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“PAGAREI 1 MILHÃO DE DOLARES PARA VOCÊ LOCALIZAR A MINHA

MULHER”
Ao aceitar a proposta do empresário Adam Webster, o detetive particular
Michael Sullivan achou que mulher nenhuma valesse tanto. Mudou de ideia
logo que encontrou a bela Lily Webster e seu filho de três anos escondidos em
Nova Orleans.
Michael ouvira historias de maus tratos cometidos por Adam, que em seu
ciume obsessivo chegara a tramar a morte do proprio filho! Então ele resolve
passar para o lado de Lily e ajuda-la a safar-se da perseguição, mas ambos
escondem um do outro um segredo fundamental. Como esperar que o amor
nascente entre os dois pudesse florescer no meio de mentiras?

Disponibilização: Marisa Helena


Digitalização: Marina
Revisora: Laura
Copyright © 2002 by Metsy Hingle Originalmente publicado em 2002 pela
Silhouette Books, divisão da Harlequin Enterprises Limited.
Todos os direitos reservados, inclusive o direito de reprodução total ou parcial,
sob qualquer forma.
Esta edição é publicada através de contrato com a Harlequin Enterprises
Limited, Toronto, Canadá. Silhouette, Silhouette Desire e colofão são marcas
registradas da Harlequin Enterprises B.V.
Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com
pessoas vivas ou mortas terá sido mera coincidência.
Título original: Behind the Mask
Tradução: J. Alexandre Editora e Publisher: Janice Florido Editora: Fernanda
Cardoso Editoras de Arte: Ana Suely S. Dobón, Mõnica Maldonado Paginação:
Dany Editora Ltda.

Rua Paes Leme, 524 - 10" andar CEP 05424-010 - São Paulo - Brasil
EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.
Copyright para a língua portuguesa: 2003 EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.
Impressão e acabamento: RR DONNELLEY AMÉRICA LATINA Tel.: (55 11)
4166-3500
CAPÍTULO I

Eu lhe pagarei um milhão de dólares para que localize a minha mulher.


— Tudo bem, Webster — replicou Michael Sullivan do outro lado da linha
telefônica. — Você conseguiu despertar meu interesse.
Um sorriso de satisfação vincou o rosto de Adam Webster, em resposta à
mudança de atitude do ex-policial a quem telefonava.
— Fico contente por ouvir isso — disse, passeando o olhar pelo perfil dos
prédios de Miami, que seu conjunto de escritórios numa cobertura
proporcionava.
Estava contente, mas não surpreso. Sabia, há muito tempo, o valor do
dinheiro, mesmo para um sujeito como Sullivan. Um homem que, de acordo
com suas fontes de informação, colocara-se entre os melhores e mais brilhan-
tes investigadores da polícia de Houston, até cinco anos atrás, quando a morte
abrupta de seu parceiro de trabalho o levara a pedir demissão. Autônomo,
Sullivan vivia agora como detetive particular, guarda-costas ou caçador de
recompensas, conforme as circunstâncias.
Diziam que ele era matreiro como cobra e duas vezes mais perigoso.
Também teria o faro de um cão de caça para seguir e desentocar alguém que
não quisesse ser encontrado. Era com essa última qualidade que Webster
contava.
— Foi difícil entrar em contato com você, Sullivan — Adam expressou seu
desprazer. — Minha secretária lhe deixou diversos recados.
— Estive fora da cidade, atendendo a um cliente. A verdade é que você
só me achou no escritório porque vim apanhar alguns relatórios.
— Entendo, mas não estou habituado a ser ignorado, Sullivan.
— Ninguém o está ignorando, Webster. Mas, já que o tempo urge, vamos
esquecer minhas maneiras indelicadas. Gostaria de saber por que quer me
pagar um milhão de dólares para encontrar sua mulher.
— Porque ela está desaparecida — afirmou Webster, aborrecido com a
insolência do ex-policial. Mas sabia que teria de engolir esse atrevimento, se
quisesse ter de volta Elisabeth e o disquete que ela roubara. Olhou para a foto
dela na moldura sobre a mesa. — Parece que sua especialidade é localizar
pessoas, por isso desejo contratá-lo para achar minha mulher.
— Há quanto tempo ela desapareceu?
— Seis meses. — E há seis meses a mágoa o consumia. Webster não só
detestava erros como se recusava a tolerá-los. Havia cometido um erro grave
ao subestimar Elisabeth.
Nem em um milhão de anos ele acreditaria que a meiga, dócil Elisabeth
— a quem havia alimentado, vestido e moldado até transformar numa esposa
digna dele — teria coragem de desafiá-lo. Ou, pior, dopá-lo, roubar o disquete
guardado no cofre e fugir. Mas a raiva maior era dos seguranças particulares
que guardavam Elisabeth na ocasião e, depois, dos detetives a quem pagara
altas somas para encontrá-la. Por duas vezes, quase a tinham pegado, mas ela
conseguira escapar. Não por muito mais tempo, Adam Webster prometeu a si
mesmo. A rebelião da esposa estava prestes a terminar, nas mãos do
competente Sullivan.
— Ainda está aí, Webster?
— Sim, sim — ele resmungou, percebendo que mantivera uma longa
pausa. — O que você disse?
— Perguntei se você registrou o desaparecimento na polícia.
— Não, não quero a polícia envolvida no caso.
— Por que não?
— Publicidade negativa. Além disso, dispenso qualquer boletim de
ocorrência envolvendo minha mulher.
— Pelo que sei — Sullivan ironizou —, não é crime uma esposa
abandonar o marido. Acontece a toda hora.
— Não, mas subtrair dinheiro e jóias de meu cofre e raptar meu filho são
crimes, sim. Se eu avisasse a polícia, provavelmente expediriam um mandado
de busca contra ela. Prefiro resolver o assunto a minha maneira, de acordo
com meus sentimentos.
— Por que não contou logo que seu filho foi levado? — Sullivan quis
saber.
— Eu já ia contar — Adam mentiu, admirado com o interesse do
investigador por uma criança. Ele próprio não ligava para o herdeiro. Seus
problemas com Elisabeth tinham começado com o filho. Lamentava não ter
insistido para que ela abortasse, no começo da gravidez. Agora, a questão se
resumia a encontrar a esposa e o maldito disquete. Teria ela alguma idéia do
conteúdo dos arquivos gravados? Ou causaria um mal ainda maior, passando o
registro eletrônico a mãos erradas?
— Qual a idade de seu filho?
Adam franziu a testa. Tinha de calcular.
— Quase três.
— Deve ser duro para você, sentir falta do garoto por tanto tempo.
— E verdade — Adam respondeu o que Sullivan esperava ouvir. — Quero
que você encontre minha família. Pode começar imediatamente. Se vier ao
meu escritório, fornecerei outras informações e lhe darei um adiantamento
pelos seus serviços. Daqui a uma hora, está bem?
— Não posso ir hoje.
— Por que não? — Adam rebateu, novamente contrariado. Afinal, estava
acostumado a mandar.
— Porque estou no meio de outro caso.
— Esse outro cliente lhe ofereceu um milhão?
— Não.
— Então, qual o problema? Indique um colega e passe adiante o serviço.
— Não é assim que eu trabalho — retrucou Sullivan em tom frio e duro.
— Costumo honrar meus compromissos. Estou indo viajar. Na volta, eu ligo.
Então, se você ainda estiver interessado em me contratar, conversaremos.
Ao som do telefone sendo desligado, Adam bateu o receptor com raiva.
"Filho da mãe arrogante", resmungou, de punhos cerrados. Sullivan pagaria
pela insoência, assim que localizasse Elisabeth. O empresário dirigiu-se ao bar
de sua sala e serviu-se de uma dose de uísque com gelo, num copo de cristal.
Estremeceu sob o fogo do primeiro gole. Depois, caminhou pelo escritório
ultramoderno em cuja decoração havia gastado uma pequena fortuna.
Ignorando o verniz polido que cobria a mesa, ali depositou o copo e apanhou a
fotografia da esposa. Focalizou longamente a pele delicada, os sedosos cabelos
louros, o pescoço esguio. Tomou o segundo gole sem tirar os olhos da
moldura.
Elisabeth lhe pertencia, raciocionou, sob o apelo da cobiça que sempre
acompanhava seus pensamentos sobre a mulher. Mesmo aos quinze anos,
inocente e pouco tratada, ela era capaz de lhe tirar o fôlego ao provocar
intensa excitação. Valia muito mais do que a mãe dela, por isso Adam a
resgatou da própria família e cuidou da moça. Não fosse por ele, Elisabeth
estaria envolvida com drogas e com os garotos punks das ruas de Miami antes
de completar dezesseis anos.
Mas Adam Webster a havia salvado de uma vida sem perspectivas. Tinha
provido sua educação, dado muitos presentes, incluindo roupas caras, e
casado com ela tão logo Elisabeth atingiu a maioridade legal. Muitas mulheres
fariam qualquer coisa para desfrutar igual chance ou partilhar a cama com o
empresário. Ele se cuidava bem. Parecia vinte anos mais jovem, o corpo em
perfeita forma. A freqüentadora de uma boate não o chamara de garanhão?
Enfim, de toda a gama de escolhas possíveis, ele elegera Elisabeth.
Tão jovem, doce e suave. Adam suspirou ao recordar a primeira noite
com Elisabeth, o primeiro toque em sua pele quente e macia. A lembrança
tornou-se dolorosa, e o empresário colocou o copo de uísque sobre a
escrivaninha enquanto discava o número de telefone de uma casa noturna de
Miami.
— Kit, é Adam. Como vai aquela nova garota, a jovem loura com sotaque
sulista que você me apresentou na semana passada?
— Deve estar falando de Annabelle — disse Kit, com a voz viciosa de um
personagem da noite. — Ela vai bem. Um pouco tímida, ainda, mas os clientes
gostam dela. Aprende rápido e se empenha em agradar. Deve chegar aqui em
cinco minutos.
— Mande-a para minha cobertura, assim que ela entrar. — Adam
antecipou o prazer de possuir a bonita garota. — E arranje uma substituta para
hoje à noite. Annabelle vai ficar ocupada.
Empunhando a bebida, Adam alcançou o quarto anexo ao escritório, a
fim de esperar pela visita. Ali também havia uma foto de Elisabeth, e o
empresário a saudou elevando o copo de uísque, em atitude de desprezo.
— Agora falta pouco, querida — disse em voz alta. Estava decidido que
usaria os serviços de Sullivan e, uma vez recuperado o disquete, daria um jeito
para que Elisabeth nunca mais o desafiasse.
Quanto a Sullivan, este necessitava de uma boa lição em matéria de
respeito. Lição que Adam pretendia ministrar pessoalmente.
— De acordo com a ficha criminal — disse o patrulheiro de ombros largos
— o nome é Bill "Touro" Dozier, procurado em três Estados por assalto,
estupro e homicídio.
Michael esquadrinhou a cena: as luzes piscantes das viaturas e da
ambulância, o brilho dos anúncios luminosos da grande loja 24 horas,
anunciando bebidas e alimentos, o escuro trecho de rodovia povoado de poli-
ciais e paramédicos presentes à cena do crime. Nada de muito novo. Quando
três curiosos avançaram a linha de isolamento para espiar dentro da loja,
sentiu vontade de dizer-lhes que se afastassem e deixassem a polícia
trabalhar. Mas ele não era mais um policial, lembrou-se em tempo. Era apenas
uma testemunha. Um pouco mais, na verdade, já que imobilizara Dozier e
chamara a polícia.
— Rapaz, ele é peixe graúdo! — exclamou o patrulheiro enquanto dois
policiais estaduais da Flórida saíam da loja segurando o meliante de cabeça
raspada e tatuado. Michael o havia flagrado quando tentava violentar a
funcionária do estabelecimento.
— Bem, você conhece o ditado. Quanto mais alto se está, maior é o
tombo.
Aquele criminoso não cairia fácil, Michael admitiu. Só fora dominado após
uma dúzia de ameaças e dois tiros. E mesmo com dois buracos no corpo,
sangrando, ele ainda tinha forças para caminhar até a segunda ambulância
chamada ao local.
Michael pensou na aterrorizada mulher que ele tinha salvado, pouco
tempo antes. Lembrou-se do rosto desfeito e das roupas arrancadas. Apertou
os dedos contra a palma da mão direita e desejou estreitar do mesmo modo o
pescoço daquele monstro.
— Como está a garota?
— Viva, graças a você. Foi sorte ter você por perto. Segundo a ficha, o
"Touro" espetou uma faca na última mulher que estuprou. Num lugar afastado,
tarde da noite, as chances da funcionária eram mínimas.
— Ele devia contar com isso para agir — Michael observou, ainda
surpreso com os últimos acontecimentos.
Se não estivesse tão determinado a voltar a Miami, naquela noite, nunca
teria percorrido a rodovia e parado na loja iluminada para um café. Pela
primeira vez em quatro dias, desde a conversa com Adam Webster e a
perspectiva inédita de ganhar um milhão de dólares, ele concedera a si mesmo
uma folga. Caso acreditasse no destino, pensaria que alguma coisa, além da
necessidade de café, o trouxera para a beira da estrada, naquela noite em
particular.
Mas ele aprendera a descrer de qualquer força superior, desde que seu
parceiro de trabalho tinha morrido em seus braços, cinco anos antes. Julgava-
se o responsável exclusivo por suas escolhas.
— Como eu disse, ela teve sorte por você resolver tomar um café.
Michael duvidava de que a mulher, naquele momento, se sentisse uma
felizarda.
— O que disseram os paramédicos? Ela ficará bem?
— O agressor produziu dois belos hematomas nos pulsos dela, mas nada
que não possa ser curado.
Talvez se curasse fisicamente, pensou Michael. Psicologicamente, era
outra história. Carregaria o trauma pelo resto da vida.
— A mulher tinha a foto de um bebê colada na caixa registradora.
—Sim, a polícia local diz que ela tem uma filha de seis meses.
Aparentemente, o marido está sem emprego e ela decidiu voltar a trabalhar.
Aceitou esse trabalho noturno porque paga melhor e permite que ela passe o
dia com seu bebê. Começou há apenas duas semanas.
— Pena que não apontei o revólver para a testa do "Touro" e não fiz
economia para o governo, poupando os cofres públicos do julgamento e da
prisão.
— Ninguém aqui irá contestá-lo — comentou o patrulheiro. — Ei, é
melhor você mostrar aos paramédicos esse corte no supercílio. Talvez eles
queiram levá-lo ao hospital.
Michael apalpou a região, atingida por um soco do criminoso, e percebeu
que sangrava. Aplicou um lenço sobre o ferimento.
— E só um arranhão — informou. A última coisa que desejava era ir a um
hospital. Bastava-lhe o tempo que demoraria até a polícia tomar suas
declarações e fazê-lo assinar um depoimento.
— Você é quem sabe. De qualquer modo, terá de passar na delegacia.
— Conheço o procedimento.
— Verdade? Pensei que vocês, detetives particulares, preferissem ficar
longe dos distritos policiais.
— Eu fui tira por doze anos — ele confessou.
— Aqui mesmo na Flórida?
— No Texas. — Michael apressou-se em encerrar a conversa. Relembrar
sua carreira policial era doloroso, sobretudo à uma hora da manhã. Também
não queria recordar sua estupidez ao conduzir uma diligência junto com o
parceiro Pete. Estupidez que havia custado a vida do amigo e o orgulho de seu
pai, um veterano das forças legais. Para não mencionar a tarja preta de luto
que cobriu o Departamento de Polícia de Houston.
— Ainda bem que o criminoso não sabia disso e não tentou liquidá-lo —
comentou o patrulheiro.
— Então, o "Touro" é um assassino contumaz de policiais? — Michael
perguntou-se por que não se surpreendera.
O outro balançou a cabeça afirmativamente.
— Consta que ele atacou dois carcereiros, em sua última fuga do
presídio, há um mês. Um pode perder a vista e o outro ainda está todo
engessado.
Era fácil de acreditar. Em sua carreira, como representante da quarta
geração de uma família de agentes da lei, Michael Sullivan havia deparado com
muitos exterminadores de policiais, simplesmente por serem policiais. Um
olhar para o monstro careca, de porte avantajado e expressão perversa,
bastava para saber que ele havia aterrorizado os tiras. Incrivelmente, os
idiotas do presídio não tinham adotado cuidados especiais, o que permitira a
fuga.
Um grande sedã preto estacionou no terreno da loja e dele saiu um
homem alto, de terno escuro e uma coroa de cabelos prateados. Abordou o
oficial encarregado.
— Sabe quem é? — indagou o patrulheiro.
— O agente federal Hennessey — disse Michael.
— Você o conhece?
— Nossos caminhos se cruzaram algumas vezes. — Mesmo se não o
conhecesse, Michael poderia identificá-lo como agente federal pelo carro
camuflado, pelas roupas sóbrias e pelas maneiras calmas. Tinha havido um
tempo em que ele e também Pete pensaram em deixar o Departamento de
Polícia de Houston e ingressar no Bureau Federal de Investigações, o FBI.
Michael havia sido convidado, mas, quando o amigo o acusou de chantagem,
abriu mão da oferta. Depois da morte lamentável do parceiro, ele ponderou
que, como federal, Pete correria menos perigo.
— Os federais também estão atrás desse sujeito — explicou o
patrulheiro.
— Acho que precisam mostrar serviço, antes que a imprensa caia em
cima deles. — Michael recebeu um olhar admirado do guarda. — O FBI
depende muito da mídia. Prender um assassino como Dozier rende prestígio.
— Mas os federais nada têm a ver com isso. Você é que o prendeu.
— Bem, para todos os efeitos, eu apenas ajudei. E lá vem Hennessey
para me vender essa idéia.
De fato, após dispensar o guarda, o agente federal esforçou-se para
convencer Michael da história oficial que o FBI queria passar à imprensa.
— E como se você trabalhasse para nós. Gostaria de dizer que chegamos
juntos à loja, onde você imobilizou o meliante quando tentava assaltar a
mulher. Tudo bem, Sullivan?
— Faz alguma diferença se eu contestar essa versão?
— Não.
— Então, por que pede minha opinião?
—Não seja turrão, Sullivan. Você fez um bom trabalho salvando a
funcionária e dominando aquele animal. Foi realmente um belo serviço.
— Obrigado.
— E pena que não tenha ingressado na corporação e prefira viver
seguindo mulheres adúlteras.
— Gosto do que faço.
— Merda! Você daria um ótimo agente federal, Sullivan. Pense nisso.
— Não, obrigado. Sei quanto vocês ganham. Acho pouco.
—Está me dizendo que o dinheiro seria sua única motivação? —
Hennessey enfatizou a frase com um muxoxo para indicar desdém.
— Pode ser.
— Você é um canalha. Foi tira, e ninguém se torna tira ou agente federal
por causa de dinheiro. Pelo exemplo de hoje, você ainda acredita em ajudar os
cidadãos e limpar a sociedade dos maus elementos. E mais gratificante do que
um gordo contracheque.
— Não dou um tostão furado pelo que você pensa, Hennessey. Tive
enorme gratificação ao prender, faz algum tempo, o ladrão de uma velhinha
milionária. A recompensa foi expressiva.
— Se eu achasse que lhe falta o senso de solidariedade, não convidaria
você para prestar serviços ao FBI, caçando criminosos.
Michael deu de ombros. Faria o que viesse a calhar para obter dinheiro.
Dinheiro que serviria, em parte, para sustentar os filhos órfãos de Pete.
Ocasionalmente, ele trabalhava para o Bureau, mais por causa de seu
irmão Travis, que era agente federal. Além disso, era uma boa maneira de
treinar suas habilidades e manter os contatos em dia. O que ele não desejava
era engajar-se na instituição, não enquanto os filhos de Pete dependessem
dele.
— Bem, esta é uma conversa idiota, afinal — sentenciou o agente.
— Acredite no que quiser, já disse. — Michael tornou-se impaciente. —
Seja terminou aqui, pretendo ir embora.
— Encontro amoroso?
— Não, encontro profissional. Um empresário está me oferecendo alta
soma para encontrar sua mulher desaparecida. — Pelo menos, Michael
esperava que Webster ainda mantivesse a oferta, apesar dos dias de ausência.
— Certo, mas você precisa passar na delegacia e prestar depoimento
sobre o que aconteceu. Também terá de ficar disponível para testemunhar no
julgamento de Dozier.
— Tudo bem.
— Certifique-se de dar ao pessoal um número de telefone que funcione.
Michael repetiu sua concordância e afastou-se. Pretendia comparecer ao
distrito policial em seguida, a fim de encerrar a questão.
— Sullivan?
Ele parou e olhou por sobre o ombro para Hennessey.
— Quando estiver rico e cansado de brincar de detetive, ligue para mim.
— Sem chance, amigo. Gosto de ser meu próprio patrão.
— Não foi por dinheiro que você dominou aquele gorila, arriscando-se a
ter o pescoço torcido. Você ainda é um policial e luta pela justiça, por mais que
o negue. Michael riu.
— Detesto ficar contestando você. Fiz o que qualquer um faria, vendo
aquela mulher nas mãos de um gorila.
— A maioria das pessoas apenas chamaria por socorro, em vez de
enfrentar um peso-pesado com uma arma nas mãos.
— E que a maioria das pessoas tem mais bom senso do que eu — Michael
acrescentou. — Não sou herói, Hennessey, e nem tente me convencer disso.
Agi por instinto e, em parte, por estupidez.
— Se você não tivesse agido, a funcionária da loja estaria morta.
Michael suspirou, exasperado.
— E daí?
— Daí que você está fugindo de seus próprios demônios. — O agente
federal acercou-se e colocou um cartão no bolso da camisa de Michael. —
Quando vencê-los, notará a diferença.
Ao retomar a caminhada, o detetive retirou o cartão do bolso, amassou-o
entre os dedos e desapareceu. Não se sentia herói, mas Hennessey tinha certa
razão quanto ao bom trabalho que ele executara, com alguma ajuda da sorte.
Reprimindo seus mais arraigados sentimentos, Michael Sullivan
determinou-se a pensar exclusivamente em ganhar dinheiro.

