Você está na página 1de 121

Título Original: A Vintage Murder

Digitalização e Revisão: Marina Campos


Formatação: Jenna
Depois de tomar a mais importante decisão de sua vida, esco-
lhendo o homem com quem irá se casar, Nicole viaja com ele
para visitar um famoso vinhedo que, por acaso, se transformou
em set de filmagens para uma produtora cinematográfica de
Hollywood.
As cenas de um grandioso filme épico estão sendo gravadas no
local, e Nicole e seu namorado passam a conviver diariamente
com atores, diretores e figurantes.
Quando a estrela do filme, Lucy Swanson, é encontrada morta
em seu trailer, aparentemente picada por uma cobra veneno-
sa,Nicole, aceita o convite para substituí-la; ex-atriz, e com ex-
periência em desvendar crimes, ela está determinada a esqua-
drinhar o vinhedo inteiro, até achar um perigoso assassino à
espreita, antes que ele resolva atacar novamente e impeça que
ela e seu amado encontrem juntos a tão almejada felicidade...

Capítulo Um
Nicole Sands olhou pela janela do carro e não conteve um suspiro de deslum-
bramento. O vale era magnífico. As parreiras se estendiam a perder de vista. O
solo parecia ser feito de caramelo sob os raios do sol matinal. Embora estivesse
acostumada àquele tipo de paisagem, trabalhando como gerente da Vinícola
Malveaux, na Califórnia, sempre se impressionava com as diferenças que a na-
tureza produzia em cada lugar.
Adorava sentir o aroma dos frutos maduros que perfumava o ar, até mesmo den-
tro do carro. Uma sensação inebriante de felicidade a fez aspirar profundamente
e fechar os olhos. Quando tornou a abri-los, seus lábios se distenderam em um
sorriso. Não era um sonho, mas sua sensação era a de estar fazendo parte de
uma tela de Monet. A serenidade ao seu redor era absoluta. As formas se tornan-
do menos nítidas à medida que o carro se afastava...
Não havia, certamente, uma maneira melhor de descrever as terras que Nicole
1
estava percorrendo. Um quadro. A vista se perdia em colinas verdejantes que
serviam de moldura a um charmoso vilarejo onde a torre alta de uma igreja
dominava o restante de antigas construções feitas de pedra, cercadas por fileiras
e fileiras de vinhedos que pareciam nunca ter fim. Por mais que gostasse do va-
le de Napa, era preciso admitir que as novas paragens destacavam-se de uma
maneira peculiar: era como se eles estivessem voltando no tempo, a uma era de
simplicidade e de rústica elegância.
As últimas quarenta e oito horas tinham sido tumultuadas com os preparativos e
com a viagem em si. O fuso horário não lhe permitira o necessário repouso. As-
sim mesmo, ela não acreditava que pudesse estar se sentindo melhor.
Talvez pudesse!
Sua consciência acusava-a de ter deixado alguém, em outro continente, com o
coração partido. Alguém que merecia uma explicação; alguém com quem ela te-
ria de conversar, olhos nos olhos, mais cedo ou mais tarde, para não ser corroí-
da pela culpa.
Uma parte de Nicole condenava-a de ter cometido um grande erro ao se deixar
influenciar pela razão, mais do que pelo coração, ao fazer sua escolha. A voz da
consciência tentava acalmá-la, dizendo que o golpe fora extremamente duro,
mas necessário, e que ao longo do tempo pouparia mais sofrimento. Porque a
verdade era que não teria como dar certo entre ela e Andrés. Por mais que qui-
sesse se convencer de que seria feliz com ele, seu coração pertencia a outro. Ao
homem que estava agora a seu lado.
Derek sorriu e apertou ligeiramente sua mão naquele instante, como se para
confirmar o que ela já sabia: que a escolha fora acertada.
— Ainda não consigo acreditar que você esteja aqui comigo. Esperei tanto por
este momento que ainda custo a crer que seja real.
Uma onda de emoção inundou Nicole em um misto de ansiedade e de paixão, e
não apenas desejo.
— O que está fazendo? — ela indagou ao ver Derek girar o volante e sair para o
acostamento.
— Isto. — Ele segurou o rosto de Nicole com as mãos e beijou-a. — Obrigado
por estar aqui comigo.
— Eu não desejaria estar em nenhum outro lugar.
Derek retomou o trajeto para a Vinícola Hahndorf, situada no vale de Barossa,
na Austrália, onde estava sendo esperado pelos proprietários, Liam e Grace
Hahndorf. O objetivo de Derek era fechar um acordo de distribuição. A

2
popularidade dos vinhos australianos estava aumentando nos Estados
Unidos. Após estudos e pesquisas, ele aprovara a qualidade do produto e resol-
vera aceitar a proposta do produtor australiano de formarem uma parceria. Basi-
camente, os Hahndorf remeteriam algumas de suas safras aos Estados Unidos
com o rótulo da Vinícola Malveaux, e Derek seria o distribuidor exclusivo desse
vinho em todo o território americano.
— Fale-me sobre Liam Hahndorf— Nicole pediu.
— Você já esteve com ele. O que achou a seu respeito?
— Ele e a esposa estão no ramo há quinze anos. Liam é um bom negociante.
Um homem de visão. Faz seis meses que o conheci em um evento realizado em
Los Angeles.
— Eu me recordo. Foi em uma festa em homenagem a uma celebridade. Você
não me convidou.
— Eu me sentia inseguro sobre você — Derek justificou.
— Não sabia se seria mal interpretado. Teríamos de passar a noite fora.
— Como Derek não notara os sinais? Ela fora tão clara e luminosa como carta-
zes em neon! — Você deve achar uma tolice, mas eu tinha medo de me envol-
ver com outra mulher.
— Não acho tolice — Nicole respondeu, ciente do casamento fracassado de De-
rek.
— Mas foi uma pena que você tivesse demorado tanto para ficar esperto.
— Engraçadinha, não? — Ele sorriu e deu uma piscada ao notar o modo mali-
cioso como ela o encarava. — Não pode imaginar o esforço que estou fazendo
para não mudar de direção e levá-la primeiro para o hotel. — A pulsação de Ni-
cole acelerou. Arrepios de excitação subiram por seu corpo. — Mas os Hahn-
dorf estão nos aguardando. — Derek suspirou. — Enfim, nossa primeira vez de-
verá ser especial, conforme o que combinamos durante a viagem. Um encontro
apressado não se encaixaria em nossos planos.
Nicole mordeu o lábio. A idéia partira dela. Inconveniente agora, mas na noite
anterior soara perfeita a bordo do avião particular dos Malveaux, durante uma
ceia requintada e regada a champanhe e doces beijos. Com exceção do último
que a fizera corar, não exatamente por ter sido mais longo e apimentado, mas
pelo modo como Derek se comportara ao final, olhando para ela e se pondo a
rir.
— Se isso foi uma amostra do que acontecerá entre nós... Uau! Não é uma lou-
cura, você e eu?

3
Talvez Nicole pudesse descrever como uma total insensatez a decisão que toma-
ra no último instante de acompanhá-lo naquela viagem. Ele, afinal, era seu pa-
trão. Não via nada de loucura, contudo, em se sentirem atraídos, e muito menos
por se beijarem.
Sem saber como responder, ela assentira com um gesto de cabeça.
— Não quero apressá-la, Nicole. Posso perfeitamente pedir quartos separados
para nós.
Mas se era exatamente o contrário que ela queria!
— Não, não. Eu quero ficar com você. E como esperamos tanto, nossa primeira
vez deverá ser especial.
— Eu também quero que seja especial.
Então, quando eles aterrissaram, no meio da noite, exaustos da viagem e das
emoções, Derek se oferecera para dormir no sofá, e insistira para que ela ficasse
com a cama. Até que conciliasse no sono, Nicole só conseguira se chamar de to-
la: por sugerir a idéia e mais ainda por concordar que Derek dormisse no sofá.
Teria sido especial de qualquer jeito. Além disso, ela poderia ter adormecido no
aconchego de um peito forte e musculoso, e não entre a maciez fria de lençóis.
Ela foi trazida de volta ao presente pelo frear do carro diante de uma barreira à
entrada da propriedade. A Malveaux era uma das maiores e das mais conceitua-
das vinícolas de Napa, e Derek jamais pensou em contratar um pessoal espe-
cializado em segurança para guardá-la.
Ele forneceu os documentos de identificação. Antes de permitir o ingresso, o
guarda consultou uma lista.
— Os senhores podem entrar. A visita foi autorizada. Sigam em frente e subam
a colina. Logo encontrarão a casa.
Derek agradeceu, tornou a ligar o motor e acelerou.
Ao contrário de Napa, em que o mês de maio significava a aproximação do ve-
rão e da estação das colheitas, em Barossa o outono chegava ao fim. Mais um
mês e o inverno estaria soprando seus ventos gelados.
— O que é aquilo? — Nicole apontou para o meio do vinhedo, onde estavam
estacionados vários caminhões e numerosos trailers. — Eu poderia apostar que
se trata de uma equipe de filmagem.
— É o que parece. Você sabe dessas coisas muito mais que eu.
— Já faz um longo tempo. — Antes de trabalhar para Derek, ela tentara a sorte
nos estúdios de Hollywood. Atuara em um seriado policial de curta duração co-
mo principal personagem, mas a carreira não decolara.

4
Ao passarem pelo lagar, Nicole não conteve uma exclamação. A arquitetura do
local era impressionante. Fazia lembrar os antigos castelos da França.
— Nossa! Se a vinícola é assim, como será a casa?
— Boa pergunta. Logo teremos a resposta. Estou francamente curioso sobre a
filmagem. Será algum tipo de propaganda?
— Eu diria que não. Há veículos demais para um simples comercial.
Ao final da trilha, em uma área delimitada por uma fileira de seringueiras, a ca-
sa surgiu e, surpreendentemente, não era nem de longe tão imponente quanto o
local de fabricação do vinho. O que lhe faltava em luxo, porém, sobrava em
aconchego. Era feita de pedra, ao estilo das casas típicas dos vilarejos ingleses.
Derek estacionou em um pátio circular, entre meia dúzia de outros veículos.
— O homem deve adorar carros — disse Nicole.
— Ou ele ou quem mora com ele — sugeriu Derek, antes de descer e dar a volta
a fim de abrir a porta para que ela descesse.
Atravessaram o jardim e seguiram por um caminho ladeado de flores e plantas
exóticas. Nicole imaginou que fossem nativas por não reconhecê-las.
Derek apertou a campainha e em poucos instantes a porta foi aberta por uma jo-
vem magra, de longos cabelos loiros e grandes olhos castanhos. Ela estava usan-
do jeans e um suéter de algodão cor de laranja.
— Vocês devem ter errado o endereço. As instalações para a filmagem se en-
contram no vinhedo.
— Na verdade, estamos aqui para falar com o Sr. Liam Hahndorf.
— Papai! — a garota berrou, sem prévio aviso. — Um homem e uma mulher es-
tão querendo falar com você!
Aturdidos, Derek e Nicole abriram caminho para a garota passar e seguir em di-
reção a um Aston Martin azul-marinho. Sentada atrás do volante, ela partiu co-
mo se estivesse atrasada para chegar a algum lugar.
O dono da casa, um senhor alto de cabelos grisalhos e bondosos olhos casta-
nhos, balançou a cabeça.
— Essa menina! Grace não gostará de saber que ela saiu sem dizer aonde iria.
Hannah deveria estar em aula. Faltou hoje com a desculpa de que estava cansa-
da.
Uma mulher de meia-idade se reuniu a eles um minuto depois. Nicole supôs
que fosse a mãe da garota. A semelhança entre as duas era marcante, desde a
acentuada magreza até os cabelos longos e loiros.
— Desculpem o desabafo — disse o homem. — Grace, este é meu amigo Derek

5
Malveaux.
—Como vai, Derek? — Os dois apertaram-se as mãos. — Aquela que passou
por vocês como um rojão é nossa filha, Hannah. Uma dor de cabeça constante.
Grace tem mais paciência com ela do que eu.
— Mentira — retrucou a mulher, apertando as mãos de Derek e de Nicole. —
Meu marido a mima demais.
Com um sorriso, Derek indicou Nicole.
— Esta é Nicole Sands, minha namo... minha assistente. Derek quase a apresen-
tara como namorada. Nicole sentiu o coração bater mais rápido. Mal podia
esperar pelo término daquele dia em que ainda era apenas a assistente dele
perante o mundo, para iniciar uma nova fase cm sua vida, como namorada de
seu querido patrão. Ele ainda se comportava de uma maneira formal na presen-
ça de terceiros.
Mas o pequeno deslize era um maravilhoso sinal do que estava por vir.
Grace os conduziu através de um hall em madeira clara com desenhos em for-
mato de diamantes. Nicole não pôde deixar de elogiar o bom gosto do piso.
— Obrigada — a proprietária agradeceu. — Essa madeira é comum na Austrá-
lia, embora cara. Chama-se jarrah.
— Sua casa é linda — Nicole tornou a elogiar, com absoluta sinceridade.
A casa era maior por dentro do que parecia por fora. A decoração era feita em
tons de bege e dourado. Tapetes coloridos, sofás em couro e porta-retratos sobre
os móveis davam um toque íntimo entre a sofisticação do conjunto. Portas bal-
cão se abriam para um imenso jardim ao fundo e para uma piscina. Um extenso
gramado se estendia além da piscina até um rio onde se iniciava um bosque.
— Estou deslumbrada — Nicole confessou. — Que rio é esse?
— North Para é um regato, na verdade — Liam respondeu. — Mas o índice plu-
viométrico foi tão alto este ano que ele mudou de categoria. O que foi bastante
favorável para a vinicultura de Barossa Valley.
— Nicole e eu estamos intrigados com a intensa atividade no local.
— Hollywood descobriu nosso vilarejo. Esta propriedade, em especial — Liam
respondeu.
Apesar de já ter superado o antigo sonho de se tornar uma atriz famosa, Nicole
pestanejou.
— Hollywood?
— Sim. Mais tarde eu contarei toda a história. Agora tenho alguns assuntos pa-
ra discutir com você, Derek, em meu escritório. E com sua assistente, também,

6
é claro, caso você prefira que ela esteja presente.
Derek olhou significativamente para Nicole antes de recuar. Os dois haviam
percebido que Liam Hahndorf estava querendo conversar a sós com Derek.
— Não será preciso. Nicole poderá aproveitar a companhia de Grace para come-
çar a se familiarizar com o lugar.
Nicole deu um pequeno sorriso. Não deixava de ser estranho, contudo, que o
proprietário quisesse uma reunião a sós com Derek. Qual a razão de todo aquele
sigilo?
Grace dispensou os homens com uma das mãos e com a outra convidou Nicole
para segui-la em direção a cozinha onde lhe serviu uma fumegante xícara de
chá enquanto conversavam sobre o trabalho na vinícola Malveaux e também so-
bre o filme que estava sendo rodado na propriedade.
— Você está brincando! — A surpresa de Nicole foi tão grande que seu queixo
caiu.
— Shawn Keefer está aqui e Nathan Cooley é o diretor?
Shawn Keefer era o ator mais prestigiado de Hollywood no momento, e Nathan
Cooley era o diretor com quem todos os artistas ambicionavam trabalhar um
dia.
Grace deu uma risada.
— Não, eu não estou brincando.
— De que trata o filme?
— Isso eu não posso dizer. — A expressão de Grace se tornou séria.
— É confidencial. Nós tivemos de assinar um termo de responsabilidade com a
companhia,
— Quem mais trabalha nesse filme?
— Uma jovem estrela ruiva chamada Lucy Swanson. Dizem que ela é brilhante,
mas segundo os tablóides, seu nome sempre aparece envolvido em alguma con-
fusão. Eu me sinto obrigada a concordar com os jornalistas. Tivemos alguns pa-
parazzi por aqui nos últimos dias.
Quem não conhecia Lucy Swanson? Ela era uma das atrizes da nova geração.
Mas segundo as informações que Nicole recebera, ao contrário de muitas que só
se preocupavam em exibir seu glamour em festas milionárias, Lucy parecia se-
guir uma ética profissional.
— Eu sei quem ela é.
— Hannah tem tido contato com a atriz e com um rapaz da equipe técnica. Eu
receio que eles venham a causar problemas para minha filha.

7
— Por que diz isso?
— Ela tem passado quase todas as noites fora de casa desde que eles chegaram.
São festas e comemorações por qualquer motivo. Esta noite, contudo, eu estou
mais sossegada porque seremos nós a oferecer um churrasco a toda a equipe.
— A Shawn Keefer, inclusive?
— Sim — Grace concordou com um sorriso.
— Eu li em uma revista que ele é visto com uma mulher diferente a cada even-
to.
— Eu não duvido. Ele é do tipo que flerta com todas. Bonito, educado e char-
moso.
Grace corou ao falar sobre o artista. Nicole não podia culpá-la. Shawn Keefer
era um galã..E não tinha satisfações para dar a ninguém. Era divorciado.
Conforme haviam prometido, Derek e Liam voltaram logo.
— O que acham de fazermos uma visita ao set de filmagens? — Liam propôs.
— Derek ficou entusiasmado quando lhe contei que Andy Burrow faz parte da
equipe.
— Andy Burrow também? — Nicole surpreendeu-se com a presença do famoso
estudioso da vida selvagem.
— Não é incrível? — Derek esfregou as mãos como se fosse uma criança. Nico-
le não pôde deixar de notar, entretanto, uma vibração estranha no ar. O que os
dois homens teriam discutido no escritório? — Andy não faz parte do elenco.
Ele está com a equipe para orientar as cenas que serão rodadas com os animais
que trouxe de seu zoológico.
— Certamente que sim — Nicole respondeu enquanto o grupo se encaminhava
para o carrinho de golfe de Liam, que os levaria ao sítio de filmagem.
— Grace lhe contou que eu assino o roteiro?
O mal-estar de Nicole estava aumentando a cada minuto. Como Liam podia ter
escrito o roteiro, e Grace se comportar Como se não soubesse de nada?
— Não, eu não contei.
— Ela enlaçou o marido pelo ombro.
— Você costuma ficar tímido quando as pessoas o cumprimentam.
— Desde quando? — Liam retrucou, entusiasmado.
— Eu estou exultante.
— Tem razão para se sentir orgulhoso de seu trabalho — disse Nicole.
— É muito difícil conseguir que alguém leia um script. Quanto mais levá-lo pa-
ra as telas.

8
— Esta não foi minha primeira tentativa — Liam revelou.
— Escrevi histórias de diversos gêneros ao longo dos anos. Nasci no campo,
cultivo uva e produzo vinho, mas escrever é minha grande paixão.
— De onde surgiu a idéia para esse roteiro? — Derek indagou.
— E uma longa história... Grace pigarreou.
— Não temos tempo para isso agora, não é, meu bem?
— Grace tem razão. Precisará ficar para outra hora... Eles estavam chegando ao
local. Os artistas e o pessoal
de suporte estavam desfrutando de um pequeno intervalo entre as tomadas.
Liam parou o veículo e justamente quando eles estavam descendo, um grito es-
tridente se fez ouvir, vindo da direção onde os trailers estavam estacionados.
Nicole e Derek se entreolharam. Ninguém se moveu. De repente, a porta do trai-
ler se abriu e quem apareceu foi o famoso astro, em pessoa. Shawn Keefer.
— Eu me recuso a contracenar com essa mulher! Não agüento mais suas provo-
cações!
— Você se recusa? Eu me recuso a trabalhar ao lado de alguém que nem sequer
é um homem de verdade! — Lucy Swanson surgiu em seguida atrás do ator.
Nicole sentiu o fôlego faltar. Por mais que quisesse ser discreta, o casal estava
próximo o suficiente para que ela os ouvisse.
— Você está sendo ridícula. Eu sou um profissional. Vim aqui para fazer um
trabalho e não para diverti-la. Para ser franco, eu não dormiria com você mesmo
que fosse a última mulher sobre a face da Terra.
— O quê? — A atriz se virou para um homem que acabava de chegar ao local.
— Você ouviu esse imbecil?
O homem se aproximou de Lucy, colocou um braço ao redor de seus ombros e
levou-a consigo.
— Aquele é Kane Ferris, o produtor — Liam informou. — Ele é o único que sa-
be lidar com a jovem atriz. Esse não foi seu primeiro escândalo aqui. —Olhou
ao redor. — Não estou vendo Andy. Vou perguntar onde poderemos encontrá-
lo.
Liam se dirigiu a um jovem de jeans rasgado e piercing na sobrancelha. O rapaz
informou que Andy estava na área de descanso com suas cobras e que o ataque
de histerismo de Lucy se devia à ordem que recebera de filmar com uma das
serpentes, embora a exigência constasse do contrato.
Poucos instantes depois, Andy Burrow foi encontrado. Era um homem de esta-
tura e constituição médias, de cabelos compridos, escuros e ondulados e olhos

9
castanhos. Sorria como se estivesse permanentemente de bem com a vida. Nico-
le estranhou que Derek parecesse nervoso ao ser apresentado ao rapaz.
— Venham dar uma olhada em Charlie — Andy os chamou. — É uma linda co-
bra marrom, mas basta uma gota de seu veneno para matar em uma questão de
horas, caso o soro não seja rapidamente administrado. Eu trago comigo um es-
toque como prevenção. Não que alguma vez isso tenha sido necessário. Ao ma-
nipular minhas criaturas, eu sempre visto luvas e um macacão feito de um teci-
do especial. O que acham de se prepararem e fazerem uma experiência?
— Eu estou fora — Nicole respondeu de pronto. Ao notar a hesitação de Derek,
Liam provocou-o.
— Ora, ora. Charlie é apenas uma entre milhares de serpentes que existem neste
país. E Andy sabe o que está fazendo.
— Por que não? — Derek decidiu por fim. — Você me acompanha, Nicole?
— De jeito nenhum!
— Ela está parecendo Lucy — Andy caçoou.
— Não diga isso — Liam interveio. — Acho que não existe ninguém no mundo
tão temperamental quanto a srta. Swanson.
— Espero que não. — Andy deu uma piscada para Nicole. — A mulher é doi-
da. Eu lhe disse que ficaria por perto e que ela não precisava ter medo. Eu sei
que ela está ganhando uma fortuna com esta filmagem e que não tem o direito
de decepcionar Nathan. Eu não precisaria estar aqui neste momento. Dinheiro
não me faz falta. Só aceitei fazer parte do projeto como um favor especial a ele.
Apesar de preferir estar longe dali, Nicole não se negou a acompanhar os ho-
mens ao viveiro de animais. Realmente havia mais serpentes do que qualquer
outro tipo de animal. Para compensar, Andy trouxera dois encantadores coalas e
um casal de dingos, um tipo de cachorro selvagem, grande e amarelo.
— Os dingos são meus favoritos — disse Andy. — Eu os adoro. São treinados e
fazem qualquer coisa por mim. Os fazendeiros os odeiam. Eles representam
aqui o mesmo que os coiotes nos Estados Unidos.
— Apresentou, em seguida, uma canguru chamada Sophie, e um crocodilo cha-
mado Albert. Por fim, entregou a Derek um macacão igual ao que estava usan-
do.
— Você pode vesti-lo sobre suas roupas.
— Está bem.
— E não esqueça a máscara para proteger também o rosto.
Nicole engoliu em seco. Ela não estava gostando nem um pouco daquela

10
história. Começava, inclusive, a se solidarizar com Lucy Swanson. Ainda mais
quando Andy mandou que se afastasse com Liam e abriu o compartimento em
que transportara Charlie até aquela parte do terreno, cercado por árvores.
— Você quer segurá-lo? — Andy indagou ao pegar a serpente. A uma resposta
positiva de Derek, ele orientou-o para que permanecesse calmo e que a manti-
vesse longe do rosto. Nicole apertou as mãos e os lábios para não gritar. Derek
parecia ter se transformado em uma estátua. O zoólogo, entretanto, se mostrava
satisfeito.
— Continue assim. Respire devagar. Percebe que Charlie não está se movendo?
É porque ele não se sente ameaçado por você.
Nicole fechou os olhos e rezou para que o suplício acabasse logo. Tornou a
abri-los, em pânico, ao grito de um homem chamando por Andy e dizendo que
a equipe o estava aguardando para prosseguirem com as filmagens.
— São uns imbecis —Andy praguejou.
— Já me cansei de avisá-los para que não gritem quando eu estiver manipulan-
do meus animais. Você se saiu muito bem, Derek. Agora vou pegar Charlie de
volta.
Nicole suspirou. Andy colocou a cobra de volta no compartimento e cumpri-
mentou Derek com um aperto de mãos.
— Então, o que achou da experiência?
— Fantástica.
— Você leva jeito com animais. Apareça com sua esposa em meu zoológico
qualquer dia desses. Terei prazer em hospedá-los em minha casa.
— Nicole não é minha esposa. Ela é minha assistente.
Mas obrigado pelo convite. Teremos um grande prazer em visitá-lo.
— Andy! O pessoal está esperando! Lucy está pronta!
O zoólogo estreitou os olhos. Sua voz soou calma demais na opinião de Nicole.
— Venha cá, Will.
Nicole e Derek reconheceram o rapaz. Era o mesmo que lhes barrara a entrada.
— Senhor?
— Eu creio que expliquei cuidadosamente o procedimento a ser seguido a cerca
de meus animais.
— Sim, senhor. Desculpe. O diretor estava berrando para alguém levá-lo ao lo-
cal das filmagens. Como ninguém se manifestou, eu vim avisá-lo. Estava em
meu intervalo para café e...
— Não importa — Andy o impediu de concluir a frase.

11
— Peço apenas para que se lembre das regras de agora em diante.
Assim que o rapaz se afastou, Liam se desculpou.
— Eu sinto muito, Andy. Will é um bom garoto. Conheço-o desde que nasceu.
Não se saiu muito bem nos estudos. Convidei-o para trabalhar para mini como
segurança mais por um gesto de boa vontade.
— Não se preocupe, amigo. A culpa não foi inteiramente do rapaz. O diretor
não deveria tê-lo usado. Enfim, eu não creio que ele vá me criar mais proble-
mas.
Andy se despediu, dizendo que os encontraria mais tarde para o churrasco.
Liam, Derek e Nicole tornaram a subir no carrinho de golfe e voltaram para a
casa onde continuaram a conversar sobre a experiência incrível de Derek, se-
gundo os representantes do sexo masculino, e repulsiva, na opinião de Grace e
Nicole.
— O churrasco terá início a seis horas — Liam avisou ao acompanhar Derek e
Nicole até aporta.— O traje será casual. A comida será farta e eu servir meus
melhores vinhos.
Nicole aguardou até que Derek deixasse a propriedade para demonstrar sua con-
trariedade.
— Ei! Por que você me beliscou?
— O que deu em você para se meter com uma cobra? Perdeu o juízo?
Derek moveu os ombros e riu.
— Não havia perigo. Andy Burrow sabe o que faz. Foi adrenalina pura.
— Não para mim, seu encantador de serpentes mais charmoso do mundo!
Embora estivesse ao volante, Derek se inclinou e beijou-a rapidamente.
— Está falando sério?
— Na verdade, você estava irresistível com aquela roupa.
— Nesse caso, pedirei o traje emprestado a Andy na primeira oportunidade.
Talvez eu também consiga encantar você.
— Isso você já conseguiu.
Tornaram a rir, a excitação à flor da pele e o desejo se avolumando por seus cor-
pos a cada minuto. Uma sensação forte, mas surpreendentemente confortável
para Nicole. Algo que jamais experimentara antes.
Ao chegarem ao vilarejo, pediram um hambúrguer com batatas fritas e vinho
tinto.
— O que vocês discutiram no escritório de Liam? — Nicole indagou assim que
o garçom se afastou.

12
— Eu percebi que ele queria falar com você em particular. Depois da reunião,
você me pareceu estranho.

Derek passou a mão pela nuca e pelo lóbulo da orelha. Nicole trabalhava com
ele por tempo suficiente para saber que esse hábito tinha a ver com desconforto.
— Nada de mais. O contrato estava em ordem. Alguns itens precisam ser revis-
tos, mas não implicarão em grandes mudanças. E não havia nada de errado co-
migo. Eu só estava ansioso por encontrar Andy Burrow.
— Você não está me dizendo a verdade.
O vinho foi devidamente submetido ao teste de qualidade de Derek. Nicole
aguardou, como de praxe, que ele permitisse que ela fosse servida.
— Obrigada. — Sorriu e aguardou até ficarem a sós para continuar.
— O que está havendo, Derek? Eu sou sua assistente. Não deveria ser informa-
da sobre qualquer tipo de problema que possa ter surgido na negociação?
Derek segurou-lhe a mão por cima da mesa.
— Não quero falar de negócios agora. Desde que deixamos a vinícola Hahn-
dorf, você é apenas minha namorada.
— Foi bom você dizer isso. Eu estava me perguntando como farei para diferen-
ciar as ocasiões em que deveremos nos apresentar como patrão e assistente ou
como um casal.
— Está caçoando de mim, não está? — Derek sorriu.
— Estou certo de que saberá como se comportar de acordo com as circunstânci-
as.
— Sim, é claro. Assim como soube imediatamente que você estava tentando
mudar de assunto para não responder minha pergunta sobre Liam.
— Não desiste nunca, não é? — Derek suspirou.
— Está bem. Surgiu, de fato, um problema, mas Liam me fez jurar que não con-
taria a ninguém. Você não precisa se preocupar. Temos meios de resolvê-lo.
Nicole largou a taça de vinho e cruzou os braços.
— Eu não sou qualquer um.
— Não, não é. Mas dei minha palavra a Liam e não sou do tipo que quebra uma
promessa. Quando for possível, eu lhe contarei. Até lá, o que acha d< desfrutar-
mos da companhia um do outro e comércios em paz?
Nicole não argumentou. Era seu primeiro dia na Austrália, afinal. CortDerek.
— Combinado.
— Ótimo. O que achou do repente de Lucy Swanson?

13
— Uma figura difícil. Quemine impressionou foi Shawn
Keefer. Poucas pessoas são capazes de se controlarem diante de insultos e ofen-
sas.
— Ainda mais diante de uma multidão de testemunhas. Eu não sei o que teria
feito, se estivesse no lugar dele.
— Acho compreensível. Para ser franca, tenho uma sensação esquisita sobre
Hollywood ter se deslocado para Barossa Valley e sobre Lucy Swanson ter con-
cordado em estrelar o filme para depois ficar dando todo esse trabalho para a
equipe.
— Você e suas intuições. — Derek balançou a cabeça de um lado para outro.
— Em sua opinião, Hollywood nunca deveria se afastar de Los Angeles?
— Não se trata disso. — Nicole mordeu o lábio. — Eu estava pensando em Gra-
ce Hahndorf. Ela parecia excitada ao me contar sobre a filmagem em sua pro-
priedade e sobre os atores. Sua atitude mudou por completo, no entanto, ao ser
mencionado que Liam assinava o roteiro.
— Talvez ela não quisesse parecer arrogante.
— Em minha opinião seria de esperar que ela demonstrasse orgulho do marido.
— Acho que você está enxergando nuvens demais em um céu claro.
— Talvez sim, talvez não.
Ao final da refeição, ambos se levantaram. O dia estava ensolarado e eles esta-
vam se sentindo tranqüilos e relaxados sob o efeito do vinho. Deixaram o carro
em frente ao restaurante e seguiram a pé para o hotel.
No elevador, Derek olhou para Nicole.
— O churrasco será às seis horas. Temos tempo de sobra para nos ocuparmos
com algo especial. O que você acha?
Nicole sentiu aquele friozinho característico no estômago cada vez que se apro-
ximava o momento de eles finalmente fazerem amor.
— Eu acho que seria... Ótimo.
Não era essa, porém, a resposta que ela gostaria de ter dado. De repente se senti-
ra insegura. Fazia um longo tempo que não vivia um romance. Saberia o que fa-
zer? E se Derek ficasse decepcionado com sua atuação? Ela nem sequer se lem-
brava de ter vestido uma calcinha que fizesse conjunto com o sutiã.
— Tem certeza? — Derek perguntou. — Não quero que se sinta pressionada. Se
você quiser esperar mais um pouco, eu posso perfeitamente...
— Não é preciso. Estou bem. Eu também quero.
O que havia com ela? Essas coisas deveriam acontecer naturalmente. Tanto que

14
sonhara com aquele momento e agora estava se comportando como... Não havia
palavras para descrever!
O elevador parou e eles, desceram. Uma onda de calor subira pelo corpo de Ni-
cole e se espalhara por suas faces. Sem esperar que chegassem ao quarto, Derek
a segurou pelo pulso e a fez recuar até a parede. Beijou-a no pescoço e depois
foi subindo até a orelha. Tomou-lhe, em seguida, os lábios.
E nesse instante Nicole decidiu esquecer seu medo de não parecer bonita e ma-
gra como uma modelo de lingerie quando tivesse de tirar a roupa. Uma onda de
excitação a inundou e ela retribuiu o beijo.
Derek introduziu a chave na fechadura e abriu a porta. Sem afastar os olhos dos
dela, empurrou-a com delicadeza na direção da cama. Fez pose de sedutor, nes-
se momento, e eles riram. Nicole adorou a mescla de desejo e humor. Não se
sentiria à vontade se Derek mudasse seu comportamento, e de repente se colo-
casse de joelhos para se declarar, como acontece no cinema.
Ele já havia desabotoado metade de sua blusa, e ela a camisa dele quando ouvi-
ram um clique e a porta do banheiro foi aberta. Os três ficaram mudos de espan-
to. Com a diferença que Simon, o irmão de Derek, segurava uma escova de den-
tes.
— O que é isto? — Derek vociferou ao se recuperar do aturdimento.
— Meu Deus! — Nicole exclamou, fechando rapidamente a blusa.
— Não liguem para mim — disse Simon. — Estava mais do que na hora de vo-
cês se entenderem.
—Simon, o que faz aqui? Não apenas neste quarto, mas na Austrália?
— Por que vocês não fazem de conta que estes últimos minutos não existiram?
Eu vou dar uma olhada na cidade e volto mais tarde para lhes contar sobre a
agonia que foi ficar em Napa sem vocês.
— Não há mais clima — Derek retrucou. — Conte logo de uma vez.
— Eu vou ligar para o serviço de quarto e pedir chá — Nicole ofereceu.
— Não para mim — Simon recusou. — Quero tomar um vinho branco Sauvig-
non. Os australianos são famosos por essa variedade.
— Peça duas garrafas — concordou Derek.
— Nós bebemos vinho durante o almoço — Nicole lembrou.
— Não acha que chá ou café cairia melhor neste momento? Talvez devêssemos
fazer uma caminhada, inclusive, para clarear os pensamentos.
— Oh, não! — Simon recusou. — Ficar de vela não me atrai.
— É um pouco tarde para você se preocupar com isso, não acha?

