctoral
Dossier - essays or thematic analytical articles, by invitation dissertation, whether there are any conflicts of interest
of the editors, resulting from original study and research (up involved and, in case of research with humans, whether it was
to seven thousand words). approved by an Ethics Committee in its field, specifying the
Articles - analytical texts or reviews resulting from original process number.
theoretical or field research on themes that are of interest to In articles with two authors or more, the individual
the journal (up to seven thousand words). contributions to the preparation of the text must be specified,
Debates - a set of texts on current and/or polemic themes also in a footnote, according to one of the models:
proposed by the editors or by collaborators and debated by Collaborators:
specialists, who expound their points of view. The editors are Model 1: “The authors worked together in all the steps of the
responsible for editing the final texts (original text: up to six paper’s production.”
thousand words; debate texts: up to one thousand words; Model 2: Author X was in charge of…..; Author Y was in
reply: up to one thousand words). charge of…; Author Z was in charge of…., etc.
Open page - preliminary research notes, polemic and/or The cover page also must include the answers to the
current issues texts, description of experiences, or relevant following questions:
information aired in the electronic media (up to five thousand 1 What your text adds to what has already been published in
words). the national and international literature.
Interviews - testimonies of people whose life stories or 2 If your manuscript uses data, which have subsidized totally
professional achievements are relevant to the journal’s scope or partially other publications of papers and/or book chapters,
(up to seven thousand words). please list these publications and inform in what aspect(s) the
Books - publications released in Brazil or abroad, in the form present text is different from the others.
of critical reviews, comments, or an organized collage of 3 Please indicate two or three referees (from Brazil or
fragments of the book (up to three thousand words). abroad) who can evaluate your manuscript. If you consider
Theses - succinct description of master’s theses, doctoral necessary, inform about researchers with whom there may be
dissertations and/or post-doctoral dissertations, containing conflicts of interest concerning your paper.
abstract (up to five hundred words). Title and keywords in The first page of the text must contain (in Portuguese,
Portuguese, English and Spanish. Access address to the full Spanish and English): the article’s full title, the abstract with
text, if available in the internet, must be informed. up to 150 words (including the keywords - up to five).
Creation - written reflections emphasizing iconographic, Observation: In case of counting the abstract’s words, the
poetic, or literary language, thus allowing formal liberty. title is excluded.
Brief notes - comments on events, meetings and innovative Footnotes - numbered, short and to be used only if necessary.
research and projects (up to two thousand words).
Letters - comments on the journal and notes or opinions on QUOTATIONS
subjects of interest to its readers (up to one thousand words). Quotations included in the text must follow the format
NOTE: in case of counting the text words, the title, the Author (capital letter only in the first letter of de author’s
abstract and the keywords are excluded. surname - even when it is in parentheses), date.
Specific cases:
SUBMITING ORIGINALS a Literal quotations of up to three lines: enclosed by
quotation marks, with no italics (Author, date, p.xx with no
INTERFACE - Communication, Health, Education accepts space between the dot and the number). Full stop after the
material in Portuguese, Spanish and English for any of its parentheses.
sections. Only unpublished papers can be submitted for b Literal quotations of more than three lines: in a paragraph
publication. Translations of texts published in another detached from the text (one enter before the quotation and
language will not be accepted. another after it), with a 4 cm indent from the left margin,
The originals must be typed in Word or RTF, using Arial 12, simple space, in a smaller font than the one used in the text,
respecting the maximum number of words defined per section without quotation marks, without italics, ending in the text’s
of the Journal. right margin. Right after, in parentheses:
All originals submitted for publication must have an abstract (Author’s surname, date, page), followed by a full stop.
and keywords relating to the topic (with the exception of Note: in quotations, the parentheses are used only to indicate
Books, Creation, Brief notes and Letters). authorship. To indicate quotation fragment, use square
Note: in the case of manuscript that include illustrations brackets: […] encontramos algumas falhas no sistema […]
(images, figures, drawings, tables or graphs), a copy of the quando relemos o manuscrito mas nada podia ser feito […].
manuscript in PDF format should also be entered into the (Fulano, Sicrano, 2008, p.56).
system, as a supplementary document, with all the c Many authors cited in sequence: from the most recent to
included illustrations properly located in the body of the the oldest, separated by semi-colon: (Pedra, 1997; Torres,
text. 1995; Saviani, 1994).
d Texts with two authors: Almeida and Binder, 2004 (in the ARTICLES FROM JOURNALS: TEIXEIRA, R.R. Modelos
instructions for authors
text body); Almeida, Binder, 2004 (in the parentheses). comunicacionais e práticas de saúde. Interface - Comunic.,
e Texts with three authors: Levanthal, Singer and Jones (in the Saude, Educ., v.1, n.1, p.7-40, 1997.
text body); Levanthal, Singer, Jones (in the parentheses). * Only the title of the journal should be highlighted in
f Texts with more than three authors: Guérin et al., 2004 (in boldface.
or out of the parentheses). ** The pages on which the article was published must be
g Documents by the same author published in the same year: indicated after the volume and number.
add small letters, in alphabetical order, after the date, without THESES AND DISERTATIONS: IYDA, M. Mudanças nas
space (Campos, 1987a, 1987b). relações de produção e migração: o caso de Botucatu e São
Manuel. 1979. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Saúde
REFERENCES Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo. 1979.