CAPÍTULO II

Não! — sussurrou Lily ao revirar-se na cama. — Não! — repetiu,


notando o batimento acelerado do coração. — Adam, não!
Subitamente ela sentou-se e apoiou-se na cabeceira. Ainda assustada
com o pesadelo, ergueu os joelhos até o peito e escondeu o rosto entre eles, à
espera de que o tremor passasse. Esperança vã.
Tinha sido apenas um sonho, e Lily ouvia essas palavras como uma
litania na mente, orando para que o momento de terror terminasse. Apesar do
frescor reinante no quarto, o suor lhe brotava da testa. Um soluço escapou de
seus lábios quando ela acendeu o abajur e a luz inundou o quarto, fazendo
com que se lembrasse de onde estava.
Lily reviu-se não na cama larga de madeira entalhada, mas num pequeno
e simples leito, sem cabeceira de marfim nem colcha de damasco a cobri-lo.
Seguindo o ritual familiar que a capacitava a afastar o medo paralisante depois
de cada pesadelo, ela amassou a borda do lençol entre os dedos. Lençol
branco e barato, nada de cetim colorido com estampas egípcias, que custaria
mais do que alimento por um mês para a família de quatro pessoas.
Lily fechou os olhos e respirou fundo. Estavam a salvo, ela e Timmy.
Achavam-se em Nova Orleans, não em Miami, na casa alugada fazia dois
meses, não na prisão palacial que tinha sido seu lar. Também já não era
Elisabeth Webster, mulher do empresário, filantropo e dono de bares noturnos
Adam Webster. Trocara o nome para Lily Tremont e apresentava-se como viú-
va, mãe de um filho de quase três anos e garçonete na Lanchonete River
Bend. Estavam a salvo, pensou de novo, porque Adam desconhecia o
paradeiro de ambos.
Finalmente, Lily sentiu que o coração voltava ao normal. Abriu os olhos e
consultou o relógio no criado-mudo. Suspirou. Ainda faltavam algumas horas
para o dia amanhecer, e ela sabia por experiência própria que não dormiria
mais naquela noite. Lembranças amargas vinham à tona, impedindo o sono.
Como sempre fazia quando assolada por pesadelos, levantou-se e foi
verificar como estava Timmy. Abriu a porta em silêncio e, pé ante pé, acercou-
se da cama do menino que significava sua própria vida. Seu filho jazia deitado
de lado, em seu pijama de estampas infantis, abraçado a seu ursinho de
pelúcia. Satisfeita com a visão, Lily esticou as cobertas com as mãos ainda
trêmulas. Lamentou que fosse tão fraca e deu um beijo na testa do garoto
antes de sair.
A constatação de que Timmy estava em segurança afastou a maior parte
do pânico, mas não as recordações que o medo havia trazido. Entrou no
banheiro a fim de tomar uma ducha quente, certa de que o filho não ouviria
seu pranto. Permitiu-se até mesmo gritar, na intenção de conjurar o terror
daquela noite, seis meses atrás. Era impossível esquecer.
Elisabeth estava sentada na cama, sem saber o que a havia acordado.
Então, escutou o som da chuva nas janelas. Devia ter sido isso, imaginou,
enquanto tirava de sobre os olhos uma mecha de cabelos. Ligou a luz e olhou
em torno, a fim de orientar-se.
Então, lembrou-se da monstruosa dor de cabeça que a incomodara
durante todo o dia. Depois de colocar Timmy para dormir, ela recebera de
Adam um comprimido analgésico e a surpreendente sugestão de que fosse
para a cama. Ele iria sair para uma reunião noturna de negócios. Aliviada por
não precisar fazer sexo naquela noite, ela tomou o comprimido e deitou-se
sozinha.
Eram três da madrugada, o que lhe dava mais seis horas de sono, caso
conseguisse adormecer. Não seria procurada pelo marido, ansioso por seu
prazer mesmo que ela reclamasse de dor de cabeça ou qualquer outra
indisposição. O desejo de Adam nunca arrefecia, sob o argumento de que era
normal que as esposas servissem seus parceiros em matéria de sexo. Adam
não se constrangia em dizer que, se fosse rejeitado, procuraria outras.
Ela deveria sentir-se grata, Elisabeth pensou. Afinal, quantas esposas
podem mencionar um marido apaixonado, amoroso, após sete anos de
casamento e um filho? Mas ela não estava agradecida ao destino. Sentia-se
enganada.
Irritada, vestiu o fino robe de seda, um entre os muitos que Adam
comprara para que os exibisse em sua presença. Deslizou as mãos pelo tecido
macio, que pouco lhe proporcionava em matéria de abrigo e calor. Calçou os
chinelos fofos e foi observar os jardins através das largas janelas.
A chuva não havia parado, e um movimento na árvore maior chamou-lhe
a atenção. Era um pequeno pássaro que bateu as asas corajosamente e voou
por entre os pingos. Ah, ela gostaria de ter o mesmo destemor e abrir as
portas da gaiola de ouro em que Adam a mantinha. Gostaria de fugir com
Timmy.
Com vergonha desse pensamento, Elisabeth censurou-se. Não havia
motivo concreto para sentir-se tão infeliz. Adam era um bom marido, que a
adorava e cobria de roupas caras e jóias. Dava-lhe tudo o que uma mulher
poderia desejar.
Além disso, era o pai de seu belo filho, um milagre de perfeição que
ainda a assombrava. Embora o marido tivesse se mostrado aborrecido com a
gravidez, que ela escondera até o segundo trimestre, parecia ter-se acos-
tumado com a idéia de ter uma família. A verdade é que ele não se preparara
para ser pai. Mas agora Adam já aprendera a amar Timmy, tal como ela.
Bem, um pai não tem de aprender a amar seu filho.
Elisabeth tentou sufocar a voz que lhe rondava a mente. Adam não havia
planejado uma família. Teria de dividir a esposa com uma nova e adorável
criatura, a contragosto.
E quanto aos acidentes que Timmy sofrerá? O que aconteceria, no mês
anterior, se ela não chegasse à piscina da mansão em tempo de salvar o filho,
que boiava na água com o rosto virado para baixo?
Elisabeth estremeceu com a lembrança desse fato. Com surpresa,
constatara que Adam estava à beira da piscina, tomando limonada com dois
amigos e falando ao celular. Não prestara atenção ao menino. Ela abraçou-se,
aterrorizada. Adam salvaria a criança do perigo de afogar-se?
Do pescoço, as mãos subiram até os ouvidos. Ela não queria escutar o
que a memória lhe ditava. Perguntas e suspeitas surgiam continuamente. Era
preciso parar com isso.
Aflita, ela desceu as maciças escadas de mármore e foi ao quarto de
Timmy, no pavimento inferior, onde Adam insistira em instalá-lo, longe da
suíte. A beira dos degraus, apurou os ouvidos cautelosamente, tentando
determinar se o marido continuava fora de casa ou trabalhava em seu estúdio.
Elisabeth aprendera, logo no início da relação conjugai, a não questionar as
saídas de Adam à noite, supostamente para inspecionar as boates que possuía.
Notou a luz acesa sob a porta do estúdio e prosseguiu rumo ao aposento
do filho. Quando alcançou a porta, um sorriso afetuoso começou a formar-se
em sua face, mas ele apagou-se bruscamente diante da visão que descortinou:
Adam estava parado junto à cama do menino e segurava um travesseiro sobre
o rosto da criança.
— O que está fazendo? — gritou.
— Elisabeth! — Ele não escondeu a surpresa.
— Fique longe do meu filho! — Então lançou-se sobre o homem, com os
punhos vibrando no ar.
— O que está acontecendo com você? — Adam questionou, esquivando-
se.
— Meu filho! Você estava a ponto de sufocá-lo!
— Não seja ridícula. Eu só ia ajeitar o travesseiro.
— E mentira! — ela acusou, procurando livrar-se do abraço de ferro que
o marido lhe deu. De algum modo, pressentia que Adam estava mentindo.
Assim como havia ignorado a queda de Timmy na piscina. Mas a idéia de um
pai querer matar o próprio filho era terrível demais para ser assimilada.
— Você está histérica — Adam disse.
— Não, não estou— ela rebateu, continuando a luta para desvencilhar-se.
— Mamãe! Mamãe! — Acordado pelo barulho, Timmy chorou, assustado.
Elisabeth tentou estender os braços para ele, no que foi impedida pelo marido.
— Deixe-me, Adam. Ele precisa de mim.
— Calado! — ele gritou para o filho, que se equilibrava contra as grades
do berço, de olhos arregalados e quase sem fôlego.
— Você o está assustando ainda mais. Largue-me. Timmy está chorando.
— Deixe chorar. Ele é muito mimado por você, mas isso vai acabar.
Amanhã vou contratar uma babá para tomar conta de Timmy, e você voltará a
ser minha mulher em tempo integral. A começar de agora.
Algo se quebrou dentro de Elisabeth quando o marido a forçou porta
afora e, depois, pelas escadas até o quarto do casal. Ela reconheceu o olhar de
cobiça e volúpia que era típico de Adam e disse a si mesma que não iria
suportar aquele vexame.
— Tire a roupa — ele ordenou.
Para não enfurecê-lo e assim arriscar a segurança de Timmy, ela passou
a despir-se. Só de calcinha, deparou com Adam totalmente nu, orgulhoso de
sua completa ereção. Ele era bonito, de cabelos negros ondulados, com a
aparência de um astro de cinema. Normalmente portava-se como um
cavalheiro, mas Elisabeth sabia que, por detrás daquela máscara, existia um
monstro perigoso.
— Venha cá — ele instruiu com firmeza, postado à beira da cama.
Elisabeth obedeceu. A frente do marido, notou que os olhos dele
ensombreciam de expectativa.
— Tão bonita. Tão perfeita. E minha.
Adam pousou as mãos nos seios da mulher e os apertou, provocando
dor.
— Por favor, está me machucando.
Mas a dor parecia excitá-lo ainda mais. Então ele a forçou a agachar-se,
empurrando pelos ombros, e ela percebeu o que o homem desejava. Tinha
sido treinada para dar-lhe prazer desde a noite de núpcias, aos dezoito anos.
Elisabeth tomou o membro de Adam na boca.
Ela gostaria de desaparecer dali, mas isso apenas causaria a raiva do
marido contra o menino que dormia na parte de baixo da casa. Gemendo e
suspirando, ele remexeu nos cabelos da esposa, até que a arrastou para a
cama.
— Espere, Adam.
Mas ele já procurava o caminho para a intimidade da esposa.
Despreparada e desconfortável, ela soluçou ante a invasão de sua carne, que
Adam continuava a atritar.
— Você foi feita para isso — ele murmurou, o corpo todo rígido na fruição
de seu triunfo.
Finalmente, quando pensava que o parceiro nunca mais iria parar, Adam
chegou ao clímax e desabou sobre ela. Elisabeth não pôde avaliar por quanto
tempo suportou o peso do marido em cima dela. Sentiu-o praticamente
adormecido e empurrou-o para o lado oposto da cama. Logo em seguida
colocou-se de pé.
— Aonde pensa que vai? — Adam perguntou, bem desperto.
— Eu... pretendia ver Timmy.
— Não. — Ele a agarrou pelos cabelos e obrigou-a a voltar para o
colchão. — Já disse, você foi feita para isso, não para cuidar de filhos chorões.
Vamos voltar a viver como antes, entendido?
— Por favor... Reconheço que negligenciei você ultimamente, mas não
quero uma babá. Sou a mãe de Timmy e...
Em resposta, Adam, orgulhoso, exibiu novamente sua virilidade
insatisfeita.
— Contratarei uma babá até que encontre um bom internato para ele.
Sua fantasia de maternidade acabou, Elisabeth. Aceite os fatos, senão eu me
livrarei do menino em caráter permanente.
Um arrepio percorreu-lhe a espinha. Não podia mais iludir-se. Adam se
tornara insano, e se o filho não fosse levado embora dali seria provavelmente
morto. Naquele instante, Elisabeth começou a planejar sua fuga de casa.
Tinham escapado, Lily lembrou-se enquanto se sentava no chão do box
do banheiro, sob o jato de água quente. Por duas vezes, Adam estivera perto
de localizá-la, mas por enquanto Timmy estava a salvo.
— Obrigado, Chantal — disse Adam Webster à escultural secretária que
escoltava Michael Sullivan para dentro do escritório. — Lamento tê-lo feito
esperar, Sullivan. Sente-se, por favor.
Trocaram um aperto de mãos. A mesa envernizada brilhava como um
diamante negro. Com a mesma perspicácia de seus tempos de policial, Michael
notou os cabelos bem-aparados do empresário, as unhas tratadas, o terno
italiano de corte impecável. Sem dúvida, era um homem rico, poderoso,
