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APONTAMENTOS DE DIREITO COMPARADO

2009/ 2010

(Matéria para o teste teórico)

FAMÍLIA, TRADIÇÕES E CULTURAS JURÍDICAS – CONCEITOS

Conforme foi sendo exposto, os sistemas jurídicos não se encontram todos no mesmo plano,
antes existe um certo número deles que operam como centros de irradiação, a partir dos quais os
restantes se foram autonomizando, constituindo com eles como que uma família. É neste símile que
radicada a tendência para recorrer ao conceito de família jurídica a fim de designar um conjunto
de sistemas jurídicos que possuem afinidades entre si quanto a certos aspectos.
No entanto, vários autores empregam preferencialmente o conceito de tradição jurídica a
fim de designarem «qualquer conjunto de atitudes historicamente condicionadas, relativa à natureza
do Direito, ao papel deste na sociedade e na polis, à organização e ao funcionamento do sistema
jurídico, bem como ao modo pelo qual o Direito deve ser criado, estudado, aperfeiçoado e
ensinado» (Merryman/Clark/Haley). Para outros, trata-se antes de toda «a informação normativa
transmitida através das gerações» – H. Patrick Glenn, do complexo de institutos, valores e conceitos
jurídicos objecto dessa transmissão geracional. Ambas as orientações colocam o seu acento tónico
na genealogia dos sistemas jurídicos e na continuidade da sua evolução.
O conceito de cultura jurídica sofre o mesmo reparo que o de tradição jurídica, pelo menos
nas sugestões de Alan Watson ou David Nelken. A verdade é que existem diferenças muito
acentuadas entres os sistemas que integram cada uma dessas família culturais: 1) Quanto ao modo
de conceber o Direito; 2) No tocante à relevância que é conferida ao Direito na regulação da vida
social; e, 3) Relativamente aos ideais através dele prosseguidos e às técnicas e métodos por ele
adoptados. Essas diferenças retiram todo o interesse à agregação na mesma cultura jurídica de
sistemas jurídicos tão díspares.
Pode, no entanto, tomar-se a noção de tradição jurídica (e de cultura jurídica) numa
acepção diversa, maxime como uma forma típica de conceber o Direito, historicamente
encarnada em certo ou certos sistemas jurídicos. Sempre que seja partilhada por diferentes
sistemas jurídicos, uma tradição ou cultura jurídica, assim entendida, corresponderá a uma família
jurídica. Assim, não há antinomia entre os modelos de análises supracitados.

FAMÍLIAS E TRADIÇÕES JURÍDICAS – CRITÉRIOS DE CLASSIFICAÇÃO


Qual o critério com base no qual havemos de ordenar os sistemas jurídicos em tradições ou
famílias?
Critério compósito. Esse critério atende às fontes de Direito, ao método de descoberta da
solução do caso singular neles observados, aos meios de resolução de litígios disponíveis, ao
regimento de formação dos juristas e do exercício das profissões jurídicas, mas também aos
elementos formativos (religiosos, ideológicos, históricos, etc.) desses sistemas, aos conceitos
fundamentais por ele empregados e ao lugar do Direito ocupa neles como instrumento da regulação
da vida em sociedade. Importa, sobretudo, o conceito de Direito do qual se desprende o conteúdo
regulatório do sistema jurídico.
No seguimento, família jurídica é um conjunto de sistemas jurídicos dotados de afinidade
técnico-jurídica, ideológica e cultural, representativo de determinado conceito de Direito.

SISTEMAS JURÍDICOS E CIVILIZAÇÕES


Quando se fala em civilizações quer-se aludir a formas duradouras e homogéneas de
organização da vida social, vigentes em determinado espaço geográfico e assentes, além do mais,
em certas regras comummente aceites de conduta individual. O Direito é, pois, um elemento
constitutivo das civilizações e as suas fontes escritas – códigos, sentenças, manuais, etc. – contam-
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se não raro entre as mais relevantes manifestações civilizacionais.
Porém, tal não significa que os grandes modelos fundamentais da estruturação jurídica das
comunidades humanas correspondem às grandes civilizações. Por razões de várias ordens:
1. Há civilizações no seio das quais é possível discernir sistemas jurídicos fortemente
diferenciados entre si;
2. Existem civilizações que se baseiam o seu Direito no de outras, ou que se conjugam
características dos sistemas de várias civilizações;
3. Para certas civilizações, o Direito não tem a mesma relevância que assume noutras ou não
apresenta uma pujança análoga à que nelas atingiram outras expressões culturais (e.g., arte,
ciência, etc.);
4. Há nas civilizações uma perenidade que transcende, em muito, a das formas e até dos ideais
jurídicos.

FAMÍLIA ROMANO-GERMÂNICA COM BASE NOS SISTEMAS


PORTUGUÊS, ALEMÃO E FRANCÊS
FACTORES HISTÓRICOS

O Direito Romano
Compreende-se por Direito Romano o conjunto de normal e dos princípios jurídicos que
vigoraram em Roma e nos territórios sob sua administração desde a sua fundação, séc. VIII a.C.,
até, pelo menos, à queda do Império, ocorrida no séc. V no Ocidente, e no séc. XV a Oriente.

Os Direitos Germânicos
Durante a Alta Idade Média, no território do antigo Império Romano do Ocidente,
formaram-se vários reinos de origem germânica. No mesmo espaço, coexistiram populações que
continuavam a regular-se pelo Direito Romano com outras que aplicavam preferencialmente
costumes germânicos.
O termo “germânico” constitui um indicador desta comum, mas remota, influência dos
direitos germânicos da Idade Média.

O Cristianismo
O Cristianismo ganha preponderância pelo facto de nele repousar a génese do Personalismo
Jurídico, que constitui uma das características fundamentais dos Direitos integrados nesta família.
A dignidade da pessoa humana foi expressamente reconhecida por vários sistemas jurídicos
integrados na família romano-germânica como próprio fundamento do Direito.
Desse princípio fluem múltiplas normas que integram estes sistemas jurídicos. Tal o caso,
das que reconhecem personalidade jurídica a todas as pessoas humanas e das que consagram os
direitos de personalidade (direitos à vida, integridade física e moral, identidade pessoal, etc.).
O princípio da Igualdade, noção com raiz cristã, que o Direito romano desconhecia.

A recepção do Direito romano


A recepção do Direito Romano não foi uniforme, nem contemporânea nos diferentes países
europeus. Sendo Direito subsidiário, a extensão e intensidade da sua aplicação estava dependente da
vigência de outras fontes.
Em Portugal, a unidade política, o exercício do poder legislativo pelo rei e a “codificação”
empreendida através da Ordenações, a partir do séc. XV, deixaram para as leges imperiales um
papel que, apesar de importante, foi inferior ao que se verificou em espaços onde era menor a
densidade de outras fontes.
Em França, coexistiram, durante o Antigo Regime, dois sistemas jurídicos:
- o pays du droit écrit, a sul, onde à vigência do Direito Visigodo romanizado sucedeu a

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predominância do Direito Romano justinianeu;
- o pays des costumes, a norte, onde a principal fonte de Direito continuou a ser formada por
costumes de origem germânica, que sobre compilações a partir do séc. XV.
Na Alemanha, a recepção deu-se mais tarde (sec. XV), mas foi mais extensa e intensa. Os
principais factores que contribuíram para tal foram: (1) Ausência de um poder central, com a
consequente pulverização política e jurídico-normativa; (2) A ideia de que a vigência do Direito
Romano se justificava pela pretensa continuidade do Império Romano no Sacro Império Romano-
Germânico. Por isso, se escreve que, na Alemanha, a recepção se faz ratione Imperri (em razão do
Império) e que, nos outros países, foi determinada imperio ratione (por força da razão).