15
— Derek resmungou.
Simon se sentiu ofendido com a acusação. Deixara sua bagagem ao lado da por-
ta. Como eles não haviam notado?
— Não atravessarei mais o caminho de vocês. Entendo que queiram ficar a sós.
Apenas não sabia para onde ir e Derek, afinal, é meu irmão.
Cabisbaixo, como um cão sem dono, Simon se encaminhou para a saída.
— Não podemos deixar seu irmão ir embora desse jeito — Nicole intercedeu.
— Por que não descemos para o bar e pedimos o tal vinho?
Derek respirou fundo e suspirou.
— Está bem. Vocês venceram. Simon largou a mala instantaneamente.
— Obrigado. Ainda não sei como, mas prometo que os compensarei pelo trans-
torno.
Entre goles de vinho, Simon começou explicar o motivo real que o levara a voar
meio mundo para interromper o que deveria ter sido uma tarde de prazeres ines-
quecíveis.
— Conte tudo do início — Derek sugeriu. — Não deu para entender. Por que
Marco tem motivos para detestá-lo?
— Bem, o problema começou depois que Nicole foi para o aeroporto encontrar
você. Marco e eu tivemos uma conversa séria sobre nosso relacionamento e de-
cidimos nos casar. Foi aí que nos desentendemos. Marco cobrou-me um acordo
que fizemos, e eu não fui capaz de cumpri-lo.
Marco e Simon estavam juntos havia um longo tempo. Nicole os conhecia des-
de que começara a trabalhar na vinícola, três anos antes. Não gostara deles ini-
cialmente por achá-los arrogantes. Depois eles freqüentaram um curso em Ari-
zona ministrado por um guru de nome Sansibaba e se transformaram. Pareciam
outras pessoas ao voltarem para casa. Foi a partir daí que nasceu uma forte ami-
zade entre eles.
— Você pode me dÍ2er que acordo foi esse? — Derek perguntou.
Simon suspirou.
— Eu simplesmente não pude desistir de Gianni e Kenneth.
— O quê? Você esteve traindo Marco esse tempo todo? Com dois homens!
Nicole balançou a cabeça. Estava triste pela separação dos amigos que tão bem
queria.
— Seu irmão está se referindo a Gianni Versace e Kenneth Cole. Estou certa,
Simon?
Simon fez um gesto afirmativo com a cabeça.

16
— Marco e eu fizemos um acordo de esquecermos tudo o ue se referia a grifes,
pelo prazo de um ano. Para Marco, Sansibaba é um sábio. O que ele diz é lei.
Quando o guru aconselhou que fizéssemos um exercício de desapego à matéria,
Marco sugeriu esse sacrifício. No momento eu concordei, mas acabei descobrin-
do que não estou preparado para renunciar às etiquetas. Ao menos essas.
Nicole olhou para Derek e percebeu que o sangue estava lhe subindo pelo pes-
coço e pelas faces.
— Por que você não vai direto ao ponto?
— A situação fugiu ao meu controle. Logo depois que tivemos aquela conversa,
senti uma compulsão de pegar o carro e conferir as novidades naquela butique
de St. Helena, que eu adoro. Voltei carregado de pacotes. Para escondê-los de
Marco, levei-os ao chalé de Nicole. Jamais poderia imaginar que Marco estives-
se por perto e fosse me apanhar em flagrante.
— Então vocês brigaram.
Simon fez um movimento afirmativo com a cabeça.
— Marco disse que não confiava mais em mim. Em seguida fez as malas e foi
embora. Eu não sei para onde. Ele não atende minhas ligações e não responde
meus e-mails. Não suportei a solidão. Para onde poderia ir a não ser este lugar e
ficar com minha família?
Derek passou as mãos pelos cabelos.
— Quem está cuidando de Ollie?
Ollie era o cachorro de estimação de Derek e também de Nicole. Desde seu pri-
meiro dia de emprego na vinícola, ela se apaixonara pelo lindo golden retriever.
E ele por ela. Derek e ela brincavam um com o outro sobre quem Ollie conside-
rava seu verdadeiro dono.
— Alyssa. Eu o deixei com aquela adorável stripper que Nicole contratou.
— Alyssa não é uma stripper — Nicole retrucou. — Não mais. Eu a contratei
porque é esperta e inteligente e tem um filho para criar.
— Calma, Branca de Neve. Eu não estou atacando a moça. Sou a última pessoa
no mundo que julgaria alguém preconceituosamente.
Nicole não respondeu. Embora estivesse furiosa com o novo apelido, Simon es-
tava certo ao se defender. Quando se conheceram, ele a chamava de Cachinhos
Dourados. Na época, ela coloria os cabelos de loiro para combinar com o espíri-
to do sul da Califórnia. Depois, quando se mudara para o norte do Estado, resol-
vera escurecê-los e lhes dar um toque avermelhado.
— Se Ollie ficou com Alyssa, ele está em boas mãos — disse Nicole.

17
— Espero que você não se importe — Simon continuou. — Eu lhes cedi seu
apartamento.
— Claro que não.
O apartamento, de qualquer maneira, não lhe pertencia. Tratava-se de um pe-
queno espaço onde ela morava, no novo hotel e spa Malveaux, desde que seu
chalé, próximo da vinícola, fora destruído em um incêndio.
A informação de que Ollie estava bem não foi suficiente, contudo, para acalmar
os ânimos. Derek acusou o irmão de ter gastado um dinheiro inútil ao vir atrás
dele.
— E para quê? O que esperava que Nicole e eu fizéssemos para resolver seu
problema?
— Que me oferecessem apoio moral — Simon respondeu, acusador. — É pedir
demais?
Simon se levantou e jogou o guardanapo contra a mesa. Derek o imitou. Nicole
resolvei fazer o mesmo e apartar os dois.
— Parem com isso! Para tudo existe uma solução. — Olhou para Derek. — Si-
mon está precisando de nós neste momento. E também Marco. Nós sabemos
que eles se gostam e nós gostamos deles. Tenho certeza de que Marco voltará
quando esfriar a cabeça.
— Você acha? — Simon indagou, esperançoso.
— Sim. Você disse que ele não retorna seus e-mails. Escreverei e veremos se a
mim ele responde.
— Eu tentarei ligar — Derek se propôs. — Talvez ele consiga colocar um pou-
co de bom-senso nessa sua cabeça e o leve de volta para casa, de onde não deve-
ria ter saído.
O sorriso de Simon se estendeu de orelha a orelha.
— Eu sabia que poderia contar com vocês. E até que Marco responda, qual será
nosso programa para esta noite?
— Fomos convidados para um churrasco na Vinícola Hahndorf e...
— Nicole e eu temos um programa — Derek interrompeu-a. — Você deverá fa-
zer o seu próprio.
Simon retomou seu assento e se serviu de mais uma taça de vinho.
— Desculpe. Eu já os aborreci demais. Derek olhou para cima, para baixo...
— Está bem. Você pode ir conosco. Não creio que fará diferença aos Hahndorf
receber uma pessoa a mais.
•Simon inclinou a cabeça em um gesto de agradecimento.

18
— Obrigado. Não se arrependerão por me levar. Não criarei mais nenhum pro-
blema para vocês.
Quero que aproveitem a noite para se conhecerem melhor. Como eu disse, já era
mais do que tempo...
O olhar de advertência de Derek fez Simon finalmente se calar e deixá-lo a sós
com Nicole.
— Foi mal, Nicole. Meu irmão não poderia ter chegado em momento mais ina-
dequado.
Ela sorriu e beijou-o.
— Não tem importância. Gosto de Sirrion.
— Eu não tenho mais tanta certeza — Derek resmungou.
— Oh, sim. Você o ama — Nicole declarou, rindo. — Ou o teria matado!
Uma onda de emoção inundou Nicole. Derek era um homem incrível. Outro não
teria lidado tão bem com a situação. Seu coração começou a bater mais rápido.
Olhou para Derek e apertou sua mão.
— Vamos subir e continuar o que começamos?
A hesitação de Derek provocou uma sensação desconfortável em Nicole.
— Acho que não. Talvez tenha sido bom que Simon nos interrompesse.
Nicole pestanejou. Como Derek pudera dizer isso?
— Bom?...
— Sim. Porque nossa primeira vez deverá ser perfeita, como combinamos no
avião.
— Para mim parecia perfeito.
— Não da maneira que pretendo que seja. O coração de Nicole tornou a acele-
rar.
— E como será?
— Isso você terá de esperar para ver!
Para desalento de Derek e de Nicole, todos os hotéis da cidade estavam lotados
por causa de um festival. Sem ter para onde ir, Simon precisaria se hospedar
com eles e dormir no sofá da suíte.
Tanto que se esperara pela sedução perfeita! Enquanto Marco não se dispusesse
a responder o e-mail, os três teriam de se revezar no uso do banheiro, e esquecer
o romance em nome da amizade e da fraternidade.
Com a aproximação do inverno, as noites estavam ficando cada vez mais frias.
Nicole vestiu uma calça jeans skinny e um suéter azul-escuro de cashmere de
gola alta. Sobre os ombros, colocou um casaco longo de lã natural.

19
— Eu a invejo — disse Simon. — Como consegue ficar tão sexy com qualquer
roupa que usa? Não é de admirar que meu irmão esteja louco por você.
Nicole não teve tempo de responder. Derek entrou no quarto naquele instante e
seus olhos brilharam.
— Você está linda.
O que mais ela poderia fazer exceto agradecer a ambos?
O estacionamento da Vinícola Hahndorf estava cheio de carros quando Derek,
Nicole e Simon chegaram. Nicole rezou para que o significado de "traje casual"
na Austrália fosse o mesmo dos Estados Unidos. Detestaria se apresentar de
jeans e suéter se as outras mulheres estivessem cobertas de jóias e vestidos de
gala. Seu consolo era que Derek e Simon também estavam de jeans. Derek,
aliás, estava maravilhosamente sexy naquela noite.
Um valete lhes abriu a porta e se colocou atrás do volante.
— Um churrasco informal, hein? — Simon caçoou. — Quem são os convida-
dos? Os ricaços da Austrália?
— A informação que recebemos é que seria um churrasco para o pessoal que
está filmando na propriedade.
— Algum artista conhecido? Eu não me lembro de nenhum ator australiano ex-
ceto o Crocodilo Dundee.
— Shawn Keefer — Nicole respondeu.
— Fala sério.
— E verdade — confirmou Derek. — Uma equipe de Hollywood está aqui para
uma filmagem.
Simon interrompeu os passos e se abanou.
— Como puderam fazer isso comigo? Shawn Keefer está aqui e vocês me man-
daram vir de jeans?
— Comporte-se, Simon! — Derek puxou o irmão pelo braço. Shawn Keefer não
é gay. Você não teria nenhuma chance com ele.
— Ora, por favor. Todos em Hollywood são gays!
Para se controlar, Derek passou a mão pelo rosto e enlaçou Nicole pelo ombro.
— Vou fingir que não conheço Simon, se você concordar.
— Combinado.
Simon continuou falando como se não tivesse ouvido. Era um bonito homem,
de cabelos louro-claros como os do irmão. Estava usando jeans, uma camisa de
linho branco e um casaco de camurça marrom.
Música ao vivo estava sendo tocada nos fundos. Liam Hahndorf se colocara em

20
posição estratégica para receber os convidados.
— É um grande prazer recebê-lo, amigo — ele cumprimentou Derek com um
forte aperto de mãos.
— E você também. — Beijou Nicole no rosto e fez um sinal para que um gar-
çom lhes servisse champanhe, provando o que se dizia sobre a famosa hospitali-
dade australiana.
Simon foi bem recebido, como seria de esperar. Principalmente por Shawn Kee-
fer. Não dava para dizer quem parecia mais entusiasmado, com os ânimos mais
elevados: o ator ou o irmão de Derek.
Nicole não endeusava os artistas como a maioria das pessoas. Já tendo pisado
em estúdios, ela aprendera que o pessoal do cinema era igual a todo mundo.
Com o agravante da insegurança e do complexo de superioridade. De qualquer
modo, ela não podia negar que Slawn Keefer era bonito. Apenas o bronzeado de
sua pele era intenso demais. Qualquer um que o visse adivinharia as longas ho-
ras sob aparelhos de bronzeamento artificial. O ator lembrava Clint Eastwood
jovem. Era muito bonito.
— Este filme será mesmo um sucesso — Shawn declarou. — Nada pode dai er-
rado com Nathan Cooley na direção. O homem é um gênio. Também Kane Fer-
ris, o produtor.
Ele investiu uma fortuna neste projeto, seguro do retorno que terá. A única in-
conveniência por enquanto está sendo tolerar a Srta. Diva. Lucy Swanson se
considera uma Meryl Streep, sem nunca ter estrelado um grande filme. Tenho
pena do sujeito que trouxe os animais. Ela o tem feito passar uns maus bocados.
Derek apertou a mão de Nicole para que ela o fitasse.
— O que acha de comermos algo? — sussurrou.
Nicole fez que sim, e eles afastaram-se, deixando que Simon aproveitasse a
companhia do ator. Antes que alcançassem a mesa onde estava disposto um bu-
fê de frios, a Srta. Diva em pessoa trombou em Derek.
— Oh, eu sinto muito! Estava distraída.
Uma inevitável fisgada de inveja fez Nicole olhar para Lucy Swanson com hos-
tilidade. Derek, como qualquer outro homem, provavelmente, estava parecendo
um tolo, sorrindo para ela, embevecido. Não havia como não se sentir em des-
vantagem com sua calça jeans e suéter diante da outra que usava um vestido
preto, com sensual decote em "V". Seu único consolo era que a estrela deveria
estar morrendo de frio, sem poder demonstrar.
— Vocês não são daqui, são? — Lucy perguntou.

21
— Não. Viemos à Austrália a negócios — respondeu Derek.
— Liam e Grace os estão hospedando?
— Não, estamos em um hotel na cidade.
— Americanos, certo? Derek concordou.
— Do vale de Napa.
— Oh, eu adoro o vale de Napa. Passei uma temporada lá para recarregar as ba-
terias alguns anos atrás.
Para se afogar em vinho, Nicole pensou, para se arrepender logo depois.
— Vocês sabem meu nome. Eu gostaria que me dissessem os seus.
— Eu sou Derek Malveaux e esta é Nicole Sands.
— Nicole Sands? Oh, meu Deus! A detetive Martini? Minha mãe e eu não perd-
íamos os episódios do seu seriado por nada no mundo! Eu deveria ter uns quin-
ze anos na época. Minha mãe era alegre e feliz. Depois meu pai foi embora, e
ela entrou em depressão. Agora a sustento e aos meus irmãos. Mas conte-me. O
que aconteceu com você? Por que desapareceu? Você era perfeita!
Com um sorriso e um encolher de ombros, Nicole respondeu com uma meia
verdade.
— Eu escolhi ter uma vida.
Lucy Swanson franziu as sobrancelhas.
— Entendo o que quer dizer. Não agüentou a pressão. As cirurgias plásticas, as
dietas e o resto...
Instintivamente, Nicole tocou o queixo e olhou para os próprios seios.
— Preferi explorar outros caminhos.
— Em minha opinião, foi uma pena. Você era demais naquele papel.
Com uma sensação esquisita, Nicole ficou olhando a estrela desaparecer à pro-
cura de Hannah, na tentativa de descobrir se a garota lhe conseguiria uma dose
de tequila do estoque privativo de seu pai. Margarita era seu drinque favorito.
Lucy a elogiara, mas como se agora Nicole fosse outra pessoa. Teria envelheci-
do tanto assim?
Chegar perto dos quarenta era um tributo pesado. Apesar de ela ser adepta de
um estilo saudável de viver, com exercícios e boa alimentação, seu corpo não
era mais o mesmo de antes.
Derek interrompeu sua divagarão com um beijinho no rosto.
— Não me diga que ficou perturbada por causa de Lucy.
— Não posso evitar.
— Tolinha. Ela é pouco mais to que uma adolescente e seu comportamento, co-

22
mo tal, deixa a desejar.
— Ele se inclinou e beijou-a no pescoço.
— Não se compare com ela. Você é uma mulher linda. Mal posso esperar para
tê-la em meus braços.
Uma deliciosa sensação de calor se apoderou de Nicole. Derek acabava de com-
pensá-la pelos momentos desagradáveis de pouco antes. Mas antes que pudesse
lhe agradecer com um beijo ou com um olhar cheio de promessas, Liam anun-
ciou que o churrasco estava pronto e que como um autêntico australiano, ele es-
taria oferecendo carnes de variados tipos, inclusive de canguru.
Nicole ficou horrorizada. Derek confessou que só provara canguru uma vez, pa-
ra não fazer desfeita ao anfitrião, mas que apreciara a carne, bem parecida com
a bovina.
— Para nos entreter, Andy trouxe alguns de seus animais — Liam continuou.
— Estamos com sorte esta noite. Assistiremos a um show ao vivo, do famoso
Andy Burrow!
Os convidados entraram em fila para se servirem. Nicole tentou apagar de sua
mente a cena de cobras e crocodilos em desfile e olhou ao redor na expectativa
de uma chance para conversar com Nathan Cooley. Não que estivesse interessa-
da em retomar sua carreira artística. Esse capítulo de sua vida estava definitiva-
mente encerrado. Mas conversar com um diretor do calibre de Nathan não era
algo a ser desprezado.
Enquanto tentava localizá-lo entre a multidão, observou que a grande maioria
dos convidados pertencia à classe artística. Os outros, em escala bem menor,
eram os amigos milionários do casal de proprietários. Chamou sua atenção, po-
rém, a simplicidade do estilo de vida de Liam e Grace. Ela havia temperado as
carnes e preparado os acompanhamentos, e Liam estava cuidando da churras-
queira. Eles haviam contratado um bufê apenas para a organização do evento e
para o serviço de bar.
O ambiente estava agradavelmente acolhedor. Colocada de frente para o rio que
cortava a propriedade ao fundo, a mesa oferecia um verdadeiro espetáculo
aos convidados.
Os raios do sol poente ao incidirem sobre as águas brilhavam como milhares de
moedas de ouro movendo-se em suave flutuação.
O deque era feito de madeira escura em tons avermelhados, como os que Grace
escolhera para decorar a sala. O mesmo que o restaurante Grapes, no vale de
Napa, exibia em seu piso.

23
A imagem de Andrés inevitavelmente se formou ante os olhos de Nicole. O res-
taurante Grapes pertencia à irmã dele, Isabel, e sua melhor amiga. Por pouco,
não fora encontrá-lo no aeroporto e seguido com ele para a Espanha. Andrés e
ela haviam se tornado grandes amigos e tinham saído juntos algumas vezes. An-
tes de embarcar, a fim de investigar a possibilidade de comprar terras e abrir seu
próprio negócio no ramo da vinicultura, Andrés lhe declarara seu amor. No ins-
tante, porém, que Nicole apanhara a bolsa, decidida a seguir ao encontro dele,
Derek tinha ligado e deixado uma mensagem que a fizera hesitar por um mo-
mento. A razão tentara convencer o coração de que Andrés era o homem certo,
mas o coração vencera. Também porque ele não lhe pertencia inteiramente des-
de que Derek a contratara para gerenciar a vinícola Malveaux.
Nicole sentou-se ao redor de uma fogueira, onde foram dispostas cadeiras e al-
mofadas. Para sua surpresa e alegria, Nathan sentou-se em frente a ela com o
produtor. Teria sido perfeito se Lucy Swanson e Hannah Hahndorf não tivessem
se reunido aos dois.
— Vocês conhecem Nicole Sands? Ela era a detetive Martini de um seriado po-
licial que passou na televisão alguns anos atrás. Eu era sua fã.
Para alívio de Nicole, nenhum dos dois homens se lembrava da personagem ou
do seriado. E Derek, maravilhoso como sempre, logo conduziu a conversa para
outro rumo.
O diretor e o produtor estavam sendo simpáticos ao elogiarem a equipe e, prin-
cipalmente, Shawn Keefer. Nicole notou o modo como Lucy revirou os olhos e
cutucou Hannah. As duas olharam para o ator, a poucos metros de distância.
— O sujeito é um imbecil como o tal encantador de serpentes ao lado dele. E
aquele outro, então? Comporta-se como se Shawn fosse um deus!
— Aquele outro é meu irmão — disse Derek.
— Oh, me desculpe...
— Então você já atuou. — Kane salvou Lucy de um desconforto, e causou ou-
tro a Nicole.
— Faz algum tempo. O seriado não emplacou.
— É um trabalho difícil. Precisava haver paixão para dar certo. Como qualquer
outro trabalho.
Kane Ferris era o oposto de Nathan Cooley, fisicamente falando. Seus cabelos
eram castanho-claros curtos e seus olhos azuis.
— É verdade — concordou Nathan. — Ainda estou lutando para alcançar o sta-
tus de um Spielberg.

24
— Eu adoro seus filmes. — As palavras brotaram dos lábios de Nicole. Derek
estreitou os olhos. Ela estava deslumbrada pelo diretor. Consolou-o que ela não
demonstrasse nenhum interesse pelo homem em si, mas pelo profissional.
— Obrigado, Nicole. Lucy falou tão bem sobre sua atuação que me deixou cu-
rioso. Quando voltarmos, pretendo conseguir cópias e assisti-las. Quem sabe vo-
cê reconsidera sua posição e nós possamos trabalhar juntos algum dia?
Nicole sentiu que corava. Derek se manifestou.
— Ela trabalha para mim. Eu possuo uma vinícola no vale de Napa.
Hannah e Lucy disseram algo uma a outra naquele instante. Nicole percebeu
que elas estavam se referindo a Andy Burrow. Ou talvez ao seu assistente. Co-
mo era mesmo o nome dele? Johnny? A certeza veio do modo entusiasmado
com que ele se afastou do bar, e fez um sinal a elas, levando três drinques consi-
go.
Enfim, o que os jovens queriam fazer de suas vidas, não era da conta dela. De-
rek vivia dizendo que sua curiosidade ainda a meteria em sérias encrencas.
O churrasco estava sendo um sucesso. O show de Andy atraiu aplausos e asso-
bios de apreciação. O voluntário da noite foi Nathan Cooley, para alívio de Ni-
cole. Seu entusiasmo pelos répteis foi grande como o de Derek. Para Nicole, is-
so era completamente incompreensível.
A noite terminou com uma farta mesa de doces e frutas e com um cálice de vi-
nho do Porto. Nicole viu Liam chamar Derek de lado para falarem a sós. Mais
tarde, ele teria de lhe contar o que estava acontecendo.
No trajeto de volta, Simon dominou a conversa. Afirmou que seria capaz de
apostar que o ator era gay como ele. Nicole decidiu acelerar a tentativa de re-
conciliação. Ela gostava de Marco. Ele exercia uma boa influência sobre Si-
mon. O irmão de Derek precisava de alguém que o ajudasse a manter os pés no
chão.
Ao chegarem ao hotel, não se falou em mais nada que não fosse sobre a divisão
dos leitos. Nicole insistiu em dormir no sofá porque era a vez de Derek ficar
com a cama. Simon não quis acreditar que eles ainda não haviam dormido jun-
tos. Derek fez com que se calasse. Ofertas e acordos não funcionaram. Ficou de-
cidido que Derek tornaria a dormir no sofá.
— Ainda não será possível ficarmos juntos — ele sussurrou no ouvido de Nico-
le antes de se deitarem.
— Mas logo dará certo.
Nicole estava começando a duvidar disso. E sua dúvida persistiu durante a ma-

25
nhã seguinte.
— São dez e meia! Hora de levantar!
— exclamou Simon, puxando as cortinas.
— Dez e meia? — Nicole sentou-se, perplexa.
— Eu perdi a noção do tempo. Onde está Derek?
— Na vinícola. Ele e eu não tivemos coragem de acordá-la. Você dormia pro-
fundamente. Nós tomamos café, e ele foi encontrar com os Hahndorf.
— Eu estava exausta.
— Seu ronco que o diga.
— Eu não ronco! — Nicole protestou.
— Derek ligou — Simon prosseguiu como se não a tivesse escutado. — Os
Hahndorf querem que almocemos com eles. Derek parecia tenso. Ele me confes-
sou que pretendia recusar o convite, mas resolveu aceitar por pena de Liam e de
Grace. Lucy Swanson voltou a criar confusão por lá. Eu achei ótimo. Mal posso
esperar para encontrar Shawn novamente.
Nicole correu para o chuveiro enquanto Simon descia para lhe apanhar uma
xícara de café. Nunca fora tão rápida ao banho. Queria mandar um e-mail para
Marco antes que Simon regressasse.
Na vinícola, Nicole e Simon foram recebidos pelo segurança. Os carros e as
vans com os equipamentos continuavam estacionados no local das filmagens.
Simon, como seria de esperar, propôs darem uma passada pelo set antes de se-
guirem para a casa dos Hahndorf.
— Estão nos aguardando. Não seria delicado.
— Dez minutos não farão diferença — Simon alegou. — Não seja uma desman-
cha-prazeres.
Marco estava certo. Talvez Simon precisasse realmente de tempo para refletir.
Ele era obcecado por grifes e celebridades.
— Está bem. Mas eu contarei os minutos. E quero que você me responda uma
pergunta com sinceridade.
— É a respeito de Marco, não? — Simon adivinhou.
— Sim. Ele e você se tornaram pessoas melhores depois que freqüentaram as
aulas daquele guru.
— Eu entendo o que você está querendo dizer. Admito que as lições dele foram
úteis no meu modo de tratar as pessoas. Por outro lado, estou farto de ouvir
críticas sobre minha maneira de ser. Gosto de coisas bonitas, de comer bem e de
beber champanhe. Não sou como Marco. Não quero renunciar aos prazeres

26
mundanos em troca do silêncio e da meditação.
— Deve haver um meio termo para vocês...
Simon não deixou que Nicole terminasse. Apontou para um carro no estaciona-
mento e parou ao lado dele.
— É disso que eu estou falando. Um Rolls-Royce. Quero um desses para mim.
— Quando sugeri que vocês encontrassem um meio termo, estava me referindo
justamente a este tipo de coisa. Para que você precisaria de um carro tão caro?
Para elevar seu status?
— Por que não?
A conversa foi interrompida pela chegada de Shawn Keefer. Simon quase se ati-
rou pela janela na pressa de abrir a porta.
— Bom dia — Shawn saudou-os com o rosto franzido.
— Bom dia para você também — Simon respondeu o entusiasmo contido dian-
te da frieza do outro.
— Para mim, o dia não começou bem — Shawn resmungou. — Vim para este
lugar para fazer um filme e não para descansar como certas pessoas. Quase me-
tade da manhã se foi e Lucy Swanson ainda não se apresentou para o trabalho.
Estou em meu limite de tolerância.
— Diga-me em que hotel ela está hospedada e eu vou buscá-la para você — Si-
mon se prontificou.
— Nós não estamos hospedados em hotéis — Shawn informou.
— Nathan e Kane, eu e Lucy temos cada um nosso próprio trailer.Os demais
compartilham.
— Nesse case, por que ninguém foi acordá-la? — Nicole estranhou.
— Nós rodamos algumas cenas em que a presença dela não era necessária. Ia.
verdade, já estávamos esperando que ela tivesse uma ressaca depois da noite de
ontem. Todos perceberam que ela saiu em companhia de Hannah e de Johnny.
O rapaz é dado a orgias. Não foi difícil adivinhar que Lucy se atrasaria. Há ru-
mores de que eles levaram o carro de Grace Hahndorf na pequena escapada e
que o amassaram.
— Tão sério assim? — Nicole quis saber. Shawn fez um sinal afirmativo com a
cabeça.
— A figurinista foi procurar Lucy no trailer cerca de uma hora atrás. Bateu re-
petidas vezes, sem resposta. Kane foi até lá e insistiu, também sem resultado.
Nathan saiu em busca de uma cópia da chave.
Nicole olhou para Simon de modo a apressá-lo.

27
— Estão nos esperando para o almoço.
O protesto de Simon foi calado pela chegada inesperada de Liam e de Derek, no
carrinho de golfe. Ao vê-los se dirigindo ao trailer de Lucy, Nicole e Simon os
seguiram.
Kane estava chamando por Lucy quando Liam lhe entregou uma cópia da cha-
ve.
— Obrigado. Depois de uma xícara de café bem forte talvez Lucy ainda possa
participar das filmagens. Espero que o dia não esteja de todo perdido.
No momento que a porta foi aberta, algo deslizou pelos degraus. Nicole e todos
que estavam no local saltaram para trás instintivamente para se protegerem.
— Oh, meu Deus! Alguém chame Andy!
Uma cobra marrom rastejou para fora do trailer, e Kane entrou. Andy chegou
em poucos minutos.
— Qual é o problema?
Kane reapareceu. Estava pálido e seus olhos estreitaram ao pousarem sobre o
zoólogo.
— Qual é o problema? Uma de suas malditas cobras picou a atriz principal de
meu filme. Lucy está morta.

Capítulo II

Tomados pelo choque da revelação, todos permaneceram no local até a chegada


de uma viatura da polícia. Derek enlaçou Nicole pelo ombro em um gesto prote-
tor. Simon permaneceu ao lado de' Shawn. O ator, assim como os demais, esta-
va perplexo e inconformado com a tragédia. Ninguém parecia em condições de
raciocinar. Apenas Nicole, aparentemente, mantivera a serenidade.
Um pensamento lhe ocorreu. Shawn Keefer estava representando ou seu descon-
trole era real? Ela era testemunha de que o ator afirmara detestar Lucy. Sua mor-
te súbita o transtornara como estava fazendo parecer?
A pessoa, porém, que se mostrava mais perturbada com o dramático evento era
Aidy Burrow. Ele não parava de repetir que a cobra que matara Lucy não lhe
pertencia.
— Eu as mantenho em compartimentos seguros. Não existe nenhuma chance de
alguma escapar. A cobra que matou Lucy Swanson vive nesta propriedade e se
esconde entre os arbustos.
— O que me intriga é como a cobra conseguiu entrar no trailer — Nicole cochi-

28
chou para Derek.
Um olhar de advertência foi a resposta que recebeu em um claro lembrete para
<pie ela não se envolvesse naquela história.
— A cobra certamente entrou pela porta aberta sem que ninguém percebesse —
disse Derek.
— Foi um acidente, Nicole, não um crime.
Um policial desceu, da viatura e se dirigiu a Liam. Simon finalmente se afastou
do ator e veio para a companhia do irmão e de Nicole.
— Não dá para acreditar! E agora? Como eles farão para terminar o filme?
Shawn está arrasado.
Nicole olhou para o artista que andava de um lado para outro agora em frente a
seu próprio trailer e falava atropeladamente pelo celular.
— Como os estúdios procedem em circunstâncias como esta, Branca de Neve?
— Eu não sei. Por que deveria saber?
— Ora, você já fez parte de Hollywood, não? Acha que eles cancelarão o filme?
— Para ser franca, eu não sei. Uma mulher acabou de morrer. O filme não é o
que há de mais importante neste momento. Lucy Swanson não era uma pessoa
simpática, mas não merecia uma morte tão terrível. Os paparazzi não devem
tardar. Esse tipo de notícia se espalha mais rápido do que o vento.
— A cidade está cheia deles — Simon concordou. — Ora, por que você acha
que não há vaga em nenhum hotel? Assim que souberam que Shawn Keefer es-
tava filmando aqui, vieram em caravana.
— Estou pensando em Liam e nos problemas que ele terá de enfrentar com o in-
quérito — disse Derek.
— Proporei adiar as negociações. No mês que vem, quando os ânimos acalma-
rem, voltarei para assinarmos o contrato. — Baixou o tom de voz. — Para ser
sincero, quero voltar para casa ainda hoje, se for possível.
Ele e Nicole aproveitaram o afastamento do policial e do produtor para se apro-
ximarem de Liam. No entanto, tão rápido quanto entrara no trailer, o policial
tornou a sair.
— Foi realmente uma cobra que matou a vítima. Ela foi picada na perna en-
quanto dormia. A cobra deve ter se escondido entre os lençóis.
— Por que diz isso? — Nicole perguntou incapaz de se conter.
O policial encarou-a como se não tivesse reparado em sua presença até aquele
instante.
— Você não é daqui, é?

29
— Sou da Califórnia.
— Ouvi dizer que é um lindo lugar. Espero conhecê-lo algum dia.
Liam pigarreou.
— O que o policial Warren quis dizer foi que as cobras normalmente preferem
lugares frescos e não uma cama quente.
— Sim. Por outro lado, elas também gostam de lugares escuros. A situação terá
de ser investigada por um especialista.
O policial se dirigiu à viatura e fez contato com a delegacia pelo rádio. Não da-
va para ouvir as palavras. Dava para ouvir, contudo, os impropérios de Shawn
Keefer ao celular. Kane tocou no ombro dele e disse algo que o silenciou.
— Comportamento típico —Liam resmungou.
— A que você se refere? — Nicole perguntou.
— Warren levar o caso ao seu superior. Assim que soube que Lucy era uma
atriz famosa, ele quis lavar as mãos. Por estas partes, ninguém assume a respon-
sabilidade diante de fatos que possam servir de manchete. Enquanto não ficar
provado que essa picada de cobra foi acidental, a polícia de Barossa Valey dei-
xará a investigação a cargo de agentes de fora.
Nicole mordeu o lábio. Se o policial estava chamando um detetive, ele tinha su-
as dúvidas, assim como ela, sobre a morte de Lucy Swansonter sido um aciden-
te.
Não se passou muito tempo até a chegada de outra viatura com um policial alto,
loiro, usando um uniforme e chapéu caqui.
— Olá, Jack — Liam acenou,
— Olá. Problemas em sua vinícola, pelo que fui informado.
— Um grande problema — admitiu Liam e imediatamente apresentou Derek e
Nicole. — Este é o detetive Jack Von Dousse. Ele também é um bom amigo.
— Lamento vir aqui nas presentes circunstâncias. Gostaria que minha visita ti-
vesse outro cunho. Enfim, Warren me passou o caso assim que descobriu que a
vítima era uma pessoa importante. De quem se trata?
— Lucy Swanson — Liam informou.
O novo policial assentiu e sinalizou para o colega.
— O caso é da alçada do CSE. Traga a filmadora.
— Vocês vão filmar? — Nicole não conteve a curiosidade. — O que quer dizer
CSE?
— Você faz muitas perguntas, moça. — Jack Von Dousse sorriu, mas seu tom
não foi condescendente.