sofisticado. Um jogador de renome e, de acordo com as suas fontes, um
inimigo perigoso.
— Gostaria de beber algo?
— Não, tudo bem — replicou Michael.
— Certo. Chantal, inclua este cheque na correspondência para o senador.
— Passou-lhe um envelope. — E pode se retirar.
Michael não duvidou de que o cheque serviria para o financiamento de
uma campanha política, com cheiro de suborno. Mas a frieza de Webster
revelava que ele tinha o domínio total da situação.
— Charuto? — ofereceu, abrindo uma caixa ornamentada. — São
cubanos.
— Obrigado, não fumo.
— Parabéns. E um dos meus vícios e não consigo parar. — Acendeu o
charuto com um isqueiro de ouro e inspirou a fumaça com ar apreciativo.
Devia ser um grande jogador de pôquer, pensou Michael ao observar o
ritual. Apesar da expressão amistosa, ainda cultivava a raiva por ter sido
forçado a esperar pelo detetive, por uma semana. Na verdade, Adam Webster
é que havia ligado de novo, bem no dia em que Sullivan havia depositado
dinheiro para a viúva de Pete. Por pensar nas crianças, o investigador achava-
se bastante vulnerável ao cliente em potencial. Claro, passou as horas
seguintes pesando se valia a pena colocar-se a serviço do empresário. Mas um
milhão de dólares estavam envolvidos, e Sullivan por fim marcou o encontro.
Depois de algumas baforadas, Webster recostou-se na cadeira estofada.
— Foi uma surpresa você ter concordado em aparecer, Sullivan. Pelo
telefone, não parecia estar interessado em minha oferta.
— Claro que estou — o investigador esclareceu. — Só que tinha outro
compromisso na frente.
Caprichosamente, o empresário produziu um anel de fumaça.
— Soube que você foi um herói, salvando uma jovem balconista de um
estuprador perverso. Você o prendeu com facilidade.
Já que o incidente havia ocorrido fora da cidade, e que tanto ele quanto o
FBI tinham concordado em não divulgá-lo pela imprensa, Michael reforçou um
pensamento anterior: Webster devia ter excelentes contatos.
— Você é bem informado — elogiou.
— Em meu negócio, preciso saber com quem estou lidando.
Isso queria dizer que Webster também estava a par da demissão de
Michael, após a morte de Pete. O que não sabia — como a maioria absoluta
das pessoas — era que ele tinha sido o responsável pela perda do parceiro, por
tardar a puxar o gatilho contra uma dupla de traficantes de drogas.
— Espero que isso não o ofenda — Webster acrescentou.
— Não, é o seu negócio. — Ele deu de ombros.
— Sim, e você compreende que um homem em minha posição precisa
ser precavido.
— Claro — Michael confirmou. Não só compreendia como havia feito suas
próprias checagens. Descobrira que o milionário de 56 anos fizera fortuna
graças a uma rede de boates e restaurantes espalhados por toda a Flórida.
Sete anos antes, havia se casado com sua protegida, uma tal de Elisabeth
Jeffries, e tinha um filho pequeno chamado Timothy ou Timmy. Era um
generoso contribuinte de causas assistenciais e dava-se bem com importantes
políticos. As festas que patrocinava tornaram-se legendárias. Parecia óbvio,
mas faltava provar que parte do dinheiro de Webster carecia de uma origem
honesta.
— Já que estamos de acordo quanto a precauções, quero que saiba que
não tolero erros. Caso venha a contratá-lo, claro.
Nem pensar no contrário.
— Não haverá problemas — Michael afirmou com autoconfiança. — Você
disse por telefone que sua mulher e filho estão desaparecidos há seis meses,
mais ou menos.
— Correto.
— Então, posso deduzir que o primeiro detetive contratado falhou na
busca.
Um ar de tédio sulcou a face do empresário.
—Deduziu corretamente. Elisabeth foi localizada, mas conseguiu escapar
de novo, antes que eu chegasse. Um erro por parte da agência. Por isso entrei
em contato com você.
— Estou curioso quanto a seus motivos, já que trabalho sozinho e não
tenho uma grande agência na retaguarda. Por que eu?
Webster sorriu de modo intrigante, torcendo a boca.
— A maioria dos detetives particulares simplesmente ficariam gratos por
eu tê-los chamado.
— Não sou a maioria.
O empresário riu, deliciado.
— Obviamente. Mas, respondendo, você foi recomendado por meu chefe
de segurança, Bernie Pavlovich. Parece que os dois já trabalharam juntos.
Fazia uns dez anos que Bernie havia sido expulso da corporação policial
de Houston, sob a acusação de brutalidade. Grandalhão, teimoso e ignorante,
o ex-colega surpreendera a todos ao ser contratado por Webster. O mais
inusitado é que recomendara Michael, pois não eram exatamente bons amigos.
— Bernie me falou de sua reputação na polícia de Houston. Disse que
você nunca hesitou em entrar em situações de risco.
— Tinha ótimos policiais trabalhando comigo — Michael justificou-se.
— Não há razão para ser modesto, Sullivan. Sei que você ajudou as
autoridades a encontrar um trio de fugitivos da cadeia, nos pântanos da
Louisiana.
Michael não se abalou em negar, e de novo cogitou de como o
empresário havia obtido aquela informação. Tratara-se de um caso sigiloso, já
que a fuga dos três condenados podia abalar a fama de um presídio de se-
gurança máxima. Participara da aventura pelo dinheiro que o FBI lhe
oferecera, vindo de um fundo particular, mantido por empresários. O fato de
Webster saber de tudo só solidificava a impressão de que possuía valiosas
conexões com o poder.
Mais uma baforada, e o empresário descartou o charuto no cinzeiro de
prata. Pendeu para a frente, com expressão dura.
— Você tem um currículo invejável, Sullivan. Como policial e como
investigador particular. Por isso aceitei recebê-lo, apesar de sua atitude pouco
gentil na semana passada. Quero minha mulher de volta, e acho que você é a
pessoa certa para encontrá-la.
— Por um milhão de dólares?
— Certo — replicou Webster friamente.
— Sem ofensa, mas que tipo de mulher vale todo esse dinheiro?
—Você não conhece minha esposa — disse o empresário em tom afetado,
erguendo a moldura com a foto colorida de Elisabeth. — Espantosamente
bonita, não?
Não podia haver dúvidas. Além de bela, Elisabeth parecia clamar por
sexo selvagem, desde os cabelos louros e soltos até a curva dos ombros e dos
seios, fazendo imaginar o resto do corpo envolto em vestido preto.
Também havia uma esmeralda do tamanho de um dedo de criança,
pendente no colo alvo. Michael engoliu em seco.
Ele desviou o olhar da fotografia, alertando a si mesmo para não
esquecer o golpe que sofrerá de outra loura e que fizera quatro vítimas no
processo.
— É realmente linda.
— Vale cada centavo que ofereço por ela, e ainda mais. — Webster
recolheu a moldura.
— E quanto a seu filho?
O empresário parecia enfeitiçado pela esposa, mas não mencionava a
criança.
— Quero que encontre Elisabeth e Timothy — ele emendou.
Michael ficou admirado com a falta de emoção contida na frase.
— Conte-me o que aconteceu no dia em que ela partiu. Webster então
falou de coisas como depressão pós-parto, mudança de hábitos, frieza sexual,
até referir-se à manhã em que Elisabeth colocara uma pílula para dormir no
suco matinal dele e fugira, carregando o filho. Crise emocional, garantiu.
Havia chances, Michael raciocionou, de que Elisabeth Webster fosse
apenas mais uma esposa entediada do marido rico e mais velho, ansiosa por
escapar de sua gaiola. Em alguns pontos, porém, o cenário geral não
combinava com isso. O detetive não havia perdido nem um pouco de seus
instintos, que continuavam fortes após a entrega da carteira de policial.
— Familiares ou amigos poderiam estar escondendo sua mulher?
— Elisabeth não tem família, só a mim. Quanto a amigos, sempre foi uma
pessoa solitária.
— Você disse que outro detetive a localizou. Onde e quando?
— Dois meses atrás, numa cidadezinha do Arkansas.
— E desde então?
— Nada. E como se tivesse sumido da face da Terra. Isso me preocupa.
Meu filho me preocupa. Por isso estabeleci uma recompensa alta. Minha
mulher levava uma vida inteiramente protegida. Não sabe lidar com o mundo
lá fora.
— Ela levou dinheiro e jóias? Quanto?
— Quase cinqüenta mil dólares em notas. As jóias provavelmente valem
o dobro disso.
Michael assobiou por entre os dentes. As quantias envolvidas na fuga
poderiam manter a sra. Webster por longo tempo escondida.
— Você tem conhecimento se alguma das jóias apareceu, com um
receptador?
— Não. Aliás, Elisabeth não saberia como fazer para vendê-las. Viveu sob
minha total proteção e, por isso, é uma pessoa inteiramente inocente, ou seja,
ingênua.
Pela foto, Michael não achava que Elisabeth fosse uma frágil flor. Devia
saber seduzir. Havia mostrado do que era capaz ao roubar o marido e
abandoná-lo. Poderia ser uma mulher dissimulada, já que se esquivara de
vários detetives por seis meses. Também poderia existir outra razão, como um
amante.
— Há a possibilidade de que ela...
— Não sou ingênuo, Sullivan. Sei o que está insinuando. Mas é engano.
Ela não tinha outro homem. E também continua viva.
— Se está viva, eu a encontrarei. E a seu filho também — Michael
completou com firmeza.
Webster recostou a cabeça na cadeira e riu.
— Vou lhe dizer uma coisa, Sullivan. Não lhe falta atrevimento.
— Como você mesmo disse, não há motivo para falsa modéstia.
Realmente não havia. Desde que deixara o Departamento de Polícia,
ganhava cinco vezes mais com o trabalho autônomo, fosse como investigador,
guarda-costas ou caçador de recompensas. O rendimento lhe proporcionava
uma vida folgada e uma boa ajuda a Jane e aos dois filhos de Peté. Um milhão
de dólares traria um futuro radioso à família do amigo morto.
— Vou precisar de cópias de todos os relatórios que tiver.
— Aqui estão. — Prontamente, Webster passou uma gorda pasta que
estava sobre a mesa. — Dados, fotografias, impressões digitais, tudo o que
você possa necessitar.
Michael compulsou depressa os documentos. Depois, tirou do bolso do
paletó uma agenda preta.
— Preciso também de um adiantamento.
— Claro. — Webster abriu a gaveta, onde guardava um cheque já
preenchido. — Vou lhe pagar cinqüenta mil dólares agora e o resto quando
você tiver localizado Elisabeth e Timothy.
— Contava com duzentos e cinqüenta de adiantamento. O saldo, mais as
despesas comprovadas, quando encontrar sua mulher e filho.
O sorriso morreu nos lábios do empresário.
— Está maluco se pensa que vou lhe adiantar tanto dinheiro assim.
— É o meu preço. Pegue ou largue.
— O quê? Seu filho da...
Por instinto, Michael voltou-se. Bem atrás dele, surgiu um corpulento
segurança da equipe particular de Webster. Foi logo dispensado pelo patrão,
não sem resmungar uma praga contra o intruso.
— Então, você quer ou não que eu encontre os desaparecidos? — Michael
perguntou, frio.
— E se você também desaparecer da cidade, com meu dinheiro?
— Tem minha palavra. Você já examinou toda a minha vida. Deve saber
que eu não falto a um compromisso assumido.
A expressão de civilidade de Webster já havia mudado para a de raiva. A
frieza e ousadia de Michael o abalavam. O investigador chegou a sentir pena
de Elisabeth. Em seguida, considerou a hipótese de recusar a missão.
Com o mesmo ar carregado, Webster subscreveu outro cheque e passou-
o a Michael.
— Há uma condição — disse, contrariado. — Se não encontrar minha
mulher em trinta dias, não lhe pago mais nada. Você terá de devolver esse
adiantamento e arcar com suas despesas.
— O último detetive que contratou teve seis meses — Michael comentou.
— Mas você é melhor, é um campeão. Trinta dias ou nada.
— De acordo — falou o investigador, erguendo-se para sair.
Depois de entregar o cheque, Webster tinha se recostado na poltrona.
— Não me desaponte, Sullivan — expressou-se em tom grave, quase
ameaçador.
— Não pretendo falhar — assegurou Michael, guardando o valioso papel
no bolso. — Pode se preparar para assinar mais um cheque.
CAPÍTULO III