O cisma de 1504. A Reforma protestante e a influência luterana. A Contra-Reforma


Católica.
A partir da Reforma protestante da Contra-Reforma católica do séc. XVI, deixa de se pode
falar na Europa de uma única mundividência cristã, que possa servir de fundamento de aferição da
legitimidade dos regimes jurídicos positivos.
A radical separação entre o mundo espiritual e o terreno, que constitui o cerne da doutrina
dos «dois reinos» de Lutero. O Direito era tido por Lutero como coisa meramente terrena e
religiosamente indiferente, algo de não essencial.
Sendo uma das preocupações centrais da teologia luterana, o Casamento deixa de ser um
sacramento e vínculo perpétuo, para passar a constituir um contrato aberto a leigos e clérigos. O
status assim criado podia ser dissolvido pelo divórcio. A partir de Lutero, o modo de conceber uma
das instituições nucleares da vida social deixou de ser o mesmo em países católicos e nos
protestantes.
A Reforma abriu o caminho ao surgimento de uma nova escola de pensamento jurídico –
usus modernum protestantorum. Este revelou-se hostil ao Direito Canónico e à recusa do Direito
Romano como ratio scripta.

A Revolução Francesa e as ideias de liberdade e fraternidade


A Revolução Francesa é um facto histórico decisivo para os elementos internos
convergentes das ordens jurídicas integradas nesta família de Direitos. No chamado ‘período
intermédio’ (entre 1879 – DDHC – e 1804 – promulgação do C.Civil francês), verificaram-se
profundas alterações no Direito francês, a maior parte das quais se inseriu de modo estável no
sistema jurídico onde surgiram.
A estrutura e funcionamento das instituições constitucionais ficaram marcados pelo princípio da
separação de poderes. Principalmente pela sua influência nas competências legislativas e na relutância em
reconhecer qualquer eficácia normativa à função jurisdicional;
1. Reflexo de um certo entendimento sobre soberania popular, a unidade política e a centralização
oferecem condições para a criação de sistemas integrados e hierarquizados nos domínios da
estrutura político-administrativa e judiciária;
2. A ideia de liberdade revelou-se na convicção de que só a lei exprime a vontade geral. Por ser
vindoura de uma assembleia representativa, a lei é o melhor vínculo das ideias revolucionárias e,
como tal, adquire o primado entre as fontes de Direito;
3. As ideias de liberdade e igualdade sustentam a propriedade privada, o contrato e a igualdade
sucessória como pilares do Direito patrimonial privado.

A codificação
O movimento codificatório (compilação sistemática, sintética e científica de normas legais)
foi a fórmula encontrada para assegurar a concentração e divulgação da lei e o instrumento
preferido para lhe conferir primazia entre as fontes de Direito.
Em França, foram promulgados os códigos: Civil (1803); de Processo Civil (1807); do
Comércio (1807); Penal (1811); de Instrução Criminal (1811).
Em Portugal, foram aprovados sucessivamente os códigos: Comercial (1833),
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Administrativo (1836), Penal (1852), Civil (1867) e de Processo Criminal (1895).
Na Alemanha, surgiram os códigos: Penal (1871), de Processo Civil (1877), de Processo
Penal (1877), Civil (1896) e Comercial (1897).

FONTES DE DIREITO

Elenco e Hierarquia
É pacífico que a lei tem o primado entre as fontes de Direito, tanto pela sua importância
como pela prevalência hierárquica. A opinião ainda dominante em Portugal e em França vai mesmo
no sentido de que a lei é fonte exclusiva de criação de Direito. Os juristas alemães, pelo contrário,
aceitam geralmente que eficácia equivalente conferida ao costume.
A controvérsia sobre o valor da jurisprudência e da doutrina desenrola-se em termos
próximo nos três sistemas jurídicos, com tendência para a sua qualificação como fontes mediatas.

A Lei
Em qualquer dos sistemas jurídicos, há uma Constituição escrita, colocada no topo da
hierarquia das fontes de Direito: Constituição da República Federal da Alemanha de 1949 (alterada
pelo Tratado de Unificação de 1990), Constituição francesa de 1958 e Constituição portuguesa de
1976.
Todas elas incluem:
1. As regras fundamentais sobre a organização do poder político, baseado numa concepção de
democracia representativa;
2. Um elenco de Direitos Fundamentais (que na CRF aparece por remissão para a
Declaração dos Direitos do Homem).
As principais diferenças consistem:
1. Na estrutura unitária dos Estados português e francês em contraposição com a
estrutural federal da RFA, onde existem as Constituições do Länder.
2. No modelo semipresidencial adoptado pelas Constituições francesa e portuguesa em
comparação com a maior incidência parlamentar da CRFA;
3. Na caracterização da RFA e de Portugal como Estados de Direito social em
comparação com o pendor clássico e liberal da CRF.

Quanto ao controlo da constitucionalidade, os Direitos português e alemão têm em


comum:
1. Competência de fiscalização concreta por parte da generalidade dos tribunais;
2. A existência de jurisdição constitucional com competência para decidir, em abstracto, quer
sucessiva ou preventivamente, ou em casos concretos de constitucionalidade.
Os dois sistemas divergem:
1. Em Portugal só existe um Tribunal Constitucional. Na Alemanha, para além do Tribunal
Constitucional Federal, há também, nos Länder, tribunais constitucionais com competência
para o controlo de constitucionalidade de actos regionais;
2. Enquanto os tribunais comuns portugueses têm competência para conhecer e decidir sobre
questões de inconstitucionalidade, os tribunais comuns alemães apenas lhes cabe admitir o
incidente e remeter as decisões para os tribunais constitucionais.
Sob este aspecto, por força da concepção de Separação de Poderes, na França o
entendimento é diferente:
 Não é atribuída competência aos tribunais para conhecer questões de inconstitucionalidade;
 A fiscalização da constitucionalização exerce-se apenas em abstracto, através de um órgão
político (o Conselho Constitucional), e é limitada a controlo preventivo e circunscrito aos
domínios de fiscalização orgânica e da garantia dos Direitos fundamentais.
Quando à Competência Legislativa: em qualquer dos sistemas jurídicos as assembleias
parlamentares são referidas como órgãos legislativos por excelência.
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O Costume
O costume assume, entre os sistemas em estudo, escassa importância como fonte de
Direito.
Em França, a lei de aprovação do Code Civil revogou expressamente o direito
consuetudinário anterior.
Em Portugal, a tradição do positivismo legalista emerge no Código Comercial e no Código
Civil, onde se revela verdadeira “fobia” ao costume.
Na Alemanha, a Escola Histórica deixou raízes favoráveis ao costume. O art. 2.º da Lei de
Introdução ao BGB, dando valor de lei a “qualquer normas jurídicas”, parece reconhecer o costumo
como fonte de Direito, ainda que por equiparação à lei, implicitamente tomada como paradigma de
expressão do Direito.

