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O PROFESSOR DE PORTU GUÊS E SEU DISCURSO

formações e os primeiros contatos com os cursis tas revela-


O professor de português e seu discurso vam uma clientela atualizada, detentora de um domínio
significativo de conhecimentos relativamente sofisticados
Sonia A parecida Lopes B ENITES sobre as diversas correntes da pragmática, bem como de
noções de Análise do Discurso e Lingüística Aplicada.
Universidade Estadual de Maringá
Entretanto, no decorrer do curso, podiam ser tam-
bém ouvidas, no discurso de cada professor participante,
vozes conservadoras, provenientes do trabalho proposto
por grande parte dos livros didáticos e da sociedade em
geral, que, vislumbrando deterioração no uso de língua do
INTRODUÇÃO brasileiro médio, clama por um ensino de língua segundo
os moldes tradicionais, aqueles dos quais, aliás, a maioria
Este trabalho visa apresentar os resultados de uma dos professores se originou. Nos cursos, essas vozes eram
pesquisa de cunho interpretativo, realizada junto a profes- ouvidas nos momentos em se discutiam conteúdos e meto-
sores do ensino fundamental, das redes particular, estadual dologias, aspectos práticos referent es à atuação em sala de
e municipal de Maringá - Paraná, no período compreend i- aula, quando os professores revelavam assumir posturas
do entre os anos de 1996 e 2000, com o objetivo de depre- rigorosamente normativistas ou estruturalistas, como for-
ender a imagem do professor de língua materna que atua ma de operacionalização das teorias acima mencionadas,
no nível fundamental, a partir da análise de seu discurso e tidas como conhecidas. Nesses momentos, os depoimentos
de evidências de sua prática pedagógica. refletiam uma posição negativa frente às propostas meto-
Durante esse período, ministramos diversos cursos dológicas condizentes com os objetivos que os professores
de atualização, versando sobre temas referentes ao ensino haviam afirmado perseguir. Não raro, essa postura era
de língua materna, escolhidos pelos coordenadores de área, atribuída também aos pais dos alunos, que, segundo os
em conjunto com os professores dos estabelecimentos professores, “consideram que o ensino tradicional funcio-
envolvidos. Para facilitar o atendimento das expectativas nava muito bem, por isso não vêem motivo para mudan-
dos interessados e uma construção mais aproximada da ças” (T.R.P, professora da rede estadual, que freqüentou
imagem de suas necessidades, era-nos freqüentemente um curso de atualização em 1998).
facultado o acesso ao material didático da clientela atend i- Surgiu, a partir daí, o questionamento: Quem é o
da por esses docentes. professor de português? Qual a sua identidade? Em seu
O planejamento de cada curso era, igualmente, sub- discurso didático-pedagógico pareciam conviver, hetero-
sidiado por informações sobre a formação educacional dos gênea e paradoxalmente, a tradição e a modernidade, o
profissionais atingidos, bem como sobre seu envolvimento velho, que transmite segurança, e o novo, que, apesar de
nos chamados cursos de educação continuada. Essas in- despertar desconfiança, confere prestígio. O conflito daí

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decorrente gerava, com freqüência, aflição, desencanto e A QUESTÃO DA IDENTIDADE


