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A Sociologia das Práticas Científicas - novos olhares e possibilidades para

os estudos territoriais

Pequeno ensaio produzido pelo aluno de Doutorado Anderson Luís do Espírito


Santo. Blog - Kritiké: crítica e reflexividade. s novembro 09, 2018

Palavras-chave: Latour, pragmatismo., sociologia da ciência, sociologia das práticas


científicas

Quem se dedica a estudar o território, suas dinâmicas, territorialidades e complexidades


sabe da importância da temática e das dificuldades existentes. Muitas pesquisas buscam
interpretar o fenômeno a partir do desenvolvimento econômico, da cultura, do conflito,
poder ou da religião. Outros pesquisadores vão além e buscam novas estratégias para o
desenvolvimento de sistemas produtivos; a sustentabilidade e os desastres ambientais;
retratar as inovações sociais ou elucidam os conflitos urbanos - um dos maiores
problemas atuais. A temática é extensa e não termina aqui. Fato é que, independente do
enfoque, muitos pesquisadores acabam utilizando o adjetivo “social” como um fenômeno
qualquer (LATOUR, 2012), para então tecer a sua teorização. A teoria silencia outras
dimensões não assumidas na teorização e durante a teorização, o ponto de vista do
observador se faz presente e permeará os seus sentidos gerando uma “explicação final”
(DEMO, 2012). No decurso da análise territorial é comum encontrar artigos científicos
que considerem a abordagem macrossocial para traçar “conexões causais entre variáveis
sociológicas clássicas, tipicamente os interesses de grupos relevantes, evidenciando o
conteúdo do conhecimento sustentado por esses grupos” (PICKERING, 1992, p.1). Neste
cenário temos uma tentativa de construir uma espécie de material ou domínio – a
elaboração de “contextos” que visam, uma vez mais, explicar o social. Por acreditar que
o social não pode ser construído e que é necessário modificar a compreensão do que
muitos entendem, equivocadamente, sobre social, Latour (2012) nos apresenta a Teoria
do Ator-Rede (TAR ou ANT em inglês), como uma alternativa epistemológica para a
condução de pesquisa nas ciências sociais. Outrossim, cabe frisar que assistimos no início
da década de 1980 a virada pragmatista, “fazendo com que a ciência seja então percebida
como um conjunto de práticas envolvendo diferentes entes (humanos e não humanos) em
interação, inclusive aqueles do mundo não científico” (ANDION; CAMINHA, 2017,
p.15). Dessa forma este paper busca compreender o desenvolvimento da sociologia
das práticas científicas, e como a TAR e o pragmatismo, podem contribuir para o
desenvolvimento de pesquisas territoriais.
“Se todos os membros de uma comunidade respondessem a cada anomalia como se fosse
uma fonte de crise ou abraçassem cada nova teoria apresentada por um colega, a ciência
deixaria de existir” (KUHN, 2012, p.294). Assim assistimos ao longo das décadas o
profícuo desenvolvimento da ciência. Para especificar mais acerca do tema aqui proposto
(sociologia das práticas científicas) Andion e Caminha (2017) apresentam que a Filosofia
sempre foi a pioneira e por tempos, a única, a se ocupar do desenvolvimento científico,
principalmente a partir da Filosofia da Ciência e de Epistemologia. Mesmo depois do
surgimento da Sociologia a Filosofia continuou pioneira nesse sentido. Para os autores o
primeiro golpe à Filosofia ocorreu no início do século XX e ficou conhecido com a
Sociologia do Conhecimento que buscavam identificar se o conhecimento (não só o
científico, dominado pela física, sobretudo), tinha influência de fatores culturais e sociais.

