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Ana Elvira Wuo
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Rito de passagem ao território da comicidade:
elucidações simbólicas à iniciação clownesca.
“quando se perde uma qualidade”, geralmente Nesse sentido, com base em estudos do autor
impura, e se adquire outra. O conceito supõe citado, é possível compreender que existe em
que o sujeito iniciado a um novo mundo passa síntese o princípio da pluralidade em relação à
pela sequência dos ritos de separação, de variação de formas de início do rito e fazendo
margem e de agregação com o objetivo de se uma analogia da teorização ritualística de
tornar outro. margem com a máscara clownesca, que
também observa-se a separação quando se
O escopo original de nosso estudo, após 20 opera a mutilação provisória do nariz,
anos iniciando palhaços em variados contextos identidade sócio-pessoal do neófito, quando
da educação formal ou informal, atualmente se na vestidura do nariz-máscara vermelha do
aplica em disciplinas de interpretação / clown. Nos ritos de margem, o indivíduo não
atuação no curso de teatro da Universidade pertence nem ao mundo sagrado nem ao
Federal de Uberlândia, mantendo a dimensão mundo profano, ou ainda pertencendo aos
que engloba um repertório de práticas variadas dois mundos em uma posição intermediária,
com o intuito de oferecer ao neófito o trânsito nesse caso com o uso da máscara.
nas diferentes possibilidades de revelar-se
comicamente. Deste, foram escolhidos para Fragmentos de elucidações simbólicas
esta publicação sinteticamente trechos gerais
da análise dos ritos: de entrada, margem, Em resumo, neste tópico o processo inicial
passagem, fecundidade, positivo e reforço, apontou a necessidade de conceber uma
desagregação e agregação, mutilação premissa reflexiva desenvolvida por meio da
provisória do membro identidade social. práxis e intitulada “desforma”, princípio flexível
e livre, favorecendo a mudança de estado no
Compreende-se que o “transitar” por meio da sentido de romper qualquer pré-elaboração
prática ritual, há que se retirar de forma equivocada no ator iniciante, em relação à
simbólica ou concreta o indivíduo da representação de personagem ou imitação
convivência com a humanidade comum, com base em outro palhaço. Van Gennep
mediante um rito de separação, pois a anuncia que há sempre novos liminares a
intenção de todo ato cerimonial é produzir atravessar, pois a vida do sujeito é formada
modificação provisória na vida do noviço. Van por um contínuo desagregar-se e reconstituir-
Gennep elucida que, no corpo ou na alma, se, ou seja, mudar de estado e de forma
modificações outras há também no sentido através de um rito positivo, uma vontade, um
provisório, como o uso de máscara ou, ainda, desejo, uma transposição.
pintura no corpo, que marcam diferenciação
temporária. Estas desempenham um A sequência dos ritos é interpelada por meio
considerável papel nos ritos de passagem a de conexões simbólicas. O ritual aqui descrito
cada mudança na vida do indivíduo (VAN principia a partir da escolha e da vontade
GENNEP, 1977). pessoal do ator em passar pela iniciação, a
qual é denominada rito positivo. Segundo
Gennep, os ritos positivos são atos
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determinados pela vontade, consistindo na por um monstro, em cujo ventre reina a noite
separação do neófito de sua vida quotidiana. cósmica: é o mundo embrionário da existência,
Outo rito começa no momento em que o tanto no plano cósmico como no plano da vida
aprendiz adentra a sala de trabalho, inicia o humana. Esse território isolado e
período de margem com suspensão da vida desconhecido visa oportunizar o contato com
comum, passagem ao território desconhecido. outras regiões profundas de nosso ser.
Instaura-se uma separação simbólica em que Remetemo-nos à história mitológica do
os neófitos devem deixar tudo para trás. isolamento do personagem Jonas no ventre da
baleia.
Reportamo-nos à explicação de Eliade (1996),
que seria uma síntese fundamental para nosso Nas cerimônias no período de margem
estudo: separar, desagregar, destruindo as existem vários ritos de reforço, pertinentes a
referências, transgredindo, criando um tempo uma tradição, em diferentes culturas e povos.