Lily, seu pedido está pronto. — Obrigada, May. — Ela agradeceu à


colega chapeira que lhe passou um hambúrguer devidamente envelopado, com
uma porção de fritas e maionese à parte.
Depois de ajeitar o sanduíche e complementos na bandeja, Lily abriu
caminho pelo corredor da lanchonete lotada. Serviu um beirute de rosbife na
mesa cinco, em seguida entregou o hambúrguer com fritas na mesa seis, de
onde partira o pedido.
— Mais um chope? — perguntou ao cliente, um rapaz que vinha todos os
dias para almoçar. Na véspera, ele havia dito que se chamava Joe e trabalhava
na construção civil, em um prédio próximo.
Lily calculou a idade do operário em 25 anos. Com cabelos claros
encaracolados, rosto bronzeado e músculos explodindo pelo corpo todo, por
causa do trabalho duro, Joe havia chamado sua atenção, assim como a de
outras atendentes.
— Seria ótimo — ele disse com sotaque estranho, que mesclava a
pronúncia do sul com a do Brooklyn, em Nova York. Mas o sorriso era puro
charme, com o mesmo poder de sedução que ela descobrira entre os rapazes
de Nova Orleans. Dois meses na cidade tinham bastado para ela reconhecer
essa característica.
— Volto logo com sua bebida — ela prometeu, embora parasse a caminho
do balcão para anotar outro pedido. Então, aproximou-se de Amber e Gina, as
garçonetes encarregadas da chapa quente e dos líquidos.
— O irmão gêmeo de Brad Pitt está aí — comentou Amber, tirando um
copo de chope, enquanto Gina enchia vários copos com refrigerante e chá
gelado. — Por coincidência, ele sentou-se bem na sua área de atendimento.
— Acho que a minha era a única com mesas vagas — Lily contestou.
— Acorde, Lily. — A colega revirou os olhos significativamente. — Todos
podem ver que o rapaz tem uma queda por você.
— Não seja tola. E jovem demais.
— Certo. Mas será que você se sente como a mãe dele?
Gina riu, sem esconder a malícia.
— Ele deve ter uns 25 anos. E você não é tão mais velha do que isso.
Não era. Havia completado 26. Contudo, experimentava a sensação de
ser muito mais idosa.
— Talvez porque eu seja viúva e tenha um filho.
— Eu tinha esquecido — disse Gina. — Perdão.
—Tudo bem — respondeu Lily, desconfortável com o fato de sua
fragilidade ter gerado a compaixão das colegas.
— Sei como é perder um homem que se ama. Enterrei três maridos. Mas,
creia em mim, com o tempo as coisas se tornam mais leves. Você verá.
— Deve ter razão — Lily completou, ansiosa para encerrar o diálogo.
Gina bateu-lhe no ombro, amistosamente.
— Enquanto isso, não deixe o lindo Joe esperar. Ao menos ele tem um
emprego, o que é mais do que eu poderia dizer de meu último marido. Você é
jovem, Lily, e tem a vida inteira pela frente.
Ela não se sentia jovem, porém. Talvez porque a vida lhe trouxera
muitas mudanças, desde que a avó tinha falecido e ela fora morar com a mãe.
Os dois anos na Flórida haviam sido aterrorizantes. Nova escola, nova cidade,
pessoas estranhas.
Lily era pobre, tímida e descuidada quando conhecera Adam Webster. Ele
a tratara como gente, fizera com que se sentisse especial. Após a morte
repentina da mãe, Adam a resgatara das ruas, inscrevera-a num bom colégio
interno católico e, aos 18 anos, quando completara o curso médio, ele a
desposara legalmente. No mínimo, outro ato de bondade, em contraste com a
impressão de Lily de que Webster era um homem violento e perigoso. O
pressentimento se revelara real, com as tentativas de liquidar o filho Timmy.
Ela censurou-se por ter permanecido cega durante tanto tempo.
— Lily! Não vai levar o chope?
Ela juntou a bebida com mais dois pedidos na bandeja e retornou à mesa
de Joe.
— Vai querer sobremesa? Temos torta de maçã, pudim de leite e o bolo
Rei, já que estamos na época do Mardi Gras. — Referia-se à festa, equivalente
ao Carnaval, que culminava na Terça-feira Gorda e mobilizava toda a cidade de
Nova Orleans.
— Dispenso a sobremesa, mas, por falar em Mardi Gras, estava
pensando em convidá-la para ver o desfile comigo neste fim de semana.
— Você pensa demais. Mas obrigada pelo convite.
— Tem outros planos?
— Sim — afirmou Lily, antevendo um passeio com Timmy.
—Então, sairemos em outra ocasião, quando você estiver menos
ocupada.
— Sinto muito. Não posso sair com você. Tenho compromissos. — Lily se
expressava com hesitação, temerosa de ferir o orgulho masculino de Joe.
— Bem, não se pode culpar um homem por tentar, não é? Fui idiota ao
imaginar que você, tão bonita, não tinha ninguém.
Lamentando descartar a proposta do operário, Lily procurou explicar:
— Não tenho ninguém. Quer dizer, tenho um filho de três anos, que toma
todo meu tempo livre.
— Você tem um filho? — Joe indagou, com os olhos brilhantes de
surpresa.
— Sim, e é um vulcão de energia.
— E quanto ao pai?
Naquele momento, Lily arrependeu-se de ter alimentado a discussão.
—Sou viúva — disse com a máxima firmeza possível, enquanto começava
a passar um pano nas migalhas da mesa: Era péssima em matéria de mentir,
conseqüência da formação católica. Nos últimos seis meses, porém, ela havia
contado mais mentiras do que em toda a sua existência anterior.
— Sinto muito, Lily. Não imaginei, sendo você tão jovem.
— Tudo bem, você não poderia saber.
— E se conseguirmos uma babá para ficar com seu filho no fim de
semana?
— Não costumo sair, Joe. — Ela recolheu a bandeja. — Talvez Amber
tenha tempo e disposição para ir ao desfile de Mardi Gras. Por que não a
convida?
Sem esperar resposta, Lily voltou-se e rumou para o balcão. Estava
ansiosa para encerrar o seu turno, assim poderia buscar Timmy na casa de sua
vizinha, Gertrudes.
Terminada a arrumação das mesas para o horário do jantar, Lily retirou
seu avental. Apanhou a jaqueta e a bolsa no vestiário das funcionárias e
juntou-se a Amber, Gina, May e Nancy Lee, esta a proprietária da Lanchonete
River Bend. Estavam todas reunidas em torno de Ricardo, um dos clientes fixos
do restaurante, conhecido apenas pelo primeiro nome. Adepto da moda, ele
sempre se mostrava impecavelmente vestido. Lily o considerava um jovem
Ricardo Montalban, o veterano galã hispânico de Hollywood.
Com olhos e cabelos pretos, além de um permanente sorriso nos lábios,
Ricardo atraía todas as mulheres que vinham lanchar ali, ignorantes de que ele
preferia homens. No entanto, disfarçava bem sua opção sexual e tinha especial
talento para despertar as fantasias femininas.
— Com licença — Lily pediu, sem sentar-se à mesa. — Já posso ir?
— Escute o que Ricardo está planejando — disse Amber com entusiasmo.
— Sabia que ele é dono daquela loja fabulosa, com todos os tipos de roupas e
produtos de maquilagem?
Lily negou com um gesto de cabeça. Mas tinha ouvido falar de uma loja
especializada em artigos femininos, com preços exorbitantes.
— Bem, Ricardo acaba de nos oferecer todas as fantasias e produtos de
sua loja para o Mardi Gras, pela metade do preço. Não é fantástico?
— Muito bondoso de sua parte — Lily comentou, sem a menor intenção
de aceitar a oferta. O mês inteiro de desfiles de rua, culminando numa grande
celebração, era o suficiente para ela. Jamais colocaria uma fantasia para a
festa, e não era só uma questão de preço.
— Lily tem razão, Ricardo está sendo generoso conosco — disse Nacy
Lee, a bem-conservada cinqüentona que tinha o vício de mascar bala de goma.
Ela fitou suas funcionárias. — Só espero não ir à falência, se vocês resolverem
retribuir ao Ricardo dando-lhe lanches de graça.
— Não me julgue mal, senhora Nancy — rebateu o cliente, pressionando
dramaticamente a mão contra o peito. — Minha oferta é apenas uma mostra
de gratidão pela maneira como tenho sido tratado aqui, apesar de ser
estrangeiro.
Nancy Lee riu de maneira afetada.
— Ricardo! Você não é mais estrangeiro do que eu.
A cidade pertence aos forasteiros, embora eu viva há mais de vinte anos
em Nova Orleans.
— Se vocês não fossem tão simpáticas comigo, eu já teria voltado a
Madrid. A amizade de todas é que me mantém aqui.
— Juntamente com as senhoras ricas que gastam uma fortuna em roupas
e maquilagem em sua loja — Nancy Lee acrescentou.
— O que posso dizer? Fui abençoado com um talento especial para
produzir beleza e dividi-lo com minhas amigas. Por isso, quero que participem.
Basta me dizer o que desejam, e eu transformarei o sonho em realidade.
Lily ouviu, divertida, como Ricardo tencionava vestir cada uma das
garçonetes, no estilo Britney Spears. Ele parecia uma menina brincando de
trocar a roupa de suas bonecas.
— E quanto a você, senorita Lily? Vai aderir?
Ela pestanejou, percebendo-se no centro das atenções.
— Ainda não sei — foi a resposta.
— Não tem vontade de se transformar em outra pessoa, por uma noite?
Uma figura famosa do passado?
— Não — disse Lily honestamente, porque desde que fugira de Adam,
seis meses antes, seu foco se concentrava em apagar os últimos traços de
Elisabeth Webster.
— Que tal Scherazade, ou outra princesa das Mil e Uma Noites? —
insistiu Ricardo.
Lily riu.
— Não, fora de cogitação.
Ricardo juntou as mãos em pretensa oração, como se lamentasse a
decisão.
— Com o seu rosto, poderia se fantasiar de qualquer estrela de
Hollywood, talvez Marilyn Monroe.
— Não tenho os cabelos de Marilyn — interveio Amber —, mas qualquer
outra celebridade está bem para mim. Acho que vou de Britney Spears.
Com a mão no queixo da garçonete, Ricardo examinou seu rosto por
diversos ângulos.
— Tudo bem — decretou. — Venha à loja e decidiremos.
— Boa idéia — Gina apoiou. — Virá conosco, Lily? Talvez encontre algo
que a empolgue.
— Obrigada, mas não posso. Tenho de apanhar meu filho.
— Peça água ou morra!
Michael estava caído ao chão, debaixo dos dois filhos de Pete e Jane
Crenshaw, que o dominavam durante a simulação de uma luta de caratê. O
detetive adorava brincar assim com os garotos de Pete, um de seis, outro de
sete anos. Eles gritavam, alegres, acreditando terem vencido o adulto na
disputa que, naturalmente, levavam a sério. Os gritos aumentaram quando
Michael fechou os olhos, fingindo morrer. Depois, abriu-os bem arregalados,
rindo também.
— Água! — ele exclamou.
—Já basta, crianças — interveio Jane. — Deixem o tio Michael se levantar
e vão para a cama.
— Ah, mamãe! — foi o protesto em uníssono.
— Obedeçam. Amanhã é um dia normal, de escola. Vestida com um
moletom esverdeado, Jane colocou as mãos na cintura, esperando. Michael
sorriu para si mesmo. Com seu pequeno porte físico e cabelos amarrados num
rabo-de-cavalo, ela se parecia com uma criança.
— Mas o tio Michael ficou de nos ensinar novos golpes, para nos
defendermos dos bandidos — Pete Júnior manifestou-se em tom esperançoso e
procurou apoio. — Não é, tio?
Os olhos do menino lembravam os do falecido pai.
— É verdade, mas por hoje chega. Fica para outro dia.
— Amanhã? — Mickey perguntou, com expressão igualmente ansiosa.
— Acho que amanhã estarei fora da cidade, por causa de meu trabalho.
— Por quanto tempo? — o pequeno Pete indagou. Já de pé, Michael
cocou a cabeça. Adorava brincar com os meninos, não queria desapontá-los.
Mas ele tinha de retraçar a trilha de Elisabeth Webster. Com seis meses de
avanço, ela poderia estar em qualquer lugar. E o prazo de trinta dias já estava
correndo.
— É um caso de assalto, como os que você atendia junto com meu pai?
— perguntou Mickey.
Claro que os meninos tinham o pai na conta de herói, e não seria Michael
a tirar essa ilusão, nem a confessar que se sentia indiretamente responsável
pela morte do parceiro Pete Crenshaw. Ele decidira proteger e ajudar a
sustentar as crianças. Por infelicidade, tinha sido tarde para amparar Jane, que
já descobrira tudo sobre a ligação de Pete com uma tal de Giselle.
Enquanto vivesse, Michael jamais se perdoaria por ter apresentado ao
colega de trabalho uma víbora como Giselle. Também experimentava culpa por
ter tirado Pete de casa, em seu dia de folga, e o levado a uma diligência contra
traficantes perigosos. Era bom que os filhos, assim como todo o Departamento
de Polícia de Houston, acreditassem num ato de heroísmo de Pete, quando na
verdade ele fora simplesmente vítima de uma emboscada.
Era igualmente certo que Jane, Pete Júnior e Mickey substituíam grande
parte da necessidade de Michael quanto a ter uma família própria e filhos. Isso
lhe custava dinheiro, tempo e preocupação, mas, de qualquer modo, valia a
pena, pois aplacava seu remorso.
— Você não vai levar um tiro nesse novo trabalho, como papai? —
questionou Pete Júnior.
— Está brincando? — Michael respondeu, encenando com os braços em
riste mais um golpe de caratê.
— Está bem, meninos — Jane insistiu. — Dêem um beijo no tio Michael e
vão dormir.
— Nós homens não damos beijos um no outro — resmungou Mickey.
— Que tal um aperto de mão? — o detetive propôs e foi atendido.
— Como mulher, eu quero um beijo de vocês — disse Jane, sorrindo.
As crianças abraçaram e beijaram a mãe, mas não deram trégua à mente
fértil.
— O tio também vai beijar você? — indagou o pequeno Pete.
— Não sou a mãe dele, nem estamos casados.
— Mas Pete e eu queremos que ele seja nosso novo pai. Não é justo.
— Não é assim que funciona, querido.
— E como funciona?
— Quando duas pessoas se casam, porque se amam, podem passar o
resto da vida juntos e se beijarem à vontade — Jane explicou.
— Bem, o tio Michael nos ama e nós o amamos — Pete Júnior afirmou.
O detetive sentiu o coração aquecido com aquela manifestação de
carinho.
— Eu gosto de vocês e adoro sua mãe, mas não da maneira como um
casal se entende. — Talvez, se ele e Jane não tivessem amado Pete Crenshaw
conjuntamente, as coisas pudessem ser diferentes. Na prática, o fantasma do
policial pairava entre os dois, além da culpa do detetive por seu papel na
destruição daquele casamento.
— O que Michael está querendo dizer é que nos gostamos como irmão e
irmã — Jane esclareceu. — Por isso, nunca iremos nos casar. Vocês
compreendem?
Os dois meninos deram de ombros.
— Seria legal ter Michael como pai — disse Pete Júnior sem esconder o
desapontamento.
O detetive afagou os cabelos claros das crianças.
— Eu também gostaria. De qualquer maneira, podemos preparar um
espetáculo: "Tio Michael e as Feras do Caratê". — Ele repetiu o som
característico que antecede a um golpe e vibrou os braços estendidos no ar,
entre risadas dos garotos.
— Então, escovem os dentes e depois, cama — ordenou Jane. — Em
cinco minutos, vou ao quarto de vocês, para dar boa-noite.
— Boa noite, parceiro — disseram as crianças, uma após a outra, sem
negar um abraço e um beijo na face de Michael.
— Sinto muito que eles tenham provocado algum constrangimento —
desculpou-se Jane ao se ver sozinha com o detetive.
— São apenas crianças.
— Eu sei, mas talvez esteja falhando em sua educação. Não tenho
certeza de que, após o que aconteceu com Pete, foi bom ter mudado de
Houston e recomeçado a vida aqui na Flórida.
— Você fez o que julgou melhor na época.
— Saí do Texas para me afastar das lembranças de Pete e do que ele fez
para mim, para a família.
— Pete amava você, Jane.
— E por isso me traiu? Quebrou os votos de fidelidade e procurou tomar
dinheiro daqueles traficantes para fugir com Giselle?
Michael se acercou e deu um abraço na amiga.
— Pete estava confuso, somente isso. Você precisa acreditar que ele
cometeu um engano. Queria acertar as coisas com você.
O detetive nunca esqueceria as confidencias do parceiro na noite fatídica.
Pete lhe contara de seus planos de escapar com Giselle para longe,
abandonando esposa e filhos. Era só uma questão de tempo e de dinheiro.
Detalhe: Giselle era amiga dos traficantes de drogas e Pete queria salvá-la do
mundo do crime. Ela concordara em manter a boca fechada quanto aos planos
do policial em aceitar suborno dos criminosos. Estes descobriram tudo, porém,
e tinham apertado o gatilho.
Jane fitou o amigo, deu-lhe um beijo fraternal recuando em seguida.
— Você é um bom sujeito, Michael, mas nós dois sabemos que mente ao
defender Pete.
— Jane...
— Não invente desculpas para ele.
— Não estou fazendo isso.
— Sim, está. O tempo todo lhe deu cobertura. Desde os tempos de
colégio, não é?
— Era um grande amigo, e os amigos se ajudam.
— Não entende que, desde jovem, você veio tirando Pete de qualquer
aperto? Bem, ele morreu. Não é mais preciso protegê-lo.
— Eu conhecia Pete. Não iria fugir com outra.
— Não se esqueça de que eu também o conhecia bem. Era uma pessoa
bem-humorada, doce e adorável. Mas ao mesmo tempo irresponsável e um
pouco egoísta. — Jane ergueu a mão a fim de cortar o protesto de Michael. —
Eu o amava, só não era cega.
— E pensa que eu sou?
— Acho que você evita aceitar que seu quase irmão Pete foi menos
honesto do que o necessário.
— Não sou santo — Michael disparou de volta, aborrecido com a alusão.
— Você tem um senso de honra que Pete desconhecia. Se não tivesse
sido baleado naquela noite, fugiria com outra mulher, deixando para trás
mulher e dois filhos. Não queria a responsabilidade de cuidar de uma família.
— Pete foi um bom homem — replicou o detetive. — Tinha problemas
como todos nós.
— Ele morreu, Michael. Pare de se culpar pelos erros de Pete.
— Eu devia ter percebido que Giselle o usava para se promover junto aos
traficantes — o detetive argumentou, dirigindo-se à janela para observar a rua
escura.
— Você não quer enxergar os fatos. Os erros foram dele, não seus.
Nunca o culpei de nada, por isso pare.
— Não sei se consigo.
Ela se aproximou e tocou-lhe as costas.
— Precisa conseguir. Precisa cuidar melhor de sua vida. Eu não percebia
isso bem e comportei-me com egoísmo, até os meninos pedirem que você
fosse o pai deles.
— Você não seria egoísta nem que tentasse.
— Fui, sim, ao encorajar você a deixar o emprego em Houston e
recomeçar na Flórida, decepcionando seu pai.
— A decisão foi minha. E meus problemas nada têm a ver com meu pai.
— Se não fosse por mim e pelas crianças, você ainda estaria na polícia e
daria orgulho a seu pai. Fui egoísta, sim.
— Repito: a escolha coube a mim. Queria ficar perto de você e dos
meninos. Seu único ato de egoísmo foi não me dar mais aqueles biscoitos de
chocolate que você faz tão bem.
Jane hesitou por um instante, comovida.
— Está bem. Vá à cozinha e sirva-se de um drinque. Eu olharei se meus
dois pestinhas já estão dormindo e depois verei se sobraram biscoitos para
você levar.
Michael sentia-se em casa do lar dos Crenshaw. Assim, optou por fazer
café para ele e chá para Jane. Colocou água para ferver e, explorando o
armário, achou biscoitos de chocolate com os quais encheu um prato.
Quando Jane entrou na cozinha, a mesa estava posta.
— Não vai perder o sono com tanto café? — ela questionou, ao vê-lo
colocar café na xícara.
— Menos mal, pois tenho uma série de documentos para ler. Vou viajar
pela manhã.
— Mais espionagem industrial? Ou alguma fraude milionária de
empresários desonestos?
— Apenas uma esposa desaparecida.
Jane arqueou as sobrancelhas e pôs açúcar em seu chá.
— Pensei que você tinha desistido de casos conjugais.
— Sim, mas desta vez há muito dinheiro envolvido e não pude recusar,
embora o marido abandonado pareça um chefe mafioso.
— Não estou gostando disso. Por que não abre mão e indica outro
detetive?
— Porque me ofereceram um milhão de dólares. Contendo o espanto,
Jane quase derramou chá na toalha.
— Quem é o sujeito?
— Não posso falar, você sabe. Missão sigilosa. Para desembolsar tanto
dinheiro, ele deve estar desesperado para recuperar sua jovem esposa.
— Algum outro motivo?
— Ela levou o filho dele, de três anos. Não gostei do homem, mas ele
tem o direito de ver a criança. E esta tem o direito de conhecer o pai. —
Michael pensou de novo que Pete Júnior e Mickey não haviam contado
totalmente com essa chance.
Jane estendeu a mão sobre a mesa e afagou os dedos do amigo.
— É um trabalho como outro qualquer — asseverou o detetive.
— Mais do que isso. Você aceitou a missão por causa do menino.
— E por causa do dinheiro.
— Certo, mas você disse "sim" pensando mais no garoto.
Era verdade, e Michael sentiu-se exposto à argúcia de Jane. A foto que
vira do menino mostrava uma criaturinha de cabelos castanhos e olhar sério,
encantador.
— Pode ser. Falando em dinheiro, guarde isto. — Ele passou a Jane um
documento bancário que registrava uma conta de poupança, aberta em nome
de Pete Júnior e Mickey. Michael havia investido nela boa parte do
adiantamento que recebera.
Os olhos de Jane se arregalaram diante da quantia depositada.
— É para o colégio deles. E para aulas de caratê.
— Você está se excedendo, Michael.
— Vamos, Jane. Não é sempre que ganho tão bem, e considero as
crianças meus filhos, minha responsabilidade.
— Está assumindo meu papel de mãe.
— De padrinho. Algo de errado em querer ajudar vocês?
— O que há de errado é que você concordou em fazer um trabalho que
odeia. Cortou os laços com seu próprio pai e sente culpa por causa de Pete.
Quando foi a última vez que saiu com uma mulher?
— Tive suficientes namoradas — Michael retrucou defensivamente.
— Falo de um relacionamento sério, não de um eventual jantar seguido
de uma noite de sexo.
Porque ela atingia alguns pontos muito íntimos, Michael reagiu com
agressividade.
— E você, Jane? E bonita, inteligente, saudável, e não namorou nunca
mais. Não tem condições de me recriminar.
— Reconheço que andei reclusa por bom tempo. Mas já dei um jeito.
— Quem é ele? — Michael quis saber, imediatamente protetor.
— Você não conhece e não é nada sério. Não ainda. De qualquer modo,
estou dando a mim uma nova oportunidade. Você deveria fazer o mesmo. —
Ela suspirou fundo. — Quanto à caderneta de poupança, aprecio sua intenção,
mas não posso aceitar.
— Parece muito dinheiro, porém é para cobrir anos de vida das crianças.
Quando receber o resto de meus honorários, verei o que fazer.
— O dinheiro é seu. Deveria usá-lo em seu próprio benefício.
— Talvez eu compre um veleiro e saia navegando por aí, durante parte
de meu tempo. Claro, você e os meninos já estão convidados. — Michael
pegou a mão de Jane e colocou-a sobre o documento do banco.
— E se você não conseguir encontrar a tal mulher?
— Ah, vou achá-la. — No entender do detetive, Elisabeth Webster não
tinha a menor chance de permanecer escondida. — Pode ter certeza.
CAPÍTULO IV