A Jurisprudência
O valor da jurisprudência como fonte de Direito é, nestes três países, matéria de discussão e
de opiniões divididas. As principais orientações são as seguintes:
1. A jurisprudência não é fonte imediata de Direito.
2. Quando uniforme, a jurisprudência constitui precedente meramente persuasivo, mas, em
certas matérias, pode ser considerada como fonte de Direito, na medida em que interpreta,
desenvolve ou completa normas legais;
3. A jurisprudência constante tem o valor de costume jurisprudencial.

O efectivo papel da jurisprudência


Em França, encontram-se exemplos de verdadeiras inovações jurisprudenciais. Limitando
os exemplos ao Direito Privado, o caso mais citado é a responsabilité du fait des choses
(responsabilidade civil extraconjugal decorrente da guarda de coisas), instituto que foi, quase na
totalidade, criado e desenvolvido pela jurisprudência a partir do célebre arrêt Jeand’heur proferido
em 1930 pela Cour de Cassation.
Foi com base nas decisões dos tribunais que as dispersas regras legais encontraram plena
coerência de princípio geral.
Na Alemanha, o exemplo clássico de uma decisão contra legem é a Aufwertungsurteil, que
em 1923 recusou a regra legal do nominalismo para compensar os efeitos da desvalorização
galopante que se seguiu à 1.ª Grande Guerra.
Na integração dos conceitos indeterminados contidos nas várias cláusulas gerais do BGB
também se revela a função evolutiva da jurisprudência como fonte de Direito.
Em Portugal, um lugar próprio era reservado, até 1995, aos assentos, valendo como
“doutrina com força obrigatória geral”. Pode-se, no entanto, inquirir se força equivalente não
subsiste por força dos acórdãos do STJ para uniformização e fixação de jurisprudência. Entre nós,
para reconhecer o Direito é quase sempre necessário conhecer as decisões dos tribunais, em especial
dos tribunais supremos.
Perante este quadro cabem as seguintes conclusões:
 A jurisprudência é importante enquanto meio indispensável para o conhecimento do Direito real e
sua adequação à evolução das sociedades;
 As decisões dos tribunais portugueses, franceses e alemães não constituem precedente
vinculativo. A jurisprudência vale como precedente persuasivo, que é tanto mais forte quanto mais
elevada for a posição hierárquica do tribunal;
 Os tribunais destes países têm decidido em conformidade com regras de origem jurisprudencial
que se não contêm nas fontes legais e que contrariam as regras legais. Nestes casos, há verdadeira
inovação jurisprudencial.

A Doutrina
A doutrina constitui um elemento central de todos os sistemas jurídicos romano-germânicos.
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Apesar de ser considerada apenas como fonte mediata de Direito, a doutrina desempenha um
relevante papel na construção e compreensão dos sistemas jurídicos, nas reformas legislativas e
tampem no modo de aplicação do Direito.
Afinidades entre a doutrina alemã e portuguesa: as obras mais marcantes têm origem
universitária;
Diferenças entre a doutrina alemã e portuguesa: A quantidade e densidade de obras
doutrinárias, na Alemanha, é superior a Portugal; A doutrina alemã constitui um edifício mais
fechado sobre si mesmo, bastante cerrada a direitos estrangeiros e ao Direito comparado. Coisa que,
em Portugal, não se verifica tanto; Na Alemanha, a doutrina atenta bastante à jurisprudência. Em
Portugal, a doutrina influencia, sobretudo, o modo de decidir dos tribunais.
Em França: A produção doutrinária é bastante elevada; Denota-se criatividade e apurada
construção teórica de algumas obras; Proliferam textos de índole prática; O discurso centra-se na
exegese da lei e no comentário casuístico da jurisprudência; São escassas as referências a Direitos
estrangeiros.

A descoberta do Direito aplicável

Interpretação da lei
A metodologia de interpretação da lei é resultado de construção doutrinária. Os cânones de
interpretação da lei se mantêm imutáveis desde a formulação que Savigny fixou em obra no séc.
XIX.
O método é pluralista, sendo relevantes os seguintes factores:
 A “letra da lei”, a que se refere o elemento literal ou gramatical;
 O “espírito da lei” ou elemento lógico, por sua vez se divide nos elementos histórico, teleológico
e sistemático.

Integração da lei
Em qualquer dos Direitos em análise, a aplicação analógica é o meio privilegiado de
integração de lacuna da lei. Pouco pacífica é admissibilidade de invocação de princípios gerais de
Direito.
No Direito português, prevê-se ainda aplicação de uma norma hipotética criada “dentro do
espírito do sistema” legislativo (art. 10.º/3 do CCP). No Direito alemão, o costume é também
admitido como forma de preenchimento de lacunas.

Princípios de Direito
Os princípios de Direito devem ser considerados como expressão normativa das grandes
linhas de orientação do ordenamento jurídico e dos valores nele imperantes. A referência a
princípios é hoje uma constante na actividade dos tribunais portugueses, alemães e, apesar do culto
da lei escrita, nos franceses.
Nem todos os princípios jurídicos são, decerto, imediatamente aplicáveis aos casos
concretos: alguns carecem de uma concretização na lei ou na jurisprudência.
Não se pode deixar de reconhecer que os princípios sejam modo de formação e revelação do
Direito.

UMA FAMÍLIA JURÍDICA LUSÓFONA?


Há quem defenda a criação de uma família jurídica lusitana ou lusófona, dentro da romano-
germânica. Segundo o professor de Heidelberga Erik Jaime, tal autonomização jurídica justificar-se-
ia pela originalidade de certa soluções de Direito português (e.g., matérias de regimes de bens do
casamento) e pela influência que essas soluções tiveram no Direito de outros países, mormente do
brasileiro e dos países africanos de língua portuguesa (os PALOP). Outros autores, sublinham a
convergência em certos aspectos fundamentais dos sistemas constitucionais lusófonos.
Mas, bastará isso para admitir a autonomização de uma família jurídica lusófona? Não, por três
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ordens de razões:
1. O Direito vigente nos países lusófonos não traduz uma concepção própria do Direito, a qual
é, de acordo com o critério supra formulado, um requisito imprescindível;
2. Fazem-se sentir, hoje, inúmeras forças centrífugas que operam em sentido contrário à
inserção dos respectivos sistemas jurídicos numa única família jurídica. Entre elas avultam:
No caso de Portugal, a integração europeia; No caso do Brasil, a integração no Mercosul e a
proximidade económica, geográfica e jurídica relativamente aos EUA; e nos PALOP, a
integração na Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), de que
são membros Cabo Verde e Guiné-Bissau, na União Económica e Monetária Oeste-África
(UEMOA), de que é membro a Guiné-Bissau, e na Comunidade de Desenvolvimento da
África Austral (SADC), de que é parte Angola e Moçambique;
3. Naqueles países africanos o Direito consuetudinário assume uma importância sem paralelo
em Portugal.
Contudo, não se quer dizer que não se possa falar de uma comunidade jurídica, entendida
como uma realidade simultaneamente mais restrita (porque se trata de uma comunhão de
institutos, valores e soluções e não uma particular concepção de Direito) e mais profunda do que
uma família jurídica (porque esta comunidade reflecte laços culturais, sociais e afectivos mais
intensos do que aqueles que unem os membros de várias famílias jurídicas).