De uma influência fenomenológica a sociologia do conhecimento destaca as diversas


formas de conhecimento (religioso, social, científico). Os estudos de Robert Merton
(2013), um dos principais representantes dessa sociologia, visa compreender a ciência
enquanto fenômeno empírico. O autor será o primeiro a pesquisar a ciência a partir da
sociologia e defenderá que a ciência é a aplicação do conhecimento certificado (ethos).
Dessa forma, criou o ethos científico (comunismo, universalismo, desinteresse e
ceticismo organizado) que representam um conjunto de ideias que, segundo Merton
(2013), devem balizar os métodos da ciência. O autor visualiza a ciência como acima da
sociedade e essa é uma das várias críticas que ele recebeu. No desenrolar do
desenvolvimento científico tivemos na sequência a Sociologia da Ciência, com destaque
para David Bloor e Pierre Bourdieu.

David Bloor vai contradizer Merton ao afirmar que a ciência não está para além da
sociedade. Inspirado em Durkheim (Formas elementares da vida religiosa) o autor
argumentará que o social pode explicar o conhecimento científico. Para Bloor até as
ciências duras (física e matemática) dependem dos fatores sociais. Sua principal
contribuição é o “Programa Forte na Sociologia do Conhecimento”, onde, através de
quatro princípios (causalidade, imparcialidade, simetria, reflexividade) o autor busca
apresentar o rigor do conhecimento científico a partir da distribuição da crença e nos
vários fatores sociais que influenciam o conhecimento (BLOOR, 2009, p.18). Outra
contribuição incomensurável da sociologia da ciência advém dos estudos de Pierre
Bourdieu, que por sua vez, apresentará uma leitura praxeológica da ciência e do mundo,
ao afirmar que as práticas sociais representam a incorporação do social, que conferem ao
mundo social seu caráter de evidência e de natural referente ao duplo processo de relação
dialética: interiorização da exterioridade e de exteriorização da interioridade
(BOURDIEU, 1983, p.46-47). Bourdieu também abre a possibilidade de uma
macrossociologia dos campos sociais. “O campo se particulariza, pois, como um espaço
onde se manifestam relações de poder, o que implica afirmar que ele se estrutura a partir
da distribuição desigual de um quantum [capital social] social que determina a posição
que um agente específico ocupa em seu seio” (BOURDIEU, 1983, p.20). O autor ainda
interpreta as práticas sociais com sentido de compreender a regularidade “que podem ser
apreendidas empiricamente sob a forma de regularidades associadas a um meio
socialmente estruturado, produzem habitus” – os sistemas de disposições duráveis, que
funcionam como estruturas estruturantes e que gera as estruturas práticas – objetivamente
regulamentada (BOURDIEU, 1983, p.15). A partir do conceito de habitus temos que as
disposições são coletivamente orquestradas que deformam e orientam a ação – o produto
das relações sociais. Outrossim, o autor apresenta notáveis contribuições em conceitos
chaves como capitais, campo e habitus, o que possibilita interpretarmos “a prática social
como um resultado de seu agrupamento” (BOURDIEU, 1983, p.160)

“Uma teoria científica é considerada superior a suas predecessoras não apenas porque é
um instrumento mais adequado para resolver quebra-cabeças, mas também porque é uma
representação melhor do que a natureza (evolução) realmente é” (KUHN, 2012, p.318-
319). Com essa afirmativa que tangencia uma evolução temos que a partir do final da
década de 1970, um marco importante vem celebrar o avanço da ciência. Trata-se do
primeiro estudo etnográfico - “Vida em Laboratório”

Bruno Latour
(1979) de Bruno Latour e Steve Woolgar. Outrossim, destaca-se as contribuições de
Harold Garfinkel, Michael Lynch e Eric Livingston que nos Estados Unidos começaram
a trazer sua perspectiva etnometodológica distinta para o que se passa no laboratório.
Outros autores contribuíram com esse avanço científico, findo com a exposição da Teoria
Ator-Rede (TAR) que surge a partir dos estudos de Bruno Latour [que desde Ciência em
Ação – 1897 – crítica e se distância da sociologia do conhecimento], Michel Callon, e
John Law (In: PICKERING, 1992, p.1).