Sim, é Beth — disse a balconista de farmácia chamada Suzy, após


estudar a fotografia de Elisabeth Webster que Michael lhe mostrava. — Só não
usava todos esses diamantes quando trabalhou aqui.
O detetive agitou-se por ter finalmente deparado com alguém capaz de
identificar a esposa de Webster.
— Lembra-se de quando foi?
— Dois ou três meses atrás. No fim de semana de Ação de Graças, ela
sumiu e não deu mais notícias. O dono, o sr. Perkins, ficou bastante
contrariado, pois no feriado o movimento aumenta.
Estava chegando perto, Michael ponderou. Após dez dias seguindo os
passos de Elisabeth pela Flórida e Mississípi, terminara na pacata cidade de
Eldorado, Arkansas, com população de 25 mil habitantes. Não era um lugar
concorrido como Miami e Palm Beach, onde vivera sete anos com o marido.
Algo surpreendente para uma mulher acostumada a um cenário de boates e
butiques de luxo.
— Seu patrão Perkins mencionou que ela abandonou o emprego por
causa de uma emergência em família.
— Para Michael, a família de Elisabeth se resumia ao filho de olhar sóbrio.
Suzy foi chamada por um cliente ao balcão e pediu licença para atender.
Enquanto esperava, Michael tentou conciliar a bela mulher que trabalhara
numa creche, no Mississípi, antes de se mudar para a sonolenta cidade do
Arkansas onde assumira o emprego de atendente de farmácia. Não fazia muito
sentido.
— Também temos refrigerantes e café expresso — Suzy ofereceu ao
retornar.
— Claro, um café vai bem. Beth chegou a contar que tipo de emergência
familiar estava enfrentando?
— Disse que a avó tinha ficado doente.
— Mas você não acreditou.
A corpulenta ruiva, que não parava de mascar chiclete, baixou o tom de
voz.
— Cá entre nós, não.
— O que acha que ocorreu? — indagou Michael, saboreando o café
recém-tirado da máquina.
— Creio que ela estava se escondendo de alguém. Vivia assustada. De
resto, Beth era quieta e pacífica. Parecia empenhada em não despertar
atenção, ao contrário de muitas que passaram por este balcão. Sei reconhecer
uma pessoa tímida, quando a vejo.
— O que realmente viu em Beth?
— Vi medo nos olhos dela. O mesmo medo do gato que recolhi à porta de
minha casa, depois de atacado pelo cachorro do vizinho. O bichano estava
morto de fome, mas não conseguia comer, de tanto pavor. Depois, passou a
me olhar como se esperasse ser expulso a qualquer momento. Perdera a
confiança nas pessoas.
Michael franziu a testa, imaginando a figura de uma Elisabeth
aterrorizada. Evitou, porém, sentir pena daquela mulher. Ela havia desposado
um homem com o dobro de sua idade e, infeliz no casamento, deveria ter
solicitado divórcio, em vez de drogar Adam Webster, roubar-lhe o dinheiro e o
filho. Dentre todos, o mais assustado seria o menino.
— Você viu o filho dela? — o interrogatório informal prosseguiu.
— Apenas duas vezes. Lindo garoto. Muito sério. Não sorria. A não ser
para a srta. Margaret.
— Margaret? — Michael tornou-se mais alerta.
— Margaret Schubert é a dona da pensão em que Beth se hospedou,
quando veio para Eldorado. Ela tomava conta do menino enquanto Beth
trabalhava. Segundo consta, era a única pessoa em quem confiava.
— Obrigado, Suzy. Você me ajudou muito. — Ao pagar pelo café, o
detetive deixou uma generosa gorjeta no balcão.
Foi fácil localizar Margaret Schubert. Fazê-la falar era mais difícil. A dona
de pensão diferia muito da loquaz e espevitada Suzy. Depois de gastar longos
minutos na tentativa de convencê-la de que ele não faria nenhum mal a Beth e
ao garoto, a mulher concordou em responder algumas indagações.
— Deixe-me ver sua identidade de novo — pediu Margaret e examinou as
credenciais, comparando o rosto do intruso com a foto no documento. — Você
não é o primeiro a perguntar sobre Beth.
— Sei disso. — A passagem da fugitiva por Eldorado constava dos
relatórios recebidos do cliente. Mas a esposa de Webster provavelmente
desconfiara do detetive que a procurava. Alertada pela srta. Margaret, fizera as
malas e partira para local ignorado.
— O homem disse que precisava localizar Beth por causa de uma
expressiva herança em dinheiro, deixada por um tio.
Michael havia aprendido que o melhor caminho era o da verdade.
— Que eu saiba, Beth, ou melhor, Elisabeth Webster, não tinha parentes
vivos. Ninguém exceto o marido e o filho. Estou procurando essa mulher a
pedido do sr. Webster. Ele quer se retratar pela briga que tiveram e deseja
recebê-la de volta em casa.
A dona de pensão assumiu uma expressão sombria ao arquear as
sobrancelhas.
— Não posso acreditar que Beth mentiu, dizendo que era viúva.
— Se servir de consolo, devo preveni-la para ficar fora de uma ação
legal.
— Que ação legal?
— Levar embora uma criança, sem o consentimento do pai, é
considerado rapto. Como a senhora ajudou, pode ser acusada como cúmplice.
— Como pode uma mãe ser incriminada por rapto do próprio filho? Nunca
ouvi tamanha bobagem. Ela cuidava bem dele. Gastava todo o dinheiro obtido
na creche.
— Foi bondade sua ajudá-la. — Michael procurou tranqüilizar a senhora.
— O marido pode mandar-lhe uma recompensa.
— Está dizendo que o marido é rico?
— Sim, perfeitamente.
Margaret Schubert pareceu admirada e balançou sua cabeça grisalha.
— Minha jovem hóspede dava a impressão de não ligar para dinheiro.
Pagava integralmente a pensão, apesar de cooperar na limpeza da cozinha e
na arrumação dos quartos.
— Aparentemente, ela gostava da senhora.
— E eu dela — a srta. Schubert afirmou. — Não quero causar nenhum
problema a Beth, por falar com você.
— Se deseja ajudá-la, conte-me onde ela está. Mesmo que Elisabeth
decida não voltar para o marido, tem direito a uma boa pensão. E penoso para
ela trabalhar e cuidar de um filho de três anos.
— Nunca se queixou. Como eu disse, era extremamente dedicada a
Timmy. Para ela, o dia começava e findava zelando pelo menino.
— O marido afirma que ela sempre foi uma boa mãe — o detetive
mentiu. — A senhora quer ou não uma recompensa?
— Não me importo com isso. Se Beth fugiu do marido, deve ter seus
motivos.
Michael começou a pensar se aquela mulher de cabelos acinzentados não
tinha razão. Adam Webster não era propriamente uma flor de pessoa. Por vício
profissional, cortou o devaneio.
— Só sei que tiveram uma discussão e, em seguida, ela saiu de casa
levando o filho. A senhora compreende como o sr. Webster está preocupado.
— Suponho.
— Há muita gente má no mundo. O sr. Webster teme que Beth seja
identificada por algum marginal e seqüestrada por causa de um volumoso
resgate. Ou seja, Beth e Timmy correm perigo.
— Oh! — a dona de pensão exclamou, alarmada. — É a desvantagem de
ser muito rico.
— Gostaria que a senhora apenas mencionasse um lugar, ou uma
pessoa, que me auxiliasse na busca de Beth. Estará fazendo um grande favor a
ela.
— Bem, não sei ao certo — a srta. Schubert começou. — Parece que ela
falou em ir para Nova Orleans. Alegou que a avó e um velho amigo moravam
lá.
— O nome desse amigo?
— Não perguntei.
— Obrigado, senhora. Foi de grande ajuda. — Michael apertou a mão
calejada e preparou-se para sair.
— Caso encontre Beth, pode lhe entregar algo?
— Claro.
A mulher desapareceu nos fundos da casa e, quando voltou, trouxe uma
fotografia ampliada. Era de Elisabeth Webster e de seu filho Timmy. Mas ela já
não se mostrava glamourosa como nas fotos anteriores, nem exibia
diamantes. Os cabelos mal lembravam os antigos fios loiros, bem tratados, os
lábios estavam ressequidos, sem batom. Faltava um mínimo de sensualidade à
figura, embora a imagem, de meio corpo, permitisse prever atraentes curvas
abaixo da cintura. A roupa se resumia a jeans velhos e uma camiseta cor de
laranja. Segurava o menino no colo e, tal como ele, não sorria.
— Tirei essa foto um dia antes da partida de Beth.
Ela e o filho estavam limpando o quintal para mim. Pareciam felizes, num
dia de sol. Acho que Beth gostará de guardar a fotografia, para relembrar os
momentos que passou aqui.
— Sem dúvida — Michael concordou, devolvendo a foto ao envelope.
Mais tarde, no quarto de hotel, o detetive fez algumas ligações e
planejou uma visita à vizinhança em que morava a avó de Elisabeth.
Impulsivamente, retirou do envelope a foto tirada pela srta. Schubert e a
comparou com a imagem emoldurada que Adam Webster lhe fornecera. "Quem
é você?", perguntou a si mesmo, intrigado com o mistério em torno de
Elisabeth. Não era uma mercenária, uma cavadora de ouro, e também não
parecia uma inocente disposta a cuidar da velha avó doente.
O toque do telefone tirou Michael desses pensamentos perturbadores.
— Recebi seu recado. — Era Adam Webster. — Tem novidades para mim?
Achou Elisabeth?
Ele rilhou os dentes, incomodado com a cobrança, então lembrou-se de
que o empresário estava pagando um alto preço por seus serviços.
— Ainda não — respondeu. — Mas estou chegando perto. Falei com
algumas pessoas, aqui no Arkansas, e elas parecem conhecer o paradeiro de
Elisabeth. Aliás, eles a conhecem por Beth. Ela deixou a cidade há uns dois ou
três meses.
— Importa-me saber onde ela está, Sullivan, não onde esteve.
— Continuo investigando, só que não é fácil, porque um ou dois palhaços
me precederam e assustaram as pessoas que podiam dar informações.
— Se fosse fácil, não lhe pagaria tanto dinheiro. — Adam fez uma pausa.
— Claro, caso pense que não é capaz de encontrá-la...
— Eu vou achá-la, junto com o filho. Uma dona de pensão me deu uma
foto recente dos dois.
— Gostaria de vê-la.
— Pela manhã, passo por fax. Minha próxima escala é Nova Orleans.
Consta que sua esposa foi ver a avó dela.
— A avó dela morreu há mais de dez anos, Sullivan. Não perca tempo.
— De qualquer modo, é uma pista quente. Estou ciente do prazo que
você me deu.
— Trinta dias. E não me decepcione.
— No fim desse prazo, eu lhe entregarei Elisabeth e Timmy.
A conexão foi desfeita. Cansado, Michael reclinou-se na cama. Tinha o
sono atrasado. Apesar disso, descobriu por telefone a existência de um trem
noturno para Nova Orleans. Aprontou sua mala e partiu.
— Mamãe, estou me sentindo mal — queixou-se Timmy a Lily, deitado na
grande cama da casa de Gertrudes.
— Já sei — ela murmurou, levando a mão à testa do garoto. — Você tem
catapora, mas o remédio que o dr. Brinkman lhe deu vai deixá-lo melhor logo.
— Vou fazer um bolo para ele — avisou Gertrudes Boudreaux, entrando
no quarto.
— De chocolate? — Timmy animou-se.
— Acho que sim. Mas seja um bom menino e descanse, enquanto sua
mãe vai trabalhar.
— Não tenho sono.
—Não faz mal. Fique deitado e quieto — pediu Lily. — Assim vai
melhorar.
— Você me trará um doce quando voltar?
— Uma surpresa, sim — a mãe prometeu. Não podia recusar nada ao
filho adoentado. — Duas. Uma para você, outra para seu ursinho de pelúcia.
Mas, como disse Gertrudes, você tem de se comportar bem.
— Certo — disse o menino, agarrando o urso. Embora ele fechasse os
olhos para tentar dormir, Lily relutou em sair. Seguiu Gertrudes, porém, para a
cozinha da casa pequena. A velha amiga de sua avó a confortou.
— Cuide-se você. O caso de Timmy não é grave.
— Mas ele parece tão abatido! E não comeu nada esta manhã.
— Vou lhe fazer dois ovos.
Lily estava atrasada para o trabalho. Mal tinha dormido, depois de
descobrir que o filho tinha febre e constatar, durante o banho morno, que
manchas vermelhas pipocavam no corpinho dele. Pela manhã, o pediatra havia
dado o diagnóstico por telefone, mas isso não bastara para afastar as
preocupações maternas.
— E melhor você se sentar, antes que caia.
— Obrigada. Não quero comer e preciso ir trabalhar.
— Alimente-se primeiro, ou ficará doente também. Sem condições de
discutir, Lily admitiu que a velha senhora tinha razão. Ocupou a mesma
cadeira em que havia se sentado dois meses e meio antes, despejando suas
aflições sobre a ex-vizinha de porta de sua avó, em Nova Orleans, agora gorda
e toda grisalha. Mas ela continuava prestativa e bondosa. Acolheu Lily e o me-
nino como legítimos parentes.
— Ainda não acredito que Timmy tenha catapora.
— Coisa normal em crianças — comentou Gertrudes, ao trazer ovos fritos
e pão de fôrma para a mesa, onde já fumegava uma boa xícara de café. Lily
serviu-se com inesperado apetite.
— O médico disse que ele deve ter pegado a doença na escolinha.
— Ou na mercearia ou na lanchonete em que você o leva. Não há nada a
fazer, a não ser esperar.
— Viu os olhos de Timmy? Tão fundos!
— Ele se animou com a idéia de ganhar uma surpresa — Gertrudes
tranqüilizou-a. — Vou fazer um bolo de chocolate para ele. Nós, avós, estamos
autorizadas a estragar os netos.
— Obrigada por tudo, Gertrudes. Por amar meu filho.
— Isso não é difícil. Ele é uma graça. Quando crescer, vai partir muitos
corações femininos.
Com certeza, o garoto tinha roubado o da mãe. Desde que engravidara,
Lily tinha amado o ser que carregava no ventre, em contraste com a
indiferença, e até a hostilidade, de Adam Webster. Como fizera em sete anos
de convivência, ela havia questionado o quanto o marido estava cego,
mostrando-se mais preocupado com a perda da bela silhueta de sua mulher.
Ainda assim, Lily não deplorava o casamento com Adam. Porque sem ele, não
existiria Timmy.
— Vai acabar de comer ou ficar pensando? — Gertrudes perguntou à
jovem amiga.
— Desculpe-me. — Terminou a pequena refeição e voltou ao quarto do
filho, que dormia.
— Lily, você precisa parar de se afligir com ele. Timmy ficará bem —
garantiu Gertrudes atrás dela.
— Eu sei. Ainda mais cuidado por você. Mas não consigo parar de me
preocupar. Por falar nisso, eu tive catapora quando criança?
— Certamente. Mas a sua foi muito intensa, e sua pobre avó se
desdobrou. Ela imaginava, coitada, que você ficaria com marcas e cicatrizes.
— Não me lembro — Lily admitiu.
— E Timmy também não vai se lembrar.
Dez minutos depois, Lily saiu rumo à lanchonete. Já eram quase onze
horas e ela temia que Nancy Lee, a proprietária, caísse em cima dela. No
entanto, para ver Timmy bem, ela enfrentaria dezenas de Nancys, centenas de
Adams.
— Leve um casaco — Gertrudes ainda recomendou, sempre vigilante.
— Deixei no carro — Lily esclareceu. — Eu imaginava Nova Orleans como
uma terra quente.
— E é, menos em fevereiro.
Lily acenou em despedida, já ao volante do gasto automóvel, comprado
de segunda mão. Lamentava dar tanto trabalho a Gertrudes, pensava
constantemente em se instalar sozinha, num apartamento simples. Seria
difícil, porém, viver sem as extremas atenções da velha amiga, depois de
sofrer os acessos de possessivi-dade de Adam. Aliás, duvidava muito de que
ele tivesse desistido de procurar por ela em todo o país.
A não ser, bem entendido, que o marido tivesse outras preocupações,
como a de que a polícia descobrisse seu envolvimento na execução de um
agente federal. Os dados sobre o crime estavam no disquete que ela havia
subtraído do cofre de Adam, na manhã da fuga. Estremeceu ao recordar como
enganara o marido, levando-o a designar Otto, o segurança e motorista, para
acompanhá-la junto com o filho a uma consulta médica que não existia.
Tinham escapado pela porta dos fundos do prédio, após pedirem para usar o
banheiro.
Ela se lembrava de ter observado no jornal a foto do agente morto,
chamado Carter. Vira-o, dias antes, no escritório de Adam. Ao apanhar o
disquete, estava certa de que continha dados sobre a participação do marido
no crime organizado em Miami. Será que o FBI ainda não havia descoberto a
conexão? Tinha feito uma denúncia anônima, por telefone, mas aparentemente
Adam não chegara a ser investigado como suspeito. Se isso acontecesse, ele
deixaria de procurá-la, e ela não mais precisaria fugir, assustada.
Poderia planejar um futuro para ela e Timmy, além da simples
necessidade de permanecerem vivos.