30
— CSE é nosso equivalente ao CSI americano. Trata-se de um departamento
policial especializado em investigar mortes suspeitas.
— Minha curiosidade se prende ao fato de eu ter sido criada por uma tia que
trabalhava como detetive para a polícia de Los Angeles — Nicole explicou. —
Você suspeita de um crime?
— Não tenho base para responder. Estou apenas seguindo o procedimento de
rotina.
O policial Warren franziu o cenho ao ouvir a referência a crime.
— Pensei que a morte tivesse sido provocada pela picada de uma cobra mar-
rom. Seu veneno é letal. Agora você está dizendo que chamará o pessoal da
CSE?
— Sim. A vítima é uma atriz famosa. Aliás, eu quero o pessoal presente no mo-
mento da filmagem e da investigação do local. Para que não digam, depois, que
eu deixei alguma pista escapar por deslumbramento.
Von Dousse balançou a cabeça enquanto o outro policial se dirigia à viatura.
— Filmarei o local para provar que fiz tudo o que me cabia fazer. A propósito,
você sabe se conseguiram capturar a cobra quando abriram a porta do trailer?
— Não — Liam respondeu. — Ela escapou. O único homem que teria condi-
ções para pegá-la era Andy Burrow, e ele não estava por perto. O produtor afir-
ma ser Andy, aliás, que a deixou escapar. O detetive esfregou o queixo.
— Andy Burrow está aqui?
— Sim. Ele veio com a equipe de filmagem e trouxe alguns animais de seu zo-
ológico. A cobra marrom que foi vista no trailer é idêntica a que tem sido usada
nas filmagens. Andy negou sua responsabilidade no acidente e foi até o viveiro
para fazer uma verificação.
Um carro entrou no estacionamento conforme o policial terminava de fazer al-
gumas anotações em um bloco e o guardava no bolso.
— O representante da CSE deveria estar nas proximidades. Não é comum que
mandem alguém tão rápido.
Os policiais se dirigiram ao trailer. Liam suspirou.
— Peço desculpas, meus amigos. Nunca acontece nada por estes lados. A crimi-
nalidade praticamente não existe em Barossa Valley.
— Pelo que estão dizendo, não foi um crime — Nicole lembrou.
— Cobras marrons já foram encontradas na vinícola, não foram?
Liam tornou a suspirar.
— Não sei por que mencionei a possibilidade de um crime. Devo ter ficado im-

31
pressionado com a decisão de Jack de chamar a CSE. Mas ele está certo. Pre-
caução nunca é demais. Também é uma questão de ele se garantir, caso o pato-
logista descubra que a vítima morreu do coração ou de uma overdose, e não por
causada picada da cobra.
— Difícil de acreditar — Nicole murmurou.
— A cobra foi vista saindo do trailer.
— Nada é impossível — Liam insistiu.
— Qualquer um grita por socorro ao ser atacado por algo ou por alguém. A me-
nos que não tenha pressentido o perigo. A picada da cobra marrom não é das
mais doloridas. A quantidade de álcool que Lucy Swanson ingeriu durante o
churrasco foi significativa. Ela, minha filha e um rapaz da equipe de filmagem
saíram com o carro de Grace e acabaram com ele. Grace está furiosa.
Nicole interceptou uma troca de olhares entre o dono da vinícola e Derek. Mais
uma vez cogitou qual seria o segredo entre os dois.
Derek apoiou a mão no ombro do outro e ofereceu seus préstimos. Em seguida,
deu um pequeno sorriso para Nicole e enlaçou-a pela cintura. Ela retribuiu o
sorriso, mas os pensamentos ricocheteavam por sua mente.
Não demorou e o detetive Von Dousse tornou a se reunir a eles.
— Meu trabalho aqui está terminado por enquanto. O patologista está satisfeito
com os materiais que recolhi no local e coube a Warren chamar o pessoal do ne-
crotério. O corpo não tardará a ser removido.
— Você se importa de me dizer quais materiais foram colhidos? — Nicole inda-
gou.
— Amostras de pele e de sangue para o exame do DNA. Estou pensando em co-
lher uma amostra do veneno da cobra de Andy Burrow também para termos cer-
teza.
Nicole não se manifestou, mas se o detetive planejava falar com Andy para ter
certeza de que não fora sua cobra que matara Lucy, então ele não descartara a
possibilidade de Andy ou outra pessoa tê-la colocado no trailer. Céus, a trama
estava se complicando. E onde estava Andy? Já fazia um bom tempo que ele se
afastara para verificar seus animais.
— Suponhamos que a cobra não seja encontrada.
— Então eu terei de interrogar Andy Burrow e descobrir como ela conseguiu es-
capar.
Nicole refletiu por um instante antes de se dirigir novamente a Von Dousse.
— Acha que a cobra picou Lucy durante o sono?

32
— Eu diria que sim. Ela foi encontrada na cama, coberta por um lençol e sua
cabeça repousava sobre o travesseiro.
— Não é estranho? — Nicole franziu o rosto.
— O trai-ler estava fechado, Lucy estava dormindo e a cobra entrou, subiu na
cama, picou-a e desapareceu.
Ninguém se manifestou por um longo minuto. Antes de prosseguir, o detetive
deu uma risadinha sem humor.
— Eu diria que a cobra deu um jeito de entrar no trailer enquanto a porta estava
aberta. Lá dentro, deveria estar escuro e ela dormiu em algum canto. Talvez na
própria cama. De madrugada, a atriz se deitou. Para se defender ou por estar
com fome, a cobra picou-a. Acha isso possível? Eu confesso que todo esse inte-
resse está chamando minha atenção, Srta. Sands. Tem certeza de que sua curio-
sidade justifica-se apenas pelo fato de sua tia ter trabalhado como detetive?
Mais do que o olhar inquiritivo do policial, foi o suspiro de desalento de Derek
que tocou Nicole. Ele a alertara diversas vezes sobre a inconveniência de suas
perguntas e observações. Mas nada a faria calar quando alguém fora morto em
circunstâncias suspeitas.
— Eu não consigo parar de pensar que alguém deve ter colocado a cobra na ca-
ma de Lucy com a intenção de matá-la, fazendo parecer um acidente.
Von Dousse pôs a mão no ombro de Derek e inclinou a cabeça sugestivamente
para Nicole.
— A moça tem imaginação, meu caro, ou você acha que ela está sabendo algo
que eu não sei?
Derek apertou a mão de Nicole em óbvia mensagem para que ela se calasse. Al-
go que ambos sabiam não funcionar. A história estava mal contada e o faro de
Nicole dificilmente a enganava. Mas antes que ela pudesse continuar com as
perguntas, Andy aparecei. Estava pálido e seus olhos transmitiam total perplexi-
dade
— Foi minha cobra que a matou. Ela não está mais lá. Eu estive andando pela
propriedade, tentando encontrá-la. Não posso entender come ela fugiu. Tenho
certeza de que tranquei todas as gaiolas e jaulas ontem a noite. Hannah é teste-
munha.
— Minha filha? — Liam perguntou, surpreso.
— Sim. Ela estava perturbada com o que houve e me procurou. Conversamos
bastante, e ela me contou que estava pensando em estudar zoologia. Eu a convi-
dei para me acompanhar enquanto me certificava de que todas as gaiolas esti-

33
vessem trancadas.
Uma onda de desconforto dominou o grupo. Apesar de Andy ser um bom sujei-
to, parecia inadequado que ele andasse pelo vinhedo com uma garota no meio
da noite, especialmente nessas circunstâncias.
— A que horas foi isso? — o detetive perguntou.
— Por volta da meia-noite. E não foi só isso. O traje, que eu costumo usar quan-
do manuseio os répteis, estava em uma posição diferente da que deixei na noite
passada. Alguém o inverteu.
— O senhor consumiu bebidas alcoólicas na noite passada?
— Um pouco de vinho.
— Talvez a quantidade o tenha feito se confundir sobre o lugar onde colocou
seu traje — aventou Liam.
— De modo algum. Eu sigo um padrão em meu trabalho e posso afirmar que as
roupas foram trocadas.
O detetive olhou para Nicole e novamente para Andy antes de se dirigir ao outro
policial.
— Se for verdade, teremos de confiscar os trajes para exames.
— Sim, senhor.
Von Dousse piscou para Derek antes de se afastar com Andy e com o colega em
direção ao viveiro dos animais.
— Talvez sua assistente não seja tão imaginativa afinal de contas.
Sozinhos, Derek fez Nicole prometer que não se envolveria na investigação de
mais um crime. Aquele seria o terceiro, depois que a conhecera.
— Está bem — ela concordou, com os dedos cruzados às costas.
Não havia mais o que fazer depois que a polícia deixou o local para tentar des-
cobrir a verdade sobre a morte de Lucy Swanson. Nicole estava certa de que a
atriz fora assassinada, mas dava razão a Derek por não querer que ela se envol-
vesse no desvendamento de mais um crime. Principalmente fora dos Estados
Unidos.
Liam os chamou para o almoço. Durante o trajeto para casa, confidenciou que
estava preocupado com a esposa.
— Ela ficou muito abalada com o acidente de Hannah na noite passada.
— Talvez devêssemos deixar o almoço para outro dia — Derek sugeriu.
— Talvez devêssemos deixar os negócios, inclusive, para daqui um mês ou
dois, até a poeira baixar.
— Não — Liam recusou a sugestão com uma veemência que causou estranheza

34
em Nicole.
— Eu preciso resolver este assunto agora. Você me entende? E com relação ao
almoço, a idéia partiu de Grace. Foi essa a maneira que encontrou, talvez, para
impedir que Hannah fosse ao encontro de Lucy, cuja amizade não acredita ser-
vir para uma menina como nossa filha. Ela, o maquiador, e Hannah afirmam
que foram jogados para fora da estrada por alguém que vinha na direção contrá-
ria, mas nem Grace nem eu acreditamos nessa versão. Os três tinham bebido.
Eu -vivo dizendo que Hannah precisa ser mais responsável, — Ele balançou a
cabeça. — Minha esposa e minha filha não saíram de casa esta manhã. Nenhu-
ma das duas foi informada sobre a morte de Lucy Swanson.
— Hannah ainda é muito jovem. — Derek tentou consolar o parceiro.
—Todos nós cometemos tolices em nossa juventude.
Liam suspirou.
— Quanto ao nosso acordo, eu devo lhe dizer que tenho certeza de que a morte
da atriz me causará problemas por ter acontecido em minha propriedade. Se vo-
cê quiser desistir, serei obrigado a aceitar sua vontade, Derek. Mas sinceramen-
te falando, espero que não tenha mudado de idéia.
— Eu não mudei. Não estou preocupado que o ocorrido possa nos causar uma
publicidade negativa, mas sim com os efeitos sobre você e sua família. Não
quero representar uma tensão adicional neste período difícil.
— Agradeço sua preocupação, mas acredito que será melhor se pudermos tentar
continuar levando nossa vida da maneira mais normal possível. Após o almoço,
talvez possamos percorrer o resto do vinhedo. Se tudo der certo, eu mandarei
providenciar a documentação e amanhã você estará livre para voltar aos Estados
Unidos.
Não cabia a Nicole decidir, mas ela se agarrou à esperança de eles continuarem
na Austrália por mais alguns dias. Não teria sossego enquanto não obtivesse res-
postas para suas dúvidas a respeito da morte de Lucy Swanson. Com toda a pro-
babilidade, a negociação estaria concluída ainda naquela tarde. Entretanto a via-
gem não fora apenas a negócios. Derek lhe prometera umas pequenas férias pela
Austrália.

Liam pediu que Derek, Simon e Nicole não comentassem sobre o ocorrido. Ele
queria que almoçassem em paz. Deixaria para contar à esposa e à filha mais tar-
de, quando estivessem sozinhos.
Ao descerem do carrinho, contudo, foram surpreendidos por Hannah. A garota

35
estava chorando e soluçando.
— Papai.
— Hannah? Por que você está assim?
— Eu estou tão arrependida... Oh, papai, eu sinto muito... Derek e Nicole se en-
treolharam e seguiram em frente
de modo a deixar pai e filha a sós. Antes que entrassem na casa, Grace surgiu à
porta e foi dizendo a Liam que Hannah mentira sobre o acidente com o carro.
Ao deparar com Nicole, Derek e Simon, hesitou.
— Mais tarde precisaremos ter uma conversa séria com ela.
— Mas, mamãe...
— O almoço está pronto, Hannah, e nós temos convidados. Suba e se arrume.
— O que houve, Grace? — Liam perguntou assim que a filha se afastou.
— Depois conversaremos, está bem?
— Não, Grace. Nada está bem. Eu pretendia contar a você mais tarde, mas Lucy
Swanson foi picada por uma cobra e morreu. A polícia está no set de filmagem.
Grace perdeu completamente a cor. Nicole ouviu uma pequena exclamação e
olhou para cima a tempo de vislumbrar uma sombra de Hannah antes que ela
desaparecesse pelo hall.
O almoço, como seria de esperar, foi tenso. Nicole não conseguia parar de cogi-
tar sobre o motivo que levara Hannah a espreitar pelos cantos na tentativa de
ouvir o que se falava sobre a morte da atriz. Ou teria sido um truque de sua ima-
ginação?
No trajeto de volta para o hotel, Nicole teve vontade de expressar seu apoio a
Simon quando ele aconselhou Derek a cancelar a parceria com os Hahndorf,
alegando a disparidade entre os membros daquela família. Derek lembrou-o dos
problemas que enfrentavam na própria família, com Patrice, sua madrasta e mãe
de Simon. Simon não teve opção exceto calar. Ao menos até chegarem ao hotel
quando Simon tornou a dizer que queria encontrar outras acomodações com
urgência porque não queria atrapalhara harmonia do casal.
Com pena do amigo, Nicole fez menção de confortá-lo. Derek a deteve não só
com o olhar, mas também com um gesto.
— Você está sempre tentando lhe poupar aborrecimentos. Marco está certo. Si-
mon não é mais uma criança; é hora de ele começar a crescer. Ninguém amadu-
rece sem antes enfrentar dificuldades. Nós o chamaremos para jantar, mas por
enquanto deixe-o sozinho pata que reflita. Além disso, quero você ape-
nas para mim ao menos por algumas horas. O que acha de darmos um passeio

36
em Éden Valley? Ouvi dizer que o lugar é lindo.
Embora estivesse sentindo o coração apertado por Simon, Nicole concordou. O
vale de Barossa era formado por três pequenas cidades. Com o carro, eles per-
correram Angaston, Tanunda e Nuriootpa, que não chegavam a distar oito qui-
lômetros umas das outras. A paisagem era realmente bonita, com vinhedos e
mata nativa a perder de vista.
Fizeram uma parada no vinhedo que consideraram o mais interessante, por ser
artesanal.
— Vinícola Fritz — disse Nicole. — O dono deve ser alemão.
— Segundo o que eu li a respeito, os habitantes de Barossa descendem de imi-
grantes alemães e austríacos em maioria. A colonização inglesa, escocesa e ir-
landesa se fixou mais para o leste.
— Vamos entrar? — Nicole adorava vinhos artesanais. Em Napa e Sonoma ha-
via centenas de vinícolas como aquela. A maioria produzia vinhos de qualidade
superior às comerciais.
Ao caminhar por entre os parreirais, ela teve a sensação de voltar no tempo. O
local da produção do vinho se assemelhava a um celeiro. Havia duas mesas.
Cinco pessoas estavam sentadas ao redor de uma, conversando e bebericando
vinho. Uma delas, uma mulher de seus cinqüenta e poucos anos, com uma cica-
triz em uma das faces, se levantou para recebê-los.
— Bom dia! Sou Sarah Fritz, a proprietária. Vocês são bem-vindos a nossa de-
gustação. — Ela indicou um balcão ao fundo e apanhou três garrafas, separando
uma. — A degustação é cortesia. Mas esta deverá ser comprada como presente
para a moça. — Piscou para Nicole, e Derek concordou, divertido com a origi-
nal estratégia de venda.
— Este vinho é da variedade Sauvignon Blanc. Muito bom. A nota de grape-
fruit é pouco acentuada para ressaltar a acidez sutil da pêra.
Nicole efetuou o ritual da degustação como uma verdadeira expert.
— É bom. Eu senti o buquê das peras.
— Vocês são americanos.
— Sim. De Napa.
— Vieram por prazer ou a negócios?
— Pelos dois motivos — Derek respondeu.
— Estivemos conversando com os Hahndorf — Nicole começou a dizer, mas
Derek a fez calar a um sinal.
Sarah demorou alguns segundos para prosseguir. Sua expressão mudou. Nicole

37
detectou uma vibração de raiva no ar.
— Bem, eu só posso lhe recomendar cautela com aquela família.
Nicole olhou para Derek, mas ele se recusou a encará-la. Logicamente, ela não
conteve a curiosidade.
— Por que a senhora diz isso?
Sarah apanhou outra garrafa e tornou a encher as taças de Derek e de Nicole.
Serviu-se de urna também.
— Liam é um homem decente. Segundo os rumores que correm pela cidade, ele
está planejando se associar a Derek Malveaux. Imagino que seja você. — A mu-
lher olhou para Derek, e ele confirmou, sem entusiasmo. — Quem comanda
aquele império, porém, é Grace. Liam não toma nenhuma decisão sem antes
consultar a megera.
— Não foi essa a impressão que eu tive — Nicole afirmou. — Grace Hahndorf
me pareceu uma pessoa amável e pouco interessada nos negócios da família.
— Ela é uma neurótica inteligente. De quem vocês acham que foi a idéia de ro-
tular o vinho australiano na Califórnia? Liam é um homem simples. Para Grace,
o que conta é a aparência. As coisas não seriam assim, caso Liam tivesse se ca-
sado com Elizabeth Wells vinte anos atrás. Elizabeth foi o primeiro e grande
amor de sua vida, mas ela morreu.
— Como? — Nicole perguntou sem se importar que Derek estivesse com o ce-
nho franzido.
— Um trágico acidente. Elizabeth era zoóloga. Estava trabalhando na mata, ten-
tando salvar um filhote de coala, e um crocodilo a pegou.
— Oh, meu Deus!
— Sim, foi horrível. E mais horrível ainda foi Liam se casar com Grace.
— Engraçado — Nicole comentou, sincera. — Ela me pareceu simpática.
— As aparências enganam.
Derek pigarreou e tirou uma nota de vinte dólares do bolso.
— Isto deve cobrir o valor do vinho.
Sem se despedir, ele segurou Nicole pelo braço e se encaminhou para a saída.
Sarah Fritz o chamou, mas ele continuou andando sem lhe dar atenção. Nicole
se virou e acenou. Derek não lhe dirigiu a palavra até que entrassem no carro.
— Por que você sempre faz isso?
— Isso o quê?
— Perguntas. E depois acredita em tudo o que lhe dizem.
— Eu não acreditei necessariamente no que ela disse.

38
— Mas provocou-a para que continuasse a falar. A mulher é invejosa. Você pro-
vou o vinho que ela produz. É péssimo. Obviamente está morrendo de ciúmes
de Liam e Grace por serem seus concorrentes. E mesmo que a história que ela
contou seja verdadeira, nós não temos nada a ver com isso.
— Você está exagerando.
— Não. Você faz isso o tempo todo. Por se meter onde não é chamada, acaba
sempre arrumando confusão.
Nicole tentou se defender, mas Derek não permitiu.
— Desta vez você vai me ouvir! Eu a conheço. Estou até mesmo vendo as en-
grenagens se movendo dentro de sua cabeça. Decidiu que Lucy Swanson foi as-
sassinada e agora está se propondo investigar a história dos Hahndorf. Essa sua
mania de detetive já não lhe causou problemas o suficiente?
Nicole recostou no banco e fechou os olhos. Derek a estava acusando, e ela não
estava gostando de seu tom de voz. Mas por mais que quisesse se zangar, sen-
tia-se forçada a dar razão a ele.
— Você está certo — admitiu. — Mas é mais forte do que eu. Posso parecer
uma tola, uma maluca, mas eu me importo com a justiça. Nós vivemos em um
mundo em que cada um só pensa em si mesmo. Não sou capaz de ficar de bra-
ços cruzados. Recuso-me a me tornar uma pessoa fria e indiferente quando um
inocente é vítima de um crime. E eu acredito que Lucy tenha sido assassinada.
Ela não era a mais dócil das criaturas, é verdade, mas qual de nós é perfeito?
Todo mundo tem seus momentos de insensatez.
Os olhos de Nicole estavam marejados quando ela terminou de falar. Suas pala-
vras não tinham sido um mero desabafo, uma mera defesa. Elas serviram como
uma revelação para si mesma. Com medo de sofrer e de se magoar, passara pela
vida tentando se convencer e também aos outros que não se importava. Mas im-
portava-se e muito.
Derek parou o carro no acostamento. O que faria com ela? Mandaria que des-
cesse? Em vez disso, tocou-a no ombro com uma das mãos e com a outra a se-
gurou pelo queixo. Beijou-a como nunca a beijara antes. Um beijo que a fez es-
quecer que estava dentro de um carro, no meio de uma estrada, e que a levou
para o paraíso sobre urna nuvem quente e macia.
— O que foi? — Nicole murmurou quando ao abrir finalmente os olhos, viu De-
rek fitando-a com adoração.
— É por isso que eu te amo. — Ele suspirou. — O que não amo é a preocupa-
ção que você me causa ao se envolver em situações que não lhe dizem respeito.

39
Prometa que esquecerá o que ouviu sobre a morte de Lucy e sobre a fofoca de
Sarah Fritz.
Depois de um beijo como aquele, o que mais Nicole poderia dizer, além de rezai
pedindo forças para cumprir o que estava prometendo?
Eles terminaram o tour em Tanunda, a cidade onde estavam hospedados. Em
vez de seguirem para Éden Valley, Derek convidara Nicole para passear pelas
ruas e verificarem as oportunidades de compras. Ele comprou um par de brincos
de safiras australianas que ela colocou imediatamente.
O sol estava se pondo quando voltaram para o hotel.
— O que me diz de uma taça de champanhe? — Derek propôs enquanto a con-
duzia ao bar.
— Por que não? O que estamos comemorando?
— Termos ficado sozinhos por algum tempo e, se tivermos sorte, que Simon te-
nha conseguido um quarto disponível.

Sentaram-se junto de uma janela. As paredes brancas e as janelas e grades em


ferro fundido despertaram em Nicole outra vez aquela sensação de voltar no
tempo e de estar em férias. Ainda mais quando o garçom trouxe uma garrafa de
Dom Perignon com ostras Kilpatrick, o tira-gosto tradicional da Austrália.
— O melhor para você! — Derek sorriu.
— Obrigada. Você é um amor.
— Você é um amor!
Eles ainda não haviam tomado o primeiro gole quando Kane Ferriss e Nathan
Cooley entraram no bar.
— Olá, cavalheiros — saudou Derek.
— Sinto interromper — Kane se desculpou —, mas precisamos falar com sua
assistente.
Nicole sentiu o estômago dar uma reviravolta ao modo como os dois homens
passaram a encará-la. Estaria sonhando? Dois figurões de Hollywood querendo
falar com ela?
— O dia foi terrível — disse Nathan. — Nós estamos arrasados com a morte de
Lucy, mas a questão é que investimos muito tempo e dinheiro neste projeto e
não queremos desistir. A seguradora talvez pudesse nos compensar financeira-
mente, mas de qualquer forma, achamos que o filme deve ser realizado. A equi-
pe e o local estão prontos. Precisamos apenas substituir a atriz. Estávamos cogi-
tando alguns nomes, mas o único com que concordamos foi o seu. Verificamos

40
sua atuação pela internet e ficamos impressionados. Você foi brilhante, Nicole.
Não dá para entender como sua imagem não está sendo projetada em todas as
telas do mundo.
— Precisamos de você para representar o papel que era de Lucy Swanson — de-
clarou Kane.
Aturdida, Nicole se limitou a olhar de um para outro. Derek fez as honras da ca-
sa e convidou-os para se reunirem a eles em uma taça de champanhe com os-
tras. Não só isso. Enquanto Nicole tentava descobrir onde sua voz se escondera,
ele falou como se ela já tivesse aceitado a proposta.
— Não é maravilhoso, Nicole?
— Uma chance como esta não acontece duas vezes — afirmou Nathan.
— É uma questão de sorte e de oportunidade; de estar no lugar certo, na hora
certa. Lamentamos as condições em que estamos lhe fazendo este convite, mas
o espetáculo precisa continuar e nós estamos dispostos a compensá-la financei-
ramente pela urgência do trabalho.
— As circunstâncias realmente são terríveis — disse Nicole, por fim.
— O que a polícia decidiu sobre a morte de Lucy?
Os homens se entreolharam.
— Como assim, o que a polícia decidiu? — Kane estranhou.
— Lucy foi picada por uma cobra e morreu. Você não ouviu a parte sobre o pa-
gamento e sobre a chance de atuar em um grande filme ao lado do ator mais
prestigiado do momento?
A atriz principal acabara de perder a vida em circunstâncias suspeitas e aqueles
sujeitos só conseguiam pensar nos investimentos que haviam feito? Céus, o que
havia acontecido com a moral e a ética?
— Sim, eu ouvi tudo, e penso que algo está muitíssimo errado.
Derek estreitou os olhos.
— Nicole, você prometeu.
— Desculpe. — Ela tentou sorrir. — Eu tenho uma imaginação muito fértil.
— Foi um acidente — Nathan insistiu. — Entendo que esteja surpresa. Todos
nós estamos. Mas precisamos de uma resposta com urgência. Você quer estrelar
nosso filme?
Não era um sonho e não era um pesadelo. De qualquer maneira, a proposta não
parecia real. Nem o deslumbramento de Derek. Por que ele estava tão excitado?
— Nicole, em minha opinião você deveria considerar seriamente o assunto. É
um sonho de seu passado que se tornou realidade.

41
Ela teve a impressão de se tornar espectadora de uma cena da qual não fazia
parte. Não sabia o que responder. Seu cérebro e suas cordas vocais não pare-
ciam estar conectados.
— Eu não estou em condição de responder neste minuto, nem na próxima hora.
— Foi o que conseguiu dizer aos três. Depois olhou apenas para Derek. — Exis-
te uma possibilidade de conversarmos sobre isso a sós?
Kane se levantou, e Nathan o imitou.
— Está bem. Nós lhe daremos algumas horas para refletir, mas precisaremos de
sua resposta amanhã de manhã, o mais tardar. — Kane entregou um cartão a
ela. — Ligue-me em meu celular, dia ou noite. Eu preciso saber o quanto antes
se nosso projeto seguirá em frente ou se terá de ser cancelado.
— Incrível! — Derek exclamou assim que os dois homens se retiraram.
— Sim, incrível. Mais ainda sua atitude diante do fato.
— O que você quis dizer com isso?
— Derek estranhou.
— Que esta situação é completamente bizarra! Dois figurões de Hollywood pra-
ticamente implorando para que eu substitua a atriz que eles contrataram e que
morreu em circunstâncias suspeitas menos de vinte e quatro horas atrás.
Você convidando-os para tomarem champanhe conosco e se mostrando favorá-
vel a que eu aceite a proposta. Nossa, Derek! O que deu em você?
— Quando nós nos conhecemos, aceitou trabalhar para mim porque sua tentati-
va de se tornar atriz não deu certo.

— Não, Derek. Quando eu aceitei o emprego na vinícola, eu já havia desistido


de perseguir a carreira cinematográfica.
— Por ter duvidado de seu talento. Mas estava errada. Assim que eu soube que
você estrelara um seriado, assisti a todos os episódios. Você é ótima!
— Você assistiu e não me disse nada? — Nicole levou uma das mãos à boca.
— Sinto-me tão envergonhada...
— Eu não disse nada exatamente por isso. Não queria constrangê-la. Não enten-
do, porém, a razão disso. Você esteve ótima no papel. Pelo que acabou de acon-
tecer, eu não fui o único a pensar assim. Seu problema, Nicole, é o mesmo de
muita gente. Desistiu cedo demais de perseguir seu sonho.
— Talvez você não tenha avaliado minha situação e dessa gente a quem se refe-
re. Nós também temos contas para pagar.
— Quantos anos você tem? Trinta e dois?

42
Nicole deu uma risadinha. Em breve ela faria trinta e nove.
— Você sabe quantos anos eu tenho.
— Ninguém lhe daria mais do que vinte e cinco.
— Está querendo me seduzir, sr. Malveaux? — Por um momento, Nicole quase
esqueceu que eles estavam em meio a uma discussão.
— Espero já ter vencido essa etapa — Derek respondeu com um sorriso. — Es-
tou falando sério. Você possui talento e beleza. Hollywood finalmente lhe abriu
as portas e você deve aproveitar.
A sensação de Nicole era a de estar derretendo. Precisava manter os pés no chão
e se obrigar a pensar com clareza.
— Obrigada, mas, francamente, você não acha tudo isso estranho? Tento imagi-
nar como teria sido se eu recebesse essa proposta em circunstâncias normais, e
me surpreendo cogitando que não gostaria de mudar meu atual estilo de vida.
Sou gerente de uma vinícola famosa. Sua vinícola. Tenho amigos em Napa e
adoro o que faço. E nós estamos... Derek segurou a mão dela.
— Acha que algo irá mudar se você decidir estrelar esse filme?
— De certa forma...
— De que você tem medo? De ser perseguida pelos tablóides sensacionalistas?
— Bem...
— Não há nada de errado com sua vida para eles explorarem. Pense no dinheiro
que lhe ofereceram. Não podemos antecipar o futuro. Se a vinícola nos der pre-
juízo, você terá como garantir o pagamento da faculdade para nossos filhos.
Filhos! Derek mencionara filhos e ela queria muito ter sua própria família. Lo-
go. Seu relógio biológico estava anunciando a proximidade do final do prazo.
— Nicole? Você está ouvindo? — Ela assentiu, e Derek continuou. — Como
Kane declarou, esta é uma oportunidade única. O filme poderá fazer um estron-
doso sucesso, mas também poderá passar despercebido. Você terá de experi-
mentar para descobrir se a carreira artística era o que realmente queria para sua
vida, ou se foi apenas um lindo sonho que resolveu esquecer ao acordar. Ao me-
nos você terá certeza de que continuar trabalhando em uma vinícola é o que de-
seja para o amanhã e não ficará mais acordada no meio da noite cogitando se te-
ria sido mais feliz como atriz.
Nicole pestanejou a essas palavras. Como Derek adivinhara que esses pensa-
mentos lhe ocorriam em noites de insônia?
— Todos nós temos fantasias e esperanças — Derek prosseguiu. — Muitas ve-
zes nos perguntamos como teria sido se tivéssemos feito outras escolhas.

43
O champanhe já havia acabado, mas a conversa prometia se estender. Nicole
chamou um garçom e pediu que ele trouxesse uma garrafa de vinho tinto. Derek
concordou e sugeriu que eles pedissem também o jantar.
— Sua última observação soou melancólica — Nicole murmurou. — Você se
arrepende de algo que fez ou que não fez?
— Quase — Derek confessou. — Eu me pergunto como pude demorar tanto
tempo para me decidir sobre você. Poderia tê-la perdido por medo de que você
fosse me dizer "não". Se não tivesse discado seu número no último momento,
antes de embarcar para cá, talvez Renee estivesse agora aqui comigo, em vez de
você.
Nicole não gostou do rumo que a conversa estava tomando. O que Renee Roths-
child tinha a ver com a situação? Ela era filha de um grande publicitário de São
Francisco, responsável pela publicação de um livro sobre a arte da produção do
vinho, de co-autoria de Derek. Nicole colaborara na redação.
A propósito de escolhas, ela também dera uma guinada em sua vida ao atender
ao telefone antes de seguir para o aeroporto. Se Derek não lhe tivesse ligado no
último instante, ela agora estaria tia Espanha. Com Andrés!
— Eu não queria estar com Renee — Derek admitiu. — A única razão por eu
ter me envolvido com ela foi a de acreditar que já havia perdido você e que não
seria sua melhor escolha.
— Por quê? — Nicole perguntou, aturdida.
— Porque eu sou um sujeito que vive se perguntando "e se" — Derek suspirou.
— Essa é a maior razão por eu estar insistindo para que você agarre esta chan-
ce. Para não fazer como eu, e daqui um ano, ou talvez em dez anos, se pergun-
tar: como seria se eu tivesse aceitado?
Nicole não respondeu. Depois que o garçom trouxe o vinho, ela ergueu o copo
em um brinde e sorriu.
— Ao "e se"!
O romance ao jantar não marcou o início de uma noite de amor. Não ainda. Ao
entrarem no quarto, Derek e Nicole descobriram que os hotéis da cidade perma-
neciam lotados. Simon dormia tão profundamente que não acordou com a che-
gada deles. Nicole se deitou e passou várias horas se virando na cama, incapaz
de conciliar o sono por causa dos roncos de Simon e também por causa dos pen-
samentos que se atropelavam em sua mente.
Antes de subir para o quarto, ligara para Kane Ferris e dera sua resposta. Positi-
va. Na manhã seguinte, às seis horas e trinta minutos, deveria se apresentar no

44
set de filmagem.
Eram seis horas quando Nicole se levantou. O sol já estava nascendo quando fe-
chara finalmente os olhos, mas estava se sentindo bem-disposta para seu primei-
ro dia de trabalho. Simon fez questão de acompanhá-la. Não seria preciso, mas
ela concordou. Apenas pediu que ele descesse e a esperasse no hall porque es-
quecera algo no quarto. Não era verdade. Ela quis voltar para dar um beijo em
Derek.
Não esperava que ele estivesse acordado. Quando se inclinou para beijá-lo, De-
rek abriu um olho e lhe deu um lindo sorriso. Sem que ela esperasse, puxou-a
sobre si e virou-a de modo a se colocar por cima. Nicole deu um gritinho de sur-
presa.
— Enganei você! — Ele piscou e beijou-a.
— Estou feliz por você ter aceitado o convite. Assim, no ano que vem, quando
estivermos caminhando sobre o tapete vermelho, eu poderei dizer aos repórte-
res: Sim, meus senhores. Nicole Sands é minha mulher.
Ela o beijou de volta.
— Por que você é tão sensacional?
— Não sei. Deve ser sua influência. — Derek rolou para o lado justamente no
momento que Nicole começava a acreditar que eles finalmente fariam amor.
— Não quero atrasá-la. Boa sorte em seu primeiro dia como atriz.
— Você aparecerá por lá?
— Com certeza. Em breve terei uma reunião com Liam e seu advogado. Os ter-
mos do contrato serão enviados para o meu advogado por fax. Haverá uma con-
ferência a distância. Acredito que o contrato poderá ser assinado hoje mesmo. O
problema de Liam já foi praticamente contornado.
— Você ainda não me contou do que se trata.
— Não foi possível. Eu dei minha palavra.
— O que acontecerá se as filmagens em locação ultrapassarem o prazo previs-
to?
— Eu estenderei minhas férias. Você trabalha e eu descanso.
— Derek tornou a piscar.
—Talvez seja conveniente também para mim, caso você decida abraçar definiti-
vamente a carreira artística. Eu serei obrigado a viajar e a tirar umas férias de
vez em quando, algo que não fazia havia anos. Em especial se você aceitar meu
pedido de casamento.
Em vez de sorrir com doçura, ou de beijá-lo, ou de dizer algo romântico, Nicole

45
fez o que sempre fazia quando não sabia o que fazer! Apanhou uma almofada e
atirou-a nele.
— Sem chance!
Derek tirou a almofada de cima de seu rosto. Estava encantador com os cabelos
despenteados e o olhar intrigado.
— O que você quis dizer com isso?
— Sem chance de eu me tornar uma estrela do cinema. Nicole deu um salto em
seguida e se encaminhou para a
porta. Acenou antes de fechá-la. Sentia-se nas nuvens. Derek falara em casa-
mento! Não era demais? Por que, então, aquele friozinho no estômago, de re-
pente? Por que a imagem de Andrés surgira entre eles? A verdade era que en-
quanto ela não falasse com Andrés, não se sentiria livre para firmar seu compro-
misso com Derek.
De cabeça erguida, tentando parecer mais segura de si do que estava se sentin-
do, ela entrou no elevador. Não esperava que flashes de câmeras fossem pipocar
assim que as portas se abrissem.
— Nicole Sands? — perguntou um dos repórteres. — Substituirá Lucy Swan-
son no filme de Nathan Cooley, certo? Como se sente diante das circunstâncias?
Foi um tanto drástico, não?
Nicole não estava preparada para aquilo. Cogitou voltar para o elevador e para o
quarto e puxar as cobertas sobre a cabeça. Simon a salvou.
— A srta. Sands não concederá entrevistas neste momento. Queiram desculpar.
Obrigado.
— Quem é você? — indagou um sujeito com uma filmadora.
— O guarda-costas dela.
Simon era incrível. Ninguém mais teria conseguido que ela sentisse vontade de
rir em uma situação como aquela. O repórter estava certo. Acontecera tudo rápi-
do demais.
— Obrigada, Simon. Eu fiquei perplexa. Como eles descobriram tão depressa?
E estão certos. Faz apenas um dia que Lucy foi morta.
— Foi morta? — Simon pestanejou. — Ou morreu? Do jeito que você falou, pa-
rece que ela foi assassinada!
Nicole percebeu que o motorista do táxi os observava pelo espelho e baixou a
voz.
— Você me conhece, meu amigo. O assunto é sério. Lucy não me sai do pensa-
mento.