uma baixa auto-estima.
Contribuíam, para a manutenção desse estado de Segundo Hall (1997), mais apropriado que falar em
coisas, os papéis cristalizados de alunos e professores, o identidade é falar em identificação, para fazer refer ência a
que levava à constatação de que a propalada inter ação esse processo, em constante construção e reformulação,
professor/aluno não ocorre na prática, fazendo a relação típico do ser humano. Para o autor, a ident idade do sujeito
deteriorar-se, propiciando o menosprezo ou a ironia de pós-moderno não é fixa, mas define-se historicamente,
alunos frente a observações do professor, e representando variando de acordo com as representações e interpelações
um bloqueio ao envolvimento de todos em situações que culturais. Isso faz dele um ser incoerente, portador de iden-
poderiam ser significativas para o processo de ensino- tidades contr aditórias. Não se trata, portanto, de ser de
aprendizagem. uma forma ou de outra, mas de ser de uma forma e de ou-
Decidimos, a partir daí, buscar explicação para a tra:
multiplicidade de vozes que caracteriza o discurso do pro-
fessor na concepção teórica de heterogeneidade discursiva, O sujeito assume identidades diferentes em diferentes
momentos, identidades que não são unificadas ao redor
tal como concebida por Authier -Revuz (1982); para o en- de um "eu" coerente. Dentro de nós há identidades con-
tendimento do mosaico que const ituía sua imagem, bas e- traditórias, empurrando em diferentes direções, de tal
amo-nos em Hall (1997). As reflexões daí decorrentes, a modo que nossas identificações estão sendo continu a-
exemplificação e os comentários acerca das vozes “inova- mente deslocadas. (Hall, 1997, p. 12)
doras” e “conservadoras” que constituem o discurso do
professor são o objeto do presente artigo. Partindo do princípio de que as palavras são cons ti-
Embora nos interessemos particularmente pela ma- tutivas da identidade do sujeito, procuramos interpretar os
terialidade lingüístico-discursiva, procuraremos não perder sentidos contidos no discurso do professor de língua por-
de vista o não dito, as lacunas deixadas entre um dizer e tuguesa. Como pressupomos que esse discurso não é uno,
outro, bem como as diferentes formas de dizer. Em um homogêneo e tampouco original, seria mais apropriado
segundo momento, centrar emos nossa atenção na prática falarmos sobre os discursos do professor, e identificar as
do professor, através da análise de cadernos dos alunos, de diferentes vozes neles presentes. Ev identemente, faz-se
forma a identificar as posições ideológicas presentes tanto imprescindível, igualmente, a consideração das condições
no discurso quanto na ação. de produção desses discursos, isto é, sua historic idade e o
contexto sócio-ideológico em que foram produzidos, ao
lado de sua prática pedagógica.
Dessa forma, o professor de língua portuguesa será
visto, neste trabalho, como um sujeito cuja identidade en-
contra-se em mudança constante, portador de um discurso

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heterogêneo, constituído por outros discursos, sobre os não pod e deixar de servir-se das idéias gerais, das aprecia-
quais, na maioria das vezes, não tem o menor controle. ções e das definições já dadas a conhecer. E, ao penetrar
Identificando-se com diferentes domínios do saber, nesse meio agitado por diálogos e palavras tensas, o dis-
os professores sujeitos demonstram filiações a diferentes curso cruza-se com outros, separa-se de outros tantos e se
Formações Discursivas, marcadas histórica e ideologic a- funde com muitos outros.
mente ora pela escola tradicional, ora pe la estrutural ou A segunda noção basilar para a formulação do con-
por uma concepção interacionista. Desfazem, assim, a ceito de heterogeneidade do sujeito e, conseqüentemente,
noção de unicidade e homogeneidade que o sujeito julga do discurso (Authier -Revuz, 1982), é a "ilusão do eu",
inerentes a si (cf. a concepção freudiana), revelando uma preconizada por Freud. É graças a essa ilusão que o sujeito
multiplicidade de dizeres tensos, oriundas de sujeitos hete- se apresenta como centro de sua enunciação e se imagina
rogêneos que se movem de uma posição-sujeito a outra, fonte única de seu discurso, embora não faça mais que
deixando marcas de seu percurso histórico e de sua auto- reproduzir concepções provenientes do momento em que
identificação como professores atualizados e modernos. vive e do espaço que ocupa. Essa ilusão ou esse desconhe-
cimento justifica-se por localizar -se no inconsciente, o que
propicia uma alt eração no conceito de “outro”, conforme
HETEROGENEIDADE DISCURSIVA preconizado por Bakhtin. Este seria constituído não apenas
pelo alocutário do discurso mas pelo próprio inconsciente
O conceito de heterogeneidade do sujeito e do dis- do locutor, povoado por vozes da família, da escola, da
curso, formulado por Jacqueline Authier -Revuz (1982), religião, do grupo social a que pertence, das experiências
tem origem em duas fontes: a concepção do duplo dialo- vividas, enfim, por tudo o que caracteriza a historicidade
gismo bakhtiniano e a abordagem freudiana do sujeito. A dos indivíduos.
primeira postula, para todo ato de fala, o dialogismo do Partindo desses princípios e, considerando ser tarefa
discurso com o discurso do outro (o interlocutor), tal como do lingüista reconhecer, na ordem do discurso, a realidade
é imaginado pelo locutor, e o dialogismo do discurso com das formas pelas quais o sujeito se representa como centro
outros discursos. de sua enunciação, Authier -Revuz formula, inicialmente, o
Segundo a concepção bakhtiniana, o alocutário a- conceito de Heterogeneidade Constitutiva, segundo o qual:
presenta-se como agente da construção da mensagem do
locutor, uma vez que sua imagem é levada em conta, no Todo discurso é constitutivamente atravessado por “ou-
processo de produção do discurso, constituindo-o, portan- tros discursos” e pelo “discurso do Outro”. O outro não
to. Além disso, todo discurso se constrói pela relação com é um objeto (exterior, do qual se fala) mas uma condi-
outros, que, dessa forma, se estabelecem como seu “exte- ção (con stitutiva, pela qual se fala) do discurso de um
rior constitutivo”. Isso porque, surgindo num momento sujeito falante que não é a fonte primeira de seu discur-
histórico e num meio social determinados, um enunciado so. (Authier-Revuz, 1982, p. 141).