“Embora não haja um método para encontrar tesouros, os caçadores de tesouros estão
eternamente procurando mapas ou guias - e é isso que o livro de Bruno Latour é. O que
constitui um tesouro é altamente pessoal, que é uma razão pela qual não pode haver
método para isso” (CZARNIAWSKA, 2006 p.1553). A obra de Latour, filósofo,
sociólogo e polêmico, nos implica em sempre continuarmos aprendendo e, para isso,
“cumpre-se mudar, desestruturar-se” (DEMO, 2012). Como citado por Czarniawska, não
deve haver método nem modelos. Latour apresenta que a realidade é tomada como
dinâmica, complexa e não linear, logo, a necessidade de se acompanhar os sujeitos para
compreender a natureza como é vista, percebida, vivida e interpretada pelo “ator”. A TAR
tem grande influência da fenomenologia, etnometodologia, pesquisa qualitativa, física
quântica e complexidade não linear (DEMO, 2012, p.43). Ademais, naturalmente,
discorda veemente do que chamou de sociologia do social (influência bourdiensiana),
deixa para trás a corrente positivista e o ethos das ciências. Em sua obra emprega a
abordagem da “sociologia de associações”, por compreender o significado do termo
social e buscar reagregar o social.

A TAR apresenta a dialética entre materiais e objetos, concedendo-lhe capacidade


recíproca na interação com o homem. Logo, Latour, uma vez mais, afirmará a não
dicotomia entre humanos e não-humanos (apresentada em Jamais Fomos Modernos –
Latour, 1994) a promoção da “purificação” e o problema da separação (que não deve
acontecer) entre a natureza e a cultura. Um ponto muito argumentado por Latour é o
“social”, que é interpretado nesta obra como “seguir”, um companheiro, um associado
(LATOUR, p.24) Para o autor a realidade é sempre uma sociedade - um conjunto de
associações, uma rede de atores, logo, “os atores sabem o que fazem e o que temos que
aprender deles é não apenas o que eles fazem, mas como e por que eles o fazem”
(LATOUR, 2012, p.19). Ou seja, somos nós os cientistas sociais que não conhecemos, e
não os atores “que estão faltando a explicação de por que eles são involuntariamente
manipulados por forças exteriores a si mesmos e conhecidos o olhar e os métodos
poderosos do cientista social”. Nesse jogo de manipulações que surgem as “explicações
sociais” (o social esclarecendo o social), quando em um ato de presunção os
pesquisadores tendem a querem prescrever e aplicar normas. “Siga os atores enquanto
enveredam por meio das coisas que acrescentaram às habilidades sociais para tornar mais
duráveis as interações em perpétua mudança” (LATOUR, 2012, p.104). Se por social
interpretamos “seguir”, Latour explica que o termo “rede” é a realidade composta por
humanos e não humanos que se associam. É formada a partir das associações. “Atores
são efeitos em rede, assumindo atributos das entidades [...] a rede parece ser termo
primeiro, pois os atores, só emergem em rede” (DEMO, 2012, p.45). Compreende-se
assim que o ator é uma entidade que flui – vive, age, interage – em redes, daí a
nomenclatura ator-rede.

Outros pontos da TAR: Captamos a importância de compreender que a natureza e a


sociedade não são dois polos distintos (LATOUR,2012). Não há nada de específico na
ordem social – nenhum contexto social, logo, “as organizações não precisam ser inseridas
em contextos porque elas mesmos dão significados as suas ações” (LATOUR, 2012,
p.26). Na TAR a relação macro-micro é formada no dia a dia decorrente das associações
ator-rede, e o cientista social deve buscar compreender como o local e o global são
estabelecidos, seguir os atores, identificar as controvérsias, o complexo e as associações.
O problema (dificuldade) é reunir novamente os atores naquilo que ainda não é uma esfera
social (LATOUR, 2012, p.31). Por fim, a TAR se mostra como um mapa ou guia e
confirma que o tesouro existe e motiva o pesquisador para começar a jornada
(CZARNIAWSKA, 2006).

O estudo da prática pode ter implicações de longo alcance para a disciplinaridade.