46
O que Nicole não disse foi que ela resolvera aceitar a proposta para filmar, tam-
bém para poder estar perto das pessoas que conviveram com a atriz por ocasião
de sua morte. Ao continuar no local, entre a equipe, ela conseguiria todo o aces-
so necessário.
— Oh, Deus! Não me diga que está decidida a fazer o que eu estou pensando?
Nicole encolheu os ombros. De que adiantaria negar?
Simon a conhecia muito bem.
— Não posso evitar. Confesso que estou empolgada com a possibilidade de me
tornar atriz, mas o que mais me impulsionou a aceitar o convite, confesso, foi a
chance de descobrir a verdade sobre o que houve com Lucy. Sejamos honestos.
Esse detetive Von Doussa não deve ter prática nenhuma em investigações crimi-
nais. Quantos crimes você acha que já aconteceram aqui no vale de Barossa?
Um? Dois? Ele ficou chocado com a mera suposição de que Lucy tivesse sido
assassinada.
— Como você disse, querida, sejamos honestos. Só você suspeita de que Lucy
tenha sido assassinada. Ninguém mais. Esqueça isso e se concentre em sua no-
va tarefa. Quero estar a seu lado, vestindo um smoking Armani, quando você
caminhar pelo tapete vermelho!
Nícole cruzou os braços e suspirou. Não esperava que seu sonho de ingressar no
mundo do cinema se transformasse em realidade.
A movimentação no local das filmagens era intensa quando Nicole e Simon
chegaram. A segurança fora dobrada. Nicole fez uma anotação mental para se
aproximar dos guardas e iniciar uma relação amistosa. Os seguranças costuma-
vam ser contratados por seu aspecto físico e pela postura fechada e arredia. Pre-
cisava conquistar-lhes a confiança. Eles se revezavam dia e noite na vigilância.
Quem entrasse ou saísse da propriedade teria de passar obrigatoriamente por
eles. Com certeza ela obteria algumas respostas interessantes por esse meio.
Sobre a noite do churrasco, por exemplo. Algum elemento poderia ter entrado,
talvez, sem que seu nome constasse da lista de convidados? O segurança teria
permanecido em seu posto durante todo o turno sem se afastar por nenhum ins-
tante?
Subitamente, lembrou-se do jovem que aborrecera Andy por tê-lo chamado aos
gritos, depois de ter sido prevenido para não falar em voz alta em presença dos
animais. Seu nome era Will. Pediria a Liam ou a Andy para apresentá-la ao ra-
paz. Queria ter uma desculpa para conversar com ele sem despertar sua descon-
fiança.

47
— Estou aliviado de vê-la aqui. — Kane se levantou à aproximação de Nicole e
lhe ofereceu um café.
— Entendo que foi tudo muito repentino, mas você já fez parte de nosso ramo e
eu tenho certeza de que se adaptará sem problemas a nossa rotina. Deixei uma
cópia do script na sala de maquiagem. Enquanto Johnny a prepara, poderá estu-
dar suas falas. Não precisaremos de você para as cenas que serão rodadas esta
manhã. Aproveite para estudar sobre a vida de Elizabeth Wells, sua nova perso-
nagem. Temos algum material a sua disposição: dois livros e três documentá-
rios. Eu a conheci pessoalmente e trabalhei com ela em um de seus projetos.
— Elizabeth Wells — Nicole repetiu para si mesma. Onde ela ouvira aquele no-
me?
— Talvez você não saiba — disse Kane —, mas Liam Hahndorf é o autor do ro-
teiro. Nós orientamos o pessoal a não comentar o fato por causa de nossa anfi-
triã. Imagine o mal-estar. A história foi escrita em homenagem a Elizabeth de
quem Liam foi amante antes de se casar.
Era isso! Agora ela se lembrava. Sarah Fritz mencionara o caso. Não era de ad-
mirar que Grace não estivesse satisfeita com a realização daquele filme. Ainda
mais dentro de sua propriedade. Mas seu desagrado seria tão grande a ponto de
ela tentar impedir a qualquer preço que o filme fosse concluído? E se assim fos-
se, Nicole estaria correndo perigo ao aceitar o papel?
— Você certamente se beneficiará de uma conversa particular com Liam — Ka-
ne recomendou.
— Ele, melhor do que ninguém, poderá lhe contar quem foi Elizabeth Wells.
Era muita informação de uma vez. Fazia anos que ela não estudava um script e
estava sem prática em memorizar histórias e decorar textos. Respirou fundo.
Era pegar ou largar. Última chance.
A emoção de filmar foi sufocada pelo eco das palavras de Sarah Fritz. Era mais
do que compreensível que Grace não tivesse gostado que o marido escrevesse
uma história sobre a vida da mulher que amara antes de se casarem. Mas Liam
deveria amar a esposa. Eles tinham uma filha e estavam juntos havia mais de
vinte anos. A não ser...
Nicole hesitou a um súbito pensamento. E se Hannah tivesse sido gerada fora
do casamento? Liam teria deixado Elizabeth e ficado com Grace movido por
um dever moral?
Pelas observações que fizera, os Hahndorf se davam bem. Casais em crise cos-
tumavam evitar o olhar um do outro, e alfinetadas eram freqüentes. Ela não no-

48
tara nada de incomum durante seus encontros com eles. Por outro lado, por que
Liam resolvera filmar a história de sua ex, sob os olhos da esposa, na proprieda-
de onde viviam? Dinheiro certamente não fora o motivo.
A chegada de Simon a fez voltar ao presente.
— Você viu Shawn?
— Pelo que Kane me disse, ele está com Johnny. Quando terminar sua sessão,
será minha vez de me maquiar.
Nicole franziu o rosto à familiaridade com que o amigo estava se portando com
a equipe técnica e com o ator, em especial. Para não mencionar o maioral, Kane
Ferris, que ao passar por eles se deteve e tocou o ombro de Simon.
— Tudo certo?
Não. Nem tudo estava certo. Nicole se lembrou do assédio que sofrerá pela ma-
nhã ao deixar o hotel e aproveitou para se queixar ao produtor. Ele pareceu sur-
preso pela rapidez com que os paparazzi tomaram conhecimento de sua nomea-
ção para o papel.

— Eles parecem ter olhos e ouvidos por toda parte — Kane resmungou.
— Eu sempre recomendo que os artistas se façam acompanhar por seguranças
quando saem. Quanto ao assunto ter vazado, eu sinto muito. Tudo o que posso
lhe dizer é que os telefones não pararam de tocar desde que a notícia sobre a
morte de Lucy chegou até mim. Alguém deve ter ouvido minha conversa com
Nathan e avisado os tablóides. Quanto a você, um desses repórteres talvez esti-
vesse pelas imediações do bar do hotel. Quem pode saber? — Suspirou. — Por
que você não vem para cá e se instala em um dos trailers? Ninguém tem sido in-
comodado dentro da propriedade.
Nicole não sabia se gostava ou não da idéia.
— Talvez.
— Por que não? Será mais fácil para você e para nós. Daqui a pouco, alguém
virá ajudá-la a se vestir e depois a levará para Johnny. Se quiser usar o trailer de
Lucy, a polícia já o liberou.
Kane se afastou antes que Nicole pudesse reagir às informações que lhe foram
passadas. Em primeiro lugar, a ideia de se afastar do mundo não a seduzia. Em
segundo lugar, o uso do trailer de Lucy estava fora de cogitação. Que sugestão
mórbida!
— Você quer saber minha opinião? — Simon ofereceu.
— Recuso-me a entrar naquele trailer.

49
— Bobagem! A cobra e o corpo não estão mais lá.
— Parece errado.
Simon chamou-a de tola. Nicole ficou furiosa com ele por ter falado alto e atraí-
do alguns olhares. Percebeu sua intenção apenas um minuto depois, quando ele
lhe piscou sem que ninguém visse e sugeriu que não perdesse essa chance de
examinar o local em busca de alguma pista que pudesse ter passado despercebi-
da.
O amigo estava certo. O tempo estava passando e havia muitas perguntas a se-
rem respondidas.
— Está bem. Seguirei seu conselho. Mas trate de se comportar. Sinto
que todos os olhares estão pousados em mim.
Simon era único. Se ele não estivesse ao lado dela, talvez não conseguisse entrar
naquele trailer onde uma mulher dera seu último suspiro menos de dois dias an-
tes. A polícia o liberara cedo demais. Com toda certeza estavam tratando o caso
como um mero acidente.
Assim mesmo, Simon precisou lhe dar a mão para convencê-la a subir os dois
degraus.
— Então?
Nicole engoliu em seco. O trailer era espaçoso e seu aspecto agradável. Sofá de
camurça, cozinha com mesa, cama de casal na parte de trás e um banheiro am-
plo com uma lavadora e uma secadora.
— Lucy gostava de música — Simon observou. — Esta prateleira está repleta
de CDs da Alanis Morissette, da Sarah McLachlan, da Tori Amos...
— Tori Amos é uma de minhas cantoras favoritas. Nicole balançou a cabeça e
se surpreendeu ao continuar
olhando os CDs e encontrar exemplares de gêneros tão diferentes. Enfim, o gos-
to musical de Lucy não era relevante para sua investigação. Ela própria tivera
inclinações bizarras quanto aos gêneros musicais em sua adolescência. E tam-
bém com relação aos homens, apaixonando-se sempre pelos tipos errados, até
conhecer Andrés e Derek.
Andrés. Ela precisava enfrentar a situação de uma vez por todas. Devia-lhe uma
explicação. Naquele dia, sem falta, mesmo que estivesse com a mente entorpeci-
da pelo sono, escreveria uma carta para ele.
A divagação foi interrompida por alguém que a chamou em vez de bater à por-
ta.
Era a encarregada do guarda-roupa, uma mulher morena, de estatura baixa, es-

50
meradamente maquiada e vestida.
— Sou Amy Applebaum e vim prepará-la para a filmagem. — A mulher exa-
minou-a de alto a baixo.
— Seu número deve ser três vezes maior do que o de Lucy Swanson. Lamento
dizer que este papel não lhe possibilitará trajar roupas assinadas por estilistas fa-
mosos. Sua personagem não foi uma mulher sofisticada, como já deve ter nota-
do pelo script. Ao contrário. Ela era uma estudiosa da vida selvagem e usava
roupas largas de tecido grosso para protegê-la dos insetos e do contato com os
animais. Roupas do tipo que costumamos ver em filmes sobre safáris.
Nicole antipatizou com a mulher de imediato. O que ela quisera dizer com rou-
pas três vezes maiores? Estava chamando-a de gorda? E por que franzira o nariz
ao mencionar os animais?
O assistente, Harv, chegou trazendo um suporte com uma quantidade razoável
de roupas penduradas em cabides.
Nicole olhou para as roupas a sua frente e para as pessoas ao seu redor.
— Vocês podem me dar licença?
O assistente baixou a cabeça, divertido.
— Esse é o esquema, querida. No show business, não há tempo para pudores.
Sem responder, Nicole apanhou as roupas e se afastou para os fundos do trailer.
Fechou a cortina de separação de ambientes. As roupas em geral eram apropria-
das para aquela região do planeta: jeans, sarja, camisetas de algodão, conjuntos
caqui. Enquanto se vestia, ela ouviu os três conversando.
— É um alívio trabalhar sem alguém berrando o tempo todo em seus ouvidos
— Amy observou. — Sinto muito pelo que houve com Lucy, mas a verdade é
que ela era uma pessoa difícil.
— Mais do que difícil. — Harv concordou. — Que sua alma descanse em paz.
Nicole hesitou antes de abrir a cortina. Por que a observação de Harv soara tão
falsa?
— As roupas me servem — avisou.
— Excelente — disse Amy. — Agora você deve ir para a maquilagem. Johnny
está a sua espera.
— Eu ouvi a menção a Lucy. — Nicole abriu o jogo. — Vocês acham que a
polícia está investigando a possibilidade de ter sido um crime?
Amy cruzou os braços e disse que não sabia. Em seguida foi embora em compa-
nhia do assistente. Nicole e Simon se entreolharam.
— Simon, o que achou do jeito que aqueles dois se referiram a Lucy?

51
— Parece que ninguém gostava dela.
— Ou seja, qualquer um com um parafuso mais ou menos solto pode tê-la mata-
do de pura raiva. O modo como o tal Harv falou, por exemplo, soou fortemente
sarcástico.
— Nicole, concentre-se! — O que havia com Simon, de repente? Em vez de fi-
car ao seu lado, ele agora pretendia imitar o irmão? — Você tem um filme para
estrelar. É uma atriz agora, não detetive!
— Está bem, sr. Malveaux. Ou devo chamá-lo de meu agente e guarda-costas?
— Ambos. A partir de agora, eu serei sua sombra. Disse aos chefes que sou
mestre em jiu-jitsu.
Nicole se deixou levar para o setor de maquiagem. Não tornaria a insistir com
Simon. Não naquele momento. Caminhar sob sua guarda talvez fosse reverter
para o bem de sua investigação. Entrou no trailer e estendeu a mão para
cumprimentar o maquiador.
— Muito prazer. Eu sou Nicole.
— Johnny Byrne. O prazer é todo meu. — O rapaz entregou uma cópia do
script que Kane deixara aos cuidados dele. — Meu trabalho com você será rápi-
do. Como já deve ter sido informada, Elizabeth era uma naturalista.
Nicole se sentou diante de espelhos cheios de luzes ao redor. Não era de admi-
rar que Lucy e Hannah tivessem se encantado por Johnny. Ele era realmente bo-
nito.
— Imagino que você esteja se sentindo mal com a perda de sua amiga. Eu o vi
sair com ela e com Hannah na noite do churrasco e soube depois do acidente
com o carro da mãe de Hannah.
— A sra. Hahndorf ficou brava com a gente, mas não tivemos culpa. Um malu-
co veio em nossa direção e nos jogou fora da estrada. Dissemos a verdade, mas
ninguém acreditou.
— Não podemos culpá-la por isso, não é? Afinal, vocês estiveram bebendo.
— Você também não acredita, mas não é mentira. Nicole não insistiu, mas con-
tinuou cética a respeito do
acidente. Afirmou que eles tiveram sorte, de qualquer forma, por ninguém ter se
ferido. A não ser Lucy, mas por outro motivo. Johnny se fechou a essa observa-
ção, o que a fez mudar drasticamente de assunto. Não queria perder a confiança
do rapaz, mas ganhá-lo como um provável colaborador.
— Espero que você já tenha tido tempo para descobrir algum lugar interessante
para se ir à noite.

52
— Fomos a um bar razoável em Main Street.
— O atendimento foi bom?
— Com Lucy por perto, o atendimento sempre era primoroso. Bastava olhar pa-
ra o lado e um garçom já estava anotando o pedido. O pessoal daqui, contudo,
não parece obcecado por artistas de cinema como os americanos. Apenas um
rapaz se mostrou mais sensibilizado com as atenções de Lucy. Ele a fitava como
se fosse uma deusa. Trabalha na vinícola como segurança, mas deveria estar de
folga. Ao reconhecê-lo, Lucy o chamou para se sentar conosco.
— Qual deles? — Nicole prendeu a respiração, imediatamente atenta. — Eu
ainda não conheci todos da equipe.
— Will. Um rapaz alto e forte. Tem o tipo de um fazendeiro. Conhece Hannah
desde criança. Lucy, na verdade, cismou com ele. Confesso que me incomodou
vê-la se divertindo à custa do jovem. Hannah também pareceu aborrecida com
isso
A história estava ficando cada vez mais intrigante. Nicole aproveitou para fazer
mais algumas perguntas.
— Sabe se Hannah fez algo para alertar Will a respeito?
— Acho que sim. Em um determinado momento, Lucy se levantou para ir ao to-
alete, e Will fez um movimento para segui-la. Hannah o impediu. Eu a vi segu-
rar o rapaz pelo braço e lhe cochichar algo. Ele com certeza não gostou do que
ela disse. Franziu o cenho e logo depois foi embora.
— Você, no entanto, continuou ao lado das duas. — Nicole suspirou.
— Confesso que não gostaria de ter estado em seu lugar nem de Hannah. Foram
os últimos a estar com Lucy antes de sua morte.
O maquiador parou de espalhar a base pelo rosto de Nicole e largou a esponja
sobre a penteadeira para apoiar as mãos na cintura.
— Não estou gostando desse seu jeito de falar comigo. Francamente, pensei que
fosse diferente dos outros, mas é igual a esses artistas que passam por mim e
que só sabem fazer fofoca.
Nicole pestanejou. Era preciso pensar em uma saída urgente.
— Não é nada disso! Juro! Eu sinto muito se lhe dei essa impressão. Sou nova
aqui e ninguém olha para mim. Como não se fala em outra coisa que não seja a
morte de Lucy, achei que essa seria a forma de me aproximar de você. Não sou
uma abelhuda como está pensando.
Ao menos não tecnicamente.
Johnny retomou o pote de base e a esponja.

53
— Está bem. Você parece legal. Desculpe se fui indelicado. Estou furioso por-
que soube que andaram dizendo que eu estava de caso com Lucy.
— Entendo. Também inventaram um caso entre ela e Will?
— Acho que não. Lucy gostava de provocar, mais do que de se relacionar.
— Talvez Hannah tivesse ficado com ciúmes do amigo.
— Não sei e prefiro não saber. Lucy está morta e parece uma falta de respeito fi-
carmos falando sobre seu comportamento passado. Tudo o que eu quero é fazer
meu trabalho, voltar para casa e colocar uma pedra sobre o que houve aqui. Em
seu lugar, eu trataria de decorar o texto e cumprir as regras. Nathan parece cal-
mo e gentil, mas cabeças rolam quando ele se enfurece.
O esquema de Nicole estava funcionando. Apesar de sua afirmação de que odia-
va fofocas, o maquiador lhe passara mais informações em cinco minutos do que
ela havia obtido nas últimas quarenta e oito horas. Não que fosse novidade para
ela que os diretores e os atores se tornavam rudes quando irritados. O que agu-
çara seu instinto fora a questão sobre Nathan ter esbravejado com Lucy na outra
noite. Qual teria sido o motivo? O mais importante, porém, seria identificar
quem mais naquela equipe era capaz de lidar com cobras, além de Andy Bur-
row.
— Alguma dica sobre a melhor maneira de tratá-lo? — perguntou.
— Faça seu trabalho. E faça bem. Este é o melhor conselho que posso lhe dar.
— Devo ter cuidado com mais alguém? — Nicole prosseguiu como seja consi-
derasse Johnny um amigo.
— Kane é um bom sujeito. Eu diria que ele é o elemento de equilíbrio do grupo.
Nunca se indisponha com Shawn Keefer, se você quiser estar em paz com Ka-
ne. Foi ele quem o tornou um grande astro. Shawn, aliás, tem estrelado todas as
últimas produções assinadas por Kane.
— Sério? — Nicole indagou, perplexa.
— Sim. O homem é esperto, afinal de contas. Ter Shawn significa ter dinheiro
no bolso. Não é de admirar que ele se desdobre para proporcionar ao ator tudo o
que ele pede. Por outro lado, Shawn sabe representar. Talento e sorte é uma
combinação perfeita. Quantos artistas são ótimos e nunca conseguem uma chan-
ce?
— Faz sentido. Eu já havia suposto que não seria fácil contracenar com Shawn.
— Sim e não. Ele é um profissional. Sabe o que precisa fazer e faz. Não é de fa-
lar muito, mas observa tudo ao seu redor. Se não estiver gostando de algo, fique
certa de que o problema será resolvido, de uma forma ou de outra. — Johnny se

54
afastou e examinou a maquilagem de Nicole.
— Agora só falta escurecer um pouco os cílios e aplicar uma pincelada de ba-
tom.
Johnny prendeu os cabelos, de Nicole em um rabo de cavalo e a dispensou, de-
sejando boa sorte.
— Obrigada. Lembra-se de mais alguém com quem eu deva ter cuidado?
Ele estreitou os olhos.
— Não gosto muito da dupla Amy e Harv. Eles não se relacionam com nin-
guém. Parecem viver isolados em uma ilha. Enquanto todo o pessoal da filma-
gem acampa aqui, eles dormem em um hotel na cidade.
— E os seguranças? São bons sujeitos?
— Não os conheço para dizer. Posso entrar e sair sem restrições. Lucy, porém,
não tinha permissão para se afastar da propriedade naquela noite.
Nicole precisou respirar mais fundo para conter a ansiedade.
— O que você e Hannah fizeram para ela sair sem ser notada?
— Lucy disse a Will que estaria esperando por ele no bar quando terminasse
seu turno dali uma hora. Por causa dessa mentira, tivemos de inventar outra. Pa-
ra que o pequeno esquema não fosse descoberto, Lucy precisou chamar um táxi
para trazê-la de volta ao acampamento.
— Mas os pais de Hannah sabiam que Lucy estava com vocês, não sabiam?
— Sim.
A conversa foi interrompida pela presença de Amy à janela do trailer.
— Nicole, você precisa vir comigo. Solicitaram uma mudança em seu traje. Re-
cebi um telefonema de Kane pedindo que lhe arrumasse algo mais sensual. —
As duas entraram no trailer onde as roupas eram guardadas. Nicole ficou per-
plexa com a quantidade e variedade de trajes e acessórios. Amy não parava de
resmungar. — Sensualidade? Onde já se viu? Uma mulher que trabalha com
animais no meio do mato não está preocupada com esse tipo de coisa!
Amy revirou as araras e escolheu algumas peças. De repente largou tudo e sepa-
rou apenas um conjunto de short verde-oliva com um top branco. Nicole esten-
deu a mão, certa de que a outra a entregaria para a prova. Em vez disso, Amy
pegou uma tesoura e deu um pique na lateral do top.
— Por que isso? — Nicole protestou. — Além de ser obrigada a vestir short
com o frio que está fazendo, você quer que eu use um top rasgado?
A encarregada virou os olhos.
— Oh, não! Você também vai me criar problemas?

55
— Por favor, não me compare a Lucy. — Nicole se defendeu. — Mas está fa-
zendo frio realmente. Você tem certeza de que não há nada mais confortável pa-
ra eu vestir?
A mulher inclinou a cabeça.
— Você é a nova estrela, e eu não quero entrar no mérito da questão. Vou lá fo-
ra fumar um cigarro enquanto você vasculha os cabides e tenta encontrar algo
de seu gosto e que satisfaça o produtor.
— Combinado — Nicole respondeu, aliviada.
Havia centenas de roupas, tanto masculinas quanto femininas. Uma arara intei-
ra fora reservada apenas aos modelos que deveriam ter sido usados por Lucy.
De uma jaqueta, Nicole teve a impressão de ver algo cair. Olhou para o chão.
Não fora impressão. Abaixou-se rapidamente e apanhou o papel. Perdeu o fôle-
go ao ler o que estava escrito:
Cuidado, Lucy. Fique de boca fechada. Tudo que vai, acaba voltando e ata-
cando. Ninguém perde por esperar...
Ao ouvir passos, Nicole guardou o papel no bolso. Amy parou junto da porta e
franziu o rosto.
— O que está fazendo aí, cobiçando as roupas de Lucy? Nenhuma delas lhe ser-
ve!
— Esta aqui serve. — Nicole indicou a jaqueta.
— Essa peça era de seu uso pessoal. Lucy a usou em um dia em que a tempera-
tura estava mais baixa do que hoje.
— Em vez do short, eu poderia usar uma calça comprida da mesma cor.
— Está bem. Mas não abrirei mão do top. Ele ficou perfeito em você.
Nicole decidiu se acomodar às circunstâncias. Amy lhe entregou uma calça e
também um suéter de lã. Até que a vida não estava tão ruim para ela.

Capítulo III

O momento de Nicole finalmente chegou. O tempo fora suficiente para a leitura


do script e do resumo da história, que se passava no início dos anos oitenta. Eli-
zabeth Wells fora uma naturalista e conservacionista na vida real. Embora tives-
se nascido e crescido cercada de conforto e privilégios, não se apegara aos bens
materiais. Seu amor pelos animais a levara a trabalhar em um zoológico desde a
adolescência e a lutar pela preservação da vida silvestre.
James, que Nicole sabia ser Liam na realidade, e Elizabeth haviam se conhecido

56
em um evento beneficente em prol dos animais. Na época, James ainda cursava
a faculdade. Embora estivessem ligados por uma intensa paixão, o relaciona-
mento fora tumultuado. Para Elizabeth, os animais sempre vinham em primeiro
lugar.
Nicole estava determinada a se empenhar na interpretação da heroína. Temia,
porém, não estar à altura do papel. Elizabeth Wells dedicara a vida a uma causa.
Fora um exemplo de força e de dedicação. Por ironia do destino, a vida lhe fora
tirada, justamente por uma dessas criaturas pelas quais tanto se empenhara em
proteger.
A cena que seria rodada focaria o encontro inicial de Elizabeth e James. Nicole
estava com o coração na boca. Ao perceber que estava sendo chamada, fechou
os olhos e rezou. Não era uma religiosa praticante, mas acreditava em Deus.
Esperava que Ele a ajudasse a enfrentar aquele desafio.
— Você estará alimentando um dingo quando Shawn chegar e lhe dirigir a pala-
vra — Nathan a orientou. — Deverá demonstrar a ele toda sua irritação pelo
modo como foi interrompida em seu trabalho.
— Andy Burrow acompanhará a filmagem? — Nicole perguntou, com um aper-
to no peito.
— Sim, é claro. Ele a ensinará como tratar Buda, o dingo, antes das tomadas.
Não tenha medo. Andy é um profissional competente.
Nicole avistou o zoólogo com o dingo dentro de um cercado. Como cenário da
casa de Elizabeth, o diretor recebera permissão para usar a pequena casa de
hóspedes da vinícola.
Andy se afastou do dingo e foi ao encontro de Nicole.
— Como passou a noite? Espero que esteja bem-disposta. Vou lhe apresentar
um de meus amigos e tenho certeza de que ele gostará de você.
— Espero que você esteja certo — Nicole declarou com um sorriso de bravura.
— E eu espero que você não tenha medo de animais, como acontecia com Lucy
Swanson. Na verdade, não entendo como ela pôde ser escolhida para fazer o pa-
pel de Elizabeth Wells.
Nicole não respondeu com total sinceridade. Ao dizer que não temia os animais,
ela pensara em silêncio em cães e gatos de estimação.
Andy fez sinal para que ela o seguisse para dentro do cercado. Estalou os dedos.
O dingo atendeu, dócil como um cachorrinho.
— Ele é lindo, não? Eu o tenho desde filhote. A mãe deve ter se afastado do ni-
nho para caçar e não pôde voltar. Levei-o e os irmãos para meu zoológico. Não

57
tive dificuldade em treiná-los. Os dingos, como os lobos na América do Norte,
podem ser domesticados. Fale com ele para que se acostume com sua voz. Dê-
lhe este biscoito.
Nicole estendeu a mão para oferecer o petisco.
— Cá entre nós — Andy murmurou —, Nathan e Kane nunca teriam consegui-
do terminar de rodar esse filme com Lucy Swanson. Você é diferente. A um
simples olhar eu percebi que estaria empenhada em fazer uma boa parceria co-
migo e com as criaturas. Eu tenho treinado com Buda ao longo de várias sema-
nas. Vou lhe ensinar as ordens de comando. Pronta?
— Acho que sim.
— Não, querida. Resposta errada. Você agora é Elizabeth Wells. Seja destemi-
da. Assuma o controle. Observe-me. No início, Buda se recusará a obedecer e
rosnará para você. Lembre-se que ele também estará representando um papel.
Aos poucos, começará a acompanhar seus movimentos, que serão iguais aos
meus, e responderá ao que lhe será pedido.
Andy demonstrou em seguida o que Nicole teria de fazer.
— Não demonstre medo em momento algum com os animais. Tenha em mente
que você é Elizabeth Wells. Siga minhas instruções e tudo dará certo.
Nicole ergueu a cabeça e olhou firmemente para Andy. Aquela era a parte de
que ela mais gostava sobre a carreira que já pensara em abraçar. A incorporação
da personagem. A parte em que deixava de ser ela mesma.
— Eu consigo.
O zoólogo fez um movimento enérgico com a cabeça.
— Muito bem. Estou empolgado com sua contratação. Não creio que teria
agüentado trabalhar mais um dia sequer com Lucy. Lamento por sua morte, ain-
da mais da maneira como aconteceu, e por Charlie ter sido o suposto culpado
mas ela era uma pessoa impossível.
Nicole não soube o que responder. Gostava de Andy. Admirava seu modo de ser
e de tratar com os animais e pessoas. Sua aversão por Lucy, contudo, a incomo-
dava. Além de detestar a atriz, ele era o dono da cobra que supostamente a ma-
tara. Mas como pensar mal de um sujeito capaz de tornar um dingo mais manso
do que o golden retriever, o querido Ollie, a sua espera em Napa?
Nathan e Kane se aproximaram. Pareciam ansiosos pelo modo como a encara-
vam.
— Preparada?
Nicole fez que sim. A preocupação com o dingo deixara de existir. Os dois esta-

58
vam convivendo já com bastante familiaridade. Sua única insegurança relacio-
nava-se com o sotaque peculiar dos australianos.
— Todos em seus devidos lugares! — o diretor ordenou.
— Silêncio no set
Nicole entrou na casa. A cena teria inicio com ela caminhando até a porta, segu-
rando uma caneca de café.
— Ação!
Ela tomou fôlego e falou consigo mesma para se manter fria. Apanhou a caneca
no fogão, andou até a porta da frente, tomou um gole do café e olhou em volta.
O tempo estava nublado. Continuou andando pelo terraço e depositou a xícara
sobre a balaustrada. Em seguida esfregou os braços por causa do frio. Não dava
para entender o absurdo de usar um top em um dia de temperatura baixa como
aquele. Elizabeth certamente estaria vestindo uma jaqueta ou um casaco. Ainda
bem que o café era de verdade e estava forte e quente. Tomou mais um gole e se
espreguiçou. Com um sorriso desceu os degraus e foi até o cercado.
— Olá, companheiro. Como você está esta manhã?
— O dingo rosnou e Nicole deu um passo para trás.
— Corta! — Nathan exclamou. — O que foi isso? Andy a ensaiou para nada?
Você agora é Elizabeth Wells, esqueceu? Não há lugar nem tempo para pânico?
E trate de falar como uma australiana. Por favor, Nicole, você é uma atriz ou o
quê? O sotaque é imprescindível.
— Desculpe. A reação foi instintiva.
— Não quero saber de instinto, mas de interpretação! Esqueça você e entre na
pele de Elizabeth!
Agora dava para entender ao que Johnny se referira ao falar sobre o tempera-
mento do diretor. Por duas longas horas ele implicou com ela por uma dúzia de
vezes pelo menos. Ora era por sua postura que estava errada, ora por sua aparên-
cia, ou o modo como falava com o dingo. Ele só ficou satisfeito com a décima
terceira tomada.
Ela estava dentro do cercado, na parte em que o cachorro finalmente deitava a
cabeça em seu colo. Shawn, como James, surgiu de repente e disse:
— Inacreditável!
No mesmo instante, o dingo deu um pulo, recuou para o fundo do espaço e se
pôs a rosnar, exatamente como deveria acontecer. Nicole se levantou e saiu do
cercado. Sua expressão era beligerante.
— O que veio fazer aqui? Sabia que eu levei semanas para trabalhar com o ani-

59
mal até este ponto? Agora veja o que fez! Por sua causa, levarei outras tantas se-
manas para reparar o estrago. — Furiosa, Nicole agarrou Shawn pelo braço. —
Vá embora! Afaste-se de mim e dele!
Em seguida marchou para a casa, sem olhar para trás, embora ouvisse os passos
de Shawn ao seu encalço. Ao erguer o pé para subir o degrau da varanda, ouviu-
o implorar em tom de urgência.
— Não se mova. É uma cobra.
Não era uma cobra de verdade, mas parecia ser. Shawn pegou-a e jogou-a lon-
ge.
— Corta! — Nathan instruiu. — Maravilhoso!
Todos pareciam contentes com o resultado. Shawn espalmou uma das mãos nas
costas de Nicole. Ela estava exausta, não de cansaço, mas de tensão. Sentiu os
ombros curvar de alívio. O sorriso surgiu tímido e se transformou em uma risa-
da.
O intervalo concedido à equipe foi providencial. Para ela, em duplo sentido. Re-
solveu aproveitar os momentos de folga para prosseguir com sua investigação.
Simon deveria ter lido seu pensamento porque apareceu com um sanduíche,
uma garrafa de água, e uma dose de entusiasmo.
— Você esteve ótima. Nasceu para ser uma estrela.
— Foi uma agonia — Nicole confessou, faminta.
— Agonia? Foi arte em ação! Eu nem me lembrei de piscar!
— Esteve aqui o tempo todo? — Ela se surpreendeu.
— Onde mais eu poderia estar? Sou seu agente. A esse propósito, aliás, precisa-
mos acertar alguns detalhes.
Nicole endereçou um olhar do tipo você deve estar brincando ao amigo. Simon
sorriu e tornou a elogiá-la pelo bom desempenho.
— Nathan não teve a mesma opinião a meu respeito — Nicole murmurou, ca-
bisbaixa.
— Ele estava cumprindo sua função de ensiná-la a se superar — Simon procu-
rou acalmá-la.
— Agradeça. Mais tarde você reconhecerá que foi para o seu bem.
Nicole revirou os olhos. Kane chegou em boa hora.
— Como está se sentindo?
— Bem, obrigada. — Entre muitas novas lições, ela aprendera que Nathan era
perfeccionista, conforme Johnny lhe dissera. — Honestamente, eu não sei. Não
é fácil trabalhar com Nathan.

