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RITO DE PASSAGEM AO TERRITÓRIO DA COMICIDADE:

elucidações simbólicas à iniciação clownesca.

Rite of passage to the territory of comicality:


symbolic elucidations to clownesque initiation

Ana Elvira Wuo


Universidade Federal de Uberlândia - UFU

Resumo: O artigo apresenta apontamentos da iniciação clownesca por meio


de tramas experimentais aviadas em momentos distintos, as quais culminam
no processo ritual da travessia do ator ao território da comicidade.
Atravessamentos intrínsecos nas teorizações de Van Gennep, Bergson,
Eliade e Turner, alinhavam pontos subjetivos, entrecruzando teoria e práxis,
estabelecendo conexões simbólicas, transgredíveis e insólitas.

Palavras-chave: Ritual; Comicidade; Ator; Iniciação.

Abstract: The article presents notes of clowning initiation through


experimental plots dispensed at different times, which culminated in the ritual
process of crossing the territory of the comic actor. Crossings with the authors
Van Gennep, Bergson, Eliade e Turner lined subjective points, crisscrossing
theory and praxis establishing symbolic connections.

Keywords: Ritual; Comicality; Actor; Initiation.

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Interpelar o risível no aprendiz situação de pressão ou de constrangimento no


iniciado, isso revelaria intimidades, elucidando
A interpelação do ridículo e do risível no situações patéticas nas quais, um tipo
aprendiz clownesco, num primeiro momento desconcertante e acuado de clown apareceria
nos parece muito simples e, como exemplo para provocar o riso nos espectadores. No
toma-se por empréstimo uma pergunta que entanto, as nossas questões avançam em
Lecoq (2001, p. 59) fez a seus alunos e que outra direção, partindo do pressuposto de que
em seus desdobramentos ecoa num campo fazer rir é um fenômeno de extrema
investigativo de extrema complexidade: “Como complexidade e que, para tanto, pressupõe
o clown nos faz rir”?. Em primeira instância, forma de investigação diferenciada em relação
alguns iniciadores relacionam isto ao fato do ao ensino e a aprendizagem de palhaços.
principiante privar-se do enfrentamento e da
exposição ao ridículo criando imobilidade e O processo ritual
resistência ao riso do outro. Segundo Bergson
(1983, p. 47), o cômico destrói estruturas Em nossa pesquisa (WUO, 2016) delineou-se
prontas, tornando-as flexíveis e móveis. Com por experimentos aviados em envoltório lúdico
base nesse princípio, pode-se extrair outra ritualístico (e não de arreamento de defesas),
instigante questão relacionada ao campo da conduzindo o iniciado em direção a um rito
comicidade, pois se o riso flexibiliza estruturas, preambular secreto e subjetivo. Foi eleita a
então por quê existe resistência ao risível? leitura de Van Gennep (1977) como fonte de
Embora o apoio conceitual elucide o fato inspiração numa consonância interlocutora do
teoricamente, a questão prevalece: como processo ritual. O rito originário da práxis é um
flexibilizar o fenômeno na prática? Ao estudar meio profícuo para a iniciação e criação de
Towsen (1976) percebeu-se, logo de início, um clown. Van Gennep (1977, p. 160), elucida que
ponto muito esclarecedor neste sentido, pois o rito igualmente sugere e insinua esperança de
mesmo pressupõe no título e na introdução do todos os homens na sua inesgotável vontade
livro The Clowns uma premissa pluralesca: de passar e ficar, de esconder e mostrar, de
não existe clown, existem clowns, pela controlar e libertar, nesta constante
variação de tipos clownescos existentes no transformação do mundo e de si mesmo, que
mundo todo, no entanto, “Eles são todos está inscrita no verdadeiro viver em sociedade.
palhaços, mas a diferença entre eles é tão Dessa forma, o ritual e seus mecanismos
fascinante quanto as semelhanças” (1976, p. básicos são um fenômeno da transformação e
xi). Por esse motivo, as essências cômicas são passagem do gesto rotineiro ao ato ritual
múltiplas, variadas e flexíveis (WUO, 2016). desagregador.
No processo ritual, o desprendimento e o
A partir da problematização acima, contatamos desagregamento de certas qualidades
uma lacuna na forma de ensino de alguns positivas ou negativas humanas envolvem
cursos considerados como modelos de elementos de perdas e ganhos, morte e
referência na iniciação do clown. A proposta do renascimento, dor e alegria. Revelar e
mestre feita ao principiante, tem o objetivo de esconder qualidades apontadas na
ocasionar um arreamento de defesas (termo
conceituação de Van Gennep (1977, p. 28),
utilizado em sessões de terapia) criando uma

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Rito de passagem ao território da comicidade:
elucidações simbólicas à iniciação clownesca.

