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A água nossa de cada dia

Marco Antonio Ferreira Gomes*

Foto: Eliana Lima

Considerações gerais

A água é o constituinte mais característico e peculiar do Planeta Terra. Ingrediente


essencial à vida, a água é talvez o recurso mais precioso que a humanidade
dispõe. Embora se observe pelo mundo afora tanta negligência e tanta falta de
visão com relação a este recurso, é de se esperar que os seres humanos tenham
pela água grande respeito, que procurem manter seus reservatórios naturais e
salvaguardar sua pureza. De fato, o futuro da espécie humana e de muitas outras
espécies pode ficar comprometido, a menos que haja uma melhora significativa no
gerenciamento dos recursos hídricos terrestres.
Quase toda a água do planeta está concentrada nos oceanos. Apenas uma
pequena fração (menos de 3%) está em terra e a maior parte desta está sob a
forma de gelo e neve ou abaixo da superfície (água subterrânea). Só uma fração
muito pequena (cerca de 1%) de toda a água terrestre está diretamente disponível
ao homem e aos outros organismos, sob a forma de lagos e rios, ou como
umidade presente no solo, na atmosfera e como componente dos mais diversos
organismos.

Por mais que seja de conhecimento geral que apenas 1% da água do planeta é de
aproveitamento para consumo humano e de que este é um recurso fundamental
para a existência e sobrevivência da raça humana, estamos longe de possuir um
manejo adequado de nossas fontes de água doce.

Com o crescimento urbano, a expansão industrial e a demanda por energia


hidrelétrica de um lado, e a poluição das águas superficiais e subterrâneas e as
mudanças climáticas provocando severas secas de outro, fica cada vez mais difícil
obter água limpa.

O setor agrícola também contribui e muito para a redução da disponibilidade do


recurso, pois é responsável por 65% do consumo, em média, de água doce. Para
se ter uma idéia, para produzir a quantidade de alimentos necessária a uma
pessoa, por dia, são utilizados de 2 mil a 5 mil litros de água. Com uma população
mundial estimada de 9 bilhões de habitantes para o ano de 2050, a agricultura terá
um enorme desafio pela frente na busca de técnicas e procedimentos de manejo e
uso racional e sustentável dos recursos hídricos.

A água no mundo

A quantidade de água doce no mundo está estimada em 34,6 milhões de km3 (ref.
1km3 corresponde a 1 trilhão de litros), porém somente cerca de 30,2% (10,5
milhões de km3 – água doce subterrânea, rios, lagos, pântanos, umidade do solo e
vapor na atmosfera) podem ser utilizados para a vida vegetal e animal nas terras
emersas. O restante, cerca de 69,8% (24,1 milhões de km3) encontra-se nas
calotas polares, geleiras e solos gelados. Dos 10,5 milhões de km3 de água doce,
aproximadamente 98,7% (10,34 milhões de km3) correspondem à parcela de água
subterrânea, e apenas 0,9% (92,2 mil km3) corresponde ao volume de água doce
superficial (rios e lagos) diretamente disponível para o consumo humano. Esse
volume é suficiente para atender de 6 a 7 vezes o mínimo anual que cada
habitante do Planeta precisa, considerando a população atual de 6,4 bilhões de
habitantes.

Se em escala global a água doce é suficiente para todos, sua distribuição é


irregular no território. Os fluxos estão concentrados nas regiões intertropicais, que
possuem 50% do escoamento das águas. Nas zonas temperadas, estão 48%, e
nas zonas áridas e semi-áridas, apenas 2%. Além disso, as demandas de uso
também são diferentes, sendo maiores nos países desenvolvidos.
O cenário de escassez se deve não apenas à irregularidade na distribuição da
água e ao aumento das demandas - o que muitas vezes pode gerar conflitos de
uso – mas também ao fato de que, nos últimos 50 anos, a degradação da
qualidade da água aumentou em níveis alarmantes. Atualmente, grandes centros
urbanos, industriais e áreas de desenvolvimento agrícola com grande uso de
adubos químicos e agrotóxicos já enfrentam a falta de qualidade da água, o que
pode gerar graves problemas de saúde pública.