60
— Ele é um cineasta. O que você esperava? — Kane caçoou. — Todos sabem
que eles têm duas personalidades: uma durante o trabalho e outra em sociedade.
Mas você foi magnífica. Não dá para acreditar que hoje é seu primeiro dia.
Nicole riu de puro alívio.
— Obrigada, embora eu tenha consciência de não ser páreo para Lucy.
— Lucy era uma grande estrela — Kane admitiu. — Dava-se ares de diva, mas
eu gostava dela. Não merecia o que lhe aconteceu. Sua vida também não foi
fácil. Os pais a manipulavam e a roubavam.
— Os próprios pais? — Nicole repetiu, perplexa. Kane confirmou com um ges-
to de cabeça.
— Será interessante descobrir o que Lucy lhes reservou em seu testamento.
Imagino que ela tenha contratado um advogado e um contador para administrar
suas finanças. Ela deve ter ganhado muito dinheiro com os filmes em que
atuou.
— Posso lhe fazer uma pergunta a respeito de Lucy?
— Nicole hesitou. — Pareceu-me que vocês mantinham um bom relaciona-
mento. '
— E verdade. Sempre que ela criava problemas, o pessoal me procurava. Eu era
o único a quem ela ouvia.
— Era exatamente sobre isso que eu queria lhe perguntar. Lucy tinha inimigos
no set
— Não me diga que ainda está pensando que alguém possa tê-la matado fazen-
do parecer um acidente! Eu soube que você andou se imiscuindo na vida de al-
guns cidadãos lá em Napa. Parece que meu informante não exagerou.
— Quem é seu informante? — Nicole franziu o rosto.
— Seu amigo. — Kane pigarreou.
— Quero dizer, seu agente e guarda-costas.
— Eu deveria ter adivinhado.
— Nicole suspirou. — Meu agente e guarda-costas também contou que eu aju-
dei a polícia na solução de alguns casos?
— Sim, ele mencionou algo a respeito. Aliás, isso me deu uma idéia. Napa se-
ria um lugar ideal para a criação de um novo seriado para a televisão. Um ro-
mance ao gosto dos aficionados por novelas com um toque de suspense e trama
policial. Terminado este projeto, talvez possamos nos sentar e conversar sobre o
perfil da heroína.
— Talvez — Nicole respondeu, estremecendo por dentro.

61
— Mas de volta ao que aconteceu com Lucy...
— Querida, você não está em Napa agora e as circunstâncias são outras. A mor-
te de Lucy foi acidental. O único elemento aqui capaz de lidar com serpentes é
Andy Burrow e embora eles não sentissem um grande amor um pelo outro, An-
dy é um homem do bem, incapaz de fazer mal a uma criatura vivente. Concen-
tre-se em decorar suas falas e fazer um bom trabalho. Depois conversaremos so-
bre crimes misteriosos no vale de Napa.
O que mais ela poderia fazer exceto concordar?
— Espero não estar sendo repetitivo. Já toquei neste assunto pela manhã, mas
acho que você deveria fechar sua conta no hotel e se instalar aqui para facilitar
sua vida. Este é o único local em que estará protegida contra a imprensa.
— Eu não gosto da idéia.
— Eu acho importante você estar por perto.
— O que é importante? — Derek se aproximou.
Nicole esqueceu a existência de Kane por um momento. A presença de Derek
sempre acelerava seu batimento cardíaco. Sorriu abertamente, incapaz de escon-
der sua alegria em vê-lo.
— Olá, Derek — disse Kane. — Estava recomendando a Nicole que ela se mu-
dasse para um dos trailers. Seria mais fácil para ela e para nós.
O modo como Derek a fitou não dava margem a nenhuma dúvida. Embora ele
ainda não tivesse informações sobre as investidas dos paparazzi, podia adivi-
nhar que a obstinação de Nicole em desvendar o mistério que envolvia a morte
da atriz resultaria em algum tipo de confusão.
— Não seria uma má idéia. Tudo se tornaria mais fácil para você.
Nicole não queria acreditar no que acabara de ouvir. Ela admitia que o fato de
terem sido obrigados a dividirem o quarto com Simon adiara o aprofundamento
da relação. Mas ao menos eles estavam juntos. A última coisa que ela desejava
era se afastar de Derek. A menos que...
— Pensarei a respeito e depois lhe darei uma resposta. Talvez a situação pudes-
se ser resolvida, afinal de contas.
Simon ficaria com o quarto no hotel, e ela e Derek viriam para o acampamento.
A proposta de Kane viera a calhar!
— Está bem. Agora precisamos de você de volta ao set — Kane a chamou.
— Mas, eu estava precisando falar um minuto com Derek. Derek lhe deu um
beijinho e incitou-a a obedecer.
— O chefe está chamando. Não quer ser despedida no primeiro dia de trabalho,

62
quer?
— ele caçoou.
— Estarei por aqui o dia todo.
Nicole não o via praticamente desde o nascer do sol. Estava querendo um beijo
e um abraço de verdade. Enfim, o que se podia fazer? Ele sorriu e ela soprou
um beijo.
Um trailer era exatamente o que eles estavam precisando...
Durante três horas a movimentação foi intensa no set. Nicole foi dispensada.
Como as cenas seguintes seriam exclusivas de Shawn, ela decidiu aproveitar pa-
ra tentar resolver de uma vez por todas a questão de sua intimidade com Derek.
Ou a falta dela!
Com os dedos cruzados para não encontrar com Kane até contar sua idéia a De-
rek sobre aceitarem a oferta do trailer, Nicole acabou esbarrando em Simon.
— Você viu Derek? - perguntou ansiosa.
— A última vez que nos cruzamos, ele estava indo para a casa dos Hahndorf.
Embora a casa ficasse distante do acampamento, Nicole se dispôs a caminhar
até lá. Um pouco de exercício lhe faria bem. Com o cair da noite, a temperatura
estava mais amena. Vestiu um suéter e olhou para o céu. Já estava escuro, mas
as luzes do set eram potentes e serviam de guia.
O apetite aumentou com a caminhada e o aroma de comida fresca fez seu estô-
mago roncar ao bater à porta.
— Olá, Nicole. Que bom vê-la por aqui.
— Grace saudou-a.
— Entre e jante conosco. Acabo de pôr a mesa.
Nicole se surpreendeu ao deparar com o detetive Von Doussa e com Andy Bur-
row na sala de lareira, além de Derek e de Liam.
Os homens se levantaram com suas taças de vinho à entrada das mulheres.
— Eu estava cogitando ir ao set para verificar se você poderia se juntar a nós —
disse Derek. — Grace e Liam nos convidaram para jantar.
— Nathan me dispensou por hoje, e eu resolvi aproveitar a calma da noite e o ar
puro.
Grace entregou a Nicole uma taça de vinho.
— Experimente. Foi produzido por uma vinícola de Langhome Creek. Eu sei,
eu sei... Talvez seja uma blasfêmia beber o vinho de um concorrente, mas Liam
e eu temos conversado sobre a possibilidade de expandirmos nossos negócios,
assim como Derek decidiu fazer conosco. Essa vinícola produz um excelente

63
Viognier, uma variedade nova na Austrália. Liam e eu o achamos delicioso.
Nicole olhou de um para outro e discordou mais uma vez da opinião de Sarah
Fritz sobre o casal.
O vinho era realmente muito bom. Teria dado preferência a um vinho tinto, em
uma noite fria como aquela. A caminhada, no entanto, a aquecera, e mais ainda
a presença de Derek. O vinho branco gelado, afinal, talvez fosse a melhor indi-
cação.
Derek beijou-a na face.
— Nicole me fez tirar o chapéu — disse Andy.
— Deveriam ter visto o modo como contracenou com o dingo. Incrível!
— Obrigada. E obrigada por me ensinar a lidar com ele.
— Pronta para a cena com Sophie amanhã?
— Andy sorriu.
— Na verdade, Sophie é uma canguru. Um amor de criatura, mas teimosa de
vez em quando. Já derrubou uma ou duas pessoas. Mas não acontecerá com vo-
cê. Assim que acordar, encontre-me no viveiro. Eu a ensinarei como tratá-la.
Sei que estou pedindo muito, porque a figurinista a espera às seis horas, mas
prometo que valerá a pena.
— Não sei se o prospecto me atrai. De ser nocauteada, quero dizer. Não tenho
problemas quanto a madrugar.
— Pensamento positivo. Você tem uma sintonia formidável com os animais.
Não se parece com Lucy. Que Deus a tenha! Von Doussa foi até o bar e se ser-
viu de outra taça de vinho. Ele parecia à vontade com os Hahndorf.
— Mais um pouco, Andy? Pessoal?...
— Para mim, chega. Tenho de me levantar muito cedo. Obrigado.
Nicole se sentiu mal de repente. O que havia com aquelas pessoas? Todos ali
conversavam e bebiam como se nada tivesse acontecido. Por mais que ela sou-
besse que irritaria Derek com seu comportamento, não pôde se calar.
— Charlie já foi encontrado? A expressão de Andy mudou.
— Não. Eu não consigo me conformar. Criei-o desde filhote e agora ele anda
por aí, sem ter o que comer.
Nicole precisou tomar fôlego antes de prosseguir. Espera lá! Charlie era uma co-
bra, não um poodlel
— A polícia já determinou se foi Charlie quem matou Nicole?
— Não — Von Doussa respondeu. — Colhemos uma porção do sangue da víti-
ma para exames, mas sem uma amostra do veneno da cobra será impossível

64
chegarmos a uma conclusão.
— Andy afirmou que os trajes haviam sido trocados. Alguma novidade nesse
sentido?
O detetive não deu importância à pergunta. Andy disfarçou.
— A verdade é que posso ter me enganado. Costumo seguir uma rotina, mas es-
tou fora de meu ambiente. Talvez tenha tomado um copo de vinho a mais na-
quele dia e invertido os cabides.
Derek ficaria furioso com ela, mas a pergunta seguinte era imprescindível.
— Quer dizer que o mistério dos trajes e dos cabides foi solucionado, mas ainda
não se encontrou nenhum suspeito de ter soltado Charlie?

O detetive estava respondendo negativamente quando Grace anunciou que o


jantar estava servido. Dirigiram-se à mesa e logo Hannah desceu e se sentou de
frente para Andy. Seria paranóia de Nicole ou os dois estavam se fitando como
se houvesse um segredo entre eles?
Enfim, a comida estava deliciosa e Derek lhe sorria. O que mais ela poderia de-
sejar naquele momento a não ser mais algum indício de que estava certa ao sus-
peitar de que a morte de Lucy fora criminosa?
— Sobre sua pergunta — Andy respondeu enquanto Liam abria uma nova gar-
rafa de vinho —, eu detesto ter de admitir, mas não seria o primeiro caso na
história de uma cobra escapar de um terrarium.
— Ninguém pode ter certeza, então, de que a serpente marrom tenha sido ou
não tirada do viveiro e colocada no trailer de Lucy?
Hannah olhou para Nicole como se ela tivesse enlouquecido.
— Como pode dizer isso? Andy acabou de dizer que a cobra certamente esca-
pou. Quem iria querer matar Lucy? Que estupidez!...
— Eu a proíbo de se dirigir dessa forma a nossa convidada! — Grace censurou
a filha. — Onde foram parar seus modos, Hannah?
Liam se limitou a olhar para a filha que olhou, por sua vez, para Nicole e se des-
culpou.
— Não acreditamos nessa versão — declarou Von Doussa. — A criatividade
combina com o mundo do cinema, não com nosso cotidiano. Cobras são co-
muns em vinhedos e o próprio Andy não pôde afirmar com segurança absoluta
de que o viveiro estava devidamente trancado antes de ele se recolher naquela
noite.

65
Céus, a quem aquela gente queria enganar? A ela, ou a eles mesmos? E por que
estavam fitando-a como se fosse uma lunática?
Nicole tomou um gole de vinho e olhou para Derek. Ele não percebeu porque
estava ocupado em cortar a carne de porco. Seria possível que ele estivesse con-
cordando com aquele absurdo? Andy falava e gesticulava com exuberância. To-
dos pareciam estar se divertindo com suas histórias. Até mesmo Hannah. Ela se-
ria única a se sentir desconfortável?
— Eu nunca a vi tão quieta antes — Derek observou a caminho do hotel.
— Você esteve estranha durante o jantar, principalmente depois que percebeu
que ninguém lhe daria as respostas que esperava conseguir.
Pela primeira vez naquele dia, Nicole conseguira ficar sozinha com Derek. Si-
mon combinara de voltar para a cidade com alguém da equipe.
— O que você está querendo dizer com isso?
— Seja honesta. Você esperava que alguém fosse partilhar de sua opinião sobre
Lucy ter sido assassinada.
— Exatamente. Seria reconfortante dividir minha teoria com alguém.
— Você me prometeu que não se envolveria nessa investigação. Por favor, dei-
xe que a polícia faça seu trabalho. Eles estão convictos de que a morte da atriz
foi acidental. Não há evidências que os levem a acreditar no contrário.
— A polícia nem sempre acerta. Você sabe disso. E o detetive Von Doussa pa-
rece mais interessado em beber bons vinhos do que em solucionar qualquer cri-
me.
— Acontece que ele é o responsável pela investigação e nós estamos aqui ape-
nas de passagem. Acho que a melhor coisa que você pode fazer por si mesma e
por nós, é esquecer este assunto.
— Sinto muito. Você está certo, provavelmente. O dia foi tenso. Você sabe que
eu perco o humor quando estou cansada. Incomodou-me que ninguém tocasse
no nome de Lucy. Foi como se ela nunca tivesse existido.
Derek pressionou levemente sua mão.
— Foi apenas isso?
— Sim — Nicole mentiu. Dizer a verdade prolongaria a discussão. De que
adiantaria?
— Como foi seu dia?
— Bom. E o seu? As negociações com Liam estão progredindo?
— Todos os termos já foram acertados. Nós já poderíamos voltar para Napa,
mas como você estará comprometida com as filmagens, pensei em aproveitar

66
para conhecer Margaret River, do lado oeste da Austrália, e verificar a possibili-
dade de negociação com mais alguma vinícola.
A perspectiva não agradou Nicole.
— Quando pretende viajar?
— Amanhã. Desse modo terei com o que me ocupar enquanto você realiza seu
trabalho e depois espero que possamos conseguir algum tempo para finalmente
nos divertirmos.
Nicole se obrigou a reagir com otimismo à sugestão. Não queria entrar em
paranóia. Derek não estava procurando subterfúgios para se afastar. Ao contrá-
rio. Ele a incentivara a realizar um sonho antigo e estava cogitando avançar
uma nova etapa na expansão de seus negócios.
— Gostaria de poder viajar com você.
— Eu também gostaria de levá-la comigo.
Chegaram ao hotel naquele momento, e Derek se preparou para entrar no esta-
cionamento. Nicole o impediu.
— Espere. Precisamos nos certificar de que é seguro descer. Esta manhã fui cer-
cada por alguns paparazzi.
— Eu estava querendo falar com você exatamente sobre isso. Talvez seja uma
boa idéia você se transferir para o acampamento como Kane recomendou. Ao
menos enquanto eu estiver fora.
— Eu havia decidido aceitar, mesmo que você não viajasse — Nicole murmu-
rou. —
Pensei que você poderia ficar no trailer comigo e deixar o quarto para Simon.
— Seria perfeito — Ele segurou o rosto de Nicole e beijou-a. — Eu devo voltar
em dois dias.
— Sério? Virá para o trailer comigo, quando retornar?
— Sério. Acredite ou não, eu sempre tive vontade de acampar em um trailer,
que aliasse o conforto com o espírito de aventura.
Nicole riu da observação, mas o modo apreensivo com que olhou ao redor ao
colocar a mão sobre o trinco, fez Derek segurá-la pelo braço.
— Algum problema?
— Estou com medo do que iremos encontrar no lobby do hotel. Espero que os
paparazzi tenham se dado por satisfeitos com as fotos que tiraram de mim esta
manhã, e com as acusações que provavelmente serão publicadas de que sou
uma desalmada por ter tomado o lugar de Lucy.
— Eu estou com você. — Derek tornou a apertar-lhe a mão, e juntos, seguiram

67
até flashes dispararem em seus olhos, desconcertando-os. Mas o que realmente
provocou um arrepio ao longo do corpo de Nicole foi o timbre inconfundível de
uma voz.
— Olá, Nicole Sands. Quem diria que seria aqui que tornaríamos a nos encon-
trar?
— Mame Pickett! Que surpresa! — ela exclamou hesitante. E antes que tivesse
tempo de se recobrar e apresentar a jornalista a Derek, a mulher estendeu a mão
sugestivamente para ele.
— E mesmo? — A jornalista estreitou os olhos castanhos malévolos. — Deve-
ria ter calculado que eu pegaria o primeiro avião para cá ao descobrir que você
estaria estrelando um filme de Nathan Cooley e Kane Ferris. Minha revista está
disposta a lhe pagar um alto cachê por uma entrevista exclusiva.
Derek pigarreou.
— Alguém poderia me explicar o que está acontecendo? Nicole encarou-o antes
de responder.
— A Srta. Pickett é colunista social.
Derek entendeu de imediato a situação. Com um sorriso condescendente, diri-
giu-se à jornalista.
— Foi um prazer conhecê-la, Srta. Pickett, mas a Srta. Sands está cansada. —
Segurou Nicole pelo cotovelo e rumou para o hall dos elevadores. A jornalista
não se deu por vencida.
— E quem, exatamente, é o senhor?
— Por que não nos deixa em paz, Marne? — Nicole resmungou. — Não tenho
nada para lhe contar.
— Eu já esperava por essa resposta — a mulher respondeu, sarcástica. — Você
sempre se considerou acima dos outros. Pensei que já tivesse aprendido a lição.
São poucas as atrizes que conseguem uma segunda chance. Especialmente em
sua idade. Por que não aproveita?
As portas do elevador abriram e Derek empurrou Nicole para dentro. Assim que
as portas fecharam, ele a fitou como quem espera um esclarecimento.
— Podemos falar no quarto? — Nicole suspirou.
Ele fez que sim, mas no instante que chegaram, o telefone tocou.
Derek atendeu e desligou. Tornaram a ligar e ele a devolver o fone ao gancho.
Dois minutos depois alguém bateu à porta.
— Sim? — ele perguntou.
— Mensagem para a srta. Sands.

68
Derek apanhou a nota trazida pelo funcionário e entregou-a a Nicole.
Ou você me dá essa entrevista por bem ou eu encontrarei um jeito de obtê-la
por outros meios. Sabe que eu posso ser desagradável quando quero, não sa-
be?
Marne.
Sem forças para responder, Nicole entregou o bilhete a Derek.
— Não há mais o que pensar. — Ele abriu o armário e apanhou as malas.
— Agora é certeza que você precisa aceitar a sugestão de Kane.
— Eu não quero ir para o acampamento sem você. Derek cruzou os braços.
— Eu fiz planos para os próximos dias, Nicole. Você ficará sem mim no hotel
ou no trailer. Os obstáculos estão se somando. Embora eu tente não dar impor-
tância às evidências, não consigo controlar o pensamento de que tudo o que está
acontecendo para nos separar talvez seja um sinal.
— O que quer dizer com isso? — Nicole perguntou, perturbada com o que aca-
bara de ouvir.
Derek se sentou na cama e estendeu a mão em um gesto para que ela se sentasse
a seu lado.
— Talvez você tenha escolhido o homem errado. Talvez devesse ter ido para a
Espanha com Andrés.
Nicole o encarou, sem querer acreditar.
— Considere tudo o que vem acontecendo — Derek insistiu.
— Talvez o destino tenha se servido desses obstáculos para lhe dizer que fez a
escolha errada. Nós ainda não tivemos uma única oportunidade de ficarmos so-
zinhos desde que chegamos.
— Não é possível, Derek — ela disse num fio de voz.
— Está brincando comigo, não está? Não foi você quem me convenceu a acei-
tar a proposta, afirmando que o filme não mudaria nada entre nós? Por que está
fazendo isso comigo? Por quê"? Todas as vezes que nossa relação começa a su-
bir um degrau, você recua.
— Do que você está falando?
— Você sabe de que eu estou falando! Desde que nos conhecemos, nossa rela-
ção pode ser comparada a uma montanha-russa. Um sobe e desce constante. Is-
so está me enlouquecendo.
— Você estava envolvida com outro.

— Admito que sim. Porque por mais sinais que eu lhe enviasse de que o queria,

69
você não tomava nenhuma atitude de aproximação. Esperei e esperei... Agarra-
va-me à esperança de cada olhar, de cada sorriso que você me dirigia, atrás dos
quais eu tentava enxergar algo que não fosse apenas amizade e respeito profissi-
onal. Mas o tempo foi passando e Andrés insistindo que eu lhe desse uma chan-
ce. Então, quando cogitava desistir de esperá-lo, você me convidava para jantar
e para irmos ao cinema e eu me enchia de esperança outra vez. Ou então, nós
nos sentávamos na varanda, ao final da tarde, ou fazíamos uma caminhada com
Ollie, e você me olhava com cumplicidade, e eu me deitava, naquela noite, certa
de que você sentia por mim o mesmo que eu por você. No dia seguinte, me
apresentava para o trabalho com o coração aos saltos. Você mal levantava os
olhos do telefone ou dos papéis, e pelo restante da semana continuava a me tra-
tar com a velha cordialidade de chefe e amigo.
— Nicole fechou os olhos por um instante.
— Você nunca me deu a entender que realmente me queria. Andrés me fazia
sentir especial. Nunca escondeu que me desejava. Talvez eu pudesse ter me
apaixonado por ele com o tempo. Qualidades não lhe faltam. O único problema
dele é não ser você.
— Ela fez uma pausa. Ao tornar a erguer os olhos para Derek, sua voz soou
firme e definitiva.
— De repente, ocorreu-me um pensamento e me pergunto se toda essa sua inse-
gurança não significa que você se arrependeu de ter me trazido?
— Claro que não!
Nicole cerrou os punhos para controlar a emoção.
— Nesse caso, Derek, é hora de você se decidir. Por mais que eu o queira, que
adore seus beijos, não posso mais continuar nesse impasse. Ou você se compro-
mete a ficar a meu lado, faça sol ou faça chuva, ou acabamos tudo aqui e agora!
Embarquei naquele voo sem nenhuma dúvida de que era você quem eu queria.
Ao desembarcar não tinha a menor noção de que um filme estava sendo rodado
na propriedade do homem com quem você veio negociar. Que a atriz principal
morreria e que eu seria convidada para substituí-la. Foi como um redemoinho e
nós acabamos sendo tragados por ele sem percebermos. Mas se eu aprendi uma
lição com a vida, é que tudo passa.
— E se não passar?
Nicole fechou os olhos. Uma onda de gelo parecia ter se apoderado de seu cor-
po. Forçou-se a recuperar o controle. Devagar, começou a apanhar as roupas e
estendê-las sobre a cama.

70
— Foi você que disse que nada iria mudar entre nós por causa do filme, e agora
se comporta como se tivesse sido eu. Espero que faça uma boa viagem.
Nicole fechou a mala e saiu sem olhar para trás. Seus olhos estavam marejados
enquanto caminhava para o elevador. Queria que Derek corresse atrás dela. Ele
não veio. Quando as portas abriram, Marne estava dentro com um fotógrafo.
— Oh, pobrezinha! Esteve chorando? Foi briga de amor? Conte tudo para Mar-
ne, querida!
O fotógrafo ergueu a câmera, e Nicole praguejou. Por sorte havia um táxi para-
do à entrada do hotel. Ela embarcou e só naquele instante se permitiu chorar.

Capítulo IV

O segurança se aproximou do táxi e permitiu que o motorista entrasse ao reco-


nhecer Nicole no banco de trás. Era Will que estava de plantão naquela noite,
porém por mais que Nicole desejasse lhe falar, não se sentia com forças para na-
da além de apanhar uma cópia da chave do trailer com Kane Ferris. Tudo o que
almejava naquela noite era dormir para esquecer. Algo que dificilmente aconte-
ceria com os pensamentos, ressentimentos e lembranças se atropelando em sua
mente. E mais a preocupação de acabar perdendo a hora para se encontrar com
Andy. Pois, como se não bastassem seus problemas, ela ainda teria de se levan-
tar antes que o galo cantasse para aprender a lidar com um canguru que gostava
de nocautear os incautos.
O motorista desceu do carro e lhe entregou a mala. O acampamento estava es-
tranhamente silencioso. Nicole bateu à porta do trailer de Kane e não obteve res-
posta. Dirigiu-se ao trailer de Nathan, mas ele estava igualmente às escuras. Só
lhe faltava mais esta! Onde estaria todo mundo?
Deixou a mala diante do trailer que pertencera a Lucy, o único que sabia estar
vago, e voltou para o quiosque à entrada da vinícola. Enquanto caminhava, pla-
nejou uma estratégia. Embora seu propósito primeiro fosse conseguir uma cha-
ve para entrar no trailer, o que a impedia de tentar obter algumas novas informa-
ções sobre o ocorrido com Lucy? Que mal haveria em aproveitar a ocasião e
matar dois coelhos com uma só cajadada? E, talvez, com um pouco de sorte, pa-
rar de pensar tanto em Derek.
— Está frio demais esta noite — observou Will ao vê-la chegar. — Não quer
entrar e se abrigar? Atrizes precisam ter cuidado. Soube o que aconteceu com a
outra, não soube?

71
Uma onda de mal-estar se apoderou de Nicole. O modo como o guarda se refe-
riu a Lucy, também foi frio demais para quem a encontrara pouco antes de sua
morte.
— Sim, eu soube sobre a tragédia. Fui convidada para substituir Lucy Swanson.
O produtor, Kane Ferris, colocou um trailer a minha disposição. Eu resolvi acei-
tar sua oferta e me instalar esta mesma noite. Sabe onde posso encontrá-lo? Ou
talvez Nathan Cooley?
— Eles saíram com alguns membros da equipe e um segurança.
— Oh, não! Será que demoram?
— Sinto não ter como informar.
— Obrigada de qualquer forma.
Nicole estava usando calça jeans, camiseta de manga comprida e um suéter fino
por cima. Na pressa de deixar o hotel, esquecera de apanhar o casaco.
— Lamento não ter nenhuma cópia para lhe fornecer. Mas fique à vontade para
usar a guarita até que eles retornem. Está tremendo. — Will franziu o rosto, e
Nicole adivinhou que ele estava pensando em tirar a jaqueta para emprestar a
ela. Impediu-o.
— Não é preciso.
— Eu faço questão.
O rapaz estava menos protegido do que ela, com uma camisa de manga longa
apenas. Ela tentou negar, mas ele acabou colocando a jaqueta sobre seus om-
bros, sem lhe dar ouvidos.
— Você é muito atencioso — agradeceu. — Seu nome é Will, não?
— Sim. Como sabe?
— Eu estava perto, um dia desses, quando Andy se zangou com você.
Ele baixou a cabeça.
— Eu cometi um erro. Portei-me mal. Minha mãe vive me dizendo que tenho
péssimas maneiras e que só penso em mim mesmo.
— Sua mãe deveria vê-lo agora. Está frio e você cedeu sua jaqueta para mim.
Sua atitude foi a de um cavalheiro.
Embora a guarita estivesse em penumbra, Nicole notou o rubor nas faces do ra-
paz.
— Obrigado, madame.
— Por favor, não me chame de madame. Pode me chamar de Nicole.
Will não escondeu um sorriso de prazer.
— Gostaria que minha mãe estivesse aqui para ouvir. Ela vive dizendo que eu

72
não faço nada direito. Quer que eu lhe conte sobre cada minuto que passo fora
de casa. É ela quem decide onde posso ir e com quem e a que horas devo voltar.
Ela tem um gênio terrível. — Encolheu os ombros e balançou a cabeça, sorrin-
do. — Mas é minha mãe.
Nicole esperava que o segurança não estivesse notando o modo surpreso como
ela o encarava. Will era um homem feito. Por que continuava morando com a
mãe? A mulher seria doente? De qualquer maneira, não era com a vida particu-
lar do funcionário que ela deveria se preocupar, e sim com a morte de Lucy.
— Teve contato com mais alguém da equipe, fora Andy? Nicole poderia jurar
ter captado uma ligeira hesitação antes da resposta.
— Algumas pessoas.
— É mesmo? Quais?
O rapaz olhou para um lado e para outro como se estivesse se preparando para
revelar um grande segredo.
— Eu posso perder meu emprego, se descobrirem.
— Por quê? Qual o problema em se fazer amizade com os artistas e os técnicos
de filmagem?
— Não é permitido.
— Quem deu essa ordem?
Ele deu de ombros.
— Eu só sei que não é permitido.
Quem teria estipulado essa regra? Kane? Ou possivelmente Liam ao contratar o
pessoal para cuidar da segurança da propriedade e da equipe?
— Não contarei a ninguém — Nicole prometeu. — Para ser sincera com você,
ninguém fala comigo por aqui. Eu bem que estou precisando de um amigo. Tal-
vez você possa me apresentar seus conhecidos no set. Quem sabe eles possam
facilitar um pouco minha vida enquanto durarem as filmagens.
— Eu conheço o maquiador, Johnny Byrne. É um bom sujeito. Tomamos uns
drinques juntos.
— Eu já o conheci. Também me pareceu um bom sujeito. Mais alguém?
Will baixou a cabeça e tornou a erguê-la.
— Você inspira confiança e disse que está precisando de amigos. Eu posso ser
seu amigo.
— Eu adoraria ser sua amiga — Nicole afirmou com um sorriso que não refletia
a desconfiança que a assaltara. Will parecia inocente demais para um homem
adulto. Ou seria realmente ingênuo? Lucy o teria usado para se divertir? Ino-

73
centes, contudo, podiam se tornar vingativos ao se sentirem traídos. Estava fler-
tando com o rapaz. Talvez devesse começar a pensar em sua própria segurança
e torcer para que Nathan e Kane não tardassem.
— Obrigado. Eu também preciso de amigos. Minha mãe é muito exigente com
as pessoas. Conheço Hannah desde criança, mas minha mãe implica até mesmo
com ela.
— Eu lamento... — Nicole fez uma pausa. — Will, você já tentou conversar
com sua mãe a esse respeito? Dizer que não é mais criança e que gostaria que
ela não se preocupasse tanto com suas escolhas?
— Não. Mas talvez você esteja certa.
— Foi Hannah que o apresentou a Johnny?
— Sim. — O rapaz hesitou por um instante. — Vou lhe contar, mas ninguém
mais pode saber.
— Ninguém mais pode saber o quê, Will?
— Que eu também conheci Lucy.
A imagem de Johnny veio à mente de Nicole. Se o emprego de Will dependia
apenas dele e de Hannah, como o maquiador lhe contara a esse respeito, da pri-
meira vez que a vira? Ele não sabia quem ela era e se era confiável.
Aparentemente, ninguém ali era confiável.
— Ela era uma jovem linda!
— A moça mais linda que eu já conheci.
Os olhos de Will marejaram. Antes que Nicole pudesse pensar em algo para di-
zer, ele contou que Lucy fora amável com ele e que estava presente na noite em
que eles haviam saído para tomar uma bebida. O que Nicole não esperava era
que Will fosse lhe confidenciar que Lucy queria ser namorada dele.
— Você acreditou que ela estivesse falando sério?
— Ela não se conteve.
— Quando bebem, algumas pessoas dizem coisas que não fazem sentido.
— Eu sei. Hannah me avisou e isso me deixou com raiva. Não gosto que zom-
bem de mim e fui embora. No dia seguinte, quando soube que ela estava morta,
me senti muito mal.
— Eu posso compreender seu choque.
— Não. Ninguém pode se colocar em meu lugar. Eu saí sem me despedir. Estou
farto de ser tratado como um joguete. Não foi a primeira vez que uma garota me
tratou como se quisesse ser minha namorada e estava mentindo. Sou um idiota.
Sempre acredito nas palavras bonitas que elas me dizem enquanto riem de mim.

