Você está na página 1de 5

Carlos Alberto Sanches

Transcrições
21/06/2020
Live – A “Morte de Deus” e o Além-do-Homem (Übermensch)

Vamos primeiro definir como seria o Übermensch no pensamento de Nietzsche, para então passarmos à ques-
tão de como se enxerga essa ideia – e como se pode integrá-la - da perspectiva tradicionalista.

Para entender o que proponho aqui, será preciso passar por duas noções nietzscheanas. A primeira é chamada
como “Morte de Deus”, ou o “Assassinato de Deus”, e a segunda diz respeito à ideia de que “O Homem é uma Pon-
te” – “uma Ponte entre o Animal e o Além-do-Homem”. Essas duas noções são indispensáveis. Sem elas não po-
deremos definir o que é o Alem-do-Homem nietzschiano.

Nietzsche não foi o primeiro a dizer a frase “Deus está morto”. Se não me engano, ela já aparece em Hegel. O
que essa frase representa é o escancaramento de todo o processo de Obscurecimento do Divino, ou – como
chamam alguns sociólogos, - de Desencantamento do Mundo, pelo qual a Europa estava passando desde mui-
tos séculos. É como um crescendo, digamos assim, que irrompe nessa frase. Este código “Deus” serve para no-
mear nada menos que o fundamento de tudo. O eixo fundamental em torno do qual gira cada coisa no mundo,
cada ente, cada objeto. É aquilo que dá Ordem. É um princípio cosmificador. E é portanto o que dá sentido para a
presença humana na terra. Dizer que “Deus está morto” significa dizer que este fundamento desapareceu: isto
é, para ser mais exato, que os homens não o enxergam mais; que ele se retirou.

Bom o tema do afastamento dos deuses – da perda do Divino - é muito frequente no pensamento romântico
alemão. Mas ele é também frequente em muitas tradições. Muitos povos incluíam em seu ciclo, em seu calen-
dário, uma fase na qual se esperava ou se experimentava uma Degeneração do Mundo, que era seguida justa-
mente pelos rituais de Regeneração do Mundo. A fase de Degeneração era um prelúdio para a de Regeneração.
Os rituais de Regeneração do Mundo eram obrigatoriamente precedidos por ritos nos quais se cantava que a
Divindade se retirou muitas vezes por culpa dos homens, por alguma falta ou sacrilégio cometido por eles.
Mircea Eliade elenca muitos exemplos, não posso me prolongar aqui.

Retornando a Nietzsche, o que ele está fazendo não é nada menos que a constatação do fato de que o “Funda-
mento de Tudo” não está mais à vista dos homens. Desapareceu. O homem não está mais experimentando a
presença do Divino. E, convenhamos, isto é um fato. Nietzsche está certo. A Modernidade é justamente – como
eu chamo aqui – um Eclipse do Divino.

Mas por que ele precisou dizer isso? Porque os homens não perceberam ainda. Os que acreditavam em Deus –
ou diziam acreditar - estavam vivendo uma religião de modo unicamente mecânico. (O que sempre digo aqui: a
religião ou a tradição reduzida a mero costume.) E os que não acreditavam em Deus (e isso é muito importante!)
estavam colocando substitutos de Deus (ou novos ídolos) que eram simplesmente inferiores àquilo que Deus
era. Nietzsche percebeu muito bem aquilo que – no meu ponto de vista tradicionalista e fazendo uso da lingua-
gem monoteísta – eu chamo de Falsos Deuses da Modernidade. A Igualdade, a Fraternidade, a Liberdade... Mas
também a Democracia, por aí vai. Esses valores todos – e Nietzsche sabia muito bem... são humanos, demasiado
humanos! E os ateus estavam colocando eles no lugar que era de Deus e que estava então vazio. Os ataques
mais violentos de Nietzsche não são apenas ao Cristianismo. Os ataques mais violentos de Nietzsche é aos fal-
sos deuses das religião oculta moderna. Pois bem, a frase “Deus está morto”, em sua ocorrência mais famosa, é
dita justamente para os ateus – mais do que para os que creem em Deus. Nietzsche está dizendo: Olha, vocês
“mataram” Deus, mas olha agora para vocês... Vocês ficaram maiores? Vocês estão à altura do assassinato que
cometeram? Deus era o fundamento, qual é o fundamento agora?