Podemos notar que as imagens da prática sustentadas dentro das tradições da ciência
como conhecimento tipicamente têm a qualidade de reduções distintamente disciplinares.
(PICKERING, 1992). Há de se frisar que as práticas já foram objeto analíticos de diversos
estudiosos durante o desenvolvimento da ciência, até mesmo Marx que relaciona a
fenomenologia e o interacionismo simbólico, e o próprio Bourdieu como narrado
anteriormente. Inspirado em SCHATZKI (2001), temos que as práticas são nexos
organizados de atividade, um conjunto de ações que as pessoas executam diariamente. As
práticas estão interligadas. A ordem social é estabelecida dentro da influência das práticas
sociais. As práticas são produtoras de vida social e representam a relação do “um” com
“outro” tendo, portanto, uma perspectiva relacional (PIERCE - abdução) e processual
(DEWEY – Experiência). Assim, “Ao modificarem profundamente o modo de realizar
investigações, as sociologias que reivindicam uma démarche pragmática colocaram em
evidência novas dimensões da vida social e mudaram o estatuto de um grande número de
objetos” (CHATEAURAYNAUD, 2015, p.1).

O desenvolvimento dessa sociologia remota o início dos anos 80 quando, a partir de um


cenário epistemológico pós-bourdieusiano, com influência do interacionismo, da
etnometodologia e das teorias da ação situada, diversos autores resgatam a filosofia
pragmática americana (Charles Pierce, William James, John Dewey e George Mead)
(BARTHE, et. al. 2016). Chateauraynaud (2015) apresenta que a capacidade crítica dos
atores e a ideia de se captar a experiência das pessoas fomentou o desenvolvimento e o
fortalecimento da sociologia pragmática francesa principalmente, a partir dos estudos da
ação situada (Louis Queré), ator-rede (Michel Callon e Bruno Latour) e prova de
justificação (Luc Boltanski e Laurent Thévenot).

Elucidado o desenvolvimento da sociologia das práticas, breves pontos da TAR e da


sociologia pragmática, suscita-se uma breve reflexão sobre como tais estudos podem
contribuir com o desenvolvimento de pesquisas territoriais. Chateauraynaud (2011)
apresenta a sociologia das controvérsias e convida os cientistas sociais a discutir o
desenvolvimento ambiental sob uma perspectiva das controvérsias e dos conflitos. “¡No
más alertas y controversias inacabables, demos lugar a verdaderas políticas públicas y a
la promulgación de normas eficientes!” (CHATEAURAYNAUD, 2011, p.23). A partir
do referido texto compreende-se que cada vez mais controvérsias e conflitos evoluem sob
o olhar de uma comunidade e faz-se necessário o “retorno a uma sociologia do conflito
capaz de pensar o antagonismo, o qual não se reduz ao resultado infeliz de um litígio mal
julgado [...] nesse trajeto, o estudo de múltiplas disputas e controvérsias tornou-se
necessário” (CHATEAURAYNAUD, 2012, p.209). Já em A Captura como Experiência
(2017), o autor apresenta o laborioso conceito de prise - a boa aderência, capturar as
situações de prova e colocar a público. Evidenciar os agenciamentos dos operadores.
Contudo, se a aderência é excessiva, a mão prende e o escalador fica aprisionado (ex. o
caso Marielle), “todos os tipos de atores surgem nas arenas submetidas antes a "severas"
condições de acessibilidades quando contrapoderes nascem em torno de novas práticas”
(CHATEAURAYNAUD, 2011, p.4). Em outra vertente, Andion et. al. (2017) analise o
território a partir da formação de ecossistemas de inovação social, sob a ótica do
pragmatismo, que possibilita “uma nova compreensão desse processo, relacionando os
debates sobre ação coletiva da sociedade civil, inovação social e ação pública” (ANDION
et. al. 2017). Diversas possibilidades frente a diferentes cenários. Como podemos abordar
a dinâmica do território a partir da sociologia pragmática? Os temas são provocativos e
demandam profundidade em leitura.

Questionamentos:
1) Como os cientistas começaram a interpretar a ciência prática?
2) Quais os principais objetivos da ANT?
3) Quais as contribuições do estilo pragmático de se fazer pesquisa?
Referências
ANDION, C., RONCONI, L., MORAES, R. L., GONSALVES, A. K. R.; SERAFIM, L.
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