74
— Talvez Lucy estivesse sendo sincera. Você parece ser um bom rapaz, Will.
— Não. Hannah disse que ela estava mentindo. Eu fui embora decidido a nunca
mais falar com Lucy. Mas deveria ter ficado. Talvez pudesse tê-la salvado da-
quela cobra.
— Você não teve culpa, Will. Ninguém poderia adivinhar que Lucy fosse mor-
rer naquela noite.
Não fora Will que a matara. Hannah o conhecia e tentara protegê-lo da malícia
da atriz. O acidente com o carro talvez tivesse acontecido por essa razão. As
duas poderiam ter discutido por causa de Will.
Antes que Nicole pudesse pensar em outra pergunta, um carro se aproximou da
guarita. Kane Ferriss estava de volta.
— Ei, Nicole. Então você resolveu ficar conosco, afinal?
— Sim.
— Suba. Nós lhe daremos uma carona.
— Posso ir andando.
— De jeito nenhum!
Nicole tirou a jaqueta de Will e devolveu-a.
— Obrigada.
— De nada. E obrigada por me ouvir, amiga.
O segurança desceu do carro. Nicole o substituiu no banco do passageiro e se
despediu de Will com um sorriso, prometendo voltar ali na primeira oportunida-
de que surgisse.
O sono se recusou a visitá-la naquela noite. Imagens de Derek e de Lucy viven-
do e morrendo naquele trailer a impediram de fechar os olhos e descansar. A ca-
ma lhe causava arrepios só de olhar. Enquanto durassem as filmagens, ela faria
uso apenas do sofá.
Como sua relação com Derek pudera ter terminado antes mesmo de começar?
Ela não deveria ter se mostrado mais compreensiva e enfrentado a discussão
com mais paciência? Se tivesse insistido um pouco mais, não teria conseguido
convencê-lo de que tudo acabaria dando certo entre eles? Por outro lado, e se to-
das aquelas ocorrências tivessem sido realmente uma espécie de aviso? Pensan-
do bem, Derek fizera planos de viajar com outra mulher e ela de ir ao encontro
de outro homem.
Seria uma questão de destino? De carma?
Nicole se sentou no sofá e cogitou como seria se ela estivesse na Europa com
Andrés naquele momento. Tornou a deitar. Passavam das duas horas e ela preci-

75
saria se apresentar no set em menos de quatro horas.
Cinco minutos depois, estava de pé, vasculhando a bolsa em busca do celular.
Eram quase sete horas da noite em Barcelona. Antes que mudasse de ídeia, dis-
cou o número que Andrés lhe dera. Fechou os olhos. Seu coração batia tão forte
que mal conseguia respirar.
De repente, ela se lembrou novamente de Derek e do que ele dissera sobre os si-
nais. Talvez, se Andrés não atendesse, ela pudesse entender como um sinal de
que tomara a decisão certa ao escolher Derek.
— Nicole? E você? — Som de vozes ao fundo. Andrés não estava sozinho.
— Sim, sou eu.
— Como você está?
— Bem. Muito bem — ela mentiu. O que Andrés pensaria se ela dissesse a ver-
dade?
— Ouvi dizer que você está filmando na Austrália. Aturdida, ela engoliu em se-
co.
— Como soube?
— Por Isabel. Minha irmã está furiosa com você por não ter lhe contado. Ela leu
a notícia na internet.
Mais essa. Sua melhor amiga estava ressentida com seu sumiço. Não podia
culpá-la.
— A verdade é que eu não contei a Isabel, pelo mesmo motivo que não contei a
você. Tive medo de que ambos estivessem me odiando.
— Ora, Nicole. Você nos conhece. Sabe que não somos assim.
— A voz melodiosa de Andrés provocou em Nicole uma vontade quase incon-
trolável de chorar. Era como se ele estivesse a sua frente. — Isabel e eu estamos
felizes por você. Achamos maravilhoso que tenha conseguido realizar seu so-
nho.
— Obrigada. — Ela detectou música ao fundo, além de vozes.

— Eu relutei em ligar, mas quero que saiba que sinto muito pela forma como
me comportei. Você não merecia ficar me esperando no aeroporto e eu não apa-
recer...
— Não diga mais nada, Nicole. Eu custei a superar. Apesar de tudo, não queria
perder a esperança. Mas acabei reconhecendo que seria pior se você tivesse de-
cidido ficar comigo, enquanto seu coração pertencesse a outro homem. Tudo o
que eu sempre quis, e continuo querendo, é sua felicidade. Você merece.

76
As lágrimas assomaram. A garganta fechou. Andrés era um homem bom e de-
cente. Azar o dela que não se apaixonara por ele, e sim por Derek.
— Você também merece ser feliz.
— Eu sei disso. Não sou do tipo que desiste. A felicidade está ao alcance de to-
dos. E só acreditar e seguir em frente. Não se preocupe comigo.
Uma voz de mulher chamou Andrés.
— Desculpe, Nicole. Preciso desligar. Estou no meio de uma festa e estão co-
brando minha ajuda com os coquetéis. Deverei voltar a Napa em seis ou sete
meses. Espero que possamos nos encontrar. Derek está bem?
— Sim. — Ao menos ela esperava que ele estivesse. Ao contrário dela. A liga-
ção só a fizera sentir ainda pior do que antes.
— Cuide-se. Boa sorte com seu filme.
Nicole desligou com a certeza de que agora estava tudo realmente terminado en-
tre ela e Andrés. Ao voltar para o sofá, ativou a função do celular para despertá-
la. Não que acreditasse que fosse conciliar no sono.
Faltavam quinze minutos para as seis quando ela acordou de um sono sem so-
nhos. Parecia incrível, mas sentia-se revigorada. Talvez sua consciência estives-
se pesando mais do que imaginava por ter demorado tanto para se desculpar
com Andrés.
Tomou uma ducha, escovou os dentes e os cabelos e foi para a cantina tomar
uma xícara de café. Não fora única a madrugar. Amy e Harv estavam sentados a
uma mesinha, fumando.
— Bom dia — disse Amy, passando uma caixinha que Harv guardou em um es-
tojo de couro.
— Bom dia.
— É muito bom ver uma atriz que leva a sério seus compromissos.
— Ao menos tento — Nicole respondeu com um sorriso. — Estou a caminho
do viveiro. Andy me ensinará a lidar com um canguru esta manhã.
— Nós podemos levar as roupas que usará hoje ao seu trailer.
— Não é necessário. Depois que eu terminar com Andy, passarei pelo trailer de
vocês.
Amy insistiu que não haveria problemas em lhe entregar as roupas. Nicole não
pôde evitar um sentimento de desconfiança. Aqueles dois, afinal, tinham sido
desagradáveis com ela um dia antes. Por medida de segurança, não permitiria a
entrada deles nem de ninguém da equipe em seu trailer.
Ao se aproximar do viveiro, ela sentiu um calafrio lhe percorrer as costas. O si-

77
lêncio chegava a parecer sobrenatural. Por que os animais estavam tão quietos?
Onde estava Andy? Teria perdido quarenta e cinco minutos de sono à toa?
Sentou-se em uma pedra. Um instante depois ouviu um gemido abafado. Al-
guém estava chorando. Levantou-se devagar e foi verificar. Os soluços vinham
de trás da área de isolamento.
— Hannah?
A garota ergueu os olhos, enxugou as lágrimas e se levantou.
— Vim ajudar Andy a alimentar os animais. Nicole caminhou até ela.
— Aconteceu alguma coisa?
— Não. Nada.
— As pessoas não costumam chorar sem um motivo. Andy Burrow apareceu
naquele momento.
— Bom dia. Desculpe o atraso. Olá, Hannah. Você quer começar pelas cobras?
— Tudo bem.
— Obrigado. E você, Nicole? Está pronta para conhecer Sophie?
— Suponho que sim — ela respondeu e acrescentou após um instante, quando
a garota já não poderia ouvi-la. — Hannah não me parece bem esta manhã.
— Provavelmente discutiu outra vez com a mãe.
— Elas não se entendem?
— Acho difícil se entender com uma mãe que não aceita que a filha escolha a
vida que prefere levar de acordo com sua natureza.
Nicole percebeu que não obteria de Andy mais nenhuma informação sobre Han-
nah quando ele abriu o compartimento onde se encontravam os marsupiais.
— Diga olá a Sophie.
As mãos e as pernas de Nicole tremiam. Por mais tola que ela se sentisse, afinou
a voz e sorriu.
— Olá, Sophie.
O canguru olhou para ela de um jeito nada amigável. Andy ofereceu um pu-
nhado de bolinhos e o canguru engoliu-os avidamente.
— Pegue. — Ele estendeu outro punhado a Nicole. — Assim que vir a comida
em sua mão, Sophie olhará para você com outros olhos.
Nicole duvidou da palavra de Andy. Seguiu, contudo, todas as instruções.
— Muito bem — disse Andy com um sorriso ao ver a canguru aceitar as gulo-
seimas e se afastar.
— Ela gostou de você.
— Como você sabe?

78
— Ela não tentou socá-la. Nicole pestanejou ao gracejo.
— O que você teria feito?
— Não se preocupe. Está tudo sob controle.
Nicole se despediu tentando assimilar aquela energia positiva. Na verdade, ain-
da sentia as pernas trêmulas enquanto se dirigia ao trailer do maquiador. Espe-
rava que ele tivesse café para lhe oferecer. Estava precisando de algo que a re-
confortasse.
— Está parecendo assustada. Aconteceu alguma coisa?
— Acabo de conhecer a personagem com quem contracenarei logo mais. So-
phie, uma canguru.
— Já deu uma olhada rias manchetes de hoje?
— Não. Por quê?
Johnny lhe estendeu o jornal. Estava aberto na página em que Nicole fora fla-
grada saindo do hotel, na noite anterior, tentando esconder o rosto.
— Essa repórter deve odiá-la.
— Marne Pickett — ela resmungou. — Eu nem sequer preciso ler a assinatura.
Eis que ressurge uma candidata a diva que havia desaparecido dos cenários
de Hollywood. Sim, senhores. Nicole Sands, a detetive Sydney Martini, do se-
riado que esteve nas telinhas pelo tempo que meu esmalte leva para secar, fir-
mou um contrato com a Ferris Produções, e está filmando um épico na Austrá-
lia, ao lado do fabuloso Shawn Keefer, além de se intrometer com as investiga-
ções sobre a morte de Lucy Swanson, de quem tomou o lugar. Segundo fontes
seguras, a srta. Sands tem submetido a equipe e moradores locais a
interrogatórios para tentar identificar os inimigos que a atriz poderia ter ao
seu redor, de modo a descobrir qual deles teria sido o responsável por introdu-
zir a mortífera cobra marrom em seu trailer.
Ora, querida! Caia na realidade! Ninguém plantou uma cobra na cama de Lu-
cy Swanson. Agradeça aos céus por você ter conseguido uma segunda chance
no mundo do cinema e não se arrisque a perdê-la. Se eu fosse a Srta. Sands
agradeceria minha boa estrela por estar substituindo uma atriz de real talento.
Correm boatos no set de que está rolando um romance entre Nicole e seu par-
ceiro, Shawn Keefer. Será esse o motivo pelo qual o amante, Derek Malveaux,
dono de uma famosa vinícola no vale de Napa, deixou-a? Ou por ter descober-
to que já havia outro homem em sua vida anteriormente?
Meu conselho para Nicole é que ela procure ajuda especializada. Não há mar-
cianos nem assassinos no set de filmagens, querida. O mundo não precisa de

79
mais loucos.
Nicole inspirou longamente e soltou o ar devagar.
— Inacreditável.
— Achei que seria ainda pior se a bomba fosse detonada por outras pessoas.
— Obrigada. Estou pasma. De onde Marne tirou essa história sobre eu estar de
caso com Shawn Keefer? E por que afirma que estou questionando as pessoas
sobre a morte de Lucy.
— Cá entre nós, você está fazendo muitas perguntas sobre a morte de Lucy.
Gosto de você e não me importo com isso, mas a verdade é que esse seu jeito
tem provocado comentários. Pense bem, Nicole. Você só está aqui há dois dias
e já incomodou uma porção de gente com suas perguntas. Eu tomaria mais cui-
dado em seu lugar.
Os conselhos se repetiam. Nicole queria ouvir o que lhe diziam, mas era mais
forte do que ela.
— Sobre a nossa conversa daquela noite — o tom de voz de Johnny mudou su-
bitamente —, eu não lhe disse tudo. Esse pensamento não me sai da cabeça e eu
não tenho com quem desabafar.
— Se quiser me contar... — Ela cruzou os dedos e desejou-se sorte.
— É sobre a noite em que fomos forçados a sair da estrada e batemos o carro da
sra. Hahndorf. Bem, depois que o carro foi removido, Hannah e eu fomos ao
trailer de Lucy. Ouvimos música, conversamos e bebemos. As coisas começa-
ram a esquentar pela madrugada, se é que você me entende. Mas, então, ouvi-
mos pancadas na porta e fomos verificar o que estava acontecendo. Era a sra.
Hahndorf e seu marido. Ela foi entrando aos gritos, dizendo para Lucy se afas-
tar de Hannah. Liam levou a filha para fora pelo braço. Depois disso, não havia
mais clima e eu fui para meu trailer dormir. A polícia me fez um monte de per-
guntas sobre nós.
— Por que você resolveu me contar isso agora?
— Porque me sinto responsável, em parte, pela morte de Lucy, embora continue
acreditando que tenha sido acidental. Que a cobra entrou no trailer em algum
momento em que a porta esteve aberta.
— O estremecimento de Johnny não fora fingido. Se ele matara Lucy, certa-
mente não tivera intenção de fazê-lo. — Eu estava bêbado e talvez não tenha fe-
chado a porta. Não paro de pensar nisso um só minuto.
— Posso compreendê-lo — Nicole respondeu sincera.
— Mas não acredito que você tenha algo a ver com a morte de Lucy.

80
— Espero que não. Mas não está acreditando que a morte dela tenha sido aci-
dental, não é?
Nicole tinha quase certeza da inocência do maquiador, mas seu lema era não
confiar em ninguém. Qualquer um poderia ter sido o informante de Mame. E se
tivesse sido Johnny? Ele traíra a confiança de Will. Ela era testemunha disso.
— No início eu duvidei, mas agora estou achando que deixei a imaginação me
levar — mentiu.
— Faz parte do ramo — ele retrucou. — Nós, artistas, adoramos inventar
histórias.
— Com certeza — Nicole concordou, mas suas antenas entraram imediata-
mente em funcionamento. Com essa última observação, o nome de Johnny vol-
tara a figurar em sua lista de suspeitos.
Não sobrou muito tempo para Nicole se preparar para as filmagens do dia. Ela
memorizou suas falas e procurou atender as determinações do diretor, mas seu
desempenho não parecia estar correspondendo às exigências.
— Corta! — Nathan ordenou mais uma vez. — O que está havendo, Nicole?
Você é uma profissional e seria de esperar que já tivesse encarnado a persona-
gem. Está faltando paixão em suas cenas. Elizabeth nunca antes se envolveu
emocionalmente com humanos. Sua vida sempre foi voltada para os animais.
Pela primeira vez, ela sente que está gostando de um homem.
Shawn segurou a mão de Nicole nesse momento e olhou para o diretor.
— Nós vamos repetir a última cena, e ela ficará perfeita. Nicole só está preci-
sando de cinco minutos de descanso.
Nathan resmungou algo, mas Kane fez um movimento afirmativo com a cabeça
para Shawn que se apressou a tirar Nicole do set, oferecendo-lhe uma xícara de
chá.
— Não dê importância ao que ele disse. É sua primeira experiência em um fil-
me de longa metragem. A pressão é grande. Além disso, esse trabalho certa-
mente era a última coisa que você esperava fazer quando viajou para cá.
— Nem me lembre — Nicole murmurou, sensibilizada pelo inesperado gesto de
apoio e de amizade do ator.
— Procure pensar que Nathan e Kane não a teriam contratado se não acreditas-
sem em seu talento. Minha recomendação a você é fingir que eu sou o homem
que ama. Eu a vi com Derek. Faça de conta que eu sou ele, e pense no momento
mais romântico que vocês viveram. Eu lhe garanto que Nathan ficará satisfeito.
Agora, tente relaxar enquanto eu volto para lá e garanto que tudo dará certo.

81
Shawn estava se afastando. Ele fora surpreendente. Era uma pessoa formidável.
Talvez suas razões fossem egoístas, mas e daí? Ele a aconselhara a pensar em
Derek e no momento mais romântico que tiveram. Não seria difícil. Foram tan-
tos. Restava descobrir se haveriam outros.
Uma pontada de culpa assaltou-a. Se eles tivessem seguido os planos originais,
agora poderiam estar juntos, explorando as terras e paisagens australianas. Um
suspiro brotou de seu peito. Uma onda de calor lhe subiu pelo corpo. Estava
pensando naquele momento em que Derek parará o carro no acostamento da es-
trada para beijá-la.
Seu coração batia acelerado ao se levantar e voltar para o set de filmagem.
— Corta! — Nathan ordenou alguns minutos depois. — Perfeito! Não sei o que
Shawn lhe disse, mas funcionou. Era isso o que eu queria de você, Nicole. Exa-
tamente isso!
Shawn deu uma piscada. Nicole exultou. Nada como o reconhecimento por uma
tarefa bem feita! Seu momento de glória, contudo, teve curta duração. Nathan e
Kane a chamaram para uma conversa, o que sugeria mais obstáculos a vista.
— Não fazíamos idéia de que você era uma diva quando atuou naquele seriado
— Kane caçoou.
— Sinto muito. Parece que Marne Pickett resolveu cair em sua alma.
— Oh, céus! — Nicole exclamou. — Vocês, mais do que ninguém, devem estar
acostumados às invencionices da mídia. Eu nunca me portei como uma diva.
Nathan garantiu que colocaria um fim nesses ataques gratuitos.
— Não precisamos desse tipo de publicidade. Já bastam as reverberações nega-
tivas sobre a morte de Lucy.
— Obrigada. — Nicole não tinha idéia a respeito das providências que Nathan
e Kane pretendiam tomar contra a megera, mas já se sentia aliviada. Kane era
um homem de influência, e Nathan um dos cineastas mais prestigiados da atua-
lidade. O diretor, contudo, não parecia estar em sua melhor forma, naquela ma-
nhã. A temperatura estava amena, mas ele transpirava profusamente.
— Você está bem? — indagou.
— Sinto-me exausto. O que é estranho. Não fiz nada além do costume.
— Nós já rodamos o bastante por hoje — disse Kane. — Por que não dispensa
o pessoal e descansa?
— Pretendia filmar mais uma cena, mas acho que você tem razão.
Kane bateu nas costas do outro em um gesto de conforto.
— Amanhã você estará melhor e nós continuaremos. — Nathan se afastou, e

82
Kane se virou para Nicole. — Que tal jantar comigo e com os outros esta noite?
Nicole considerou o convite. Talvez fosse uma boa idéia. Ajudaria a afastar seu
pensamento de Derek.
— Obrigada, mas seguirei o exemplo de Nathan. Não estou acostumada a esse
ritmo.
— O horário é apertado, eu concordo. Mas você está fazendo um ótimo traba-
lho. Não se preocupe com Mame. Nathan e eu daremos um jeito de neutralizá-
la.
Assim que entrou em seu trailer, Nicole verificou sua caixa de mensagens. De-
rek não ligara. Deveria estar muito ocupado. Ou continuava zangado e resolvido
a terminar com ela em definitivo. Talvez pudesse tentar obter alguma notícia
com Liam. Eram sócios agora. Se ela fosse até a casa dos Hahndorf, ao menos
poderia ficar em paz com sua consciência, por ter se empenhado em descobrir
se ele estava bem. A visita poderia ser útil, inclusive, no sentido de ela se infor-
mar melhor a respeito de Elizabeth Wells. Talvez devesse esperar uma oportuni-
dade para falar a sós com Liam, longe de Grace, mas ele raramente aparecia pe-
lo set e tempo era algo de que ela não dispunha.
Não era a primeira vez que Nicole cogitava sobre a possibilidade de Grace ter
transferido para Lucy seus ciúmes de Elizabeth. Seria esse um dos motivos pelo
qual ela detestara ver a filha em companhia da atriz? Aconteceria o mesmo com
relação a ela, como substituta de Lucy? Grace mudaria sua forma de tratá-la?
Foi Hannah quem a recebeu.
— Entre. Meus pais estão na cozinha.
— Hannah?
— Sim?
— Sobre esta manhã, existe algo que eu possa fazer para ajudá-la?
— Não, obrigada. Já passou. — A jovem se encaminhou para o sofá, dando a
conversa por encerrada.
— Fique à vontade. Estou estudando.
— Obrigada. Não quero atrapalhar. Conheço o caminho. A garota apanhou um
livro e não disse mais nenhuma palavra. Nicole estreitou os olhos. No início,
Hannah lhe parecera uma jovem rebelde, como a maioria dos adolescentes.
Agora seu aspecto era de decepção e tristeza. Como se lhe faltasse compreensão
em família.
Ao se aproximar da cozinha, ouviu, sem querer, a conversa entre o casal.
— Não creio que você tenha feito bem em contratar Will. Entendo que quisesse

83
ajudá-lo, mas já não temos problemas o bastante? — Grace estava dizendo. —
Você precisa parar de se preocupar com os outros e começar a cuidar de si mes-
mo.
— Licença? — Nicole perguntou da entrada. — Hannah disse que eu os encon-
traria aqui. Vim saber como estão e perguntar se receberam notícias de Derek.
— Oh! Olá, Nicole. — Grace deu a volta e se encostou ao balcão onde cortava
legumes.
— Prazer em vê-la. Como estão as filmagens?
— Bem. Mas confesso que não é nada fácil.
— Conte tudo — Liam pediu e indicou uma cadeira.
— Nathan é super exigente. A agenda é apertada. Ele quer que as filmagens co-
mecem ao amanhecer e se estendam até altas horas. Paramos mais cedo, hoje,
porque ele não estava se sentindo bem. Minha cena com o canguru acabou fi-
cando para amanhã.
Liam sorriu.
— Parece que foi ontem...
Nicole percebeu o rápido olhar que Grace dirigiu ao marido. A hora talvez fosse
imprópria, mas ela não poderia se permitir perder aquela oportunidade.
— Eu estudei a cena. Li sobre Elizabeth e seu amor pelos animais, mas sinto
que falta algo em minha interpretação. Não consigo me expressar como ela.
— Em que posso... Em que podemos ajudá-la?
— Liam ofereceu.
Grace cruzou os braços, subitamente rígida.
— Eu aceito qualquer ajuda que puderem me dar — disse Nicole, entusiasma-
da.
— Como Elizabeth se relacionava com as pessoas? O material que me empres-
taram só fala, basicamente, sobre seu amor pelos animais.
Liam olhou para a esposa e novamente para Nicole. A tensão era quase palpável
no ambiente.
— Vocês terão de me desculpar. — Grace voltou para trás do balcão. — Preciso
cuidar dos preparativos para o jantar. Receberemos alguns convidados esta noi-
te.
O modo como Liam reagiu fez Nicole perceber que era mentira.
— Eu posso voltar em hora mais propícia.
— Poderá jantar conosco também, se quiser.
Apesar das palavras gentis, Nicole percebeu que não era bem-vinda.

84
— Agradeço, mas estou exausta.
Grace não respondeu. Nicole não quisera acreditar, até aquele momento, que
seu temperamento fosse tão difícil quanto os rumores que corriam pelo acampa-
mento, mas acabara de ter uma prova de que isso podia ser verdade.
— Então Derek ainda não ligou? — Liam estava obviamente procurando mudar
o tema da conversa.
— Não.
— Ele ligará.
— Oh, sim. Bem, eu já vou. Obrigada pelo convite. Estou necessitando descan-
sar realmente.
— Eu a acompanho. — Liam se levantou.
Ao atravessar a sala, a caminho da porta da frente, Nicole procurou Hannah
com os olhos. A garota não estava mais no sofá, mas deixara o livro. Era um
álbum ilustrado sobre serpentes venenosas.
Ao se despedir, Nicole resolveu ser sincera sobre estar precisando realmente de
uma orientação. Liam marcou um encontro para a manhã seguinte, às seis ho-
ras, antes do início das filmagens. E como ainda era cedo, e a visita aos Hahn-
dorf a deixara intrigada, ela decidiu tentar colher novas informações com Sarah
Fritz. Levaria Simon consigo. O amigo não teria como se recusar. Afinal, ele era
ou não seu agente e guarda-costas?
— Então, Branca de Neve? O que está acontecendo entre você e Derek?
— Simon perguntou, quando estavam a caminho da vinícula.
— O que ele lhe disse?
— Nada. Apenas que você decidiu aceitar a oferta de Kane para se instalar na
vinícola com a equipe de filmagem, e que ele se ausentaria em uma viagem de
negócios por uns dois dias.
— Só isso?
— Bem que eu desconfiei de algo estranho por trás dessa súbita viagem.
Até aquele instante, Nicole se recusara a refletir sobre a atitude de Derek. Si-
mon estava certo.
O fato de Derek não ter ligado nem sequer para dizer que chegara a seu destino
em segurança era uma forte evidência de que estava tudo acabado entre eles.
— O que aconteceu entre vocês? — Simon insistiu. Sem largar o volante, Nico-
le fez um movimento com os ombros e fítou-o de um modo significativo.
— Percebo.
— Percebe o quê?

85
— Vocês estão com medo de assumirem a relação.
— Fale por seu irmão. Não por mim.
— Nesse caso, por que desistiu dele sem luta?
— O que você esperava que eu fizesse? Derek sugeriu que todos os problemas
que surgiram desde que desembarcamos no aeroporto eram sinais de mau agou-
ro para nosso futuro e simplesmente foi embora.
— Você pediu que ele ficasse?
— Não.
Simon deu um sorriso.
— Vocês dois se amam. Nunca amaram como estão amando agora e isso os as-
susta. São grandes amigos. Inconscientemente ambos estão com medo de segui-
rem para a próxima etapa. E se não der certo? A perda será em dobro. Amor e
amizade. Os amigos tudo perdoam, mas os amantes são exigentes. Qualquer um
sabe que não é fácil manter um relacionamento.
De início, Nicole não conseguiu pensar em uma resposta.
— De onde você tirou essa teoria? Das aulas do guru Sansibaba?
— Não. Desta vez estou falando por experiência própria. Já comentei a respeito
com meu irmão e agora contarei a você: Marco e eu nos conhecemos e nos tor-
namos amigos. Após um ano, sentimos que deveríamos avançar para uma maior
intimidade e foi muito bom.
— Simon fez uma pausa.
— Não sei se dará certo. Não sei se tornaremos a nos falar algum dia. Mas eu
posso lhe garantir, que por mais que eu sinta a falta de Marco e que queira me
arrepender por ter trocado nossa amizade por um compromisso, a verdade é que
continuo acreditando que o pior que poderia ter sucedido seria nunca nos dar-
mos uma chance de tentar.
— Você é um bom amigo, Simon. Obrigada por suas palavras.
— Eu gosto de você. Pode me dizer o que pretende fazer a respeito de meu ir-
mão?
— Conversarei com ele.
Eles chegaram à vinícola Fritz. Simon fez uma rápida apreciação do local e
franziu o rosto.
— O lugar não me parece dos melhores.
— Releve, está bem?
Sarah Fritz estava atrás do balcão, lavando copos. Não havia nenhum outro cli-
ente ou empregado no estabelecimento.

86
— Seu rosto não me é estranho — a mulher declarou. Nicole se dirigiu ao bal-
cão com um sorriso, surpresa pelo
imediato reconhecimento.'
— Espero não termos chegado tarde demais.
— Nunca estamos fechados para quem deseja provar nossos produtos.
— Queremos, então, provar do seu melhor vinho — disse Simon.
Nicole se manteve em silêncio. Apenas sorrindo. Era típico de Simon. Para ele,
somente o melhor.
— Minha recomendação, como fabricante e proprietária, é o Sauvignon Blanc
— Sarah informou enquanto despejava a bebida em três taças, entregava a pri-
meira a Simon, sem parar de encarar Nicole. — Esteve aqui um dia desses com
um cavalheiro que estava fechando um negócio com Liam Hahndorf.
— Sim — Nicole concordou.
— Li sobre você no jornal de hoje. Não imaginava que tivesse recebido uma ar-
tista de cinema em meu humilde lugar.
— Preferiria que o artigo nunca tivesse sido publicado.
— A repórter deve ser sua inimiga.
— Digamos que não morremos de amores uma pela outra. Sarah apoiou os co-
tovelos sobre o balcão e baixou a voz.
— É verdade que desconfia que Lucy Swanson tenha sido assassinada?
Simon largou o copo e foi para junto de Nicole.
— Você não me trouxe aqui para beber, não é? Está tentando jogar o verde para
colher o maduro! Derek estava certo.
— Do que ele está falando? — Sarah perguntou. Nicole aproveitou a deixa.
— No dia em que eu estive aqui com aquele outro homem, você me contou algo
sobre o casal Hahndorf e Elizabeth Wells. Como eu fui convidada para repre-
sentar o papel de Elizabeth, pensei que você pudesse me falar um pouco mais
sobre ela.
Sarah sorriu com malícia.
— Ah! Como eu imaginava! Você voltou aqui curiosa por saber o que houve
naqueles tempos?
— Sim. Eu li muito sobre o amor de Elizabeth pelos animais, mas não sei quase
nada sobre ela como mulher. Também gostaria que me esclarecesse por que ela
e Liam terminaram.
— Conversou a esse respeito com Grace?
— Oh, não.

87
— Fez bem. Liam e Elizabeth foram amantes. Grace deve estar se sentindo bas-
tante incomodada com as filmagens que estão sendo feitas sobre a vida da mu-
lher em sua propriedade.
— Sem dúvida.
— Elizabeth e Liam se apaixonaram à primeira vista. Ambos adoravam os ani-
mais. Eram inseparáveis. Grace era sua melhor amiga, mas como a maioria das
mulheres, inclusive eu, cobiçava Liam, que era um dos rapazes mais atraentes
da região.
— O que houve?
— Grace o seduziu em uma festa, aproveitando-se de uma rusga entre o casal.
Elizabeth e Liam estavam realizando um documentário sobre o grande tubarão
branco. Elizabeth foi atacada e quase morreu. Liam quis desistir do projeto. Co-
mo ela insistisse, os dois tiveram uma discussão. Grace aproveitou a oportuni-
dade para se insinuar.
— Se ele era apaixonado por Elizabeth, por que se deixou seduzir por Grace?
— Você sabe como são os homens. Umas doses a mais de bebida e uma mulher
disponível, e eles não raciocinam.
Nicole não aceitava esse tipo de fraqueza, fosse da parte de quem fosse: homens
ou mulheres. Amor significava dedicação e fidelidade.
— Eu acredito que as palavras de Grace também pesaram. Ela contou a Liam
que Elizabeth nunca se casaria com ele nem com qualquer outro homem, por-
que estava decidida a viver por sua causa. No fundo, Liam deveria saber que
Grace estava certa. Tanto que assim que Elizabeth quando descobriu que fora
traída, partiu em uma longa expedição. Liam ficou desconsolado. Como um ho-
mem fraco, mas honrado, assumiu a responsabilidade sobre a gravidez de Gra-
ce, e se casou com ela.
— E Hannah? Ela não me parece uma jovem feliz. Sarah serviu uma nova roda-
da de vinho.
— A mãe não aceita que a filha queira abraçar uma carreira diferente da que ela
traçou para seu futuro. Desde pequena, Hannah quis se dedicar aos animais. Iro-
nia do destino. Grace afastou Liam de Elizabeth, que adorava os animais ainda
mais do que ele, e Hannah, sua própria filha, quer se tornar uma zoóloga como
sua rival. Com grandes probabilidades de sucesso, eu diria.
— Por quê?
— Eu a tenho visto em companhia de Andy Burrow. Posso jurar que existe algo
entre eles, além do amor pelos animais. Os dois estiveram aqui ontem.

88
Nicole trocou um rápido olhar com Simon.
— Jantei em casa dos Hahndorf ontem. Eles estavam presentes.
— Eram cinco horas, aproximadamente, quando eles chegaram. Falavam em
voz baixa.
De repente, Hannah se pôs a chorar nos braços dele.
— Andy tem idade para ser pai dela — Simon comentou.
— O amor não tem idade. Para Hannah, ele deve ser o homem perfeito.
— Você diria que Andy parecia seriamente interessado em Hannah? — Nicole
indagou.
— Sim.
Simon se levantou.
— Vamos embora, Nicole? Estou ficando com fome e com sede.
Sarah olhou para Simon com hostilidade. Que falta de educação! Falar em sede
diante de uma garrafa de seu Sauvignon Blanc?
— Talvez seja melhor você levar seu amigo para casa. Ele deve virar abóbora
quando o sol se põe.
Nicole se desculpou com a mulher. No carro, esbravejou.
— Precisava ser rude? O que houve com você?
— Não gostei daquela mulher. Há algo de errado com ela.
— Parece seu irmão falando. O que aconteceu? Você sempre adorou uma boa
fofoca.
— Não. O que eu adoro é um bom vinho. Aquele foi o pior que já tomei. Fofoca
é uma coisa, maldade é outra. A mulher é mentirosa.
— Como pode afirmar isso?
— Não gosto de pessoas que falam negativamente de pessoas que me tratam
bem. Grace foi simpática comigo todas as vezes que a vi. Hoje, quando ela este-
ve no set, nós...
— Espere um pouco. Grace esteve no set? A que horas, que eu não a vi? O que
terá ido fazer por lá?
— Não sei. Acho que queria apenas dar uma olhada. Contei-lhe sobre Marco, e
ela me deu alguns conselhos lindos. Disse que o amor não conhece distâncias,
que pelo verdadeiro amor, as pessoas desistem de tudo, e fazem qualquer coisa.
Nicole não soube o que responder. Foram muitas informações de uma só vez.
Precisava pensar e refletir. O que Sarah lhe dissera era verdade? Ou Simon esta-
va certo? Seria de esperar que Grace quisesse esquecer que o filme sobre Eliza-
beth Wells estivesse sendo rodado em sua propriedade. O que a esposa de Liam

89
pretendia realmente ao se apresentar no set naquele dia?
Na entrada da vinícola Hahndorf, Will os espiou pela janela do carro e liberou a
passagem.
— Estou morto de fome — disse Simon enquanto se dirigiam ao trailer. — O
que há para comer?
Nicole abriu os armários e se surpreendeu com o estoque de alimentos e de be-
bidas. Simon pediu que ela abrisse uma garrafa de vinho que tomaram em
acompanhamento a uma sopa de tomate em lata, salada de folhas e macarrão
com queijo.
Conversaram sobre as dificuldades que Nicole estava encontrando para repre-
sentar o papel, e Simon contou, divertido, que as pessoas aparentemente acredi-
taram que ele era realmente um lutador de artes marciais. Simon também
mencionou as pessoas com quem tivera oportunidade de conversar.
— Tive a impressão de que Harv era um sujeito com quem eu poderia fazer
amizade, mas ele é um esnobe. E a tal Amy pode entender de roupas, mas é uma
mulher insuportável. Imagine só. Eu a ouvi dizer a Harv que estava com vonta-
de de tomar café. Eu quis ser gentil e fui apanhar uma xícara. Quando a ofereci,
ela disse que não queria mais.
— Por que acha que eles se comportam dessa forma? Confesso que não gostei
daqueles dois, instintivamente, assim como você.
— Complexo de superioridade.
— Descobri que eles detestavam Lucy.
— Por quê?
— Porque ela os tratava mal. Simon riu.
— Artistas costumam ser pessoas intratáveis. Não ao ponto, contudo, de serem
mortos jor vingança. Fale sério, Nicole. Você ainda está às voltas com a investi-
gação, não está? Foi por isso que me levou àquela vinícola de quinta categoria.
Nicole não teve escapatória. Encolheu os ombros e admitiu sua derrota. Em se-
guida inteirou Simon de todas as novidades: o livro ilustrado de Hannah sobre
serpentes venenosas, o namoro de Liam e Elizabeth, e os ciúmes de Grace. O
encontro de Johnny, Hannah, Lucy e Will na noite que Lucy morrera. As desa-
venças entre Shawn, Kane e Lucy. A história de Andy Burrow sobre a troca dos
trajes, que depois foi alterada.
A conversa estava animada. Nicole sabia que poderia contar com o velho ami-
go. Enquanto eles abriam uma segunda garrafa de vinho, Simon concordou que
era estranho que Andy tivesse mudado seu depoimento inicial. Nicole suspirou.