O DIREITO DE “COMMON LAW”


FACTORES DETERMINANTES DA AUTONOMIZAÇÃO DA FAMÍLIA JURÍDICA
Entre os factores que historicamente determinaram a autonomização destacam-se:
i) A ausência em Inglaterra de uma recepção em sentido próprio do Direito Romano.
Embora a Inglaterra tenha pertencido ao Império Romano, a aplicação do Direito
Romano nos tribunais ingleses foi rejeita pelos juristas e proscrita por decisão real.
ii) A autonomização da família jurídica de Common Law deve-se à continuidade o seu
Direito, traduzida, por um lado, na subsistência de certos institutos de raiz medieval
e, por outro lado, na ausência de rupturas institucionais como a que foi provocada
pela revolução francesa. Ao contrário da revolução francesa, as revoluções inglesas
de seiscentos não se fizeram para subverter a ordem social, política e religiosa da
época, mas antes para preservá-la.
iii) A relevância que assumiram na modelação do espírito do common law duas
correntes de pensamento que têm origem em obras de filósofos ingleses: o
liberalismo, encontrou expressão fundamental em Locke (1632-1704), e que
proclamou o consentimento dos governos como fundamento precípuo da
legitimidade do Governo e a vida, a liberdade e a propriedade como direitos
humanos naturais; e o utilitarismo, fundado por Jeremy Bentham (1748-1832), que
fundou toda a acção humana no princípio da utilidade, gizando a base em que
assentariam posteriormente a modelação jurisprudencial de diversos institutos da
Common Law;
iv) A expansão colonial inglesa, que serviu de veículo à difusão do Direito inglês
noutros continentes. Uma diferença marca a difusão desta família em relação
à romano-germânica: a disseminação do Common Law inglês cingiu-se aos países e
territórios onde a língua inglesa foi adoptada como língua oficial.

DIREITO INGLÊS

Evolução
Período anglo-saxónico (séc. V d.C. - 1066)
As ilhas britânicas foram colónia romana até ao princípio do séc. V d.C. O Direito Romano
foi erradicado pelas sucessivas invasões de anglos, saxões e dinamarqueses. A principal fonte de
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direito voltou a ser o costume e, a partir da conversão ao cristianismo, finais do séc. VI, também o
direito eclesiástico se aplicava a algumas situações jurídicas. A descentralização do poder política, a
escassez de leis escritas e a predominância do direito consuetudinário impediram que neste período
existisse um Direito comum a toda a Inglaterra.

Formação do common law na Inglaterra (1066 - finais séc. XV)


As origens do direito inglês moderno remontam à conquista normanda (1066). Pela ausência
de um Direito comum, esses tribunais terão, na realidade, aproveitado algumas regras
consuetudinárias e outras inspiradas nos Direitos Romano e Canónico. Mas, ter-se-ão
principalmente guiado por critérios de razoabilidade e bom senso. O precedente, i.e., a tendência
para decidir um litígio actual do mesmo modo que um caso anterior semelhante, estabilizou e deu
coerência ao Direito aplicado. O common law é, assim, Direito jurisprudencial e não Direito
consuetudinário.
Os Direitos só eram reconhecidos pelos tribunais se estivesse previsto um processo para a
sua efectivação. A acção iniciava-se por uma petição ao Chacellor (conselheiro do Rei). Era
emitido, mediante remuneração, um writ que consistia numa carta emitida em nome do Rei e
dirigida ao sheriff (entidade policial do condado), contendo uma breve descrição da matéria de
litígio e ordenando a comparência do réu perante o juiz. A cada writ correspondia uma determinada
e rígida form of action, em que se repetia o encadeamento da marcha do processo e estava prefixado
o conteúdo da decisão desse provimento à acção. Caso não se escolhesse o writ apropriado ao caso,
o pedido seria improcedente. A partir do século XIII, os writs passaram a ser registados. O sistema
passou a admitir alguma flexibilidade através da aplicação de um certo writ a casos análogos
àqueles para que fora originalmente concebido (writs i consimili casu) ou da ficção de semelhança
fáctica atribuída a situações efectivamente diferentes (actions on the case).

O desenvolvimento do common law e a formação da equity (finais sec.XV – 1832)


O common law foi-se consolidando e adquirindo a natureza de um sistema coerente de
normas jurídicas. Porém, apresentava insuficiências:
1. O formalismo, que, por um erro técnico, podia comprometer o êxito da acção;
2. O âmbito restrito de soluções;
3. A impermeabilidade às influências dos mais poderosos.
No decurso do séc. XV ressurgiram as petições dirigidas directamente ao Rei. Como os
tribunais continuavam a decidir em nome do soberano e este considerava-se o detentor do
poder jurisdicional residual, tais petições eram encaminhadas ao Chancellor, eclesiástico,
que desfrutava de grande confiança e influência perante o Rei. Apesar de conhecedor do
common law, o Chancellor começou por resolver estes caos de acordo com a equidade
(equity). A autonomia do conselheiro como juiz foi-se tornando cada vez maior, que, nos
finais do séc. XV, estava criado um novo tribunal real, a Court of Chancery, diferentes dos
demais pela natureza e fonte das decisões.
A equity deixa de ser verdadeira equidade para constitui um sistema de regras formadas a
partir do precedente. As diferenças entre a equity e o common law fazem-se sentir pela origem
equitativa e inspiração religiosa do primeiro.
O sistema jurídico inglês passa a ser dualista, pela coexistência de regra de common law e
regras de equity, geradas e aplicadas em tribunais diferentes, sem meio de compatibilização. A partir
de 1616, com a intervenção do rei Jaime I, que determinou o reconhecimento das regras aplicadas
pelo Tribunal da Chancelaria, a equity foi aceite como sistema complementar do common law.

O período moderno (a partir de 1832)


Uma importante reforma judiciária é iniciada em 1832 através de sucessivos Acts of
Parliament. As alterações de maior relevo incidiram sobre:
1. Os Tribunais Reais foram reorganizados, constituindo-se um único, o Supreme Court of
Judicature, formado pelo Court of Appeal e pelo High Court of Justice.
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2. Institucionalizou-se o Appellate Commitee da Câmara dos Lordes.
3. Foi eliminada a distinção entre tribunais de common law e de equity.
4. Procedeu-se à reforma do sistema de writs, através da adopção de um só writ of summons e
da abolição das forms of action.
Crescente relevância da legislação, já que, anteriormente, a jurisprudência era fonte de
Direito quase exclusiva. Foram, contudo, (1) as necessidades da política do Estado Social que,
após a 2.ª Guerra Mundial, impuseram a via legislativa como instrumento insubstituível para a
reforma de certas instituições social, e a adesão do Reino Unido à CEE, em 1973, tem
contribuído para o aumento dos textos legais, visto que só por esta via é possível proceder à
transposição das directivas comunitárias.