CAPÍTULO V

Michael estava esperançoso de agarrar a fugitiva. Fingindo ocupar-se


do teste de palavras cruzadas do jornal aberto sobre o balcão da River Bend,
ele estudou a garçonete. Havia pago cem dólares a um informante
supostamente confiável, e este tinha jurado, sobre a fotografia de Elisabeth
Webster, que a moça trabalhava naquela lanchonete.
O detetive examinara as três atendentes de touca e avental que rodavam
pelo salão, bem como a chapeira, e nenhuma delas se parecia com Beth. A
loura oxigenada que se portava como a dona do local devia ter o dobro da
idade da esposa desaparecida de Adam. A trintona alta e morena, com aspecto
de italiana, aparentava ser natural demais para ter mudado a cor dos cabelos.
A única que poderia se encaixar na descrição era a ruiva que não tirava os
olhos de Michael, desde que este cruzara a porta. Era jovem e sexy o
suficiente. Poderia ser a própria Elisabeth Webster.
Sim, talvez no escuro e num dia feliz, ele concluiu após uma inspeção
mais detalhada. Embora atraente, a ruiva carecia dos traços finos e da beleza
arrebatadora da mulher procurada. Os olhos mostravam expectativa, inocência
e tristeza, as mesmas que constavam da foto. Faltavam-lhe, contudo, o
genuíno brilho de alguém determinada a fugir do marido, levando o filho.
Maldição! Michael imaginara estar na pista certa ao localizar a pretensa
vizinha da avó de Beth em Nova Orleans. O que ele não sabia era que o
sobrenome Boudreaux, de origem francesa, era tão comum ali como Smith no
resto do país. Havia se guiado pela inicial G na lista telefônica, mas tanto podia
ser homem como mulher. A voz ao telefone, quando ele desligou sem nada
falar, não ajudara a dirimir a dúvida. Descartou a possibilidade de que G.
Boudreaux fosse a senhora que tinha sido vizinha da jovem Elisabeth Webster,
nascida Jeffries, doze anos antes.
Michael gastou um bom tempo telefonando a outras pessoas de igual
sobrenome, depois desistiu. Procurou um antigo colega, Jefferson Parish, da
polícia municipal de Nova Orleans, que lhe indicou um informante, bom
conhecedor da cidade.
O detetive o considerou tão confiável quanto uma serpente, mas lhe
passou uma nota de cem pelo serviço, afinal bem cumprido. Agora, ele olhava
a morena postada atrás do balcão da lanchonete e pedia mais um café,
confessando ter gostado do primeiro.
— Nunca vi você por aqui — a garçonete chamada Gina esticou a
conversa. — E novo na cidade?
— Sim, sou procedente de Houston.
— Grande e bonita cidade. Visitei-a dez anos atrás, com meu segundo
marido. Veio para a festa do Mardi Gras?
— Ainda não resolvi se fico até o fim de semana.
Estava trabalhando na região e tirei alguns dias de folga. Um amigo me
recomendou à irmã dele, que mora na cidade, mas não consegui encontrá-la.
— Bem, Nova Orleans chega a ser provinciana. Todos conhecem todos.
Qual é o nome da irmã de seu amigo?
— Eis a questão. Não tenho certeza do nome que ela está usando. Parece
que é Beth, obviamente um apelido.
— E o sobrenome?
— Casou-se e meu amigo não tinha o novo sobrenome. Deu-me uma
fotografia. Talvez, se você a visse...
— Desculpe-me, querido. A outra garçonete acaba de entrar e tenho um
recado para ela.
Michael voltou-se e viu a mulher de casaco cinzento e chapéu úmido por
causa da garoa. Gina correu até ela e conversaram um pouco. Outro cliente
encostou-se no balcão, exigindo a presença de Gina. Enquanto ela não
retornava, o detetive pôde observar à vontade a recém-chegada.
Era loura, mas não pálida, cabelos cor de mel. Vestia uma malha peluda
sob o casaco que tirou e pendurou num cabideiro. Mostrava-se esguia, de
formas bem definidas. Falsa magra, certamente. Belo par de pernas.
— Lily, Nancy Lee quer falar com você no escritório — Michael ouviu Gina
dizer.
— Já vou — a outra replicou.
Lily chegou perto e Michael perdeu o fôlego, comovido ao ver o rosto
bonito e delicado, marcado por admiráveis olhos verdes.
Era ela.
Elisabeth Webster fora finalmente encontrada, ele pensou enquanto a
garçonete desaparecia pela porta dos fundos do salão. Só restava saber se ela
estava de posse do filho, e então o detetive ligaria contente para Adam
Webster.
— Sinto muito ter demorado — Gina falou, reassumindo seu posto.
— Sem problema.
— Se você quiser, pode me mostrar a fotografia que mencionou.
— Ah, esqueci no quarto do hotel — Michael improvisou, decidido a não
deixar transparecer que havia localizado Elisabeth Webster, também conhecida
por Lily qualquer coisa. Havia muito dinheiro em jogo, o resto do preço
combinado.
— Então, volte aqui em outra hora. Se eu puder ajudar...
— Obrigado, Gina. Gostei de tê-la conhecido. Aliás, meu nome é Michael
Sullivan.
— Descendente de irlandeses? Parece mais italiano, com esses cabelos
escuros e pele morena.
— Não, sou irlandês de pai e mãe.
— Ah! — Gina exclamou com um suspiro e inclinou-se para o cliente.
— Nancy Lee provavelmente vai me censurar, mas você pode sentar-se a
uma mesa para terminar essas palavras cruzadas. A lanchonete não fica cheia
antes do meio-dia. Faltam trinta minutos.
— Farei isso — avisou Michael, deixando uma nota de cinco dólares para
pagar a conta.
— Já lhe levarei o troco.
— Guarde para você.
— Puxa, obrigada. — Gina balançou a cabeça em agradecimento e enfiou
o dinheiro no bolso do avental.
— Qual é o setor da moça que acaba de entrar? — Michael indagou, sem
deixar qualquer dúvida sobre suas intenções.
— Eu devia ter percebido que ela é mais seu tipo de mulher do que eu.
A balconista sorriu, provando que estava sendo mais amigável do que
interesseira. Mas o detetive preocupou-se em não ferir os sentimentos dela.
— Sinto muito — murmurou.
— Não há problema. Lily é realmente bonita. Eu a odiaria se não fosse
não meiga e boa colega. Felizmente, alguns homens preferem meninas com
um pouco mais de carne, não é? — Gina riu abertamente e apontou. — As
mesas dela ficam ali.
— Obrigado. E não se deixe enganar por homens de aparência italiana.
Lily tem muitos admiradores?
— Alguns.
— Por acaso é noiva ou casada? — Ele julgou que já conhecia a resposta.
— Pior, é viúva e ainda pensa demais no falecido marido.
Michael não disfarçou a surpresa e ergueu as sobrancelhas.
— Muito jovem para ser viúva, não acha?
— Não. Eu me casei pela primeira vez aos 16 anos.
— Por que diz que ela ainda pensa no marido?
— Mera dedução minha, já que Lily não demonstra interesse por novos
relacionamentos.
— Talvez não tenha conhecido o homem certo — disse Michael, levando o
café e o jornal para a mesinha.
— Então, quem é o bonitão moreno? — perguntou Amber ao reunir-se a
Gina atrás do balcão. Juntas, elas observaram o cliente sentado perto da
janela. — Tão charmoso assim, só pode ser gay.
— Por que pensa isso? Que maldade!
— Tenho experiência. Um homem atraente e sozinho, sentado a um
canto, deve estar procurando um parceiro. Eu lhe dei meu melhor sorriso, e
ele, nada.
Gina balançou a cabeça, em recriminação à colega.
— Garanto que não é gay. Ele ficou interessado em Lily.
— Concorrência desleal! — Amber protestou. — O que os homens vêem
nela?
— Vamos ser justas. Ela é bonita e sensual.
— E eu, o que sou? Um figo seco? Gina riu.
— Não pode se queixar, com tantos pretendentes. E o motorista de
caminhão que a convidou para sair?
— Cuidado com o que diz, Gina. Procuro ser sempre discreta. Quase não
uso maquilagem, evito roupas extravagantes...
— Mas sempre mostra suas garras.
— Nada tenho contra Lily. Quero que ela seja feliz, apenas devia cuidar-
se mais, mostrar-se um pouco mais sedutora.
A suposta viúva não precisava disso, segundo Gina. Tinha uma beleza
suave, etérea, como uma Grace Kelly. A ponto de chamar até mesmo a
atenção de Ricardo.
— Talvez Lily atraia todos os olhares justamente por manter distância.
— Não faz sentido — Amber comentou.
— Nem sua teoria de que o homem com o jornal seja gay.
— Já escolheu ou quer mais tempo? — Lily perguntou a Michael.
— O que é o especial do dia? — Ele colocou o dedo sobre a linha
impressa no cardápio.
— Arroz, feijão, lingüiça e ovo. Acompanha pão francês.
— E é bom? — Michael questionou, com um caloroso sorriso.
— A lanchonete lota nas segundas-feiras, dia do melhor feijão da cidade.
— A garçonete também sorriu.
Michael depositou o menu na mesa.
— Resolvido. Traga-me o especial.
— E para beber? Só café?
— Chá gelado cai bem.
Ela anotou o pedido e fez menção de afastar-se, mas pareceu
momentaneamente paralisada pelos olhos azuis e intensos do detetive. Supôs
conhecê-lo de algum lugar e que, em vez de amizade, ele lhe trazia perigo.
— Lily é um belo nome — elogiou o detetive a fim de retê-la.
— Obrigada.
— Eu sou Michael. Michael Sullivan.
Lily balançou a cabeça como forma de sociabilidade.
— É melhor eu tratar de seu pedido. — Partiu rumo ao balcão, parando
em outras duas mesas para anotar as escolhas.
Ela pôde sentir nas costas o olhar de Michael Sullivan. Quando girou para
ele, porém, viu-o entretido com as palavras cruzadas. Para o detetive, com
nervos abalados, conhecer Lily não era o suficiente para garantir calma.
Estava sendo tola, disse a garçonete a si mesma, enquanto enchia um
copo de chá gelado. Não podia ser alguém conhecido, e sim um homem que
simplesmente gostava de flertar. De maneira nenhuma queria repetir a
situação vivida dias antes, ao ignorar os sinais feitos por um cliente. Ferido em
seu ego, o freqüentador havia lançado um copo ao chão e saído furioso.
Na verdade, Lily empenhava total esforço em distanciar-se da imagem de
Elisabeth Webster que Adam havia criado. Cabelos louros bem cuidados,
roupas justas e decotadas revelando curvas, isso ficara no passado. Imaginava
e temia a fúria do marido caso a visse tão despojada. Ela se esmerava em
conter o balanço do corpo atraente e os olhares naturalmente sedutores.
Mantinha-os semicerrados na maior parte do tempo, procurava transmitir o
máximo de discrição. Não podia esquecer-se dessas cautelas, se quisesse
continuar com o filho Timmy a seu lado.
— Oh... Desculpe-me. — A um toque de Amber no braço, Lily fechou a
torneira da máquina de refrigerantes. Tinha derramado chá, depois de encher
o copo.
— Você está bem? — quis saber a colega. — Parece distraída.
— Um pouco cansada, talvez. Dormi mal, por causa de Timmy.
— Sei. Você deveria levá-lo ao médico.
— Mas o problema já está definido: catapora.
— Oh, coitadinho! — Amber fez um ar de tristeza.
— Algum terremoto por aqui? — Gina perguntou, aproximando-se como
quem conhecia a situação. — Você já foi com seu filho ao médico?
— Não, mas está tudo sob controle.
— Meninas, vamos trabalhar? — inquiriu Nancy Lee, saindo da cozinha
com um prato fumegante de arroz e feijão.
Lily não era de esperar a segunda censura. Colocou o especial do dia
numa bandeja, junto com o chá, lembrando-se de que em dois meses havia se
tornado uma profissional. O lugar oferecia comida boa e barata, vivia repleto.
As gorjetas recebidas eram importantes em seu orçamento. Precisava de
dinheiro extra para o médico e novos remédios. Marcaria a consulta para o dia
seguinte. Só queria estar certa de que Adam Webster não se achava em seu
encalço, por meio de um detetive ou agente que bem poderia ser Michael
Sullivan.
O cozinheiro tocou a campainha, avisando da saída de mais uma
refeição. O movimento na Lanchonete River Band aumentava rapidamente. Lily
ocupou-se dos pedidos sem descanso, até à uma hora da tarde. Perdeu a
conta dos atendimentos feitos, incluindo a sobremesa de bolo do rei. Com
exceção da mesa de Michael, as outras eram ocupadas por duas ou mais
pessoas. Ela agradeceu a gorjeta, embora magra, que uma dupla de
secretárias deixava e caminhou para o canto de Michael. Retirou o prato
usado, completado por uma taça de pudim, grata ao fato de que a correria da
hora do almoço estava terminando.
— Mais café? — perguntou ao cliente imperturbável.
— Seria perfeito para regar o pudim, que estava ótimo. Obrigado.
— De nada. Você conseguiu completar as palavras cruzadas?
— Quase — ele afirmou, aparentando pouco entusiasmo com o teste.
Lily retornou ao balcão, onde se sentia mais segura, e encheu uma xícara
de café.
— Então, o que está achando do vaqueiro texano? — Gina perguntou
maliciosamente. — Belo exemplar de homem.
— Você acha? — Lily desviou o olhar. "Belo" seria a palavra que
empregaria para Timmy, não para um macho atraente que a excitava por seu
ar alheio, rosto sereno, olhos azuis e forte linha do maxilar. Observara-o
diversas vezes, de longe, suspeitando de que possuía vigorosos músculos. As
mãos, ao contrário das de Adam, não revelavam vestígios de uma ida à
manicura, mas gostaria de examiná-las mais de perto, e descobrir se tinham
calos. Não, "belo" não descrevia Michael. Sexy, talvez.
Em seu escrutínio, o olhar do detetive encontrou-se com o dela. Pelo
tempo de um batimento cardíaco, Lily não pôde respirar. Arrumou a xícara na
bandeja e ensaiou um retorno ao trabalho.
— Ele me contou que trabalha perto da cidade — Gina interrompeu. —
Talvez no porto ou num navio, desconfio.
— Você está falando do novo admirador de Lily? — Era Amber, que se
acercou das outras duas.
— Meu admirador? — Lily franziu a testa.
— Não notou aqueles olhos sonhadores? Qualquer mulher ficaria tocada.
— Tudo bem. — Era desconfortável, para a sofisticada Elisabeth Webster,
enfrentar amigas que só pensavam em homens. Ela, ao contrário, passara a
adolescência cuidando da avó doente, depois fora trancada num internato e
Adam, como um moderno Pigmalião, a desposara ao encerrar sua missão de
lapidá-la, tornando-a chique e diferente. Ele havia deixado claro que a única
coisa que esperava era que Elisabeth fosse esposa e amante perfeitas. Mesmo
em festas ou coquetéis, ela evitara criar novas amizades, especialmente com
mulheres. Ouvira críticas veladas e boatos de que conquistara Adam por meio
do sexo e dera o golpe do baú. A única verdadeira amiga vinha sendo Emily, a
jovem independente e determinada, dona da floricultura que ela freqüentava.
Ciente de seus problemas, Emily a havia encorajado a fugir de casa,
abandonar Adam e estabelecer uma vida própria, trabalhando meio período na
loja de flores. No entanto, duas semanas depois da proposta, a floricultura de
Emily foi destruída num incêndio misterioso. Nunca mais a vira.
— Lily, é melhor você não ficar doente. Basta Timmy. — O apelo veio de
Amber.
— Não — completou Gina. — Ela está bem, exceto pelo coração
acelerado. Por que não leva o café e a conta, Lily?
— Uma de vocês poderia fazer isso, em vez de me atazanar.
— Está brincando? A mesa é sua, o cliente bonitão é seu.
— Seria um favor — rebateu Lily. — Nancy Lee disse que eu poderia sair
mais cedo, por causa de meu filho.
— Nesse caso, ficarei contente em ajudar — Amber ofereceu-se.
— Mas a gorjeta é dela — preveniu Gina.
— Não faz mal.
— Você precisa — a colega insistiu. Amber só gasta dinheiro com roupas
e cosméticos, não com filhos doentes.
Mas a outra já tirava a bandeja das mãos de Lily, dizendo que ela devia ir
logo para casa.
— Eu vejo vocês amanhã — informou a jovem mãe, tomando um
corredor que lhe permitia sair do estabelecimento sem cruzar com Michael
Sullivan.
— Claro, amanhã. Caso você não vá para o Texas junto com seu
admirador — Amber emendou.
— Não estou interessada, juro. Ele é todo seu.