90
— Você acha que ele pode ser o assassino?
— Não sei. Acho difícil. Você desconfia de mais alguém?
— Tenho pensado em Will, o segurança. Ele é nativo daqui. Talvez saiba lidar
com cobras. E Lucy o seduziu e rejeitou. Mas a imagem de Hannah também
tem me perseguido. Há algo de estranho com a garota.
— O quê?
— Hannah e Will são amigos desde crianças. Eles saíram naquela noite com
Lucy e com Johnny. Johnny afirmou que eles foram jogados para fora da estra-
da por outro carro. Parece que ninguém acreditou em sua versão. Enfim, Han-
nah quer ser zoóloga e eu a surpreendi lendo um livro sobre cobras.
— Onde você está querendo chegar? — Simon indagou.
— Que a reação de Hannah foi estranha ao receber a notícia sobre a morte de
Lucy. Meu sexto sentido diz para eu investigá-la. Acompanhe meu raciocínio.
Hannah é amiga de Will desde criança, mas o trata como se ele não existisse.
Adora animais e Andy Burrow, que Lucy detestava. Por que ela estava choran-
do no ombro de Andy na tarde de ontem? Talvez a assassina seja ela.
Simon balançou a cabeça.
— Você anda assistindo televisão demais.

Capítulo V

Na manhã seguinte, Liam apareceu no trailer antes das seis. Apesar do horário,
Simon já havia saído, atendendo a um pedido de Nicole para deixá-la a sós com
o homem que melhor conhecera Elizabeth Wells.
A conversa entre Nicole e Simon fora produtiva. Depois que ele havia se reco-
lhido, ela decidira acatar seu conselho e esquecer a investigação, ao menos pelo
restante da noite, e se concentrar no trabalho que estava fazendo. Apanhou o
material e leu todos os artigos sobre a heroína do filme e sua contribuição ao
mundo selvagem. Como pessoa, o documentário que Kane tinha lhe emprestado
sobre os tubarões foi o que melhor a orientou. Elizabeth fora uma mulher
atraente. Sua aparência quase infantil desmentia a força que exalava de sua au-
ra.
Restavam dois documentários a serem vistos. Nicole pretendia estudá-los ainda
naquela noite. Não fora possível assistir aos três de uma vez. O sono acabara
por vencê-la.
Ela havia acabado de sair do banho quando Liam bateu a sua porta, trazendo ca-

91
fé e croissants para dois. Seu olhar estava triste. Ela hesitou por um momento.
Mas decidiu-se pela objetividade. Certamente seria menos difícil para ambos se
fossem direto ao ponto.
— Você amou muito Elizabeth, não foi?
— Sim, muito. Elizabeth foi uma mulher fascinante.
— Tudo o que li e ouvi sobre ela confirmam sua opinião. Eu tenho um
propósito: o de retratá-la com a maior fidelidade possível. Você pode me aju-
dar?
— Eu tive a oportunidade de presenciar algumas de suas tomadas e confesso
que fiquei admirado com seu talento. Sua representação de Elizabeth é assom-
brosa.
— Eu não notei sua presença — Nicole declarou, aborrecida consigo mesma.
Grace também estivera no set de filmagem sem que ela percebesse.
— Estive aqui duas vezes. Gostaria de acompanhar todo o processo, mas a dor
da saudade não me permitiu.
— Mas você quer que o filme seja concluído e visto pelo mundo, não quer?
— Sim, eu quero. É importante que eu leve meu projeto até o fim.
— Para Grace, contudo, talvez fosse melhor que a história ficasse no passado.
Liam não respondeu. De repente, ele segurou o abdômen e seu rosto tornou-se
pálido.
— Você está bem?
— Não, não estou. Desculpe.
— Quer que eu chame sua esposa?
— Não. Não faça isso. Ela entenderá o motivo de eu estar aqui e se aborrecerá.
— Posso lhe oferecer algo? Quer que eu providencie alguma medicação?
— Não. Não é preciso. Tenho algo importante para lhe contar. Mas terá de me
jurar que não contará a ninguém. Apenas Derek conhece meu segredo. E agora
você.
Nicole pestanejou. Derek se recusara a lhe contar. O próprio Liam, agora, lhe
diria finalmente seu segredo.
— Parece sério.
Os olhos de Liam marejaram.
— Eu estou morrendo. Nicole engoliu em seco.
— Você tem certeza? Já consultou outros médicos? Ele sorriu, melancólico.
— Venho lutando contra a doença há mais de um ano. Parece que ela está ven-
cendo.

92
— Eu sinto tanto, Liam.
Liam contou resumidamente seu problema e se estendeu em explicações sobre
Elizabeth.
— Eu escrevi o roteiro quando adoeci, sete anos atrás. No início, o diagnóstico
foi um câncer de estômago e o tratamento o curou. Agora o mal tomou o fígado
e os ossos. Na verdade, a história de Elizabeth foi meu primeiro roteiro. Eu a es-
crevi apenas para mim. Guardei-o esses anos todos, enquanto fui desenvolvendo
outros trabalhos pelos quais acabei me tornando razoavelmente conhecido. Ka-
ne se interessou por vários de meus scripts. Eu decidi lhe mandar a história de
Elizabeth só.agora, quando descobri que minha vida estava no fim. Enviei uma
cópia a Andy pelo mesmo motivo. Andy conheceu Elizabeth em pessoa. Ela foi
a principal responsável por ele ter montado seu zoológico.
— Então esse tributo a Elizabeth foi produzido por causa de sua doença?
— Não. Nathan e Kane desconhecem os motivos que me levaram a lhes enviar
o roteiro. Apenas Derek, Grace e agora você partilham de meu segredo.
— E Hannah?
Liam negou com um movimento de cabeça.
— Grace e eu quisemos protegê-la. Suponho que ela tenha ouvido rumores a
respeito de mim e Elizabeth, mas Grace e eu sempre insistimos em lhe dizer que
Elizabeth foi apenas uma amiga nossa. Contudo o tempo passa e a aproximação
da morte muda nossa forma de pensar. Agora eu faria qualquer coisa para con-
sertar meus erros do passado. Se fosse possível voltar no tempo, eu desejaria
nunca magoar ninguém. Vigiaria cada palavra. Não mentiria e não seria coni-
vente. É tão trágico que esse conhecimento só venha com a maturidade. Em
nossa juventude, pensamos demais em nós mesmos e acabamos machucando
muita gente. — Liam suspirou. — Esse filme é um pedido de perdão a Eliza-
beth e a minha esposa pelo muito que errei com as duas.
Nicole estendeu a mão para Liam em um gesto de conforto.
— É uma longa história. — Ele tornou a suspirar. — Eu me apaixonei por Eli-
zabeth. Grace se apaixonou por mim. Eu feri Elizabeth mortalmente ao ter um
caso com Grace. Fui culpado por Elizabeth ter resolvido viajar sozinha. A via-
gem que a matou. Também fui culpado por ter achado que meu casamento com
Grace foi um erro. Nossa filha, afinal, não foi um erro. Nem meu relacionamen-
to com Grace. Antes, porém, eu só pensava em me separar de minha esposa as-
sim que Hannah tivesse idade para entender a situação. Casei-me com Grace só
por causa da gravidez. Tivemos sérios desentendimentos ao longo dos anos.

93
Mas quando adoeci, não sei o que teria sido de mim sem Grace. Pela primeira
vez, nós começamos a nos tratar como amigos. Ela permaneceu ao meu lado dia
e noite, pesquisando a doença e me levando aos melhores médicos. Eu me apai-
xonei por ela. Entendo que esse filme sobre a vida de Elizabeth a está perturban-
do. Para compensá-la, a única forma que encontrei, foi fazer um acordo com
Derek.
— Um acordo com Derek?
— Sim. Eu deixarei Grace e Hannah amparadas financeiramente. O acordo com
Derek lhes garantirá o sustento pelo resto de suas vidas. Grace não entende de
negócios, e Hannah é muito jovem ainda e não sente nenhum amor por nossa
vinícola. Seu sonho é tornar-se zoóloga. Grace e eu tememos os riscos da profis-
são. Grace se recusa a discutir a questão. Eu estou tentando convencê-la a dei-
xar que Hannah siga seu caminho. Com Derek na administração da sociedade
eu não terei de me preocupar com sua sobrevivência, nem com uma possível di-
lapidação do patrimônio.
Nicole aquiesceu.
— Grace encara esse filme como uma competição entre ela e Elizabeth. Não é.
Elizabeth faz parte de meu passado, e eu quero homenageá-la pela grande mu-
lher que foi. Não por eu tê-la amado. É isso que minha esposa não compreende.
Meu maior erro foi ter olhado tantas vezes para trás em minha vida, que perdi
as chances de olhar para tudo o que eu tinha a minha volta. Grace é meu amor
agora. Nosso casamento e nossa filha jamais foram um erro.
Um sorriso estampou-se nesse momento no rosto de Nicole e ela segurou a mão
de Liam.
— Eu acho que sei uma maneira de ajudá-lo a convencer sua esposa de seus
sentimentos.
Nicole não mencionou o fato de que mãe e filha figuravam em sua lista de sus-
peitos. Hannah, particularmente. Liam estava tão deprimido que a simples pos-
sibilidade de alguém tentar ajudá-lo a resolver seus problemas familiares o
entusiasmou.
Foi necessário, contudo, trazer à tona o episódio do acidente com o carro. A res-
posta de Liam a tranqüilizou. A atitude da garota fora provavelmente a que
qualquer outra pessoa teria assumido. Hannah dissera aos pais que estava ao vo-
lante quando a verdade era que entregara a direção do carro a Lucy.
De qualquer modo, para que o plano que Nicole tinha em mente funcionasse,
seria preciso a colaboração de Kane e de Nathan, porque demandaria uma pe-

94
quena mudança no script e a cena em questão estava programa para o dia se-
guinte.
As declarações de Sarah Fritz conflitavam com as que Liam acabara de fazer.
Segundo a mulher, era Grace quem estava por trás da administração do negócio.
Nicole começava a cogitar se a versão de Sarah não seria de uma natureza mais
pessoal do que um reflexo da verdade. Como se Grace, talvez, tivesse ofendido
ou decepcionado Sarah no passado.
Chegada a hora de se apresentar para as filmagens, Nicole se dirigiu ao set.
— Pronta para começar? — Shawn perguntou.
— Sim.
A primeira tomada concentrou-se em Nicole com o canguru, uma cena
que deveria ter sido filmada no dia anterior, mas que teve de ser adiada por cau-
sa do mal-estar de Nathan. Naquela manhã, sua aparência estava normal. Nicole
rezou para que tudo desse certo.
Andy trouxe Sophie para o set. Nicole teria apenas de alimentá-la, exatamente
como Andy lhe ensinara a fazer no cercado.
— Preparada, querida? — Andy perguntou a Nicole antes de soltar o animal.
— Apanhou os petiscos?
A um sinal afirmativo de Nicole, Andy olhou para Nathan.
— Silêncio no set! — o diretor comandou. —Ação!
Nicole caminhou até Sophie e estendeu a mão. Estava confiante. Conforme as
instruções de Andy, ela esperou que o canguru cheirasse os petiscos e os comes-
se. Tudo parecia estar correndo bem. Então, sem mais nem menos, Sophie ten-
tou acertá-la.
Por puro instinto, Nicole se abaixou e conseguiu se esquivar do soco. O ímpeto
de gritar por socorro foi quase incontrolável. Olhou ao redor, em pânico, porque
o canguru não parecia disposto a desistir do ataque. Andy estava abrindo a por-
ta para que ela pudesse sair. Correu em disparada. Do lado de fora, o pessoal es-
tava francamente histérico. Simon, inclusive.
— Pensei que você tivesse dito que ela tinha ido com a minha cara — Nicole
resmungou.
Andy deu de ombros.
— O que você quer que eu diga? Ela é uma fêmea. Quem consegue entendê-
las?
— O resultado foi surpreendente — disse Nathan. —Adorei a cena. Não penso
em refazê-la. O acontecido conferirá um toque cômico à história.

95
— Suponho que eu também devesse estar rindo por um canguru querer me dar
um soco no meio do nariz! — Nicole apoiou as mãos nos quadris enquanto es-
bravejava. Ela própria não esperava que fosse desabar em riso antes de terminar
seu protesto.
O restante do dia foi tranqüilo e produtivo.
— Você planejou algo para esta noite? — Simon indagou ao escurecer.
— Não. Gostaria de jantar na cidade, mas com o fantasma de Marne Pickett me
assombrando, não creio que seja uma boa idéia. Notícias de Marco?
— Não. Você de Derek?
— Não. Sem um computador e internet, não tenho como verificar meus e-mails.
— Por que não pede permissão a Nathan para usar o computador dele?
— Farei isso agora. Nesse ínterim, por que você não aproveita e providencia al-
go para comermos?
Simon reclamou por um instante que Nicole o estava fazendo de empregado,
mas os dois acabaram rindo, como sempre. Afinal, como negar um favor entre
bons amigos?
Nicole se dirigiu ao trailer de Nathan e bateu. Ele veio abrir com uma lata de
cerveja na mão. Kane e Shawn lhe faziam companhia.
— Olá. Estou atrapalhando?
— Entre. Estávamos falando justamente em sairmos para jantar na cidade. Quer
vir conosco?
— Acho que não. Com Mame Pickett à solta, eu preciso me cuidar.
— Esqueça aquela megera! — exclamou Shawn. —Venha! Nós a protegeremos.
Nicole estava faminta. Comer em um bom restaurante era uma proposta tenta-
dora em comparação com um lanche e uma sopa no trailer ou na cantina do
acampamento. Além disso, Simon ficaria feliz em acompanhá-los. Mas a pers-
pectiva de ver seu nome e sua imagem denegrida na próxima publicação da edi-
tora para a qual Marne trabalhava foi o fator decisivo em sua escolha.
— Obrigada, mas eu realmente detestaria encontrar
Marne na minha frente. Só vim até aqui para saber da possibilidade de eu che-
car meus e-mails.
— Não se preocupe a respeito de Marne — Kane asseverou.
— Verifique seus e-mails e depois sairemos para jantar. Não aceitaremos "não"
como resposta. Terminaremos as cervejas em meu trailer e voltaremos em vinte
minutos para apanhá-la. Todos nós estamos precisando de um pouco de civiliza-
ção.

96
— Tomou fôlego. — Confesso que mal posso esperar para voltar para casa.
— Eu não me importaria de continuar nesse acampamento por mais algum tem-
po, convivendo com a natureza — declarou Shawn.
— Você deve estar brincando! — Nathan retrucou.
— Em um acampamento de verdade você teria de dormir em uma barraca, pas-
sar frio e comer feijão em lata. Kane está gastando uma fortuna para que não
nos falte ao menos o mínimo de conforto.
— Agora vocês entendem por que eu estou contando os minutos para concluir-
mos esse filme?
— Kane tomou um gole de cerveja. — Algum de vocês sabe se Andy quer ir co-
nosco?
— Eu duvido — disse Nathan. — Ele desapareceu tão logo demos o dia por en-
cerrado. Posso apostar que está às voltas com aquela garota, filha do dono da
propriedade.
Nicole estreitou os olhos ao tom de malícia e às risadas que se sucederam ao co-
mentário.
Homens!
Com ela, no entanto, eles tinham sido simpáticos. Assim que foram para o trai-
ler de Kane, ela abriu o laptop que Nathan afirmara estar ao lado da cama. Eles
haviam sugerido que ela chamasse Simon para acompanhá-los. Assim não te-
riam de se preocupar com os paparazzi.
— Simon é lutador de jiu-jitsu, certo?
Nicole não mentiu, mas também não confirmou.
Não havia nenhuma mensagem de Derek. Nem de Marco.
Sua tia Cara, porém, escrevera, dizendo que estava excursionando pela Grécia e
que em breve seguiria para a Itália. Foi um alívio para Nicole que a tia estivesse
ocupada com seus passeios turísticos em vez de ler os jornais.
Ela estava se preparando para fechar seu e-mail quando a curiosidade resolveu
tentá-la. Era tremendamente errado bisbilhotar sobre as preferências dos outros,
mas ela não resistiu. Antes não tivesse acionado aquela tecla. A tela mostrou
que Nathan mantinha uma lista de suas atrizes favoritas. Até aí, nada de mais.
Ele era um cineasta. O fato que a preocupou, porém, foi o número de nomes que
ela encontrou. Um. Nathan colecionava fotos e dados sobre uma única atriz: Lu-
cy Swanson. Ele escrevera poemas, inclusive, em sua homenagem. Não parecia
ser uma questão de um diretor analisar a atriz principal de seu filme. Parecia
uma obsessão. Uma paixão doentia.

97
Nicole sentiu um calafrio na espinha ao acessar o último arquivo. Ele datava do
dia da morte de Lucy.
Se eu não puder ter você nesta vida, rezarei para que você seja minha na
próxima.
— Nicole? Você vem?
Sobressaltada, ela se apressou a fechar o arquivo e o lap-top. Olhou para trás e
viu Nathan parado na soleira da porta.
— Já estou indo!
— Ela se levantou e forçou um sorriso, sem poder deixar de pensar que talvez
estivesse saindo para jantar com um assassino.
Durante o trajeto, Nicole se sentou entre Simon e Shawn. O ator tentou se insi-
nuar para ela. Simon se manteve calado quase todo o tempo.
— Eu abro a porta para você.
— Shawn lhe estendeu a mão, e o que aconteceu a seguir, foi como que um pe-
sadelo.
— Você é demais, sabia?
— Ele não apenas a enlaçou pelo ombro, mas a beijou no rosto. No mesmo ins-
tante, um flash foi disparado. As pernas de Nicole bambearam. Mame Pickett
estava na frente do restaurante, rindo às gargalhadas.
— Só me faltava essa!
— Nicole resmungou consigo mesma ao entrar no restaurante e ouvir Kane di-
zer a Simon para montar guarda à porta de modo que nenhum outro fotógrafo
pudesse incomodá-los. Como se Simon tivesse condições de impedir alguém de
entrar por meio de força! Ela estava precisando do amigo a seu lado, mas, en-
fim, não podia desmenti-lo sobre suas habilidades na arte da defesa pessoal.
Kane deveria estar olhando para ela havia algum tempo. Nicole tentou retribuir
o sorriso que ele lhe dirigia.
— Não leve esses fotógrafos tão a sério — ele a aconselhou. — Situações como
essa fazem parte do show business. É o preço a pagar pela fama. A melhor táti-
ca é aprender a ignorá-los.
— Ignorá-los? Por favor, ensine-me como.
— Kane tem razão, amor — disse Shawn.
E isso agora? Primeiro o beijo ao descerem do carro, documentado em uma fo-
to. Chamá-la de "amor" na frente dos companheiros também? O que Shawn
Keefer estava querendo realmente? Será que ninguém ali conhecia o significado
da palavra privacidade? Ninguém tinha uma vida pessoal? Ele parecia tão

98
simpático. O que havia mudado?
— Eu estou envolvida com alguém — Nicole declarou.
— Com Derek Malveaux? — Kane indagou. — É ele que você está namoran-
do? Pensei que fosse apenas sua assistente.
Havia algo errado ali. O que aqueles sujeitos estavam pretendendo? Shawn lhe
recomendara que o visualizasse em lugar de Derek de modo a entrar no clima
antes de filmarem a cena de amor.
— Eu sou. Nós trabalhamos juntos. Nosso namoro é recente.
— Faz alguns dias que não o vejo — observou Kane. — Eleja retornou aos Es-
tados Unidos?
Nicole tomou um gole do vinho que eles haviam pedido e rezou para que sua
mão não tremesse. De repente, uma raiva insana a invadira. Quem aqueles sujei-
tos pensavam que eram para interrogá-la daquela maneira sobre sua intimidade?
— Derek está percorrendo a costa oeste da Austrália e pesquisando novas opor-
tunidades de negócios. Estamos iniciando a distribuição de vinhos internacio-
nais no mercado americano.
Eu deveria tê-lo acompanhado nessa viagem, mas surgiu o convite para filmar e
cá estou.
Kane fez um movimento de concordância com a cabeça.
— Tenho certeza de que Derek perceberá o embuste da tal Mame Pickett. Ele
deve saber que noventa por cento do que escrevem sobre os artistas é invenção.
E, afinal, de que você tem medo? O fotógrafo não a flagrou em nenhuma pose
comprometedora com Shawn. Ele só estava com o braço ao redor de seu corpo.
— Ele também me beijou.
— Tanto estardalhaço por causa de um beijinho, Nicole? Nicole empertigou-se
na cadeira.
— Vocês conhecem esse pessoal melhor do que eu! Eles deturpam tudo. Não fi-
carei surpreendida se publicarem dessa vez que Shawn e eu estamos tendo um
caso. — Olhou para o ator ao adivinhar seu sorriso. — Você não se importa?
Shawn deu de ombros.
— Já me acostumei. Chegaram a associar meu nome ao de Julia Roberts. Inven-
taram que o marido a estava deixando por minha causa. Depois desse absurdo,
eu não me espanto com mais nada. Ao contrário. Como não há muito a fazer a
respeito, procuro tirar alguma vantagem da situação. Sobre nós dois, por exem-
plo, um pouco de publicidade em torno de nossos nomes não será uma má idéia
no período que antecede o lançamento do filme. Ajuda a atrair o público para o

99
cinema.
— É uma má idéia quando você está iniciando um romance com alguém. E por
isso que o índice de divórcios é tão alto em Hollywood.
— Não se deixe impressionar — aconselhou Kane.
— Sempre foi assim. No final, acabará dando tudo certo.
A confiança do grupo não convenceu Nicole. Mas de que adiantaria continuar
insistindo? Ela tentou relaxar e estudar o cardápio, como eles estavam fazendo.
No decorrer do jantar, ela bebeu mais duas taças de vinho. A conversa final-
mente ficara interessante e ela descobriu alguns novos truques que estavam sen-
do empregados nas filmagens. Ocorreu-lhe que Shawn estava bebendo uma taça
atrás da outra, mas era tão bom poder beber em companhia de outras pessoas
com quem estava partilhando uma experiência, que ela preferiu não se preocu-
par com o fato. Aliás, resolveu aproveitar e saciar sua curiosidade sobre Kane
Ferris, que parecia saber sobre a vida de todos, embora nada contasse sobre a
dele.
— Qual é sua história? Como você ingressou no mundo do cinema?
— Minha história não é interessante. A história de Shawn é melhor do que a mi-
nha.
Shawn negou.
— A minha não se compara à sua. Vamos, por que não conta a ela que já foi es-
critor, ator e cinegrafista antes de se tornar um produtor famoso?
— Confesso que é novidade para mim. Sua experiência não é menos do que
fantástica, eu diria.
— Documentários eram a especialidade de Kane — disse Nathan.
— Sim — Kane admitiu. — Na verdade, minha ex-esposa se concentrava nessa
linha. Ela continuou com os documentários após nosso divórcio. Eu segui em
outra direção. Documentários não dão grandes lucros. Minha meta era produzir
filmes de ação. Quando Shawn e eu nos conhecemos e descobrimos que par-
tilhávamos das mesmas idéias, decidimos nos associar.
Shawn fez um gesto de assentimento, mas Nicole notou que ele não parecia tão
entusiasmado quanto o produtor.
— Eu faço o que Kane quer. Sou seu super astro. Adoro estrelar seus filmes.
Antes que Nicole pudesse tecer algum comentário sobre o depoimento do ator,
Kane sugeriu que pedissem a conta e fossem embora.
— Eu tomaria mais uma taça e acho que Nicole gostaria de me fazer compa-
nhia. Ela e eu estamos nos entendendo bem. Sinto que deveríamos nos conhecer

100
melhor. — Shawn deu uma piscada que fez Nicole cerrar os punhos.
— Não esta noite — Kane respondeu. — É tarde e teremos de nos levantar ce-
do. Você está pronto, Nathan?
O diretor assentiu. Nicole percebeu que ele estava tão aturdido quanto ela com a
súbita guinada na conversa.
O trajeto de volta para o acampamento foi feito em silêncio. Nicole deu um sus-
piro de alívio ao chegar ao trailer. Simon, contudo, não parecia nada satisfeito.
— Que papelão, hein, Branca de Neve? Como pôde me deixar ali fora, planta-
do? E sem jantar?
— Eu lhe trouxe comida. — Ela tirou uma pequena embalagem da bolsa.
— Oh, estou emocionado! Um sanduíche, aposto! Enquanto você se fartava de
comer e de beber com seus amigos famosos!
— Pare com isso, Simon! Foi você quem inventou aquela lorota sobre ser um
mestre em jiu-jitsu. Com Marne Pickett à espreita, eles o deixaram à porta para
nos proteger. Você não foi abandonado, nem humilhado. Apenas o deixaram fa-
zer seu trabalho. Não disse a eles que era meu guarda-costas? Não tenho culpa
de suas mentiras.
Sem resposta, Simon estendeu a mão e pegou a embalagem. Não era um sim-
ples sanduíche, mas um suculento filé. Aborrecida, Nicole foi vestir seu pijama.
Cinco minutos depois, Simon lhe ofereceu um cálice de vinho do Porto.
— Desculpe. Acho que eu fiquei com inveja.
— Se lhe serve de consolo, eu queria que você estivesse ao meu lado, não eles.
O clima ficou tenso em certo momento.
— Conte-me.
— Não sei exatamente o que houve, mas percebi uma animosidade no modo co-
mo Shawn falava com Kane. Algo que eu não havia notado existir entre eles até
esta noite. É verdade que Shawn se excedeu no vinho. E eu também. Não se
ofenda, portanto, se eu recusar sua oferta por um copo de água.
— É fato conhecido que o álcool solta a língua das pessoas. Talvez existam pro-
blemas entre Shawn e Kane. Eu poderia perguntar a Shawn e...
— Não faça isso! — Nicole não permitiu que Simon concluísse a frase. — Quer
se meter em confusão?
— Olhe quem está falando!
Nicole não respondeu. Em vez disso, apanhou os documentários sobre Eliza-
beth.
— Quer assisti-los comigo?

101
— Por que não?
Eles recostaram contra os travesseiros espalhados pela cama e ligaram a televi-
são. O primeiro documentário exibia Elizabeth lidando com coalas, cangurus e
outros marsupiais. Os créditos de produção foram para os Ferrisse. Até aí nada
de novo.
Nicole percebeu que Simon havia pegado no sono e trocou o DVD com cuidado
para não acordá-lo. Arrepiou-se ao descobrir que o documentário seguinte fora
rodado apenas com répteis, desde cobras até crocodilos e lagartos venenosos.
No meio do programa, algo a fez pressionar o botão de pausa: Elizabeth estava
segurando uma cobra marrom. Na cena seguinte, ela se virou e entregou-a a ou-
tra mulher. Com o fôlego suspenso, Nicole repassou a imagem. Ela estava mais
magra e mais jovem, mas apresentava a mesma cicatriz no rosto e os mesmos
cabelos vermelhos.
A mulher era Sarah Fritz!
Na manhã seguinte, a equipe foi convocada para uma reunião a fim de discuti-
rem uma alteração no roteiro, sugerida por Liam. Nicole não contou a ninguém
que sua conversa com o autor motivara a mudança. Principalmente a Nathan
que figurava como um de seus principais suspeitos na morte de Lucy.
As possibilidades eram múltiplas, porém. O estranho comportamento das mu-
lheres Hahndorf. A hostilidade com que Shawn falara a Kane também não saía
de sua cabeça. E agora, Sarah Fritz.
O fato de ela não gostar de Grace Hahndorf ficara patente desde sua primeira vi-
sita à vinícola em companhia de Derek. O que teria acontecido no passado da-
quelas pessoas? Sara figurara no documentário entre Elizabeth e Liam e sabia
manipular serpentes. Mas em que isso poderia se tornar relevante com relação à
morte de Lucy?
Voltar à vinícola Fritz era urgente e essencial. Chamaria Simon para ir com ela
assim que terminasse as filmagens daquele dia.
Elizabeth está sentada na varanda da casa da fazenda com a cabeça em repouso
sobre os braços. James se aproxima. Ela se levanta de um salto e se põe a gritar
para que ele vá embora. Não quer tornar a vê-lo. Mas James insiste apesar dos
gritos e pede para que Elizabeth o escute. Ela recua e ergue o queixo.
— O que, afinal, você tem a me dizer?
— Eu sinto muito, Elizabeth. Nós dois sabemos que não daria certo. Jamais nos
entenderíamos. Você não me ama. Não da maneira que eu preciso ser amado.
Sua paixão pelos animais e pela vida selvagem sempre estará em primeiro lugar.

102
Não há espaço suficiente para mim em sua vida. Eu não tinha intenção de ma-
goá-la. — James se detém e enxuga o suor da testa. — Mas aconteceu. Gail me
ama e eu a amo. Agora sei com toda certeza. Foi melhor assim.
— Você está certo — Elizabeth concordou. — Foi melhor assim. Eu não seria
uma boa esposa para você nem para ninguém. Os animais são mais importantes
do que tudo. Seu lugar é com Gail.
James sobe no carro, e Elizabeth o observa partir com lágrimas nos olhos.
— Corta! — exclamou Nathan. — Esplêndido!
Nicole se virou na direção de Liam e Grace. Ela estava pálida, sem reação. Liam
olhava fixamente em seus olhos. Ninguém poderia imaginar que Nicole estava
por trás da alteração e que se sentia orgulhosa do que fizera. Principalmente
quando Grace venceu seu torpor e abraçou o marido. Nicole não se conteve ao
ver o casal se afastar, de mãos dadas.
— Você está bem? — Shawn havia se aproximado sem que Nicole percebesse.
— Estou. Um pouco fora do eixo, mas bem. Ele riu.
— Entendo o que você quer dizer. Bebemos demais ontem à noite.
— Não se trata disso — Nicole murmurou. De repente, ela estava tomando con-
sciência dos limites entre o real e o imaginário. O que acabara de presenciar fo-
ra uma cena da vida real fundamentada em uma cena de filme. Considerou as
implicações. Elizabeth estava morta. Liam estava com seus dias contados. —
Vocês rodam filmes. Vocês fazem de conta. Eu não sei se tenho condições de
continuar levando esse tipo de vida.
— Claro que tem. — Shawn colocou o braço ao redor do ombro de Nicole. —
Pense nisso como um trabalho. Você estuda o texto, se veste como o persona-
gem e o interpreta. Depois você se despe, veste sua própria roupa e continua a
levar sua própria vida.
— Tão simples assim? Ele assentiu.
— Você gosta do que faz? — Nicole indagou.
— Às vezes, sim. Às vezes não. Mas sou um profissional e procuro realizar
sempre um bom trabalho.

Ao fim do dia, Nicole se sentiu aliviada por poder voltar para o trailer. Muitas
cenas precisaram ser repetidas. Ela gostaria de contar com a companhia de Si-
mon, mas ele havia recebido um convite para ir à cidade com Harv e aceitara.
Talvez ela devesse deixar a visita a Sarah Fritz pára outro dia, pelo risco de ser

103
abordada por Marne ou qualquer outro repórter durante o trajeto, mas quando
cismava com algo, não sossegava enquanto não resolvia a questão.
Inspirada por uma idéia, foi vasculhar o guarda-roupa de Elizabeth. Sem Simon
para protegê-la, talvez devesse usar um chapéu ou uma peruca e um casaco lon-
go que ocultasse quase todo seu corpo.
Vestiu uma calça jeans e um suéter folgado, mas não se sentiu satisfeita com o
resultado. Harv lhe separara uma calça justa demais para as filmagens da manhã
seguinte. Ou ela emagrecia uns cinco quilos naquela noite, ou a peça teria de ser
trocada. Por que não aproveitar e dar uma olhada no trailer da figurinista?
O sol estava se pondo. Nicole vestiu um casaco e levantou a gola. As noites es-
tavam ficando cada vez mais frias. Em Napa, no entanto, o verão se anunciava.
Ela sentiu uma onda de saudade invadi-la. Por mais bonito que fosse o vale de
Barossa, e por mais amáveis que fossem as pessoas daquele lugar, ela ansiava
por voltar para seu mundo. Para sua realidade.
A caminho do trailer de Amy, sentiu cheiro de fumaça. A alguma distância, o
grupo se aquecia ao redor de uma fogueira. Bateu e não houve resposta. Girou a
maçaneta e se alegrou ao ver que cedia.
Lá dentro, Nicole tirou a calça que trouxera dentro de sua bolsa e trocou-a por
uma maior. Depois abriu o baú onde Amy guardava as perucas e os chapéus e
encontrou exatamente o que precisava. Ficaria irreconhecível de cabelos pretos,
curtos e ondulados. E com um dos chapéu de Elizabeth.
Antes de sair, ela foi atraída por uma bolsa ao lado do baú. Harv a estava usan-
do na manhã em que ela o encontrara na cantina, tomando café com Amy. A fi-
gurinista lhe entregara um pequeno pacote. Seria errado dar uma espiada?
Ao abrir a bolsa, Nicole encontrou um estojo de primeiros socorros. Até ai, tudo
bem. A perplexidade lhe tirou o fôlego ao encontrar frascos de soro antiofídico
e seringas, junto ao material usual.
Com a rapidez de um raio, tornou a fechar o estojo e a guardá-lo na bolsa. Esta-
va se encaminhando para a porta quando um ruído a fez se esconder atrás das
roupas.
— Entre. Tenho novidades para lhe contar. Com quem Amy estaria falando?
— São os ossos do ofício, minha querida. Aliás, você também está lucrando
com esse negócio.
A voz era de Kane!
— O que esperava? Que eu fosse lhe fazer favores de graça?
— Oh, sim — Kane respondeu, malicioso. — Ao menos na cama.