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Conforme enfatiza a autora, a relação de um discur- de refletir a respeito de sua prática educativa, posicionan-
so com “outros discursos” e com o “discurso do outro” não do-se sobre os objetivos que o moviam, sobre a contribu i-
é exterior, mas inerente a ele. Ou seja, um discurso é hete- ção dada pelos conteúdos desenvolvidos para que se atin-
rogêneo porque sempre comporta outros, constitutivamen- gissem esses objetivos, sobre as razões que justif icavam a
te, em seu interior. Dito de outra forma, todo dis curso é seleção de conteúdos realizada e sobre a metodologia ado-
heterogêneo porque o sujeito do discurso é heterogêne o, na tada nas aulas. Durante as entrevistas, procuramos registrar
medida em que, através de sua boca, falam diversas vozes. não só o conteúdo das respostas mas também o tom das
Essa heterogeneidade é, quase sempre, ignorada pe- verbalizações e as reações não verbais dos professores
lo locutor, que tem a impressão produzir um discurso ho- participantes. O segundo instrumento, a análise dos cader-
mogêneo, esquecendo a incorporação, quando da constru- nos dos alunos, permitiu-nos cotejar as diferentes vozes
ção de sua fala, de determinados enunciados, os quais, constitutivas dos discursos do professor.
uma vez ali inseridos, provocam um efeito de originalida-
de.
Entretanto, se, na maioria das vezes, escapa ao loc u- VOZES INOVADORAS
tor a percepção de que seu discurso é constitutivamente
heter ogêneo, há situações em que ele não apenas percebe a Considerando que uma visão clara dos objetivos do
presença do outro em sua fala, como deseja dar a conhecer ensino de língua portuguesa precede, necessariamente, a
essa presença. São os casos que Authier-Revuz (1982) seleção de objet ivos e de metodologias, esse era o teor do
denomina de Heterogeneidade Mostrada, em que, ao con- primeiro questionamento feito aos professores, no início
finar o outro a um fragmento discursivo, o locutor institui de cada curso. As respostas abordavam, invariavelmente, a
todo o resto do discurso como emanando dele próprio. formação de um leitor crítico, de um falante capaz de ade-
Através desse procedimento, o locutor, pela posição meta- quar sua modalidade lingüística às exigências da situação
lingüística em que se coloca, define sua capacidade de de fala, e de um “escritor” capaz de se colocar como sujei-
separar o seu discurso do discurso do outro, atribuindo ao to e redigir textos pertencentes às diferentes modalidades
fragmento marcado pelas formas de HM o estatuto de uma textuais exigidas em sua faixa etária. Eis alguns exemplos:
particularidade acidental, algo contingente, evitável.
Procuraremos, a seguir, verificar até que ponto o “Todos os cursos que a gente faz falam que é importan-
professor tem consciência dessa heterogeneidade e a de- te que o aluno saiba usar a linguagem oralmente e por
escrito, de maneira adequada à situação.” (M.F.P/RE–
monstra em sua construção discursiva. Para nos aprox i- 1997) 1
marmos da prática efetiva dos professores, utilizamos, na
coleta de dados, além de entrevistas, a análise dos cader-
1
nos dos alunos. O primeiro instrumento apresentou-se-nos - RE, RM e RP significam rede estadual, rede municipal e rede
acessível e útil, por propiciar ao professor a oportunidade particular, respectivamente. O número refere-se ao ano em que
o dado foi coletado.