Organização judiciária
A estrutura dos tribunais ingleses desenha-se, não em pirâmide, mas em T invertido: a base é
preenchida por um elevado número de “tribunais inferiores” (os county courts e os magistrates’
courts), e, na haste, por tribunais superiores, ordenados em três escalões hierárquicos com uma
única sede em Londres e com jurisdição em todo o território.
Os tribunais superiores subdividem-se em:
1. House of Lords (tribunal Appeal Commitee, composto por 11 Lordes), que tem natureza de
última instância de recurso das decisões de todos os tribunais;
2. Judicial Commitee of Privy Council, composto pelos mesmo membros do Appeal Commitee, e
que emite pareceres não vinculativos em relação a decisões dos tribunais das Ilhas do Canal, da
Ilha de Man, das subsistentes colónias inglesas e de alguns países independentes que
pertenceram à Commonwealth (e.g, Nova Zelândia, Singapura e Gâmbia);
3. Supreme Court, que compreende o Court of Appeal (constituído pela Civil Division e pela
Criminal Division), o High Court of Justice (analisa questões de 1.ª instância que não sejam
competência dos tribunais inferiores e questões de recurso de algumas questões; constituído pela
Chancery Division, Família Division e Queen’s Bench Division) e o Crown Court (competência
criminal, julgando em 1.ª instância os crimes mais graves e, em recurso, questões menos graves.

Fontes de Direito
Na família common law é comum separem-se as fontes em “principais” e “subsidiárias”.
Sendo que as principais são a lei (statute, statutory ou legislation) e a jurisprudência (case
law), e as subsidiárias o costume (custom) e a doutrina (doctrine, books of authority).
Actualmente, a distinção entre equity e common law continua a ser critério de divisão no
Direito inglês, um pouco como o Direito Público vs Direito Privado na família romano-germânica.
O princípio de compatibilização das dois sistemas está assegura pelo princípio, segundo o
qual, a equity complementa e aperfeiçoa o common law; e, pela possibilidade de aplicação, pelos
tribunais no mesmo caso, de regras dos dois sistemas.

A jurisprudência
A dita case law, unwritten law, é, em Inglaterra, o modo “normal” de produção e revelação
de regras jurídicas (principal fonte de Direito).
Vigora, por efeito, o princípio do precedente vinculativo, ou stare decisis, segundo o qual
todos os tribunais se encontram obrigados a seguir as decisões proferidas, noutros casos com
os mesmos factos relevantes, pelos tribunais situados acima deles hierarquicamente, estando os
próprios tribunais de recurso, exceptuando a Câmara dos Lordes, vinculados às suas decisões
anteriores.
O valor do stare decisis é diferente do que aquele que lhe é conferido nos sistemas
romano-germânicos, por dois motivos: (1) No Commo Law inglês, o precedente tem autoridade per
si, mesmo que o tribunal, perante o qual é invocado, possa aduzir uma razão válida para não o
aplicar no caso sub judice. Nos Direitos continentais, se o precedente pode ser criticado e, por
conseguinte, afastado se demonstrado que enferma de erro; (2) Nos Direitos continentais, a
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autoridade do precedente judicial assenta na repetição dos julgados, sendo insusceptível de operar
como facto normativo uma única decisão sobre uma questão contestada.
Isto acontece, essencialmente, por três motivos: (i) a necessidade de certeza da
jurisprudência, agudamente sentida na Inglaterra, em virtude de, os tribunais ingleses, não operarem
com o respaldo de códigos, como aqueles em que se apoiam os tribunais dos sistemas romano-
germânicos; (ii) O carácter altamente centralizado da organização judiciária inglesa, que favorece a
formação e a efectiva observância de precedentes vinculativos; (iii) A diferente posição dos juízes
ingleses, que gozam, pelas razões atrás apontadas, de um autoridade pessoal de que os seus
homólogos continentais, em geral, não desfrutam.
O stare decisis não significa, todavia, que os juízes, ao julgarem um caso, estejam
vinculados a tudo o que se declarou numa sentença anterior sobre um caso igual ou semelhante. Nas
sentenças inglesas há que distinguir quatro elementos:
1. Os factos provados;
2. A ratio decidendi, ou seja, a razão de decidir. Argumento(s) jurídico(s) formulado(s) pelo
tribunal, que foram determinantes para a resolução em certo sentido do caso sub judice;
3. Os obter dicta. Quais proposições jurídicas aduzidas pelo tribunal, que não hajam sido
decisivas para o julgamento do caso; e,
4. A decisão propriamente dita.
Só as rationes decidendi constituem precedentes vinculativos e têm, por isso, de ser
observadas em casos posteriores. Os obter dicta não obrigam para o futuro.
A vinculação a um precedente depende, ainda, deste emanar do próprio tribunal que o emite
ou de um tribunal hierarquicamente superior.
As sentenças inglesas são constituídas por um conjunto de pareceres individuais (speeches
ou opinions), formulados em separado por cada um dos juízes. A decisão do caso corresponde ao
sentido maioritário desses pareceres. O sistema favorece a emissão e a publicação de votos de
vencido. As sentenças tende a ser bastante extensas e minuciosas, ao que não será estranha a
circunstância de estas declarações amiúde constituírem fontes de Direito novo.
Parece irrecusável que os juízes ingleses criam novas regras, mesmo quando se limitam a
aplicar a novas categorias de situações as que estavam enunciadas em precedentes anteriores.
Mesmo nos leading cases (i.e., precedentes que modificam o Direito anterior) observa-se a
tendência dos tribunais para fundamentarem as novas soluções em casos julgados anteriormente.
Em suma, o precedente é constitutivo porque a regra nele formulada ainda não fora explicitado;
mas, é declarativo sempre que essa regra esteja apenas formulada de forma implícita.
Qual o fundamento da força vinculativa do precedente?
1. Salvaguardar dois valores: segurança jurídica e liberdade individual. A fim de que cada
pessoa possa prever quais os efeitos das suas condutas e organizar a sua vida em
conformidade com essa previsão, os casos iguais têm de ser decididos de modo igual. O
precedente vinculativo é um meio de tutelar a confiança e uma condição do exercício da
autonomia privada;
2. Maior adequação do Direito às necessidades sociais, proporcionada pela jurisprudência: o
Direito desenvolve-se à medida que os problemas postos pela convivência em sociedade
efectivamente o requerem e tendo sempre presentes as consequências da aplicação das novas
regras às situações concretas da vida;
3. A selecção dos juízes, segundo critérios de mérito de entre juristas altamente qualificados e
experientes, torna exequível a criação de Direito através de precedente.
Não obstante, o sistema inglês apresenta alguns inconvenientes. Entre eles sobressai o
risco do próprio stare decisis impedir o desenvolvimento do Direito.