Em termos percentuais, a distribuição relativa dos recursos hídricos no Planeta


está definida da seguinte forma: 27% - América do Sul; 26% - Ásia; 17% - América
do Norte; 15% - Europa; 9% - África; 4% - Oceania; 2% - América Central.
Segundo o relatório das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento dos Recursos
Hídricos no Mundo, atualmente 1,3 bilhão de pessoas não possui acesso à água
potável e cerca de 40% da população mundial não dispõem de condições
sanitárias básicas.
Para se ter uma idéia do agravamento de água disponível para consumo, existe
uma estimativa da ONU de que no ano de 2025 os prováveis 8 bilhões de
habitantes devem partilhar da mesma quantidade de água doce hoje disponível
para cerca de 6,4 bilhões. Deste modo, as reservas em 2025 serão em média de
4.800 m3 por habitante/ano, contra 7.300 m3 disponíveis por habitante/ano em
2000 e, 16.800 m3 por habitante/ano em 1950. No Brasil este valor era de 34.000
m3 por habitante/ano em 2000 e não difere muito em relação a 2009, colocando-o
como privilegiado em disponibilidade hídrica em comparação à média mundial.

A água no Brasil

O Brasil detém cerca 12% da reserva hídrica do Planeta, com disponibilidade de


182.633 m3/s, além de possuir os maiores recursos mundiais, tanto superficiais
(Bacias hidrográficas do Amazonas e Paraná) quanto subterrâneos (Bacias
Sedimentares do Paraná, Piauí, Maranhão). Todo esse potencial tem o reforço de
chuvas abundantes em mais de 90 % do território, aliadas a formações geológicas
que favoreceram a gênese de imensas reservas subterrâneas, como também
possibilitaram a instalação de extensas redes de drenagem, gerando cursos
d’água de grandes expressões.

Todavia, esse potencial hídrico é distribuído de forma irregular pelo país. A


Amazônia, por exemplo, onde estão as mais baixas concentrações populacionais,
possui 78% da água superficial. Enquanto isso, no Sudeste, essa relação se
inverte: a maior concentração populacional do País tem disponível 6% do total da
água. Mesmo na área de incidência do Semi-Árido (10% do território brasileiro;
quase metade dos estados do Nordeste) não existe uma região homogênea. Há
diversos pontos onde a água é permanente, indicando que existem opções para
solucionar problemas sócio-ambientais atribuídos à seca.
Qualidade
A água limpa está cada vez mais rara na região litorânea e a água potável cada
vez mais cara. Essa situação resulta da forma como a água disponível vem sendo
usada: com desperdício - que chega entre 50% e 70% nas cidades e sem muitos
cuidados com a qualidade. Assim, parte da água no Brasil já perdeu a
característica de recurso natural renovável (principalmente nas áreas densamente
povoadas), em razão de processos de urbanização, industrialização e produção
agrícola que são incentivados, mas pouco estruturados em termos de preservação
ambiental, sobretudo em relação ao recurso água.

Nas cidades, de um modo geral, os problemas de abastecimento estão


diretamente relacionados ao crescimento da demanda, ao desperdício e à
urbanização descontrolada – que atinge as áreas de mananciais. A baixa
eficiência das empresas de abastecimento se associa ao quadro de poluição: as
perdas na rede de distribuição por roubos e vazamentos atingem entre 40% e
60%, além de 64% das empresas não coletarem o esgoto gerado. O saneamento
básico não é implementado de forma adequada, já que 90% dos esgotos
domésticos e 70% dos efluentes industriais são jogados sem tratamento nos rios,
açudes e águas litorâneas, o que tem gerado um nível de degradação nunca
imaginado.