Eis a passagem:

O homem Louco. - Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e
pôs-se a gritar incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus!”? – E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em
Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? Perguntou um deles. Ele se perdeu como uma cri-
ança? Disse um outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? – gritavam e riam uns para os
outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. “Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi!
Nós os matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o
mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela
agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para a
frente, em todas as direções? Existem ainda „em cima‟ e „embaixo‟? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sen-
timos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que acender lanternas de
manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses
apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós os matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassi-
nos? O mais forte e sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará esse
sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse
ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nun-
ca houve ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá , por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda a história
até então!” Nesse momento silenciou o homem louco, e novamente olhou para seus ouvintes: também eles ficaram em silêncio,
olhando espantados para ele. “Eu venho cedo demais”, disse então, “não é ainda meu tempo. Esse acontecimento enorme está a
caminho, ainda anda: não chegou ainda aos ouvidos dos homens. O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das estrelas pre-
cisa de tempo, os aos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos. Esse ato ainda lhes é mais dis-
tante que a mais longínqua constelação – e no entanto eles cometeram! – Conta-se também no mesmo dia o homem louco irrom-
peu em várias igrejas , e em cada uma entoou o seu Réquiem aeternaum deo. Levado para fora e interrogado, limitava-se a res-
ponder: “O que são ainda essas igrejas , se não os mausoléus e túmulos de Deus?”.

- A Gaia Ciência (1882), aforismo 125.

Nietzsche percebe que esse “assassinato” de Deus era o mais importante evento da história humana... e isto
justamente porque coloca o ser humano diante de um desafio único! Jamais o homem teve um desafio tão
grande assim: que é colocar algo no lugar de Deus. E para Nietzsche este algo não pode ser simplesmente o
“homem” – não pode ser o homem do humanismo. O homem do humanismo era demasiado pequeno. O huma-
nismo não ultrapassa o homem, apenas tenta o deixar melhor. O que na terminologia nietzschiana significa dei-
xa-lo ainda humano – ou seja, mais útil, mais dócil, mais forte porém num sentido meramente utilitarista de
força. Nietzsche então percebe que é preciso algo que coloque o homem para transcender sua condição me-
ramente humana. Não pode mais ser Deus. Então em suas caminhadas pelas montanhas da Suiça, ele é visita-
do por essa inspiração: o Ubermensch. O Além-do-Homem. A tradução Além-do-Homem é errada. O Uber-
mensch de Nietzsche não é o homem melhorado; não é o homem hipertrofiado; o homem com suas faculdades
melhoradas. Não: é um outro ser, totalmente diferente do homem. Não é uma diferença de grau com relação ao
homem, e sim uma diferença ontológica! O AdH não é um homem concreto exatamente, embora também possa
ser, e sim um lugar. Grifem isto. O AdH é um lugar a ser atingido. É um sentido com que Nietzsche presenteia os
seres humanos, que então ele via órfãos de sentido. Deus saiu, então agora eu vos dou o AdH. De fato Zaratus-
tra apresenta o AdH como um presente. Quando desce das montanhas em direção ao povoado, ele diz exata-
mente isto: “eu vou levar um presente aos homens”. É ele que irá dar um sentido à marcha humana agora Deus
“se foi”. Pois Nietzsche percebeu que sem este sentido, sem essa outra margem, o homem fatalmente retorna
ao animal. O homem não se tornou melhor após a morte de Deus; mas agora, com o AdH, ele poderá se tornar.

