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A MORTE DA MEMÓRIA

Certos acontecimentos nos pegam de surpresa e são capazes de suscitar


reflexões que, até então, não tínhamos feito. São tão inusitados, que nos tiram do
entorpecimento provocado pelos afazeres do dia a dia e nos fazem sair do modo piloto
automático.
As tragédias estão entre estes acontecimentos disruptivos que,
inesperadamente, interrompem o fluxo normal do cotidiano, com certa brutalidade,
principalmente quando levam de roldão algo ou alguém que nem sequer sabíamos
que nos fariam tanta falta – como quando perdemos, de súbito, uma pessoa que
sempre esteve em nossa vida e, que, mesmo que víssemos muito pouco, tínhamos a
impressão que seria eterna. Afinal, ela estava lá antes de nós. Por que não estaria
depois ou sempre? Enfim, de tão naturalizada a sua presença, a sua ausência nunca
sequer foi cogitada até o momento em nos damos conta que não teremos mais tempo.
Assim também acontece com algumas coisas e lugares, como, por exemplo, o
Museu Nacional, no Rio de Janeiro, ao qual assistimos, estupefatos, queimar em
chamas essa semana. Muitos nunca o visitaram, alguns foram vê-lo rapidamente,
entre uma manhã nos braços do Cristo Redentor e uma tarde sob o sol de Ipanema.
Outros nunca souberam de sua existência. Isto, agora, não importa. Todos parecem
compartilhar a ausência de um bem cultural que nós, como brasileiros, conhecíamos
muito pouco, mas, com a lacuna deixada por sua perda, descobrimos que nos fará
falta.
Sentiremos falta pelo não acontecido, pelo não vivido, por aquilo que poderia
ter sido, ter visto, ter dito. Sentiremos falta das lembranças que não serão construídas,
porque, prematuramente, foram-nos tiradas.
Por que, mesmo sendo um excelentíssimo desconhecido da maioria dos
brasileiros, a destruição do acervo do Museu Nacional nos causou um incômodo
coletivo tão grande? Talvez a resposta seja que isto é parte do processo de luto, no
qual a vida, a morte e a lembrança são elementos culturalmente compartilhados entre
pessoas que têm características em comum, encontrando proximidade por meio de
objetos e lugares, que são expressões dos nossos sentimentos.
Aí está a relação entre memória e identidade. Na falta de uma, a importância
da outra desperta. O que essa triste ocorrência evidenciou foi a descoberta que nós
brasileiros, mesmo com todas as distensões dos últimos anos, ainda possuímos
sentimentos em comum, que revelam a persistente existência de uma identidade
nacional: somos brasileiros sim e, juntos, choramos a morte de parte da nossa
memória.

Profa. Dra. Lilian Rodrigues de Oliveira Rosa


Coordenadora de Pós-graduação da FAAP
Presidente do IPCCIC – Instituto Paulista de Cidades Criativas e Identidades
Culturais

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