A Lei
Tradicionalmente, a lei (statute law ou written law) não tem em Inglaterra a mesma
relevância que possui nos sistemas romano-germânicos.
Nos últimos anos, a lei vem assumindo importância crescente, principalmente em virtude da
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integração do Reino Unido na União Europeia. As leis mais importantes são os acts of Parliament.
As codificações ligam-se à necessidade de um Direito comum a todo o território de dado país, ora,
na Inglaterra, o Direito comum formou-se relativamente cedo, por acção dos tribunais reais. Tão-
pouco de encontra na Inglaterra uma Constituição como aquela que é considerada pelos países
continentais. A Constituição britânica é antes um agregado de regras constantes de diversas fontes,
algumas delas escritas (Magna Carta de 1215, Petição de Direito de 1628, a lei de Habeas Corpus
de 1679, a Declaração de Direitos de 1689 e o Acto de Estabelecimento de 1701), outras não. No
conceito de lei incluem-se os regulamentos administrativos (delegated ou subordinate legislation).
A técnica legislativa também é diferente. Não se privilegiam a abstracção nem os conceitos
gerais, mas os preceitos legais minuciosos, extensos e até prolixos.
Em caso de conflito entre a lei e a jurisprudência prevalece, não obstante, a lei. Uma
sentença não pode revogar um preceito constante num Acto f Parlieament; mas este pode modificar
um precedente.
Não há, por outro lado, controlo da constitucionalidade das leis pelos tribunais: o princípio
da soberania do Parlamento, consagrado pela Revolução Gloriosa, é levado às últimas
consequências, tendo, este órgão, o «direito de fazer ou desfazer qualquer lei»; além de que «não é
reconhecido pelo Direito inglês a qualquer pessoa […] o direito de revogar ou anular as leis do
Parlamento». A censura sobre as leis do Parlamento exerce-se, assim, no momento da sua eleição.

O Costume
O Common Law baseia-se largamente nos costumes locais, que já vigoravam à data da
ocupação normanda. A fim de ser aplicado pelos tribunais ingleses, o costume tem de obedecer a
quatro requisitos:
1. Ter vigorado ininterruptamente durante largo período de tempo;
2. Ser aceite como obrigatório pelos seus destinatários;
3. Ser compatível com outros costumes;
4. Ser razoável.

Doutrina
A doutrina não é tida como fonte de Direito em Inglaterra; nas suas sentenças, os tribunais
raramente citam obras doutrinais, pelo menos de autores contemporâneos; são antes as obras
doutrinárias que se baseiam nas decisões jurisprudenciais a fim de exporem o Direito vigente.

Tratados e outras fontes de Direito Internacional


Os tratados internacionais não passam a integrar, mediante ratificação, a respectiva ordem
interna; não são directamente aplicáveis, por força do princípio da soberania do Parlamento, pelos
tribunais ingleses: é necessária uma lei do Parlamento que os transforme em Direito interno. As leis
prevalecem, se incompatíveis, sobre os tratados internacionais.
Porém, o Direito Internacional consuetudinário é objecto de uma recepção automática.

Actos de Direito Comunitário


Pelo Tratado de Adesão do Reino Unido à Comunidade Europeia, de 1972, o Parlamento
inglês delegou nos órgãos comunitários competentes o poder de legislarem nas matérias abrangidas
por esse Tratado. Assim, a legislação comunitária é directamente aplicável no Reino Unido.

Método Jurídico

Aplicação do stare decisis ao caso particular

Se nos sistemas romano-germânicos é da norma que é fornecida a solução para o caso, no


caso inglês o ponto de partida é distinto:
Por um lado, a determinação do teor do Direito aplicável ao caso singular não pode ser feita
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independentemente dos factores. As normas jurisprudenciais não se encontram enunciadas de modo
geral e abstracto: elas não existem à margem das situações de facto que lhe dão origem.
Por outro lado, a aplicação da ratio decidendi de um caso anterior a um caso novo depende
da semelhança dos factos relevantes em ambos os casos.
Enquanto que no sistema romano-germânico existe geralmente um juízo subsuntivo, no
Common Law inglês é fundamentalmente na base da indução e da analogia que se desenvolve a
solução do caso sub judice, pois primeiro a regra tem que ser induzida de uma ou mais decisões
proferidas anteriormente, que possuam analogia com ele.

Regras sobre a interpretação das leis


Tradicionalmente, a interpretação das leis atinha-se, na Inglaterra, muito mais à letra dos
seus preceitos do que nos sistemas romano-germânicos: tal a consequência da literal rule, conforme
a qual as palavras constantes das leis deviam ser tomadas no seu significado comum,
independentemente da intenção do legislador. Na Inglaterra, a interpretação das leis era
frequentemente restritiva, daí a tentativa do legislador legislar de forma muito precisa, dificultando
a interpretação restritiva pelos tribunais. A lei, dizia-se, vale por si própria, sendo de interpretação
objectiva e indiferente aos antecedentes e às motivações do legislador.
Contemporaneamente, surgiram na jurisprudência e na lei inglesas outras regras
interpretativas.
Observa-se uma certa evolução no sentido de atribuir maior relevância aos elementos
teleológico e histórico na interpretação da lei.
O princípio de stare decisis aplica-se às decisões interpretativas. As sentenças dos tribunais
superiores que interpretem regras legais constituem precedentes que vinculam os demais tribunais.
O Direito legislado encontra, aqui, uma forma de integração no Common Law.

DIREITO NORTE-AMERICANO
Formação

Colonização inglesa e recepção do Common Law


Os Estados Unidos formaram-se a partir das 13 colónias britânicas da América do Norte, as
quais, por uma declaração subscrita em 4 de Julho de 1776, se proclamaram Estados livres e
independentes. Estes novos Estados pretendiam-se inovadores nas formas e nos princípios. O
Common Law inglês continuou a vigorar neles após a independência, tendo sido objecto de uma
recepção material.
Os conceitos e princípios fundamentais do Direito dos EUA são ainda hoje os do Direito
inglês: ideias como o governo limitado e representativo e de rule of law, o princípio stare decidis, a
distinção entre Common Law e Equity, a relevância conferida ao júri no julgamento de certas causas
civis e criminais, etc. Por si só, estes traços justificam a integração do Direito dos EUA na família
de Common Law.
Dentro da família jurídica de Common Law pertence hoje ao Direito dos EUA uma certa
autonomia, revelando uma aproximação aos sistemas jurídicos romano-germânicos (mais
exponencial que destes em relação ao Direito inglês).

Revolução americana e o constitucionalismo


A Constituição de 1787 consagrou um sistema de governo assente em 4 princípios:
1. Princípio Republicano, que surge em contraponto ao sistema monárquico;
2. Princípio da Separação de Poderes, os quais foram repartidos por 3 ramos de Governo que
se controlam reciprocamente – checks and balances:
i) Poder legislativo – atribuído ao Congresso, que compreende duas câmaras:
o Senado (com dois senadores por Estado, eleitos por 6 anos); a Câmara dos
Representantes (435 membros, distribuídos pelos Estados de forma
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proporcional em relação à sua população; eleitos por 2 anos);
ii) Poder Executivo – confiado ao Presidente, que é Chefe de Estado e de
Governo. Eleito por 4 anos por um colégio eleitoral com elementos federais e
nacionais;
iii) Poder Judicial – pertence ao Supremo Tribunal e aos tribunais inferiores
que o Congresso definir, sendo os respectivos juízes investidos vitaliciamente
nas suas funções.
3. Princípio Federal, tido como condição da aceitação pelos Estados membros da sua pertença
a uma União;
4. Princípio Democrático, através do qual se sublinha que a soberania reside na nação.