Eis então a famosa passagem em que Zaratustra apresenta o AdH:

Chegando à cidade mais próxima, situada nos bosques, Zaratustra encontrou uma grande multidão na praça pública, porque esta-
va anunciado o espetáculo de um bailarino de corda. E Zaratustra falou assim ao povo: "Eu vos anuncio o Além-do-Homem". "O
homem é superável. Que fizestes para o superar? Até agora todos os seres têm apresentado alguma coisa superior a si mesmos; e
vós, quereis o refluxo desse grande fluxo, preferis tornar ao animal, em vez de superar o homem? Que é o macaco para o homem?
Uma zombaria ou dolorosa vergonha. Pois é o mesmo que deve ser o homem para Além-do-Homem: uma irrisão ou uma dolorosa
vergonha. Percorrestes o caminho que medeia do verme ao homem, e ainda em vós resta muito do verme. Noutro tempo fostes
macaco, e hoje o homem é ainda mais macaco do que todos os macacos. Mesmo o mais sábio de todos vós não passa de uma
mistura híbrida de planta e de fantasma. Acaso vos disse eu que vos torneis planta ou fantasma? Eu vos apresento o Além-do-
Homem! O Além-do-Homem é o sentido da terra. Diga a vossa vontade: seja o Além-do-Homem, o sentido da terra. Exorto−vos,
meus irmãos, a permanecer fiéis à terra e a não acreditar em que vos fala de esperanças supraterrestres. São envenenadores,
quer o saibam ou não. Não dão o menor valor à vida, moribundos que estão, por sua vez envenenados, seres de que a terra se
encontra fatigada; vão−se por uma vez! Noutros tempos, blasfemar contra Deus era a maior das blasfêmias; mas Deus morreu, e
com ele morreram tais blasfêmias. Agora, o mais espantoso é blasfemar da terra, e ter em maior conta as entranhas do impene-
trável do que da terra. Noutros tempos a alma olhava o corpo com desprezo, e então nada havia superior a esse desdém; queria a
alma um corpo fraco, horrível, consumido de fome! Julgava deste modo libertar−se dele e da terra. Ó! Essa mesma alma era uma
alma fraca, horrível e consumida, e para ela era um deleite a crueldade! Irmãos meus, dizei−me: que diz o vosso corpo da vossa
alma? Não é a vossa alma, pobreza, imundície e conformidade lastimosa? O homem é um rio turvo. E preciso ser um mar para,
sem se toldar, receber um rio turvo. Pois bem; eu vos anuncio o Além-do-Homem; é ele esse mar; nele se pode abismar o vosso
grande menosprezo. (...) Zaratustra, no entanto, olhava a multidão, e assombrava−se. Depois falava assim: "O homem é corda es-
tendida entre o animal e o Além-do-Homem: uma corda sobre um abismo; perigosa travessia, perigoso caminhar; perigoso olhar
para trás, perigoso tremer e parar. O que é de grande valor no homem é ele ser uma ponte e não um fim; o que se pode amar no
homem é ele ser uma passagem e um acabamento. Eu só amo aqueles que sabem viver como que se extinguindo, porque são
esses os que atravessam de um para outro lado. Amo aqueles de grande desprezo, porque são os grandes adoradores, as setas do
desejo ansiosas pela outra margem.

- Assim Falou Zaratustra (1885)

O que eu gostaria de enfatizar é esta figura, para mim a mais central de todas: o homem como uma ponte entre
o animal e o AdH. O homem é uma transição; o homem é um a-caminho. Aí já está funcionando a ideia, muito
importante em Heidegger, e que encontra eco na Tradição, de que o homem não é uma coisa! A realidade do
homem não pode ser entendida como a realidade das coisas, dos entes que se encontram no mundo: o homem
é um ser diferente. As coisas podem permanecer em seu lugar, imóveis. Mas o homem não. O homem sempre
necessariamente estará em movimento. E se não estiver indo em direção à outra margem, estará retornando
ao animal, ao macaco. “O AdH é o sentido da terra”: isto é, a terra inteira tem como objetivo, como direção, a
produção deste ser. E ela utiliza para tal esta ponte que é o homem.