CAPÍTULO VI

Por quanto tempo vai ficar na cidade? — Amber perguntou.


— Não sei ao certo — disse Michael, fazendo o possível para desestimular
a mulher que praticamente se oferecia a ele. Manteve um olho no corredor por
onde Lily desapareceu.
— Os desfiles de carros alegóricos e fantasias do Mardi Gras duram todo
o mês. Se tiver alguma dificuldade em ir à festa...
— Não, não tenho.
— Bem, no fim de semana, se precisar de companhia...
Quando Amber caiu em silêncio, temerosa da própria inconveniência,
Michael julgou que ela merecia uma resposta. Mas ele estava mais preocupado
em não perder o rastro de Lily.
— Perdão, não entendi o que disse.
— Imaginei que você gostaria de ver um ou dois desfiles, mas não
sozinho.
— Ah, claro. Acho que sim. — Michael notou que Lily voltara ao salão, já
sem avental, e apanhava seu casaco no cabideiro.
— Ótimo. Sábado à noite? — Amber prosseguiu. — Estaremos fechados
por causa do evento popular.
Droga! Michael avaliou que era assediado e, pior, induzido a fazer algo
que não desejava.
— Sinto muito. Prometi a uma amiga levá-la para pescar, numa excursão
de barco.
— Pescar? Na melhor noite de Mardi Gras?
— Obrigado pelo convite. Marcaremos outra ocasião.
— Sim, outra ocasião — murmurou a garçonete, com desapontamento
explícito.
— Puxa! Tenho de ir. — Ele consultou o relógio para despistar e ergueu-
se. Deixou uma nota de vinte dólares sobre a mesa, que pagava a conta com
boa sobra. — Obrigado de novo. Não é todo dia que uma mulher simpática me
faz um convite desses. Fico feliz.
— Eu também, ainda mais com essa gorjeta. Venha sempre e encontrará
mulheres simpáticas.
Michael abotoou o paletó e partiu. Andou lentamente pela rua, olhando
para todos os lados, tentando avistar Elisabeth, também conhecida como Lily.
Onde ela teria se escondido? De novo?
Ele entrou no Ford alugado, ligou o motor, ajustou os espelhos e teve
sorte em reconhecer Lily caminhando pela calçada oposta, até alcançar um
velho Chevrolet, cuja porta abriu imediatamente. No momento em que ela
entrou no tráfego da rua, o detetive passou a segui-la.
Vinte minutos depois, a loura de cabelos cor de mel chegou a um bairro
modesto, de construções térreas e desgastadas pelo tempo. Apesar dos
terrenos pequenos, havia jardins bem cuidados, alguns dotados de carvalhos e
azaléias que davam um colorido de rosado e vermelho ao lugar.
Michael estacionou na esquina e observou Lily sair de seu carro e subir os
degraus de uma estreita varanda. Recostou-se no banco, preparado para
esperar. Teve tempo de comparar Lily com Elisabeth Webster. Tal como a
mulher presente na fotografia, era clara sua fragilidade. Ou melhor, suavidade,
uma beleza sutil que faltava no glamoroso retrato mostrado pelo marido.
Certamente não se parecia com alguém capaz de dopar o esposo e roubar-lhe
dinheiro, jóias e o filho.
Outra certeza apoderou-se do detetive: existia um problema sério na
vida do casal. Além disso, se Lily tinha recursos, por que dirigia um velho
Chevrolet amassado e morava pobremente? Elisabeth Webster se comportara
como uma cavadora de ouro. Como aceitava aquele tipo de situação? Não
tinha lógica.
De qualquer modo, Michael ponderou, não havia necessidade de lógica.
Ele lembrou-se de si mesmo e de Pete. Não tinha aprendido uma lição com
Giselle? Qualquer que fosse o problema de Elisabeth, não lhe dizia respeito.
Cabia-lhe somente levar a mulher e o filho de volta a Adam Webster. Feito
isso, receberia o pagamento restante e convenceria Jane a aceitar mais ajuda
em dinheiro. Isso lhe traria finalmente um pouco de paz.
Sentado dentro do Ford, Michael passeou os olhos treinados pela casa em
que Lily entrara. O sol já se punha e o frio da noite chegava. Ele se encolheu
no carro, estreitando o paletó contra si, e pensou ardentemente em um café
bem quente. Permaneceu em vigília, porém, pois precisava ver o garoto e
certificar-se de que continuava na companhia da mãe.
As oito e meia, Michael deduziu que Lily ou Elisabeth havia entrado na
casa para ficar. Poderia voltar ao hotel e retornar ao local pela manhã. Chegou
a segurar a chave na ignição, quando viu Lily sair. Sozinha. Ela ligou o carro e
parou dois quarteirões acima, seguida pelo detetive. Ali, ingressou numa
moradia semelhante à anterior, que ostentava um cartaz de "Vende-se ou
Aluga-se". Michael anotou o endereço e novamente se conformou em
aguardar.
Trinta minutos depois, como as luzes estavam apagadas e a calma
reinava, o detetive desceu do carro disposto a examinar as redondezas e, se
possível, entrar na casa escura. A rua continuava sem movimento. O distante
latido de um cão era a única quebra de serenidade.
Parado diante da fachada, ele constatou que a placa da imobiliária
referia-se à casa vizinha, gêmea daquela em que Lily tinha entrado. Decorou o
número de telefone anunciado. Fingiu ter um pedrisco no sapato e removeu-o,
para o caso de algum morador estar observando. A fraca luz do poste, pôde ler
na caixa de correio o nome Tremont.
Voltou a calçar-se e continuou rua abaixo. Contornou o quarteirão e
entrou no seu carro. Rumou para o hotel a fim de fazer uma série de
telefonemas.
— Olhe quem está aqui de novo! — exclamou Gina com sua voz rouca.
Sem olhar, Lily simplesmente soube de quem se tratava. Era o mesmo
Michael Sullivan que viera almoçar ali na segunda-feira. Por alguma razão, ele
impressionara suas colegas a ponto de elas comentarem o assunto diversas
vezes.
— É seu cliente, Lily — Gina a incentivou.
Lily tirava um café expresso e se preparava para a concorrida noite de
quarta. Confirmou com um olhar que Michael ocupava uma mesa de seu setor.
— Se preferir atendê-lo, Gina, fique à vontade.
— Não — a outra assegurou. — E não peça a Amber. Parece que ela
começou um romance com aquele caminhoneiro. Vá você, e boa sorte.
Nancy Lee, a dona da lanchonete, veio observar o movimento.
— Vocês estão paradas? Com um cliente esperando sentado?
— É o sujeito do Texas, que esteve aqui outro dia. Chama-se Michael
Sullivan.
— O Texas produz homens interessantes, não? — comentou Nancy. —
Mas ele me lembra mais um irlandês. Sei disso por causa dos dois maridos que
tive. Por que ninguém o atende? Ele as ofendeu ou coisa parecida?
— Não, de modo algum — Gina afirmou.
— Então, qual o problema?
— Sem problema — Lily retrucou. Mas havia um: a sensação de que
Michael Sullivan não era apenas um trabalhador do porto. Pela aparência,
podia muito bem ser funcionário de uma das companhias de petróleo da
Louisiana, que atraíam profissionais qualificados para a região. No entanto,
existia algo naqueles olhos azuis que indicava uma atividade diferente, urbana.
Um advogado? Um investigador?
Talvez estivesse ficando paranóica, Lily lamentou-se, desejando superar
a suspeita quanto ao cliente e aceitar as atenções que ele lhe dedicava, sem se
preocupar com a obsessão de Adam Webster por localizá-la. Não conseguia,
porém, pois a segurança de Timmy estava em primeiro lugar. Ainda assim, ela
apanhou um cardápio e um copo de água gelada. Levou-os rapidamente para
Michael.
— Lily, não é? — ele se manifestou ao vê-la aproximar-se da mesa.
— Sim, senhor. — Ela sentiu os dedos dele roçando nos seus, ao entregar
o menu. Recolheu a mão depressa, mas o olhar de Michael continuou
causando-lhe apreensão.
Tinha havido um tempo em que Lily, reproduzindo a fantasia das colegas
de trabalho, pensara em encontrar seu príncipe encantado entre os
freqüentadores da lanchonete. Aquecia seu corpo e coração a idéia de ex-
perimentar atração por um homem sedutor. A perseguição movida por Adam
Webster, porém, a levara a retrair-se. Ser mãe era o único papel que aceitava.
Um belo sorriso masculino podia representar a sua ruína.
— Qual o prato especial do dia? — Michael perguntou.
— Costeleta de porco ou bife de panela, com arroz e salada. A sobremesa
é pudim de pão com caldo de rum.
— O que você recomenda?
— Qualquer um dos dois. O bife de panela é menos gorduroso.
— Então é o que vou pedir.
Ele devolveu o cardápio, que não chegara a consultar. Lily o introduziu
debaixo do braço.
— Para beber?
— Chá gelado, naturalmente.
— Obrigada, só demora um minuto.
Demorou dez para Lily retornar com a bandeja cheia, aliviada por ver
Michael entretido com uma revistinha de palavras cruzadas. Nunca havia visto
alguém com essa mania, que tinha a vantagem de evitar uma conversa
forçada.
Mas ela não foi brindada com tanta sorte. Michael iniciou um diálogo ao
comentar que o aroma do prato era muito bom. Lily ajeitou sobre a mesa uma
cesta de pão.
— E verdade que o segundo copo de chá é grátis?
Nada constava a esse respeito. Pura manobra daquele homem para
manter acesa a conversação. Sensual e musculoso, ele lembrou-lhe Adam,
com sua preocupação de cuidar da forma física e ingerir comida pouco
gordurosa e bebidas não calóricas. As vezes, o desempenho sexual do marido
era incrementado por comprimidos estimulantes. Ao perceber-se comparando
Michael com Adam, Lily sentiu tremor nas mãos e verteu um pouco de chá do
copo que segurava.
— Oh, sinto muito. Sua revista...
— Não se preocupe. — Ele passou o guardanapo sobre a página molhada.
— Vou lhe trazer outro guardanapo, seco — anunciou ela.
Em vão, pois Michael a reteve pelo pulso e fixou nela um olhar cheio de
calor. Lily concluiu que ele também experimentava uma irresistível atração.
— Não estraguei seu teste de palavras cruzadas?
— Eu já tinha terminado. Sou bom nisso. Mas parece que você está
querendo se casar.
A garçonete empalideceu.
— Estava apenas sendo gentil com um cliente.
— Ei, foi só uma brincadeira.
— Sei — disse Lily, forçando o sorriso. Sentiu-se ridícula, por desejar um
homem tal qual uma virgem afogueada.
— Voltarei depois, com seu café.
Mais tarde, trazendo também a conta, ela já havia superado seu
embaraço e portou-se com maior controle. Tinha resolvido ir à biblioteca, após
o turno de trabalho, e pesquisar no arquivo de jornais o caso do agente federal
assassinado em Miami. Dependendo do que descobrisse, poderia usar o
disquete guardado como aval da segurança dela e de Timmy.
— Este caldo de rum é pecaminoso. Pode subir à cabeça — comentou
Michael, no momento em que terminava a sobremesa.
— Também acho — disse Lily. Pouco adepta de doces, adorava um pudim
regado a rum de vez em quando. Ela depositou o café e a nota sobre a mesa,
depois fez menção de afastar-se.
— Espere um pouco — pediu Michael. — Você poderia me ajudar com um
certo assunto?
— Posso tentar — ela respondeu cautelosamente.
— Como sou novato na cidade, gostaria que me ajudasse a escolher um
destes endereços que destaquei nos anúncios classificados. — Ele tirou do
bolso do paletó uma página de jornal duplamente dobrada, que estendeu na
mesa. Lily notou os círculos vermelhos feitos na seção de "Alugam-se".
— Está procurando apartamento? — Ela ficou surpresa, pois tinha a
informação de que Michael estava somente de passagem pela cidade.
— Comecei a cogitar disso, caso consiga encontrar um que não estoure
meu orçamento. No momento, estou sem trabalho, mas ouvi dizer que duas
novas fábricas, na orla, vão contratar técnicos. Enquanto isso— ele explicou
serenamente — os hotéis de Nova Orleans subiram muito as diárias, por causa
das festividades do Mardi Gras. Seria mais econômico alugar um cantinho.
— Em que tipo de ajuda está pensando? — No fundo, Lily exasperou-se
com a idéia de que Michael permaneceria na cidade e se instalaria por perto.
— Poderia me indicar as áreas mais bem localizadas.
— Ele apontou para diversos anúncios destacados em vermelho. — Como
não conheço nada por aqui, você poderia ir na frente, com Gina, e fazer a
primeira triagem.
— Sinto muito. Gina e Amber conhecem melhor a cidade. Também sou
novata em Nova Orleans, onde moro há menos de três meses. E verdade que
estive na cidade anteriormente, quando era criança e minha avó cuidava de
mim.
Teria falado demais? Lily se arrependeu e chamou Gina.
— Qual o problema, texano? — questionou a colega, ao aproximar-se.
— Como expliquei a Lily, procuro um apartamento pequeno, mobiliado,
para alugar por alguns meses. Assinalei alguns anúncios, mas não faço idéia
de onde ficam esses imóveis.
— Desculpe-me, amigo — disse Gina, após consultar rapidamente a folha
de jornal. — Eu não poria meu pior inimigo numa dessas bibocas, nem mesmo
o filho da mãe que foi meu último marido.
— Sofreu muito? — Michael demonstrou simpatia pela garçonete.
— Demais.
— Bem, eu queria sair do hotel. — Ele suspirou. — Estão todos caros.
— Espere, tive uma idéia. — Gina segurou Lily, que por precaução já se
afastava. — E aquela casa gêmea de onde você mora? Estava para alugar, no
dia em que lhe dei carona.
Pela expressão de Lily, Michael concluiu que ela não se alegrou nem um
pouco com a lembrança. Claro, tentou disfarçar a reação desfavorável, sem
saber que os olhos argutos do detetive já tinham percebido tudo.
— Não sei se ainda está disponível — ela murmurou. — Quer dizer, a
casa se acha vaga, mas não sei se a sra. Davis, a proprietária, já tem um novo
inquilino em vista.
A verdade é que Michael a deixava nervosa. Por mais que controlasse o
que dizia, o tom de voz e certo tremor nas mãos a denunciavam. Suspeitava
fortemente de que aquele homem era mais um detetive em seu encalço. Ao
mesmo tempo, atribuía à ansiedade a atração física que sentia por ele. Acima
de tudo, amargava uma grande confusão mental.
Michael conteve um sorriso por seu estratagema vitorioso. Tinha anotado
o telefone da imobiliária, constante da placa, e o assunto poderia ser
rapidamente resolvido. Se continuasse com sorte, ganharia condições de
espionar à vontade a vida de Lily e saber se o menino estava com ela. Mas ele
teve a humildade de admitir que não se rendia apenas a um motivo profis-
sional. A fantasia de amor e sexo com a esposa de Adam Webster crescia
dentro dele, embora a tímida garçonete loura aparentemente se esquivasse
dos homens.
— Poderia verificar para mim? — solicitou após a longa pausa.
— Farei isso, mas duvido que seja o tipo de lugar que você procura —
alertou Lily.
— Se a casa é igual à sua, parece-me perfeita para uma só pessoa —
interveio Gina. — O bairro era tido como violento, mas ultimamente tornou-se
mais calmo, como refúgio de aposentados e casais idosos.
Certamente, para Lily seria terrível ter Michael como vizinho.
— Tudo bem, só queria ter certeza de que Lily não se incomoda com
minha presença na porta ao lado.
— Por que se incomodaria? — Gina quase se escandalizou com a
alegação. Torcia no íntimo para que, se Michael não ficasse com ela,
começasse a namorar a colega.
— Lily não me conhece bem. Costumo ajudar as pessoas e gosto de
animais domésticos. Se for o caso de pedir referências, darei o telefone de
minha mãe. Ela atestará meu bom caráter.
Com isso, ele pôde sorrir livremente. Gina e Lily haviam caído na risada
diante da excêntrica referência à mãe, feita por um marmanjo. Michael não
estava preparado para o riso solto de Lily. Bem humorada, ela se tornava um
absoluto encanto. Isso reforçou nele a preocupação com seu destino
sentimental. Estaria caindo na armadilha que montara?
— Você devia rir mais — comentou. — Seus lindos olhos brilham.
Lily calou-se, sob o efeito de imediata tensão nervosa. Dispensava
elogios a sua figura, desde que deixara a pele de Elisabeth Webster. Por medo
e cautela, esquivava-se do assédio masculino, sentindo-se extremamente
desconfortável.
— Agora, você não escapa de dar a ele seu endereço — lembrou Gina.
— O telefone da sra. Davis faz parte a lista — foi a resposta de Lily. —
Michael pode ligar e falar diretamente com ela, em vez de perder tempo com a
imobiliária.
— Obrigado. Apreciei muito a cooperação. — Ele dobrou e guardou no
bolso a página de jornal. — Vou providenciar assim que sair daqui.
— Você sabe — acrescentou Gina —, as casinhas são gêmeas e, portanto,
terá uma idéia perfeita do lugar se visitar a casa de Lily. Ela terminará seu
turno de trabalho em dez minutos.
— Maravilha! — Michael empolgou-se. — Posso dar-lhe carona ou segui-
la com meu carro alugado.
— Na verdade, não vou direto para casa. Meu carro está com um defeito
mecânico e preciso deixá-lo na oficina. Lamento muito.
Mentirosa, pensou Michael ao resolver não forçar a situação.
— Obrigado do mesmo modo. — Ele puxou a carteira a fim de pagar a
conta.
— Vou lhe trazer o troco — disse Lily, tirando proveito do bom pretexto
para se livrar do intruso.
— Por favor, guarde.
— Muito grata, então, e boa sorte. Gina permaneceu ao lado da mesa.
— Meus melhores agradecimentos. — Michael voltou-se para a
garçonete. — Você continua bonita.
— Por que me agradece? — A outra não se deixou iludir.
— Por me falar da casa para alugar.
— De nada, texano. — Os olhos dela cintilaram.
— Tenho o pressentimento de que você está bancando a casamenteira,
querendo que eu vá morar ao lado de Lily.
— Absolutamente certo. — Gina riu.
— Por que isso?
— E simples. Gosto de você e gosto de Lily. Os dois são jovens, atraentes
e estão sozinhos. Não suporto que ela passe o resto da vida a guardar luto por
um marido morto. Precisa de um homem, assim como você precisa de uma
mulher.
— Mas por que acha que eu sirvo?
— Meu caro, se você não serve, com toda essa pinta, só me resta entrar
para um convento.
Foi a vez de Michael rir. Ergueu-se e beijou Gina na bochecha. No
mínimo, havia conseguido uma grande e fiel amiga.
— Gosto muito de você — ele confessou.
— Como um escoteiro, por certo.
Michael nunca tinha sido escoteiro e descartava a intenção de ressuscitar
por completo a vida amorosa de Elisabeth Webster. Podia dar conta daquela
tentação. Voltou a pensar no dinheiro que o esperava. Caso avançasse nas
investigações, como vizinho de Lily, notificaria Adam e esqueceria tudo sobre
ela.
CAPÍTULO VII