All authors quoted in the text must be listed at the end of the ARTICLES FROM EVENTS PROCEDINGS: PAIM, J.S. O SUS
text, in alphabetical order and in compliance with adjusted no ensino médico: retórica ou realidade. In: CONGRESSO
ABNT standards (NBR 6023/2002), as showed in the BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO MÉDICA, 33., 1995, São Paulo.
following examples: Anais... São Paulo, 1995. p.5.
BOOKS: FREIRE, P. Pedagogia da indignação: cartas *Only the word Anais should be highlighted in boldface.
pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Ed. Unesp, 2000. ** When the work is consulted online, the electronic address
*Only the title should be highlighted in boldface; do not must be mentioned: Available from:<...>. Access on (day,
highlilight the subtitle. month, year).
** Do not indicate the numbers of pages. *** When the work is consulted in printed material, the initial
*** Two or more references of the same author (they may be and final pages must be mentioned.
a book and an article): if they are on the same page, indicate ELECTRONIC DOCUMENTS: WAGNER, C.D.; PERSON, P.B.
with a dash from the second article/book onwards (six Chaos in cardiovascular system: an update. Cardiovasc. Res.,
continuous underscores). If they are not on the same page, v.40, p.257-64, 1998. Available from: <http://www.
the author’s name must be repeated. If it is the same author, probe.br/science.html>. Access on: Jun 20. 1999.
but with collaborators, do not use the dash. Ex.: * Only the title of the journal should be highlighted in
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à boldface.
prática educativa. 27.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. ** The authors must verify if the electronic addresses (URL)
(Coleção Leitura). cited in the text are still active.
______. Extensão ou comunicação? 10.ed. Rio de Janeiro: NOTE: if the reference includes the DOI, it must be
Paz e Terra, 1997. maintained. Only in this case (when the quotation is
**** Two or three authors must be separated by semi-colons; extracted from SciELO, the DOI is always mentioned; in other
more than three authors: the first author must be indicated, cases, not always).
followed by the expression et al. Ex.:
CUNHA, M.I.; LEITE, D.B.C. Decisões pedagógicas e ILLUSTRATIONS: Images, figures and drawings must be
estruturas de poder na Universidade. Campinas: Papirus, created as TIFF or JPEG files. Minimum resolution: 200 dpi.
1996. (Magistério: Formação e Trabalho Pedagógico). Maximum size: 16 x 20 cm, in shades of gray, with captions
FREIRE, M. et al. (Orgs.). Avaliação e planejamento: a and font Arial 9. Tables and tower graphs can be created as
prática educativa em questão. Instrumentos metodológicos II. Word files. Other kinds of graphs must be created in image
São Paulo: Espaço Pedagógico, 1997. (Seminários) programs (corel draw or photoshop).
BOOK CHAPTERS: QUÉAU, P. O tempo do virtual. In: All illustrations must be in separate files and will be inserted in
PARENTE, A. (Org.). Imagem máquina: a era das tecnologias the system as supplementary documents, with their respective
do virtual. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. p.91-9. captions and numbering. In the text there must be an
*Only the title of the book should be highlighted in boldface. indication of the place where each one of them should be
** The initial and final pages of the chapter must be indicated inserted.
at the end of the reference. NOTE: As a further supplementary document, a copy of the
Specific cases: manuscript in PDF format should be entered into the system
1 The book’s author is the same as the chapter’s author: with all the included illustrations properly located in the body
HARTZ, Z.M.A. Explorando novos caminhos na pesquisa of the text.
avaliativa das ações de saúde. In: ______ (Org.) Avaliação Submissions must be made online at:
em saúde: dos modelos conceituais à prática na análise da http://submission.scielo.br/index.php/icse/login.
implantação dos programas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1997,
p.19-28. ANALYSIS AND APPROVAL OF ORIGINALS
2 The book’s author is different from the chapter’s author: Every text will be submitted to a preliminary evaluation by
VALLA, V.V.; GUIMARÃES, M.B.; LACERDA, A. Religiosidade, the Editorial Board. If the text is approved, it will be reviewed
apoio social e cuidado integral à saúde: uma proposta de by peers (two reviewers at least). It will be returned to the
investigação voltada para as classes populares. In: PINHEIRO, author(s) if the reviewers suggest changes and/or corrections.
R.; MATTOS, R.A. (Orgs.) Cuidado: as fronteiras da In case the reviewers have divergent opinions, the paper will
integralidade. Rio de Janeiro: Hucitec/Abrasco, 2004. p.103- be submitted to a third reviewer for arbitration. The final
18. decision about the merit of the work
3 The author is an entity: BRASIL. Ministério da Educação e is the responsibility of the Editorial Board (publishers and
do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. associated publishers).
Parâmetros curriculares nacionais: meio ambiente e saúde. Publication of the article implies that the copyrights are fully
3.ed. Brasília: SEF, 2001. transferred to Interface - Communication, Health,
4 Series and collections: MIGLIORI, R. Paradigmas e Education.The partial or entire reproduction of the published
educação. São Paulo: Aquariana, 1993. 20p. (Visão do texts is prohibited without prior authorization from the
Futuro, v.1). publishers.
The texts are the responsibility of the authors and do not
necessarily reflect the point of view of the publishers or of the
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APOIO/SPONSOR/APOYO
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Tecnológico - CNPq
Faculdade de Medicina de Botucatu/Unesp
Fundação para o Desenvolvimento Médico e Hospitalar -
Famesp
Instituto de Biociências de Botucatu
Pró-Reitoria de Pesquisa/Unesp
Núcleo de Educação a Distância e Tecnologias da
Informação em Saúde – Nead/FMB
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