Esta imagem é uma das que melhor coadunam com a perspectiva tradicional de homem. O homem é pontifex. O
homem liga os Entes com o Ser; o Devir com o Ser. O que está embaixo com o que está em cima. Por isso todos
os seres se reúnem no homem. Todas as criaturas só fazem sentido quando recebem seu nome do homem. O
homem presentifica na terra a potência cosmificadora de Deus. Ele é o eixo, tudo gira ao redor dele. Lembrem
de quando Nietzsche diz: “és capaz de fazer as estrelas girarem ao redor de ti”? Este é o Super-Homem nietzs-
chiano, mas é também– nestes aspectos que enfatizei – simplesmente o homem conforme definido pelas tradi-
ções. O homem deve conduzir todos os entes de volta à sua Fonte. Por isso o homem é, ele mesmo, tal como
uma “Arca”, e tal como a de Noé mesmo. O Além-do-homem, resume Deleuze citando Rimbaud, e eu faço uma
pequena adaptação, é “o homem carregado de todos os animais”. Lembrando que o símbolo da aliança de Deus
com Noé é justamente o Arco-Íris, que também simboliza a ponte entre a Terra e o Céu.

Aos olhos de quem está se dirigindo para a outra margem, os “homens” são como macacos. O que é o macaco,
o “macaco”, nessa simbologia, é aquilo que ficou obsoleto. Aquilo que não pode mais fazer a travessia. Por isso
Nietzsche diz: é perigosa a travessia. Justamente porque parado o homem não vai ficar.

Bom, este AdH é uma condição que os seres humanos já atingiram no passado. Nietzsche sabe disso: ele o diz
n‟O Anticristo: este homem já foi produzido pelos povos do passado, mas como um acaso. Agora, diz ele, este
homem será produzido propositalmente, conscientemente. Para Nietzsche, as sociedades são como “usinas”
produtoras de homens excepcionais, que despontam, diríamos nós, como a personificação do espírito deste
povo. A hierarquia social é como uma escada para este homem superior – que, da perspectiva tradicional, exer-
ce justamente a função de ligar ao Celeste todo o corpo social. O Faraó não era só o “rei” ou “governante” do
Egito: ele era a finalidade da vontade-de-potência da sociedade egípcia. Platão não foi apenas um filósofo: ele
era a finalidade da vontade de potência dos gregos. E assim por diante.

Agora então, diz Nietzsche, a finalidade da sociedade humana, que ficou órfã de Deus, será o AdH.
O fato é que Nietzsche, que escreveu a primeira parte do Zaratustra em três dias e a segunda também em três
dias, estava sim, digamos, tomado por inspirações elevadas, e sua obra – se interpretada adequadamente - é
sim muito útil para promover um reencontro dos modernos com certas verdades que no fundo são eternas.

Todo o Destino da Terra depende de o homem assumir sua função como ponte para algo além. Em Nietzsche
temos várias “categorias” de homens: entre elas, o último homem, os homens superiores, os homens preparató-
rios, e o AdH propriamente dito. O AdH portanto é o resultado que desponta do trabalho dos homens preparató-
rios. Nós podemos ser preparadores deste AdH. Para isso, será necessário um conjunto de virtudes que, na mi-
nha perspectiva, na verdade não são nada modernos: e sim tradicionais. Aurobindo critica o AdH nietzcheano
como sendo resultado de uma mente tipicamente moderna: ou seja, titânica. Tentativa de escalar o Olimpo pe-
las próprias forças. Essa é a correção que os tradicionalistas devem fazer neste esquema de Nietzsche – en-
tender que é o Olímpico, o Divino, que, mesmo quando Oculto, está sempre conduzindo o homem para cima. A
experiência da Morte de Deus é um fato! Não podemos negar. Toda a degeneração moderna é resultado do afas-
tamento dos seres humanos de Deus, o fundamento ou princípio agregador das partes que compõe o Todo e que
cosmificam uma existência integral.

Você também pode gostar