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• utilizar a linguagem na escuta e produção de textos


“Ler criticamente e escrever adequadamente são requi- orais e na leitura e produção de textos escritos, de mo-
sitos para obter sucesso na profissão e na vida. E o pa- do a atender a múltiplas demandas sociais, responder a
pel da escola é ensinar ambas as coisas.” (L.R.B./RP– diferentes propósitos comunicativos e expressivos, e
1998) considerar as diferentes condições de produção do dis-
curso;(...)
“Tento formar ‘leitores desconfiados’, que não se dei- • analisar criticamente os diferentes discursos, inclusive
xem manipular pelo autor do text o.” (M.G.S.B./RE– o próprio, desenvolvendo a capacidade de avaliação
1996) dos textos(...); inferindo as possíveis intenções do autor
marcadas no texto; (...); percebendo os processos de
“Desejo formar um aluno que, como dizem os PCNs, convencimento utilizados para atuar sobre o interlocu-
domine os meandros da escrita, colocando-se como su- tor/leitor; reafirmando sua identidade pessoal e social
jeito de seu texto e argumentando para conseguir o que (...).” (PCNs, 1998:67)
deseja.” (J.F.G./RM-1999)
Como a consecução desses objetivos pressupõe op-
Percebemos, no discurso do professor, a voz institu- ções teóricas, impunha-se que as entrevistas se voltassem
cional que, refletindo modernas filosofias de educação, para as concepções de linguagem. Com respeito a esse
ecoa em publicações oficiais recentes. No primeiro e no aspecto, a maioria dos professores entrevistados demons-
quarto exemplos, o professor percebe a heterogeneidade trou, novamente, estar conectada com posições teóricas
discursiva e procura mostrá-la ao ouvinte, de forma a dar bastante inovadoras, afirmando considerar a linguagem
autor idade a seu discurso. Os Parâmetros Curriculares não como um produto homogêneo e abstrato, mas como
Nacionais, citados na fala de J.F.G. e objeto de discussão um processo, em constante construção. Nesse sentido,
em reuniões e cursos de atualização promovidos pelas revelaram perceber nitidamente a subjetividade inerente a
escolas, sintetizando tendências lingüísticas desenvolvidas todo ato de fala, invariavelmente marcado pelo locutor,
nas últimas décadas, propõem: tanto no que diz respeito a suas posições quanto no que diz
respeito a sua relação com o alocutário. Na maioria das
No processo de ensino-aprendizagem dos diferentes ci- vezes, porém, os professores demonstraram não perceber o
clos do ensino fundamental, espera-se que o aluno am- lugar de onde vinham as vozes presentes em seu discurso,
plie o domínio ativo do discurso nas diversas situações sentindo-o como inteiramente seu. Consideremos algumas
comunicativas, sobretudo nas instâncias públicas de dessas manifestações:
uso da linguagem, de modo a possibilitar sua inserção
efetiva no mundo da escrita, ampliando suas possibili-
“A língua não é a mesma para todos as regiões ou todos
dades de participação social no exercício da cidadania.
os grupos sociais. Por isso, nas reuniões de planejamen-
Para isso, a escola deverá organizar um conjunto de a- to, sempre se fala que é importante respeitar a varied a-
tiv idades que, progressivamente, possibilite ao aluno:
de lingüística do aluno.” (S.M.M.S./RM/1998)

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“É necessário que o aluno reconheça a sua forma de fa- • reconhecer e valorizar a linguagem de seu grupo soci-
lar como uma forma particular, diferente, característica, al como instrumento adequado e eficiente na comuni-
mas não errada. (...) Precisamos lembrar que não fala- cação cotidiana, na elaboração artística e mesmo nas
mos da mesma forma em todas as situações ou com to- interações com pessoas de outros grupos sociais que se
das as pes soas. “ (M.P.F./RE/2000) expressem por meio de outras variedades (...). (p. 41)