“quando se perde uma qualidade”, geralmente Nesse sentido, com base em estudos do autor
impura, e se adquire outra. O conceito supõe citado, é possível compreender que existe em
que o sujeito iniciado a um novo mundo passa síntese o princípio da pluralidade em relação à
pela sequência dos ritos de separação, de variação de formas de início do rito e fazendo
margem e de agregação com o objetivo de se uma analogia da teorização ritualística de
tornar outro. margem com a máscara clownesca, que
também observa-se a separação quando se
O escopo original de nosso estudo, após 20 opera a mutilação provisória do nariz,
anos iniciando palhaços em variados contextos identidade sócio-pessoal do neófito, quando
da educação formal ou informal, atualmente se na vestidura do nariz-máscara vermelha do
aplica em disciplinas de interpretação / clown. Nos ritos de margem, o indivíduo não
atuação no curso de teatro da Universidade pertence nem ao mundo sagrado nem ao
Federal de Uberlândia, mantendo a dimensão mundo profano, ou ainda pertencendo aos
que engloba um repertório de práticas variadas dois mundos em uma posição intermediária,
com o intuito de oferecer ao neófito o trânsito nesse caso com o uso da máscara.
nas diferentes possibilidades de revelar-se
comicamente. Deste, foram escolhidos para Fragmentos de elucidações simbólicas
esta publicação sinteticamente trechos gerais
da análise dos ritos: de entrada, margem, Em resumo, neste tópico o processo inicial
passagem, fecundidade, positivo e reforço, apontou a necessidade de conceber uma
desagregação e agregação, mutilação premissa reflexiva desenvolvida por meio da
provisória do membro identidade social. práxis e intitulada “desforma”, princípio flexível
e livre, favorecendo a mudança de estado no
Compreende-se que o “transitar” por meio da sentido de romper qualquer pré-elaboração
prática ritual, há que se retirar de forma equivocada no ator iniciante, em relação à
simbólica ou concreta o indivíduo da representação de personagem ou imitação
convivência com a humanidade comum, com base em outro palhaço. Van Gennep
mediante um rito de separação, pois a anuncia que há sempre novos liminares a
intenção de todo ato cerimonial é produzir atravessar, pois a vida do sujeito é formada
modificação provisória na vida do noviço. Van por um contínuo desagregar-se e reconstituir-
Gennep elucida que, no corpo ou na alma, se, ou seja, mudar de estado e de forma
modificações outras há também no sentido através de um rito positivo, uma vontade, um
provisório, como o uso de máscara ou, ainda, desejo, uma transposição.
pintura no corpo, que marcam diferenciação
temporária. Estas desempenham um A sequência dos ritos é interpelada por meio
considerável papel nos ritos de passagem a de conexões simbólicas. O ritual aqui descrito
cada mudança na vida do indivíduo (VAN principia a partir da escolha e da vontade
GENNEP, 1977). pessoal do ator em passar pela iniciação, a
qual é denominada rito positivo. Segundo
Gennep, os ritos positivos são atos