Características gerais

Federalismo
Os EUA compreendem 50 Estados, agregados num União, e um Distrito Federal. Cada
Estado tem uma organização política análoga à federação: poder legislativo pertence a uma
assembleia bicameral; poder executivo cabe a um Governo eleito; o poder judiciário aos tribunais
estaduais. Na repartição entre os Estados e a federação observa-se o princípio de que todos os
poderes que não hajam sido transferidos pela Constituição para órgãos federais se mantêm na
titularidade dos órgãos estaduais. No entanto, o Direito federal prima sobre o Direito estadual.

Complexidade do sistema jurídico


Decorre do federalismo, existindo, dentro do sistema jurídico dos EUA, os níveis federal e
estadual. O primeiro inclui a Constituição e as leis federais. O segundo abrange 50 Direitos
estaduais diferentes.
Aos Direitos federal e estadual acrescem os ordenamentos próprios dos territórios norte-
americanos de Porto Rico, Guam e Ilhas Virgens, bem como os Direitos de certos povos indígenas
que, para além de regras autónomas, têm um sistema judicial e legislativo próprio.
Esta diversidade de Direitos está longe de ser tida como um inconveniente. É antes encarada
como favor, na medida em que propiciam a adaptação daqueles regimes jurídicos às necessidades
sociais e a correcção de erros legislativos.
Não há, assim, Direito unitário nos Estados Unidos. Daí a importância das questões de
conflito das leis no espaço nos EUA.

Fontes de Direito

Elenco
Nas primárias, incluem-se: a lei (statutory law), os tratados (treaties) e a jurisprudência
(case law). Nas secundárias, sobressaem: a doutrina e os restatements of the law.

Hierarquia
Três princípios orientam a hierarquia das fontes de Direito nos EUA:
1. A lei prevalece sobre a jurisprudência. Se a tradição inglesa da Common Law colocava a
lei como completamento da case law, o sistema americano deslocou, recentemente, o
sistema de gravidade em muitas matérias para a lei, sendo a principal fonte de renovação do
Direito vigente.
2. O Direito federal prima sobre o Direito estadual. Até recentemente acontecia o inverso.
3. Os tratados celebrados têm o mesmo valor que as leis federais. Em caso de conflito entre
lei e tratado prevalece o instrumento mais recente.

A Constituição e a judicial review


A Constituição dos EUA não confere ao Supremo Tribunal, de modo expresso, o poder de
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fiscalizar a constitucionalidade das leis e de recusar a aplicação destas com fundamento em serem
contrárias às disposições constitucionais (judicial review).
Tal poder apenas viria a ser afirmado no caso Marbury v. Madison, julgado pelo Supreme
Court em 1803, que consumou o sistema de checks and balances em que assenta a Constituição.
Curava-se na espécie de constitucionalidade da regra constante do Judiciary Act de 1789, que
conferia ao Supremo Tribunal poderes para dar ordens à administração pública. Marbury pedia que
o Supremo Tribunal, no uso dessa competência, ordenasse ao réu (Madison) que lhe comunicasse
oficialmente a sua nomeação para as funções de juiz federal. O Tribunal rejeitou o pedido, na
medida em que esta a Constituição o concebia tão-somente como um tribunal de revista e não de 1.ª
instância. Mais tarde, no caso Fletcher v. Peck, julgado em 1810, a judicial review foi estendida à
legislação estadual. Actualmente, abrange não apenas as leis, mas também os precedentes judicias
que consagrem regras de Common Law.
A fiscalização da constitucionalidade é difusa e concreta, cabendo a todos os tribunais na
decisão das questões que lhes sejam submetidas. O carácter difuso e concreto da fiscalização trata-
se de um elemento estrutural da cultura jurídica norte-americana, que dá resposta ao individualismo
americano e à sua desconfiança quanto à forma de concentração do poder.
O sistema norte-americano de controlo da constitucionalidade distingue-se dos vários países
europeus. Entre outras razões, pelo carácter descentralizado do sistema jurídico dos EUA e pela
inexistência de uma jurisdição especializada incumbida de proceder a esse controlo. O que se
prende com outras características do sistema jurídico:
 A ausência de um entendimento rígido da separação de poderes, o qual cede o lugar ao checks
and balances;
 A força vinculativa dos precedentes judiciais, que assegura a uniformidade da jurisprudência em
matéria constitucional;
O alto grau de discricionariedade de que goza o Supremo Tribunal na selecção dos recursos
que efectivamente julga, o que lhe permite uma maior concentração nos casos de maior relevo
jurídico e político.

Codificações
Ao contrário do Common Law inglês, existem nos EUA codificações de Direito vigente, de
diversos tipos:
 As de estilo romano-germânico (como o Código Civil da Luisiana);
 As que sistematizam as regras de Common Law (como o Código Civil da Califórnia);
 O United States Code e o Code Federal Regulations, que não são verdadeiros códigos, mas
sim compilações de leis e regulamentos aprovados pelo Congresso federal e por agências
independentes, respectivamente;
 Os códigos-modelo ou model/uniform codes, emanados de diferentes instituições. Tais
instituições, que representam todos os Estados, pretendem a preparação e publicação de
textos (leis-modelo ou leis uniformes) que possam servir de base para a uniformização dos
Direitos estaduais em certas áreas, não são Direito federal, nem sequer textos legislativos
propriamente ditos. O código mais importante é o Uniform Commercial Code de 1951,
elabora pela American Bar Associacion, que foi adoptado pelos 50 Estados.
O espírito que inspira as codificações americanas não é diverso do que preside às
codificações europeias. As normas das primeiras são menos genéricas e abstractas do que as das
segundas. Não pretendem renovar o Direito vigente, mas sim compilar e sistematizar as regras
estabelecidas por via jurisprudencial. O papel das codificações é também diferente: se na Europa se
parte dos princípios para a determinação da norma aplicável ao caso, nos EUA principia-se a busca
da regra aplicável indagando a existência de decisões que tenham por objectos factos semelhantes
aos da situação sub judice.

A interpretação da lei
O método tradicional de interpretação baseia-se nas regras do Direito inglês. A evolução a
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favor de uma maior flexibilidade e consideração de elementos teleológicos e sistemáticos é mais
nítida na interpretação constitucional. Noutras leis, as constrições da literalidade são
tendencialmente menos sentidas na interpretação de leis federais e mais fortes na das leis estaduais.
Isto deve-se, acima de tudo, à preponderância do cause law.
Qualquer que seja a lei interpretada, dois princípios evidencia a diferença de processos em
comparação com os usados pelos juristas romano-germânicos:
1. A atitude stare decisis abrange o sentido relevante das normas legais tanto como o das
normas de criação jurisprudencial;
2. Os tribunais não se pronunciam sobre a inconstitucionalidade de norma contida numa lei
sem que ela tenha sido aplicada, portanto interpretada, por um tribunal.