“Ao falar, escolhemos palavras e expressões que consi- Em relação à performatividade da linguagem, os
deramos adequadas a nossa maneira de ser. (...) Procu- PCNs afirmam, em outro momento:
ramos também agradar ao nosso ouvinte.”
(T.L.P./RP/1999) (...) pela linguagem se expressam idéias, pensamentos e
intenções, se estabelecem relações interpessoais anteri-
Quanto à importância da consideração da imagem ormente inexistentes e se influencia o outro, alterando
que o locutor faz do alocutário, quando da construção de suas representações da realidade e da sociedade e o ru-
um texto, os professores foram unânimes, reconhecendo-a mo de suas (re)ações. (p. 24)
como determinante da delimitação e da forma de aborda-
gem do tema, uma vez que a linguagem comporta, mais As palavras dos professores entrevistados demons-
que regras lingüísticas, regras sociais. Ainda quanto a esse travam que alguns deles reconheciam o sujeito do discurso
aspecto, revelaram perceber a função performativa da lin- como resultado da aglutinação de outras vozes, social e
guagem, que não representa a realidade, mas é responsável ideologicamente marcadas:
por sua criação, já que todo dizer implica um fazer:
“Pessoas do mesmo grupo social costumam ter idéias e
“Através da linguagem, podemos convencer os outros, formas de se expressar parecidas. Eu mesma, às vezes
deixá -los zangados ou felizes, fazer rir ou fazer chorar. me pego repetindo trechos que li em jornais ou pedaços
(...) as palavras dos outros podem despertar em nós es- do sermão do padre.” (M.F.E/RP/1997)
ses mesmos sentimentos.” (J.D.P/ RM/ 1998)
Por último, em relação ao papel da gramática na es-
Os professores mostravam -se, assim, afinados teor i- cola, os professores afirmavam que ela
camente com a pragmática, a sociolingüística e as teorias
do texto e do discurso em geral, sintetizadas mais uma vez “não é um fim, mas um auxiliar na formação de leito-
nos PCNs, que afirmam serem objetivos das aulas de lín- res e produtores de textos mais eficientes. De nada adi-
gua portuguesa: anta conhecer toda a nomenclatura gramatical e não
conseguir produzir um texto com coesão e coerência. ”
• conhecer e valorizar as diferentes variedades do por- (A.T.C./RP/ 1997).
tuguês, procurando combater o preconceito lingüístico;

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Esse trecho do discurso de A .T.C. faz ecoar mais curso como essencial. Se o que interessa não é descrever
uma vez a voz dos PCNs: ou aprender uma língua, para só então utilizá-la, pode-se
supor que o educador, em sala de aula, volte-se para os
Deve-se ter claro, na seleção dos conteúdos de análise usos sociais da linguagem, tomando-os como objeto de
lingüística, que a referência não pode ser a gramática estudo.
tradicional. A preocupação não é reconstruir com os a- Entretanto, embora tenha sido observado um certo
lunos o quadro descritivo constante dos manuais de consenso a respeito dos objetivos do ensino de língua ma-
gramática escolar (por exemplo, o estudo ordenado das terna na escola, o caminho para alcançá-los revelou-se
classes de palavras com suas múltiplas subdivisões, a
construção de paradigmas morfológicos, como as con-
variado e, na maioria das vezes, questionável.
jugações verbais estudadas de um fôlego em todas as Dessa forma, ainda que reconhecessem a função so-
suas formas temporais e modais, ou de pontos de gr a- cial da linguagem, vendo-a como responsável pelo estabe-
mática, como todas as regras de concordância, com su- lecimento de vínculos diferenciados, conforme as inten-
as exceções reconhecidas).(...) ções dos envolvidos nas diversas relações, como se verif i-
O que deve ser ensinado não responde às imposições de cou no item anterior, os professores entrevistados revela-
organização clássica de conteúdos na gramática esco- ram não enfatizar a necessidade de situar socialmente o
lar, mas aos aspectos que precisam ser temat izados em ensino da língua escrita, propiciando ao aluno o estabele-
função das necessidades apresentadas pelos alunos nas cimento de relações com alocutários reais, em situações
atividades de produção, leitura e escuta de textos. (p.
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definidas, de forma a poder argumentar para alcançar o
efeito pretend ido.
Infelizmente, as concepções teóricas referentes às Como é sabido, na sala de aula, a voz que mais se
concepções de língua e de linguagem subjacentes aos obje- ouve é a do autor do livro didático. Este, via de regra, traz
tivos do ensino de língua materna apontados no discurso à tona vozes normativistas, preocupadas não com o de-
senvolvimento da competência escrita do aluno, mas com
dos professores não se materializam nos conteúdos e nas
o treinamento de itens gramaticais. Mesmo quando apre-
metodologias adotadas em sala de aula. Como veremos a
senta um cunho mais descritivista, revelando traços do
seguir, em relação a esses aspectos, são outras as vozes
estruturalismo lingüístico, a única modalidade lingüística
evocadas.
descrita é a culta, enfatizada em exercícios behavioristas.
Daí as atividades de redação propostas, completamente
VOZES CONSERVADORAS dissociadas da realidade da criança, dentre as quais, a se-
guir, apresentamos algumas, colhidas nos cadernos dos
Uma concepção da linguagem em seu funcionamen- alunos, a título de exemplos:
to, como trabalho constante de sujeitos, implica, eviden-
temente, a consideração do processo de produção de dis-