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determinados pela vontade, consistindo na por um monstro, em cujo ventre reina a noite
separação do neófito de sua vida quotidiana. cósmica: é o mundo embrionário da existência,
Outo rito começa no momento em que o tanto no plano cósmico como no plano da vida
aprendiz adentra a sala de trabalho, inicia o humana. Esse território isolado e
período de margem com suspensão da vida desconhecido visa oportunizar o contato com
comum, passagem ao território desconhecido. outras regiões profundas de nosso ser.
Instaura-se uma separação simbólica em que Remetemo-nos à história mitológica do
os neófitos devem deixar tudo para trás. isolamento do personagem Jonas no ventre da
baleia.
Reportamo-nos à explicação de Eliade (1996),
que seria uma síntese fundamental para nosso Nas cerimônias no período de margem
estudo: separar, desagregar, destruindo as existem vários ritos de reforço, pertinentes a
referências, transgredindo, criando um tempo uma tradição, em diferentes culturas e povos.
de isolamento, essencial e simbólico, uma Por exemplo: cantar, dançar, cortar os cabelos
ruptura. Segundo Van Gennep (1977, p. 89), ou raspar a cabeça; o rito de utilização do véu
“Viver é continuamente desagregar-se”. no casamento; utilização de palavras sagradas
Sugere a abolição de uma imagem arquetípica ou línguas especiais, que algumas vezes inclui
equivalente a uma regressão ao caos, ao “um inteiro vocabulário desconhecido ou não
estado que precedia a cosmogonia. Em nosso usual da sociedade em geral” (VAN GENNEP,
caso, a abolição ou uma referência anterior a 2001, p. 145). Tais ritos reforçam a
qualquer tipo de figura cômica ou a qualquer permanência, a margem dos iniciados aos
outro palhaço era imprescindível. territórios de passagem à revelação (VAN
GENNEP, 1977). Paralelo este, que foi
Principiamos pelo rito de entrada, em que estabelecido com o vocabulário secreto
cruzar a soleira da porta de entrada da sala de inventado, envolvendo a criação de linguagem
trabalho é a passagem ao insólito, sendo e noção conceitual de “desforma” (WUO,
assim, necessário desconhecer previamente o 2016, p. 128).
assunto. “É preciso restabelecer o instante
auroral de antes da Criação; no plano humano Para a travessia, um grande número de rituais
isto quer dizer que é preciso retornar à ‘página pronuncia a capacidade de construir
branca’ da existência, ao começo absoluto”, simbolicamente uma ponte ou uma escada,
conforme Eliade (1996, p.159), “um “uma passagem estreita ou perigosa, motivo
desagregar” relacionado à passagem pelas corrente tanto nas mitologias funerárias quanto
trevas, ao mundo sombrio e desconhecido, à nas iniciáticas” (ELIADE, 1992, p. 147).
escuridão, ao ventre gerador do processo. Tomando como exemplo a travessia da
“corda-bamba” na iniciação dos clowns, tarefa
Os ritos de entrada preparam o neófito para esta a ser executada no decorrer do processo
desligar o corpo do tempo ordinário, para ritual (WUO, 2016), que tem o caráter de
gestar um novo corpo num outro tempo. superação do medo, do encorajamento, do
Relacionamos esse fato ao que Eliade (2000, desafio, do desagregar e constituir , que nas
p. 159) estabelece como a separação do palavras de Van Gennep encontra uma
mundo familiar, em que o neófito é engolido consonância de apoio:

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elucidações simbólicas à iniciação clownesca.

vermelha, neste processo, originou-se de uma


E sempre há sempre novos limiares a concha ritual em determinado momento do
atravessar, limiar do verão ou do processo denominado “Visualização da
inverno, da estação ou do ano, do mês
ou da noite, limiar do nascimento, da montanha palhaça” em Wuo (2016, p. 136 )
adolescência ou da idade madura, onde o neófito encontra uma pérola vermelha
limiar da velhice, limiar da morte e (nariz vermelho) dentro de uma concha. A
limiar de outra vida- para aqueles que máscara vermelha redonda, inspirou a função
acreditam. (2001, p. 160)
encantatória, delegando à sua vestidura um
destino fértil, criativo e mítico. A força
A travessia é um porvir do outro na síntese de
agregadora representada por um símbolo de
Eliade (1959, p. 12): “ao final das provas, o
fertilidade manifesta-se em todos os níveis
neófito goza de outra existência após a
iniciação e integração com o tempo e o espaço cósmicos.
imaginário, o da liminaridade”, dessa forma o
Na sequência final dos ritos, a condução do
processo iniciático limiar potencializa o sítio do
iniciado à imagem de uma montanha constitui
envoltório palhacesco transgressor.
o rito de agregação à origem (WUO, 2016, p.
136). Outra possibilidade de ligação mítica do
O chão da liminaridade conceituado por Turner
“centro do mundo” entre “terra e céu” é a da
(1974) inverte a ordem das coisas e
montanha como uma corporeidade cósmica. A
interpelaria, em nosso caso, uma alusão ao
montanha cósmica interliga os territórios de um
território de passagem de transvestimento
fecundo da máscara ritual para o mundo corpo social conhecido ao corpo insólito, divino
e encantado, do ser inusitado, que na iniciação
invertido. Nesse caso, a qualidade-estado da
passa a coabitar um corpo clownesco no
máscara palhacesca é liminar, permite ao
aprendiz. O símbolo de uma montanha é
iniciado encantado, transitar em um mundo
avesso e de cabeça para baixo, por isso o considerado o simbolismo do centro, que quer
dizer o lugar mais alto do mundo, “região
palhaço bagunça a sua vez.
pura”. Portanto, segundo Eliade, “o cume da
montanha cósmica é o umbigo da Terra, o
O rito da fecundidade pronuncia a
simbolização de que a crença em virtudes ponto onde começou a criação, fonte de toda a
existência” (1996, p. 39).
mágicas das ostras e das conchas é
encontrada no mundo inteiro, da pré-história
Considerações prospectivas
aos tempos modernos: a comparação da
concha marinha ao órgão genital feminino já
Constatou-se, entre os aprendizes, iniciações
era conhecida pelos gregos (ELIADE, 1996, p.
variadas e secretamente inusitadas. Também
123). Rememora o nascimento de Afrodite
tipos de risos diferentes em plateias
numa concha, ilustrando esse laço místico
diferenciadas. Os neófitos relataram um
entre a deusa e o princípio. Esse simbolismo
componente subjetivo mágico associado à
do nascimento e da regeneração inspira a
iniciação do “ser clown”. O processo ritual foi
função ritual das conchas (ELIADE, 1996, p.
de escamoteação e mutilação pessoal
129-130). A máscara redonda do clown, pérola