de isolamento, essencial e simbólico, uma Por exemplo: cantar, dançar, cortar os cabelos
ruptura. Segundo Van Gennep (1977, p. 89), ou raspar a cabeça; o rito de utilização do véu
“Viver é continuamente desagregar-se”. no casamento; utilização de palavras sagradas
Sugere a abolição de uma imagem arquetípica ou línguas especiais, que algumas vezes inclui
equivalente a uma regressão ao caos, ao “um inteiro vocabulário desconhecido ou não
estado que precedia a cosmogonia. Em nosso usual da sociedade em geral” (VAN GENNEP,
caso, a abolição ou uma referência anterior a 2001, p. 145). Tais ritos reforçam a
qualquer tipo de figura cômica ou a qualquer permanência, a margem dos iniciados aos
outro palhaço era imprescindível. territórios de passagem à revelação (VAN
GENNEP, 1977). Paralelo este, que foi
Principiamos pelo rito de entrada, em que estabelecido com o vocabulário secreto
cruzar a soleira da porta de entrada da sala de inventado, envolvendo a criação de linguagem
trabalho é a passagem ao insólito, sendo e noção conceitual de “desforma” (WUO,
assim, necessário desconhecer previamente o 2016, p. 128).
assunto. “É preciso restabelecer o instante
auroral de antes da Criação; no plano humano Para a travessia, um grande número de rituais
isto quer dizer que é preciso retornar à ‘página pronuncia a capacidade de construir
branca’ da existência, ao começo absoluto”, simbolicamente uma ponte ou uma escada,
conforme Eliade (1996, p.159), “um “uma passagem estreita ou perigosa, motivo
desagregar” relacionado à passagem pelas corrente tanto nas mitologias funerárias quanto
trevas, ao mundo sombrio e desconhecido, à nas iniciáticas” (ELIADE, 1992, p. 147).
escuridão, ao ventre gerador do processo. Tomando como exemplo a travessia da
“corda-bamba” na iniciação dos clowns, tarefa
Os ritos de entrada preparam o neófito para esta a ser executada no decorrer do processo
desligar o corpo do tempo ordinário, para ritual (WUO, 2016), que tem o caráter de
gestar um novo corpo num outro tempo. superação do medo, do encorajamento, do
Relacionamos esse fato ao que Eliade (2000, desafio, do desagregar e constituir , que nas
p. 159) estabelece como a separação do palavras de Van Gennep encontra uma
mundo familiar, em que o neófito é engolido consonância de apoio:
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elucidações simbólicas à iniciação clownesca.
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patética, com pluralidade e variedade criativa, ELIADE, Mircea. Aspectos do mito. Trad.
em cada iniciado. Isso provém de rupturas, Manuela Torres. Perspectivas do homem.
contradições marginais que, desconstruindo Lisboa: Edições 70, 2000.
convenções sociais, por meio do uso da ELIADE, M. Imagens e símbolos: Ensaio
máscara, mutila a rigidez no si mesmo, sobre o simbolismo mágico-religioso. Tradução
lançando ao abismo o indivíduo humanamente Sonia Cristina Tamer. Martins Fontes, São
social por meio do riso inusitado produzido Paulo, 1996.
pela plateia.
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: a
Poucos aprendizes resistiram ao essência das religiões. Trad. Rogério
atravessamento da soleira da porta, entrada Fernandes. Martins Fontes, São Paulo, 1992.
ritual, por conta do medo da exposição e ELIADE, Mircea. Initiation, rites, sociétés
queda ao ridículo. Estes, arraigados por pré- secrètes: naissances mystiques. Essai sur
julgamentos e valores cristalizados, quelque types d’initiation. Paris: Galimard,
desautorizaram a travessia à comicidade, pois 1959.
a abnegação dos conceitos duros, como
LECOQ, Jacques. The moving body: the
desprender um esparadrapo na pele, é
teaching creative theatre. Translated from Le
extremamente doloroso por ser resistível.
corps Poétique by David Bradby. A theatre
Compreendeu-se que, ao provocar o riso no
Arts Book. Routledge. New York, 2001.
público, aceita-se o ridículo como espaço
público multi-corporal do traspassamento à TOWSEN, John. H. Clowns. New York:
liminaridade cômica e de renúncia a valores Hawtorn, 1976.
relacionados à aparência física normativa. TURNER, V. W. O processo ritual: estrutura
e antiestrutura. Antropologia 7. Petrópolis:
A qualidade apreendida, intrínseca à Vozes, 1974.
mobilidade transgressiva assimilada pelo ator
iniciado à máscara da comicidade, rompe o VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de
lacre da resistência preambular em meio a passagem: estudo sistemático dos ritos da
travessia dos territórios de passagem aos porta e da soleira, da hospitalidade, da
espaços em branco e insólitos. adoção, gravidez e parto, nascimento,
infância, puberdade, iniciação, coroação,
Recebido em: 26/04/2018 noivado, casamento, funerais, estações, etc.
Tradução de Mariano Ferreira, 2.ed.
Aceito em: 20/06/2018 Petrópolis: Vozes, 2001.
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