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“Escreva você também sobre a palavra liberdade. Faça identificamos nos cadernos analisados uma preocupação
como Cecília Meireles: às vezes, use as reticências a com a decodific ação pura e simples, como em algumas
fim de deixar espaço para a imaginação do leitor.” (C a- questões de leitura referentes ao texto “Marcelo, marmelo,
derno de 6ª série, aluno de J.F.G./RM-1999) martelo”, de Ruth Rocha:
“Renata Pallotini escreveu seu texto em versos. Vocês “1)Qual é a queixa que Marcelo tem da linguagem?
também podem criar um poema coletivo usando o fut u-
2)Por que a mãe de Marcelo disse que ele não poderia
ro do presente ou o futuro do pretérito. Sugerimos dois se chamar marmelo?
títulos e deixamos o resto com a imaginação e sensibi- 3)Como Marcelo decidiu chamar a colherzinha de me-
lidade do grupo.
xer café?
1) Que bom seria se ... 4)Que significa ‘suco de vaca’ na língua de Marcelo?”
2) Que bom será quando ...” (Caderno de 6ª série, aluno (Caderno de 5ª série, aluno de M.G.S.B./RE–1996)
de J.F.G./RM-1999)

“Crie um anúncio para vender relógios importados, u- Em outras situações, a pergunta que visava avaliar a
sando em seu texto pronomes possessivos e oblíquos.” leitura já apresentava, em sua formulação, o direciona-
(Caderno de 5ª série, aluno de (J.D.P/ RM/ 1998) mento que o aluno deveria dar à resposta. É o caso, por
exemplo, de questões ref erentes a uma entrevista de Sérgio
“1.Recortem de jornais e revistas, ou copiem de livros, Groissman:
frases que contenham orações subordinadas substanti-
vas objetivas diretas e objetivas indiretas. “Comparando os jovens de hoje com os dos anos 60 e
2.Dêem novas redações às frases, de modo que sobres- 70, Serginho acha que atualmente o jovem demonstra
saiam outras idéias. Mudem a posição dos termos das incoerência quanto ao modo de pensar, de agir e de se
orações diversas vezes, mas sempre levando em conta a vestir.
coerência e a clareza dos enunciados. Você concorda com esse ponto de vista? A abundância
3.Montem um cartaz com as frases originais e as novas de gr upos ou ‘tribos urbanas’ – punks, góticos, metalei-
redações que a elas foram dadas e o exponham à classe. ros, skinheads, darks, etc. – não contraria essa opinião?
” (Caderno de 8ª série, aluno de (A.T.C./RP/ 1997) b) Pela fala do apresentador, a juventude daquelas dé-
cadas parecia ser mais homogênea. Mas será que na-
Em relação à leitura, o quadro não se apresentou quela época mesmo os jovens que trabalhavam na la-
muito diverso. Embora tivessem se manifestado favoráveis voura ou nas fábricas ou estavam presos em casas de
a uma concepção que permitisse aos alunos serem capazes recuperação de menores se interessavam pelas questões
de agregar conhecimentos semióticos, históricos, ideoló- políticas?” (Caderno de 8ª série, aluno de
E.M.C./RP/1999)
gicos e pragmáticos, em uma leitura de mundo (“É preciso
descobrir as intenções do autor, entender as razões do
comportamento dos person agens(...)” – E.M.C./RP/1999),