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patética, com pluralidade e variedade criativa, ELIADE, Mircea. Aspectos do mito. Trad.
em cada iniciado. Isso provém de rupturas, Manuela Torres. Perspectivas do homem.
contradições marginais que, desconstruindo Lisboa: Edições 70, 2000.
convenções sociais, por meio do uso da ELIADE, M. Imagens e símbolos: Ensaio
máscara, mutila a rigidez no si mesmo, sobre o simbolismo mágico-religioso. Tradução
lançando ao abismo o indivíduo humanamente Sonia Cristina Tamer. Martins Fontes, São
social por meio do riso inusitado produzido Paulo, 1996.
pela plateia.
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: a
Poucos aprendizes resistiram ao essência das religiões. Trad. Rogério
atravessamento da soleira da porta, entrada Fernandes. Martins Fontes, São Paulo, 1992.
ritual, por conta do medo da exposição e ELIADE, Mircea. Initiation, rites, sociétés
queda ao ridículo. Estes, arraigados por pré- secrètes: naissances mystiques. Essai sur
julgamentos e valores cristalizados, quelque types d’initiation. Paris: Galimard,
desautorizaram a travessia à comicidade, pois 1959.
a abnegação dos conceitos duros, como
LECOQ, Jacques. The moving body: the
desprender um esparadrapo na pele, é
teaching creative theatre. Translated from Le
extremamente doloroso por ser resistível.
corps Poétique by David Bradby. A theatre
Compreendeu-se que, ao provocar o riso no
Arts Book. Routledge. New York, 2001.
público, aceita-se o ridículo como espaço
público multi-corporal do traspassamento à TOWSEN, John. H. Clowns. New York:
liminaridade cômica e de renúncia a valores Hawtorn, 1976.
relacionados à aparência física normativa. TURNER, V. W. O processo ritual: estrutura
e antiestrutura. Antropologia 7. Petrópolis:
A qualidade apreendida, intrínseca à Vozes, 1974.
mobilidade transgressiva assimilada pelo ator
iniciado à máscara da comicidade, rompe o VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de
lacre da resistência preambular em meio a passagem: estudo sistemático dos ritos da
travessia dos territórios de passagem aos porta e da soleira, da hospitalidade, da
espaços em branco e insólitos. adoção, gravidez e parto, nascimento,
infância, puberdade, iniciação, coroação,
Recebido em: 26/04/2018 noivado, casamento, funerais, estações, etc.
Tradução de Mariano Ferreira, 2.ed.
Aceito em: 20/06/2018 Petrópolis: Vozes, 2001.

Referências Bibliográficas VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de


passagem. Ed. Vozes, Petrópolis, 1977.
BERGSON, Henri. O Riso: ensaio sobre a
WUO, Ana E. Clown: “desforma”, rito de
significação do cômico. 2ª. Ed. Zahar, Rio de
iniciação e passagem. Doutorado em Artes
Janeiro, 1983.
da Cena, UNICAMP, Campinas, 2016.

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