Na zona rural nota-se com freqüência que os recursos hídricos são também
explorados de forma irregular, muitas vezes com retirada de água dos mananciais,
em excesso, aliada à falta ou escassez de mata ciliar como também de cobertura
vegetal nas nascentes, fundamental na proteção dos cursos d’água. Não
raramente, os agrotóxicos e dejetos utilizados nessas atividades também acabam
por alterar a qualidade da água. Também se observa, não raramente, processos
erosivos que contribuem para o assoreamento dos cursos d’água no ambiente
rural.
Quantidade e Alternativas de Uso
A água disponível no território brasileiro é suficiente para as necessidades do país,
apesar da degradação. Seria necessária, então, mais consciência por parte da
população no uso da água e, por parte do governo, um maior cuidado com a
questão do saneamento e abastecimento. Por exemplo, 90% das atividades
modernas poderiam ser realizadas com água de reuso. Além de diminuir a
pressão sobre a demanda, o custo dessa água é, pelo menos, 50% menor do que
o preço da água fornecida pelas companhias de saneamento, pois não precisa
passar por tratamento. Apesar desta água ser inadequada para consumo humano,
poderia ser usada, entre outras atividades, nas indústrias, na lavagem de áreas
públicas e nas descargas sanitárias de condomínios. Além disso, as novas
construções – casas, prédios, complexos industriais – poderiam incorporar
sistemas de aproveitamento da água da chuva, para os usos gerais que não o
consumo humano. Sabe-se que tais procedimentos já vêm sendo adotados em
diversos lugares, mas a regularização ou exigência em forma de lei ainda caminha
a passos muito lentos.

Após a Rio-92, especialistas observaram que as diretrizes e propostas para a


preservação da água não avançaram muito e redigiram a Carta das Águas Doces
no Brasil. Entre os tópicos abordados, ressaltam a importância de reverter o
quadro de poluição, planejar o uso de forma sustentável com base na Agenda 21
e investir na capacitação técnica em recursos hídricos, saneamento e meio
ambiente, além de viabilizar tecnologias apropriadas para as particularidades de
cada região.

Considerações finais

A água por ser um bem precioso, essencial aos seres vivos e reconhecidamente
de valor econômico, necessita de um manejo racional a partir de um processo de
gestão sustentável, caso contrário, corre-se um sério risco de escassez, sem
precedentes, de água de qualidade.
No Brasil a cultura predominante do desperdício de água se contrapõe aos
programas e propostas de gestão sustentável dos recursos hídricos, apesar dos
inúmeros apelos direcionados para este propósito.

Assim, diante desse cenário e considerando todas as abordagens ao longo deste


artigo, fica evidente que a questão da água, principalmente no Brasil, está
diretamente relacionada e dependente de dois aspectos básicos – a cultura do
desperdício embasada na falsa premissa de que temos água em abundância e a
ausência de uma política de governo, que discipline e controle, de forma mais
enérgica, o consumo.

Tomando então como exemplo a expressão de cunho religioso “o pão nosso de


cada dia” e aplicando-a ao contexto da água, ora em questão, tem-se “a água
nossa de cada dia”, uma vez que, em essência, a água é um alimento tal qual o
pão e que sem ela não há condições de sobrevivência no Planeta.

Fontes consultadas
BORGHETTI, N. R. B.; BORGHETTI, J. R.; ROSA FILHO, E. F da. Aquífero
Guarani: a verdadeira integração dos países do Mercosul. Curitiba, 2004.
214p.

REBOUÇAS, A. C. Água no Brasil: abundância, desperdício e escassez.


BAHIA ANÁLISE & DADOS, Salvador, v. 13, n. ESPECIAL, p. 341-345, 2003.

www.geologo.com.br/aguahisteria.asp

www.socioambiental.org/esp/agua/pgn/

www.eco21.com.br

*Geólogo; D.Sc. em Solos, pesquisador da Embrapa Meio Ambiente.


E-mail: gomes@cnpma.embrapa.br

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