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A leitura assim realizada não exige um leitor de a- CONCLUSÃO


guçada criticidade, que, mobilizando seus conhecimentos
prévios, seja capaz de preencher os vazios do texto e cons- Com este trabalho, procuramos interpretar os senti-
truir sua significação global, percorrendo as pistas, as ind i- dos contidos no discurso dos professores de língua portu-
cações nele colocadas. E, mais ainda: não contribui para a guesa, de modo a tentar responder, ao final, quem são es-
formação de um sujeito que seja capaz de ultrapassar os ses professores. Podemos concluir que eles (como, de res-
limites pontuais de um texto e incorporá-lo reflexivamente to, todos os seres humanos) confirmam os estudos de Hall
no seu universo de conhecimento, de forma a levá-lo a (1997), apresentando-se como o resultado de imagens um
melhor compreender seu mundo e seu semelhante. (Bran- tanto desfocadas de sua subjetividade, constitutivamente
dão e Micheletti, 1997). contraditória e heterogênea. Por um lado, apresentam-se
A análise das atividades propostas pelos professores como indivíduos unos e coerentes, com concepções teór i-
cursistas (ou pelo autor do livro didático adotado) levou à cas seguras e bem fund amentadas. Por outro lado, abrem
percepção de um divórcio entre um discurso teórico ino- mão de seu papel de sujeitos reflexivos em relação a seu
vador e uma prática conservadora, um grande abismo entre objeto de estudo e de trabalho, delegando ao autor do livro
os objetivos gerais presentes nos planejamentos curricula- didático e à comunidade externa à área autoridade para
res e exaustivamente propalados, e sua operacionalização, validar o que e como ensinar nas aulas de língua portugue-
através de metodologias e conteúdos adotados em sala de sa.
aula. Os métodos e as propostas práticas da maioria dos Tanto o discurso teórico quanto as palavras implíci-
professores acabou por revelar o discurso tradicional, ex- tas na ação pedagógica desse grupo de professores são
plícito na sociedade mas muitas vezes velado nos meios constitutivas de sua identidade. Dessa forma, eles se reve-
escolares, segundo o qual para bem dominar a língua escri- laram profissionais ativos, acostumados a submeter os
ta, é necessário que o aluno leia linearmente, conheça uma objetivos de seu trabalho em sala de aula a questionamen-
vasta metalinguagem gramatical e apresente ao professor tos e discussões. A grande maioria demonstrou possuir
redações com o objetivo de demonstrar domínio da única uma concepção de linguagem bastante consistente e atual
norma efetivamente aceita: a culta, asséptica, abstrata e (forma de interação, entidade heterogênea, que se manifes-
homogênea. Vindo, ao mesmo tempo, de lugares teóricos ta de maneiras variadas). Todos demonstraram colocar
tão diferentes e divergentes, o discurso do professor apre- como ponto de chegada de suas aulas o domínio do texto
sentou-se incoerente e contraditório. pelo aluno, tanto enquanto leitor como enquanto escritor.
Contraditoriamente, porém, a análise dos conteúdos
e exercícios propostos, bem como a metodologia aplicada
demonstraram a presença constante de vozes provenientes
de um lugar menos inovador, ou seja, de concepções pre-
conceituosas em relação à língua portuguesa, decorrentes

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da formação normativista a que o próprio professor foi e ensinar com textos didáticos e paradidáticos. São Paulo:
submetido. Cortez, 1997.
Como, entretanto, segundo Hall (1997), a identific a- BRASIL, S.E.F. Parâmetros Curriculares Nacionais –
ção é um processo, em constante construção e reformula-
Língua portuguesa – 1ª a 4ª séries. Brasília, 1998.
ção, os resultados podem não fazer jus ao atual momento
por que passa o mesmo grupo, que pode haver sofrido CORACINI, M. J. F. A Escamoteação da Heterogeneidade
alterações em direções variadas, conforme as representa- nos Discursos da Lingüística Aplicada e da Sala de Aula.
ções e interpelações culturais a que se submeteu desde a Revista LETRAS nº 14 - Alteridade e Heterogeneidade.
coleta de dados. Esse fato, certamente, não o tornou menos Universidade Federal de Santa Maria, RS, janeiro a junho
incoerente, já que incoerência e contradição são caracterís- de 1997.
ticas humanas. CORACINI, M. J. Subjetividade e identidade do professor
de português (LM). Trabalhos em Lingüística Aplicada,
REFERÊNCIAS Campinas, n. 36, p. 147-158, 2000.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade.
AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade(se) Trad. Tomás T. da Silva e Guaciara Louro. Rio de Janeiro:
enunciativa(s). Cadernos de Estudos Lingüísticos (19). DP&A Ed., 1997.
Trad. Celene. M. Cruz e João Wanderley Geraldi. Campi-
nas, 1990.
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