104
Nicole sentiu o rosto afoguear. Precisava sair urgentemente dali. Kane e Amy!
Jamais desconfiaria de uma associação entre o produtor e a figurinista, a não ser
por motivos profissionais. Por maior que fosse sua curiosidade em descobrir de
que tipo de tramóia eles estavam falando, que daria vantagens financeiras a am-
bos, sua vontade de estar longe dali era maior.
— Tenho certeza de que você gostará do que eu tenho para dizer — Amy confi-
denciou.
— Garanto que até que o filme seja concluído e nós estejamos de volta, Nicole e
Shawn estarão nas capas de todos os tablóides.
O quê? Por pouco Nicole não traiu sua presença.
— Eu contei a Mame sobre a tal química que surgiu no set entre Shawn e Nico-
le, como você me mandou e, é claro, que apimentei o quadro.
— E sobre aquela nossa estratégia sobre Nicole estar se intrometendo em assun-
tos sobre a morte de Lucy?
— Também contei a ela. É claro!
— Acha que Nicole encontrou o bilhete que você colocou no bolso da jaqueta
de Lucy?
— Não tenho a menor dúvida.
— Publicidade é a alma do negócio. As pessoas adoram saber sobre as excentri-
cidades dos artistas. Se Marne considera Nicole uma diva, por que não aprovei-
tarmos para alimentar a hostilidade entre as duas? Faremos com que Nicole pa-
reça irascível e que Shawn a dome com seu amor. Será fácil. O sujeito do vinho
nem sequer está por aqui para atrapalhar. Farei o que tiver de ser feito para que
meu filme seja um sucesso. Não posso permitir que a morte de Lucy tenha um
destaque maior do que ele. Estou pensando, inclusive, em iniciar uma campa-
nha sobre o lançamento de Nicole como heroína de um novo seriado policial.
Shawn está me preocupando ultimamente, mas darei um jeito nele. Nossa parce-
ria sempre funcionou. Ele seduz as atrizes e as deixa no momento conveniente.
Com Nicole, eu consegui que ele concordasse com um pequeno flerte. Apenas,
de uma hora para outra, ele começou a mostrar sintomas de ura dilema moral.
Preciso ter uma longa conversa com ele.
Nicole estava pasma. Em comparação com Kane Ferris, Marne Pickett era um
anjo de candura.
— Não posso afirmar que sinto falta de Lucy — Amy declarou. — Lamento sua
morte, é claro, mas Nicole é mais tranqüila e sensata.
— Eu concordo. Acredito que ela, mais do que Lucy, fará desse filme um suces-

105
so. Seu jeito de ser desperta a simpatia das pessoas. Além disso, todos adoram
quando os personagens principais levam o romance das telas para a vida real.
— Não se sente mal por estar usando Nicole dessa forma? Tenho certeza de que
ela não sabia em que estava se metendo quando aceitou estrelar esse filme.
— Mal? Logo ela estará me agradecendo por ter subido os degraus da fama em
tempo recorde. Nicole não é do tipo de pessoa que quebra sob tensão. Talvez ela
e Shawn acabem se entendendo de verdade. Cuide dela e eu cuidarei de Shawn.
E também do irmão do sujeito do vinho. O quanto antes Nicole romper seus la-
ços com o vale de Napa, melhor será para nós.
— Harv já começou a cuidar do rapaz. Simon não tem olhos apenas para
Shawn. Meu assistente também lhe interessa. Eu sugeri que ele o convidasse pa-
ra sair esta noite e se desculpasse pelo modo rude como o tratou no outro dia.
— O que você acha de selarmos nosso pacto com um beijo?
— Kane puxou Amy pelos braços, e Nicole tapou os ouvidos. Para sua sorte, os
dois resolveram procurar um lugar mais confortável para darem seqüência à co-
memoração, e ela se apressou a sair do trailer.
— Você está diferente — Will disse ao vê-la atrás do volante, com a peruca e o
chapéu.
— Vou acabar enlouquecendo se não sair um pouco. Disfarcei-me para não ser
reconhecida pelos paparazzi.
— Sua saída poderá me custar o emprego.
— Ninguém me viu sair.
— Se você não voltar em uma hora, estarei enrascado. Haverá mudança de tur-
no.
Nicole prometeu voltar a tempo e acelerou. Não parava de olhar pelo espelho re-
trovisor com medo de estar sendo seguida, mas, aparentemente, Mame resolvera
lhe dar uma folga. Para que se esforçar, afinal, se estava obtendo informações
diretamente da fonte?
Amy e Kane Ferris não perderiam por esperar! No momento oportuno, ela os fa-
ria se arrepender por tudo que a estavam fazendo passar!
Ao se lembrar de sua primeira visita à vinícola Fritz, ela franziu o cenho. Em se-
guida, sorriu. Estava sentindo uma falta imensa de Derek. Não queria mais pen-
sar que estava acabado entre eles. Logo ele voltaria e tudo seria como antes. Me-
lhor do que antes.
Dez minutos depois, ela embicou o carro na entrada da propriedade. O expedi-
ente parecia ter acabado, mas havia uma luz acesa na casa que ficava atrás da

106
adega, sobre uma pequena elevação.
Não havia mais necessidade do chapéu nem da peruca. Tirou-os antes de descer
do carro. Estava abrindo a porta e hesitou. O que diria a Sarah Fritz? Que a mu-
lher omitira o fato de ter trabalhado com Liam e Elizabeth no passado e de ser
perita na manipulação de cobras?
De repente, Nicole se perguntou o que, afinal, estava fazendo ali. Por que Sarah
Fritz deveria lhe ter contado sobre sua participação naquele documentário? Só
poderia ser uma coincidência que ela soubesse lidar com cobras. Talvez devesse
esquecer tudo aquilo e se limitar a conversar sobre trivialidades para espairecer
sua mente enquanto tomava um vinho em companhia da outra mulher.
Sarah atendeu após a terceira batida.
— Olá, Nicole. Que gentil em vir me visitar. Estava justamente começando a
preparar algo para comer. Jante comigo. Tenho me sentido muito sozinha. Ulti-
mamente os negócios não andam bem. As pessoas não compram mais meu vi-
nho como antes.
— Obrigada pelo convite, mas não posso demorar.
— Ao menos tome uma taça de vinho. Entre e não repare na bagunça. Meu fi-
lho costuma espalhar suas coisas por aí.
— Ele é pequeno? — Nicole perguntou. Não se lembrava de ter ouvido Sarah se
referir antes ao filho. A mulher, na verdade, estava com um olhar estranho. Tal-
vez pelo excesso de vinho.
— Oh, não. E um moço alto e bonito que ainda não encontrou uma boa moça
para se casar e me dar netos. Mas você não está aqui para saber de minha vida,
não é? Deve ter vindo por uma razão.
Nicole pensara em desistir de seu propósito, mas como se Sarah Fritz parecia ter
lido seu pensamento?
— Na verdade, eu gostaria de lhe fazer uma pergunta. Trabalhou alguma vez
com Elizabeth Wells ou com Grace Hahndorf?
— Com Elizabeth. Foi depois que nos formamos na faculdade. Eu participei de
um de seus documentários.
— Eu assisti a esse documentário ontem. Não tive certeza se era você.
— Sim, era eu.
— E Grace?
— O que tem ela?
— Estou certa em pensar que vocês não gostam uma da outra?
— Sim. — Sarah passou as mãos pelo rosto.

107
— Está vendo esta cicatriz?
— Sim.
— Foi culpa de Grace. Ela bateu em meu carro. Vinha em alta velocidade e os
vidros ficaram estilhaçados. Mas você acha que ela respondeu pelo acidente?
Pessoas importantes como os Hahndorf têm amigos influentes. Eu já a detestava
pela perda de Elizabeth, a única amiga que tive. Depois ainda perdi também
meu marido.
— Seu marido?
— Eu entrei em depressão. Ele foi embora por causa de minha tristeza. Agora
só tenho meu filho e temo perdê-lo também. Ele se queixa que eu o prendo de-
mais.
Algo no olhar e no tom de voz da mulher fez Nicole se despedir.
— Ainda é cedo — Sarah respondeu. — Tome mais uma taça de vinho.
— Eu agradeço, mas realmente preciso me levantar cedo amanhã.
A atitude de Sarah mudou. De repente, ela se colocou entre Nicole e a porta.

— O que está pensando? Vem a minha casa, faz uma série de perguntas e não
pode me ceder cinco minutos de seu tempo?
Nicole fingiu não perceber a situação. Continuou andando e dizendo que o dire-
tor era exigente e que obrigava todos a se levantarem antes do nascer do sol. No
momento que apoiou sua mão sobre o trinco da porta, ouviu um estalido.
— Eu não faria isso em seu lugar.
Não foi preciso Nicole virar para trás para adivinhar que Sarah estava lhe apon-
tando uma arma. Com o frio metal em suas costas, ela foi obrigada a entrar em
um quartinho nos fundos da casa. As paredes estavam forradas de fotos. De um
bebê, de um menino e de um adulto. De Will. Era Will o filho de Sarah. As pe-
ças do quebra-cabeça acabavam de encaixar.
As surpresas, porém, ainda não haviam terminado. O quarto fora projetado no
formato de um "L". Sarah acendeu a luz naquele canto, e Nicole engoliu em se-
co ao deparar com gaiolas cheias de cobras.
— Sente-se.
Só havia uma cadeira no recinto. Sem escolha, Nicole sentou-se.
— A senhora é a mãe de Will.
— Sim. Ele certamente lhe falou a meu respeito.
— Não. Eu não tinha a menor idéia de que ele fosse seu filho.
— Eu o criei com todo meu amor e o que ele faz? Contraria meus desejos e vai

108
trabalhar para os Hahndorf.
— Sinto muito, Sarah.
— Você sente muito? Eu sinto muito! — A mulher bateu em Nicole com a coro-
nha, derrubando-a e se apressando a lhe prender os pés e as mãos com fita ade-
siva. — Você é pior do que a tal Lucy. Como pôde aconselhar meu filho a me
deixar e viver sua própria vida? Não bastou o que aquela mulher tentou fazer
com ele? Comecei a estranhar seus atrasos. Desconfiada de haver uma mulher
por trás de suas desculpas de ter de dobrar suas noites de plantão, eu o segui na-
quela noite. Descobri que a maldita atriz estava tentando seduzi-lo e resolvi
matá-la provocando um acidente com o carro de Grace. Mas ela escapou.
Simon estava certo sobre Sarah Fritz. Além de mentirosa, ela era completa-
mente louca.
— Eu poderia ter voltado para casa e pegado uma de minhas cobras, mas não
quis perder tempo.
— Sarah prosseguiu. — Não podia esperar que a mulherzinha tornasse a dar o
bote. Tive, então, uma idéia. Fui até o viveiro de Andy Burrow e abri a gaiola
para pegar emprestada sua cobra marrom. — Ela deu uma gargalhada nesse mo-
mento. — O sujeito acredita que foi Hannah quem deixou a serpente escapar,
mas ele gosta da garota e esse é um segredo que não revelou a ninguém. En-
quanto isso, todos preferem pensar que a morte da atriz foi um acidente.
Nicole se manteve em silêncio durante todo o tempo. Qualquer palavra que dis-
sesse poderia ser mal-interpretada e apressar seu desfecho.
— Por que voltou aqui? Essa sua mania de se meter na vida dos outros, de falar
como uma psiquiatra, me obriga a tomar uma atitude. Não posso permitir que
tente colocar meu filho contra mim novamente. Detesto mulheres como você e
Grace Hahndorf que se julgam melhores do que eu. Do que Will.
A visão de Nicole estava turva por causa do golpe, mas deu para ver que Sarah
estava colocando luvas. Era chegado seu fim. Uma vida cheia de realizações e
de sonhos ainda por serem realizados. Agora não haveria mais tempo...
— Venha, Lizzie. Eu tenho um presente para você. — Sarah estava rindo, de-
mentada.
— Eu dei o nome de Elízabeth a mais bonita e mortífera de minhas serpentes.
Nicole fechou os olhos. Uma porta bateu e um homem disse em voz alta:
— Mãe, cheguei.
Oh, graças a Deus!
Nicole abriu os olhos no instante exato em que a cobra atacou o rosto de Sarah.

109
Ela deu um grito e soltou-a. A cobra caiu no chão com um baque e rastejou em
direção a Nicole que tornou a fechar os olhos, incapaz de suportar a idéia de sua
morte iminente.
Poderia ter passado um segundo, cinco segundos, talvez mais, até que um tiro
fosse disparado.
— Jesus! O que é isto? Mãe, o que você fez? — Will se colocou de joelhos e lar-
gou a arma. A serpente estava morta a pouca distância de Nicole.
— Will! Apanhe o soro! Depressa! — Sarah gritou. — Eu fui picada. E nós pre-
cisamos nos livrar dessa mulher!
Nicole olhou para o rapaz e sua mãe. Após alguns segundos de aturdimento ele
se levantou, foi até um armário e pegou um estojo de primeiros socorros. Um
minuto depois, aplicou o soro na perna de sua mãe.
— Bom menino. — Sarah sorriu e apontou para Nicole.
— Agora só falta resolvermos um último problema.
O corpo de Nicole estava banhado por um suor frio. Um estremecimento a per-
correu dos pés à cabeça e ela cogitou desmaiar de horror. O que esperava? Will
fora controlado pela mãe durante toda sua vida. Seus olhos encheram de lágri-
mas. Não havia escapatória. Estava completamente indefesa em um lugar reclu-
so, em poder de um jovem incapaz de reagir à possessão de uma mulher insana
e perigosa.
Devagar, Will se apoderou do rolo de fita adesiva. Antes que Nicole pudesse
adivinhar sua intenção, ele segurou os punhos da mãe e atou-os.
— O que está fazendo? — Sarah gritou. — Pare com isso! Não seja tolo! Você
fez tolices sua vida inteira. Quando aprenderá a me escutar?
— Não diga mais nada, minha mãe. Por favor. Você precisa de ajuda.
Sarah se pôs a berrar para que o filho a soltasse. Ele tornou a se ajoelhar e reti-
rou a fita adesiva dos tornozelos de Nicole. As lágrimas deslizavam por seu ros-
to.
— Eu lamento muito.
— Eu também. — Nicole abraçou Will e com um grito desvairado Sarah se lan-
çou sobre eles.
— Por que, mãe? Por quê? — Com infinita compreensão e paciência, o rapaz
fez a mãe se sentar.
— Porque eu não quero que mulheres más o façam sofrer. Eu só quero seu bem.
Will respirou fundo e fez um sinal para Nicole sair. Do lado de fora, trancou a
porta, e tomou a única medida que poderia tomar nas circunstâncias: tirar o fo-

110
ne do gancho e chamar a polícia.
Sarah Fritz foi levada por uma das viaturas para a delegacia. O detetive Von
Doussa permaneceu no local, inquirindo Nicole sobre os detalhes da ocorrência.
Ela explicou tudo, desde o momento de sua primeira visita à vinícola Fritz com
Derek, até sua decisão de tornar a procurar Sarah naquela noite.
— Você suspeitava de Sarah Fritz?
— Não. Eu tinha algumas dúvidas sobre seu modo de agir, mas jamais a liguei
à morte de Lucy. Não me ocorreu que Will fosse seu filho. De posse desse co-
nhecimento, talvez eu pudesse ter descoberto antes a verdade. Will havia me
contado que sua mãe era terrivelmente possessiva e controladora. As coisas que
ela me contou sobre Grace Hahndorf também deveriam ter me alertado. Mas o
que me motivou a procurá-la hoje foi reconhecê-la entre os protagonistas do do-
cumentário sobre Elizabeth Wells que eu vi ontem.
O detetive puxou o chapéu sobre a testa.
— Você nunca acreditou na hipótese de um acidente, não é?
— Não.
— Por quê?
— Não sei. Talvez eu seja intuitiva ou dona de uma curiosidade aguçada.
— Você fez um bom trabalho. Eu me sentiria honrado em tê-la em minha equi-
pe.
— Obrigada, mas eu estou ansiosa por voltar para o vale de Napa e continuar
gerenciando a vinícola Malveaux.
Um pensamento atravessou a mente de Nicole. E se o emprego não estivesse
mais a sua disposição? E se estivesse tudo realmente acabado entre ela e Derek?
Ele não entrara em contato nem sequer uma vez desde que partira para explorar
as possibilidades de fechar um novo negócio na costa oeste da Austrália.
— Talvez surjam novas questões durante o processo e eu precisarei ter seu nú-
mero de telefone. Há mais algum além do celular que anotei em sua ficha quan-
do conversamos sobre a morte de Lucy Swanson?
Nicole confirmou o número do celular apenas. Não se sentia à vontade, nas cir-
cunstâncias, para fornecer o telefone da vinícola.
— O que deverá acontecer a Sarah Fritz?
— Cumprirá pena em uma instituição psiquiátrica pelo resto de sua vida, prova-
velmente. Mas não se preocupe com ela nem com o filho. Will é um bom rapaz.
— Ele salvou minha vida.
— Quer uma carona de volta ao acampamento? — o policial ofereceu.

111
— Eu vim de carro — Nicole respondeu. — De qualquer forma, obrigada.
Ela não conseguia parar de pensar em Will e nos eventos da noite. Por pouco
não perdera a vida da mesma maneira trágica que Lucy Swanson. Enfim, talvez
devesse entrar no carro, abrir as janelas e dirigir de volta para a propriedade dos
Hahndorf. Sairá dizendo a Will que precisava arejar a cabeça. Por pouco não a
perdera e a sua vida.
Foi um alívio encontrar Simon no trailer quando abriu a porta. Shawn também
estava lá. Os dois estavam bebendo vinho em seu sofá.
— O que há com você, Branca de Neve? — Simon pestanejou genuinamente
impressionado com a palidez de Nicole. — Parece transtornada.
— Vocês não irão acreditar.
— Conte primeiro. Depois nós lhe diremos se acreditamos ou não — pediu
Shawn.
— Eu sei que vou acreditar — declarou Simon. — Porque o que temos para
contar a você também é inacreditável.
Nicole não se espantou com a notícia. Depois do episódio daquela noite, nada a
chocaria. Surpreendeu-se, contudo, ao descobrir que Marne Pickett estava a ca-
minho para fazer uma entrevista com os dois.
— Agora?
Simon e Shawn assentiram.
Marne Pickett teria duas manchetes para publicar pelo preço de uma. Nicole
não conseguia imaginar qual seria o efeito do impacto que eles causariam com a
revelação. O mais provável era que Kane fosse desistir do projeto antes que o
sol tornasse a se pôr.
Uma batida à porta e Nicole foi atender. Shawn e Simon haviam autorizado a
entrada da repórter no acampamento e ela se encaminhou diretamente ao trailer.
— Céus? O que houve com você?
Nicole teve de rir diante da consternação inesperada da outra.
— Você vai adorar o que eu tenho para lhe contar, Marne. Esta será uma das
poucas vezes em que jogaremos no mesmo time. Mas antes tenho um acordo
para lhe propor.
Marne ergueu uma sobrancelha.
— Que acordo?
— Quero que pare com qualquer tipo de publicidade negativa a meu respeito.
A outra ficou parada, como se estivesse considerando a possibilidade. Shawn
cruzou os braços.

112
— Faça o acordo com ela ou não conseguirá nada de mim.
— Feito — Marne decidiu de imediato.
O relato de Nicole foi entrecortado por suspiros e gemidos de todos os presentes
no trailer. Depois foi a vez de Shawn contar sua história. Nicole cogitou se os
olhos de Marne poderiam brilhar mais de excitação.
— Fantástico! Obrigada. Vocês não têm idéia de quantas revistas serão vendi-
das. Estão preparados para as conseqüências, no entanto?
— Sim — Shawn respondeu. — Estou cansado de fingir ser alguém que não
sou e não seria capaz de prejudicar Nicole, uma pessoa de quem aprendi real-
mente a gostar.
Na manhã seguinte, Nicole acordou decidida a colocar seu plano em prática.
Kane e Amy queriam que o mundo pensasse que ela era difícil? Excêntrica e
exigente como as divas?
Amy e Harv se entreolharam ao vê-la recusar a roupa que lhe ofereceram.
— Mas é esta que deverá usar na próxima cena!
— Eu já disse que não quero! Vocês são surdos?
— Ei, Nicole. Nós temos de seguir ordens...
— A partir de hoje exijo que me chamem de Srta. Sands. E terão que fazer o
que eu determinar. Eu darei as ordens!
— Não é assim que funciona. Quem manda aqui é Kane — Amy retrucou.
O que a figurinista estava pensando? Que o fato de ter dormido com o produtor
lhe dava vantagens pessoais? Nicole quase riu alto ao vê-lo entrar no trailer.
— Algum problema?
— Sim. Recuso-me a ser filmada com esta roupa. E feia demais.
— Está bem. Isso pode ser arranjado.
— Também vou querer que meu trailer seja limpo todos os dias e enfeitado com
rosas. E que a geladeira seja abastecida e que eu tenha um estoque de velas per-
fumadas a minha disposição. Ah, e também vou querer açúcar mascavo no lu-
gar do açúcar comum. E lençóis brancos de algodão egípcio.
Kane balançou a cabeça.
— Nicole, o que deu em você?
— Sou uma estrela. — Ela moveu os ombros com provocação.
Procedeu dessa forma pelo restante do dia. A razão de seu novo comportamento
não tardaria a ser esclarecida. Ela chegou ao entardecer pelo correio. No mo-
mento que Nicole abriu o pacote que lhe foi entregue por um segurança, e se
pôs a ler a última matéria escrita por Marne Pickett, três das maiores revistas

113
dos Estados Unidos a estariam imprimindo.
Cobras, trapaças e outras surpresas sinistras fizeram suas aparições no set do
novo filme que está sendo produzido por Kane Ferris, em terras australianas,
sobre a vida e a morte da conservacionista Elizabeth Wells, representada pela
talentosa Nicole Sands.
Segundo Nicole, Lucy Swanson foi realmente assassinada, como ela suspeitara
desde o primeiro instante. A polícia confirmou que a dona da vinícola Fritz,
Sarah Fritz, matou Lucy por um medo obsessivo de que seu filho, segurança
na vinícola Hahndorf estivesse apaixonado pela atriz. Nicole foi mantida em
cativeiro pela assassina e também ameaçada de morte. Surpreendentemente,
foi Will, o filho da assassina, que a salvou. A sra. Fritz foi presa e levada a um
manicômio judiciário.
O horror, no entanto, não termina aqui. Soubemos que existe um acordo entre
o produtor Kane Ferris com o ator Shawn Kane para garantir o sucesso de
seus filmes. Shawn me procurou e decidiu trazer esse esquema a público. Ele
está cansado de fingir ser quem não é. O herói romântico que se apaixona pe-
las atrizes com quem contracena e vive com elas um sonho cor-de-rosa que se
desfaz logo após o lançamento dos filmes.
Shawn resolveu pôr um fim nessa farsa de anos quando Kane tentou convencê-
lo a se casar com Nicole Sands em troca de um novo contrato milionário que
lhe garantiria a atuação em mais três filmes. Ele disse ao produtor que pre-
cisava pensar a respeito antes de dar uma resposta. Uma conversa com Simon
Malveaux, o guarda-costas de Nicole Sands, e mestre em jiu-jitsu, o convenceu
a assumir sua real sexualidade. "Simon tem sido um bom amigo. Ele me
convenceu de que eu valho mais do que uma imagem. Estou farto de viver uma
mentira e de permitir que outros enriqueçam a minha custa. Sou gay e estou
orgulhoso por finalmente me assumir".
Eu, Marne Pickett, aplaudo Shawn por sua coragem e aplaudo Nicole Sands
pelo seu talento e por sua persistência em esclarecer a morte criminosa de Lu-
cy Swanson. Desejo sorte a ambos.
Nicole olhou ao redor. O primeiro a se pronunciar foi Andy Burrow, declarando
seu repúdio ao comportamento do produtor. Liam e Grace tinham sido avisados
por Nicole sobre seu depoimento, e também estavam presentes, ao lado de Han-
nah, que Nicole viu sorrindo genuinamente pela primeira vez.
— Eu sempre soube que Sarah tinha problemas, mas nunca pensei que ela fosse
capaz de matar alguém — disse Grace. — Lamento o que houve com você.

114
— Eu estou bem. Sinto pelo filme que provavelmente será cancelado.
— Ele nunca deveria ter sido escrito — Liam confessou. Grace ergueu os olhos
para o marido e beijou-o,
— Eu te amo, Liam Hahndorf.
— Eu te amo, Grace Hahndorf.

Nicole se despediu com uma sensação de dever cumprido. Era penoso pensar
que Liam estava seriamente doente, mas ao menos ela conseguira ajudar o casal
a se reconciliar e a valorizar o amor acima de tudo.
A alguns metros de distância, Kane e Shawn discutiam. O produtor acusava
Shawn de traidor. Shawn se defendeu dizendo que o outro só se importava com
dinheiro e que não tinha escrúpulos para arruinar a vida de quem ele encontras-
se em seu caminho
— Eu sofri. Fiona sofreu. Estou farto de ser um joguete. Não podia admitir que
destruísse a chance de Nicole encontrar a felicidade ao lado do homem que
ama.
— Cale-se, Shawn! Não sabe o que está dizendo. Gastei uma fortuna para torná-
lo um grande astro. Sem mim, você não seria nada.
— Não, Kane. Você não fez nada por mim. Tudo o que fez foi por si próprio.
— Fora daqui! — Kane gritou. — Está despedido!
— Não. Eu estou me demitindo.
— Eu também — disse Nicole. — Como pôde fingir tanto? Não foi um amigo.
Não me protegeu contra os paparazzi. Ao contrário. Você e Amy estavam ofere-
cendo informações a meu respeito.
— Tem noção do que está fazendo? — Kane esbravejou. — Eu poderia trans-
formá-la em uma grande estrela. Pretende fazer a loucura de desprezar o dinhei-
ro e a fama para continuar vendendo vinhos?
— Sim. Não sou louca como diz. Absurdo foi esse seu plano de me fazer pare-
cer uma lunática, mandando Amy colocar um bilhete no bolso do casaco de Lu-
cy. — Nicole se dirigiu a Amy nesse instante. — Um fato ainda me intriga.
Também foi de propósito que entregou aquele pacote a Harv na cantina sob me-
us olhos?
Amy baixou a cabeça.
— Harv viu uma cobra no acampamento depois que Lucy morreu. Não estáva-
mos representando. Compramos o soro porque estávamos com medo.

115
Shawn, Simon e Nicole se puseram a caminho do trailer. Kane gritou para que
todos voltassem. Nem sequer a equipe técnica atendeu o chamado.
Uma garrafa de champanhe foi aberta em comemoração ao fim das amarras e ao
início de uma nova fase em suas vidas. Shawn estava abraçando Nicole quando
a porta foi aberta.
— Alguém pode me explicar o que está acontecendo?
Nicole olhou por cima do ombro de Shawn e viu Derek. O ator soltou-a e se en-
caminhou para a saída. Ao passar por Derek, aconselhou-o a não deixá-la esca-
par por nada no mundo.
Nicole não pensou em nada. Correu para a porta e se atirou nos braços de De-
rek. Ele a ergueu e girou-a em seus braços. Antes que o irmão pudesse cumpri-
mentá-lo, colocou Nicole de volta ao chão e disse:
— Antes das necessárias explicações, quero que vejam quem eu trouxe comigo.
Marco subiu no trailer e deu um beijo em Nicole. Simon olhava para ele, sem
conseguir falar.
— Senti sua falta — Marco confessou.
— Eu também a sua — disse Simon.
— O que acha de voltarmos para casa e recuperar o tempo perdido? Deixamos
Derek e Nicole resolver seus problemas e resolvemos os nossos.
Simon não precisou de mais de dez minutos para arrumar as malas. Assim que
ficou a sós com Nicole, Derek mencionou as publicações que lera nos jornais e
revistas sobre ela e Shawn Kane. Nicole contou toda a história. Ao término, De-
rek se levantou.
— Venha comigo. Nicole pestanejou.
— Você disse que ficaria fora por dois dias. Acabamos de nos encontrar após
uma semana de separação e você só tem isso para me dizer?
— Confie em mim.
— Como posso confiar? Você foi embora e não ligou nem sequer uma vez!
Quase morri de preocupação.
— Você logo saberá o motivo.
— Não. Não irei a nenhum lugar antes que você me diga o que aconteceu.
Derek beijou-a. E o beijo foi tão bom que Nicole perdeu a noção do tempo e do
espaço. Mas apenas por alguns segundos.
— Dê-me uma chance — Derek implorou.
— Uma última chance. Prometo que nunca mais a magoarei.
Derek estaria pronto finalmente para um relacionamento? O coração de Nicole

116
queria dar uma nova chance ao amor. Não diziam, afinal, que era melhor ter
amado e perdido do que nunca ter vivido um amor?
— Está bem. Eu vou confiar em você.
— Pode pedir uma licença de uns dois dias?
— Posso ir com você onde quiser, por quanto tempo quiser. Meus dias de atriz
de cinema acabaram.
A surpresa que Derek fez a Nicole também foi digna de uma cena de filme. Ele
havia contratado uma limusine para buscá-la e levá-los ao aeroporto.
— A você! — Derek abriu uma garrafa de champanhe e brindou, emocionado.
— A esta semana de revelações! A sua persistência na busca da verdade. Sem-
pre afirmou que a morte de Lucy Swanson não foi acidental, embora ninguém
acreditasse em você.
— Exceto seu irmão. Ele me foi de grande valia.
— Ele gosta de você.
— Simon é um bom rapaz. Um excelente amigo.
— Sim, ele é. — Derek se inclinou e beijou-a no rosto. Em seguida colocou as
taças de lado e segurou as mãos de Nicole. — Eu sinto muito. Sei que errei.
Mas peço que considere meus sentimentos quando me virou as costas naquele
quarto de hotel, antes que eu tivesse uma chance de explicar. Sou humano. Fi-
quei com ciúmes quando você começou a falar de Andrés. Comportei-me como
um adolescente. Não tinha coragem de assumir nosso relacionamento porque vi-
via me questionando se o que estávamos sentindo um pelo outro era amor de
verdade, ou uma fantasia. Um sonho de que pudesse ser real.
— Nunca foi uma fantasia para mim. No início, talvez. Não é dessa forma que
todos os relacionamentos começam? Você encontra o homem ou a mulher de
seus sonhos, e se põe a tecer expectativas. Nos primeiros tempos, tudo é perfei-
to. Você acha que conseguiu tudo com que sempre sonhou. Então, quando me-
nos se espera, a realidade se impõe, e você descobre que nada era tão perfeito
quanto imaginava. O interessante de tudo isso é que o verdadeiro amor nasce
dessa mesma base. Você descobre que ama seu parceiro, embora ele não seja
perfeito. Eu tive medo do que aconteceu entre nós naquela noite. Ocorreu-me
que você talvez nunca fosse conseguir enxergar além da fantasia.
— O que vivemos juntos me deu a chance de conhecê-la em seu íntimo. Consi-
dero isso uma bênção. Entre nós, nunca houve nem haverá fingimento. Eu pre-
tendia lhe dizer palavras bonitas para convencê-la a me perdoar. Você as disse
melhor do que eu poderia jamais dizer.

117
— Os homens preferem ação! — Nicole brincou. — E se suas ações falam tão
alto quanto minhas palavras, você está perdoado.
As taças tilintaram em um novo brinde.
A limusine os deixou no aeroporto e em poucos minutos eles estavam embar-
cando no avião particular dos Malveaux.
— Pensei que você tivesse cedido o avião aos rapazes.
— Não. Eu lhes reservei dois lugares em um vôo da Virgin Atlantic, na primei-
ra classe.
— Como fez para encontrar Marco?
— Simplesmente fui atrás dele quando percebi que não haveria outra maneira
para ficamos a sós.
A bordo, entre beijos e mais champanhe, Derek disse que tinha outra surpresa
para Nicole. O piloto acendeu as luzes que pediam para os passageiros afivela-
rem o cinto e endireitarem as poltronas. Eles estavam se preparando para aterris-
sar em um local paradisíaco.
Uma lancha veloz os levou a um iate. O mais lindo e luxuoso que Nicole já vira.
A tripulação os recebeu, todos trajando smokings, e os conduziram a uma mesa
arrumada para duas pessoas. O céu estava se tingindo de laranja, rosa e verme-
lho para se despedir do sol.
— Seja bem-vinda ao Grande Recife de Corais.
— É maravilhoso. Estou sem palavras, Derek.
— Fico contente que você esteja feliz. — Ele a beijou. — Isto é apenas o come-
ço.
Espere até ver o que mais eu preparei para nossa primeira vez...
Nicole se levantou e estendeu a mão para ele.
— O que está fazendo?
— O que acha de deixarmos o jantar para depois do amor?
Derek se levantou com um sorriso e eles seguiram, abraçados, para a suíte prin-
cipal do iate. Derek a mandara enfeitar com rosas em um cenário romântico per-
feito para finalmente pedir a mulher de sua vida em casamento.

Fim

118
distribuído pela comunidade e Grupo ARE
http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=98333634

119
���������������������������������������������������������������������������
���������������������������������������������������������������������������������
�����������������������������������������������������

Você também pode gostar