Jurisprudência
Tal como em Inglaterra, vigora nos EUA o princípio do stare decisis. Por força dele a regra
de Direito aplicada por um tribunal deve observa-se subsequentemente em casos análogos,
constituindo precedente vinculativo para os tribunais inferiores. A favor do stare decisis depõem 3
argumentos:
5. O postulado de Justiça ao qual a situações iguais é devido tratamento igual;
6. A previsibilidade de Direito resultante de 1.;
7. A eficiência do sistema judiciário, por os tribunais não terem de julgar de novo questões de
Direito já decididas.
Dentro do federalismo americano como se articula o princípio? Os tribunais estaduais estão
vinculados aos precedentes dos tribunais hierarquicamente superiores do próprio Estado e aos
precedentes contidos em decisões dos tribunais federais. Por seu turno, os tribunais federais estão
vinculados aos precedentes contidos em decisões dos tribunais federais de hierarquia superior, bem
como às decisões dos tribunais do Estado cujo Direito devam aplicar no caso concreto. Os tribunais
superiores observam os seus próprios precedentes.
Admite-se a revogação (overrulling) dos precedentes. Actualmente, apesar de mais
frequente que em Inglaterra, nos EUA, o overrulling não é muito frequente, visto que o afastamento
de um precedente pode fazer-se por distinguishing.
A multiplicidade de jurisdições e a centralidade da Constituição contribuem para que nos
EUA a concepção quanto ao stare decisis seja menos rígida que a inglesa.
O que vale como precedente é somente a regra de Direito que serviu de base à decisão – the
holding of the case (corresponde ao ratio decidendi inglês). A ela se contrapõem os dicta, que não
têm força vinculativa.
A aplicação de um precedente a um caso novo depende de um juízo de analogia: aplicar-se-
á a esse caso a regra de Direito formulada a propósito de outro, que o antecedeu, quando se
verifique que há entre os casos uma semelhança tal que se justifique decidi-los por apela o mesmo
critério.
Os precedentes estabelecidos pela jurisprudência de determinado Estado apenas valem em
casos submetidos ao Direito local. Mas a jurisprudência de certos Estados, como os de Nova Iorque
e da Califórnia, tendem a possuir especial valor persuasivo na decisão de casos submetidos a
tribunais de outros Estados. Havendo, nos EUA, dois tipos de precedentes: o obrigatório e o
persuasivo.
Quanto ao estilo das sentenças, não se encontram opiniões individuais de todos os juízes,
mas antes um texto imputado ao tribunal. As citações de autores são mais frequentes nas sentenças
americanas.
As colectâneas de jurisprudência (law reporters) são quase todas privadas, sobressaindo a
do National Reporter System, que tem um sistema próprio de classificação de sentenças. Este
compreende cinco categorias de colectâneas: os United States Reports (decisões do Supremo
Tribunal federal); o Federal Reporter (decisões de tribunais de apelação federais); o Federal
Supplement (decisões de tribunais federais de primeira instância); os Atlantic, Notheastern,
Northwestern, Pacific, Southeastern, South e Southwestern Reporters (que compilam decisões dos
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tribunais estaduais de recurso); o California Reporter e o New York Reporter (decisões dos tribunais
dos Estados da Califórnia e de Nova Iorque).

A Doutrina
A doutrina tem mais influência nos EUA do que em Inglaterra. Foi em parte a doutrina que
deu unidade ao sistema: os tratados e manuais universitários norte-amercanos não versam sobre o
Direito de certo Estado em particular, antes procuram os expor os princípios comuns aos vários
Estados ou as diversas tendências observadas na jurisprudência e na legislação estaduais. A doutrina
não é tida como fonte primária de Direito. Muitos dos trabalhos mais inovadores acham-se
publicados nas revistas das Escolas de Direito, sob a forma de artigos.

Restatements of the law


Os denominados restatements of the law constituem outra particularidade do sistema norte-
americano. Estes são elaborados por instituições privadas e cobrem hoje os mais importantes
domínios do Direito Privado (agency, contracts, property, tort, trusts, etc.).
Tratam-se de textos com a forma externa de códigos, nos quais se encontram enunciadas,
em parágrafos numerados sequencialmente, regras sobre as diferentes matérias. Os restatements não
são codificações do Direito vigente, antes contêm as regras que, na óptica dos seus relatores, são as
melhores para cada matéria. O jurista não pode presumir que o se declara nos restatements
corresponda ao Direito efectivamente aplicado pelos tribunais norte-americanos. Trata-se de
modelos de decisão que os tribunais podem ou não seguir. É, porém, muito significativa a adesão
dos tribunais aos restatements, que são citações frequentemente nas decisões. Através dos
restatements revela-se uma certa unidade fundamental do Direito norte-americano.
A esta particularidade do Direito americano não é alheio o enorme volume das decisões
judiciais susceptíveis de serem citadas perante os tribunais norte-americanos e a necessidade de
uma certa racionalização de fontes.
A pluralidade e unidade do Direito norte-americano

A descoberta do Direito aplicável


O Direito norte-americano é plurinormativo, daí a primeira questão quanto à determinação
se aplicável Direito Federal ou Direito estadual e, na segunda hipótese, que Direito estadual. Depois
a distinção entre Statuory Law ou Common Law.
Geralmente, as normas aplicáveis procuram na holding de casos anteriores análogos,
excepto na ausência de precedente.
A busca de precedente é insubstituível quando as normas sejam de pura criação
jurisprudencial, mas é também usada para indagar o sentido que antes tenha sido atribuído a normas
de origem legal. De qualquer das formas, o jurista americano sentir-se-á mais livre que o inglês, em
razão da índole mais flexível do stare decisis americano, em especial, quando a norma estiver
integrada em código (na acepção da própria palavra).
Apesar da proliferação da lei e da naturalidade com que é encarada, a noção de lacuna da lei
e o seu preenchimento por analogia não se incluem nos mecanismos do common lawyer norte-
americano. “Racionalizar por analogia” significa descobrir casos factualmente análogos para
servirem de precedente. Se não há norma legal sobre certo caso, tal significa que deverá ser
regulada pelo Common Law. Se a omissão é de âmbito federal, as soluções devem-se achas nos
Direitos estaduais.
A descoberta de precedentes seria uma tarefa hérculea se não existissem exaustivos e
rigorosos meios auxiliares. Para além das fontes secundárias, o sistema é completado pelo citators,
que são registo com lista de referências às fontes primárias e secundárias, bem como às suas inter-
relações.

Factores de unidade do Direito dos EUA


O Direito norte-americano não é uno, mas sim pluralista e multifacetado. Diversos factores
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contribuem para a sua unidade:
1. A Constituição e a jurisprudência do Supremo Tribunal, em especial no âmbito de
judicial review.
2. O progressivo alargamento do Direito federal baseado na interpretação dada às normas
que estabelecem a competência legislativa dos órgãos federais;
3. As leis uniformes;
4. A frequente invocação pelos tribunais de um Estado da jurisprudência de outro Estado
(jurisprudência paralela);
5. Os Restatements of the law;
6. A perspectiva unitária do Direito norte-americano no ensino universitário e na
generalidade das obras doutrinárias.

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