À frente de um terminal de computador, na Biblioteca Pública de Nova


Orleans, Lily acessou uma série de reportagens de jornais. Releu a matéria
sobre o encontro, em certa praia da Flórida, do corpo de um homem
aparentemente afogado.
No relato seguinte, o infeliz tinha sido identificado como Gregory Carter,
de 38 anos, funcionário do governo federal lotado no FBI, escritório de Miami.
A causa mortis não fora afogamento, e sim uma estocada certeira no peito, à
altura do coração, conforme revelara a autópsia. O porta-voz do Bureau
Federal de Investigações, chamado Bryce Logan, anunciava uma alta
recompensa para quem fornecesse informações capazes de levar ao assassino.
Mais três dias, e o noticiário sobre o crime sumira da imprensa.
Lily fotocopiou as reportagens, que incluíam uma foto de Carter, e
lembrou-se da noite em que ouvira o marido, Adam Webster, discutindo com
alguém na sala de casa. Descera a escada para conferir se Timmy dormia bem
e, de passagem, vira o então desconhecido Carter com o rosto vermelho e os
olhos injetados de raiva. Na época, não atinara com o motivo da discussão.
Cumprira a ordem peremptória de Adam para que retornasse ao quarto
do pavimento superior. No entanto, após ver a foto de Carter no jornal,
imediatamente deduzira que o marido era o responsável pela morte do policial.
Nada existia nos periódicos que ligasse Adam a Carter. Lily encontrara,
porém, uma nota sobre a abertura de uma nova boate do empresário, em
West Palm Beach.
Ela suspeitara de que Gregory Carter suprira o marido com um disquete
contendo dados sobre as investigações que os agentes federais conduziam a
respeito do crime organizado, incluindo tráfico de entorpecentes e de mulheres
para prostituição disfarçada. Adam jamais lhe falara das verdadeiras fontes de
sua fortuna, nem mesmo permitia qualquer pergunta sobre isso. Ele a
mantinha segura, e afastada do mundo real, em sua gaiola de ouro.
Ao deixar a biblioteca, Lily pensou outra vez no disquete de computador.
Devia ser muito importante, do contrário Adam não o colocaria no cofre. Sabia,
por observação pessoal, que era ali que o marido guardava seus segredos,
além de jóias, escrituras de imóveis e dinheiro em espécie.
Lily mantinha, na bolsa de mão, um papel com o número de telefone do
agente Bryce Logan. Se as autoridades não haviam conseguido associar Adam
a Carter, o disquete o faria. Caso o marido fosse processado e preso, ela se
sentiria mais segura ao lado do filho.
Mas, e se Carter não estivesse envolvido em corrupção? E se houvesse
mais cúmplices de Adam Webster dentro do escritório do FBI? Valeria a pena
correr o risco de telefonar a Logan ou dirigir-se pessoalmente à filial da
agência em Miami?
No saguão da biblioteca, Lily deparou com a fileira de aparelhos
telefônicos embutidos na parede. Hesitou por um momento, mas enfim tirou o
papel da bolsa e discou.
— Logan falando.
Ela reteve o fôlego, sentindo o coração aos saltos.
— Sr. Logan... Estou ligando em nome de uma amiga. Ela tem
informações sobre o assassinato de um colega seu, chamado Gregory Carter.
— Quem é?
— Prefiro não me identificar.
— Se a sua amiga pretende ganhar a recompensa, vou precisar do nome.
—Não estou... não estamos interessadas no prêmio, só queremos
colaborar com a Justiça.
— Tudo bem, então. Passe-me a informação.
Lily resumiu o que vira naquela noite e como reconhecera o agente
morto.
— Se o dado for confirmado, o marido dela será preso?
— Bem, há um longo caminho até isso acontecer, envolvendo advogados,
promotores, juizes. Sua amiga deverá testemunhar e apresentar uma prova.
— Ela não pode depor — Lily insistiu. A idéia de confrontar-se com Adam,
numa sala de tribunal, era por si só aterradora.
— Nesse caso, não poderemos detê-lo.
— E se ela concordar em depor, o senhor garante que o marido dela irá
para a cadeia?
— Depende do júri, senhora. Mas os promotores farão todo o possível
para conseguir uma prisão provisória.
— Quer dizer que não há garantias?
— Infelizmente, não.
— Obrigada, agente Logan.
— Não desligue, por favor. Se a sua amiga conhece o envolvimento do
marido num crime, ela deve denunciá-lo.
— E caso não faça isso?
— Pode ser processada por ocultação de provas e obstrução da Justiça.
Seria bom dizer-me seu nome, onde está, e como encontrar sua amiga.
Lily desligou, decepcionada e com mais medo do que antes. O disquete
não representava uma certeza de segurança para ela e Timmy. Ao contrário,
em vez de Adam, ela é que seria incriminada.
Jogou o papel com o número de telefone no cesto de lixo e voltou
correndo ao carro estacionado, sem notar que estava sendo seguida.
Encostado a um canto, Michael observava tudo com atenção. Lily não
saíra da biblioteca portando nenhum livro, embora tivesse demorado duas
horas lá dentro. Ele a havia visto junto ao painel de telefones públicos, fazendo
uma ligação. Tinha recuperado, entre areia e pontas de cigarro, o papel que
ela jogara na lixeira de metal. Caminhou até o mesmo aparelho que a garço-
nete usara.
Como suspeitava, aqueles telefones antigos não possuíam tecla de
rediscagem, de modo ele que discou o número e foi atendido por uma
secretária.
— Bureau Federal de Investigações, agência de Miami.
Surpreso, Michael demorou alguns segundos antes de perguntar:
— Vocês têm um certo agente Logan trabalhando aí?
— Um momento, por favor.
Mais alguns segundos, e uma voz de homem respondeu.
— Logan falando.
O detetive desligou de imediato.
Por que Lily entraria em contato com o FBI? Muito estranho. Descendo os
degraus da entrada, Michael empunhou o telefone celular e chamou seu irmão,
funcionário da agência. Deu caixa postal. Ele tentou a casa de Travis e só
conseguiu falar com a secretária eletrônica.
— Ei, Travis, é Michael. Estou em Nova Orleans, investigando um caso, e
apareceu o nome de um colega seu, do escritório de Miami. Preciso saber algo
sobre ele. Pode me chamar no celular? — Passou o número.
O detetive não recebeu retorno naquele dia, nem no seguinte. Descobriu,
em nova ligação, que Travis se encontrava fora, em alguma missão sigilosa.
Amaldiçoou a má sorte. Decidiu continuar seguindo os movimentos de Lily.
Desde que percebera o efeito que causava na garçonete loura, ele voltara
à lanchonete diversas vezes naquela semana. No entanto, Lily obviamente se
esquivava dele, evitando atendê-lo ou mesmo conversar sobre amenidades.
Também não havia visto o garoto Timmy até então, por isso não estava seguro
de que já era hora de avisar Adam Webster sobre a localização de sua esposa
e filho. Caso o fizesse, o empresário viria à cidade em busca da fugitiva e as
conseqüências eram imprevisíveis.
No horário de sempre, Lily regressou à casinha de subúrbio que,
conforme Michael já descobrira, pertencia a Gertrudes Boudreaux, antiga
amiga e vizinha da avó dela. Apesar de segui-la sempre até ali, e depois à
própria moradia, o detetive continuava sem nenhum sinal do pequeno Timmy.
Ele desceu o chapéu de vaqueiro à altura dos olhos, recostou-se no banco do
carro e, mais uma vez, dispôs-se a esperar.
— Está pronto para ir para casa? Senti saudade.
—Eu também, mamãe — Timmy falou, erguendo os bracinhos para
abraçá-la.
Ela estreitou o filho nos braços, mas ele se debateu. Relutante, a mãe o
recolocou no chão.
— Adivinhe que presente eu lhe trouxe.
— Presente? — A face do garoto se iluminou.
Lily pescou dentro da bolsa o carrinho vermelho em miniatura que havia
comprado para Timmy. Agachou-se a fim de entregá-lo em mãos. O menino,
empolgado, acariciou o brinquedo com os dedos.
— Obrigado — disse educadamente, beijando a face da mãe antes de se
estender no piso para brincar.
Ao erguer-se, satisfeita, Lily deparou com Gertrudes.
— Nunca vou lhe agradecer o suficiente por cuidar de Timmy. Não sei o
que faria sem você, Gertrudes. Deixe-me pagar alguma coisa pela ajuda.
— Não me ofenda oferecendo dinheiro. Quando lembro o quanto sua avó
Sara me ajudou, ainda fico devendo.
— Ela amava você como a uma irmã — Lily afirmou.
— E eu me sentia da mesma forma. Jamais tive uma parente que fosse
tão fiel quanto Sara.
— Mas...
— Sem discussão. Para mim é uma alegria cuidar de Timmy, mesmo
quando ele tem catapora. E um menino adorável. Você o educou muito bem.
— Obrigada. — Lily gostou do elogio. Considerando sua precária vida
conjugai, era uma bênção que o filho fosse tão feliz e de boa índole.
— A verdade é que me acostumei com ele — adiantou Gertrudes. — Se
você o levar, vou estranhar a casa vazia e silenciosa.
— Sei o que quer dizer. Mas eu não durmo direito desde que trouxe
Timmy para cá — Lily confessou. Com o tempo oscilando entre frio, quente e
chuvoso durante toda a semana, era sábia a decisão de deixar o pequeno
doente com a velha amiga. Sentira muita falta do filho e cogitara de retomar
suas prerrogativas de mãe, levando-o para a própria casa. — Acho que não
quero mais passar outra noite sem Timmy, até ele se casar.
— Você é jovem e saudável demais para falar assim.
— Assim como?
— Não pensa em encontrar outro companheiro, em casar-se de novo,
talvez ter mais alguns filhos?
— Não — Lily foi taxativa. Baixou o tom de voz, porém, ao ver que
Timmy estava por perto. — Ele é tudo de que preciso.
A idosa senhora balançou a cabeça, inconformada.
— Você necessita de um prazo para voltar a se interessar pelos homens.
Mas isso vai acontecer, cedo ou tarde. De preferência, cedo.
Surpreendeu Lily a imagem de Michael Sullivan que se formou em sua
mente. Com presteza, ela a afastou. Devia ser por mera influência da conversa
com Gina, sobre a locação da casa vizinha à dela. Prometera verificar as
condições de aluguel, mas nada fizera até aquele dia. Por sua vez, Michael não
lhe cobrara a iniciativa, pelo que se sentia grata.
— Não desejo mais ninguém em minha vida — assegurou.
— Bem, você merece um novo amor. E Timmy também — interveio a
senhora.
— Temos um ao outro, e isso basta.
Gertrudes não poderia entender tal atitude. Sobrevivera a dois maridos,
e ambos os casamentos haviam sido muito felizes, enquanto Beth apenas
servira de apoio ao exibicionismo, a cobiça e à violência de Adam Webster.
Tinha tardado em perceber que a devoção do marido escondia um cruel
egoísmo, um instinto brutal.
— Se precisar de dinheiro para contratar um advogado e conseguir o
divórcio, conte comigo.
— Prefiro não falar desse assunto agora.
A amiga conhecia parte da infelicidade dela no casamento, mas não
todos os detalhes. Beth nunca revelaria, por exemplo, como havia fugido de
seu elegante carcereiro. Um dos motivos era que exporia Gertrudes a um
perigo em potencial.
— Tudo bem, Beth, mas você deve pensar em seu futuro. Não sou
eterna, nem seu emprego pode ser considerado estável.
— Eu sei.
Por várias vezes, tinha cogitado de fazer uma faculdade de administração
e marketing ou de abrir um negócio próprio, bem como comprar uma casa, em
vez de pagar aluguel. Recursos para isso existiam, mas sua vida, sob a mira de
Adam Webster, era indefinida. Tentara falar sobre o disquete incriminador com
o FBI, abrindo caminho para uma solução final. Só conseguira arrependimento
e temor pelo resto da semana.
— Posso olhar por Timmy, caso você resolva voltar a estudar — insistiu
Gertrudes.
— Obrigada de novo, querida. Vou pensar. — Ela tornou-se ansiosa para
mudar de conversa. — Por enquanto, quero desfrutar a companhia de meu
filho. Há uma boa creche e um parque perto de casa.
— Com certeza, ele vai gostar. Mas ainda está debilitado por causa da
catapora. Não o leve para o ar livre, por mais alguns dias.
— E o que farei — disse Lily, contente por ver Gertrudes conformada com
a ausência do garoto que lhe preenchia os dias e, principalmente, por ter
desistido daquela insistência em um divórcio. — Ei, filhote, vamos para casa?
Timmy estranhou a princípio, depois ficou agitado.
— Quero ir ao parque, mamãe.
— Só depois da última pinta vermelha desaparecer de seu corpo — a
mãe emendou. — Dê um beijo de despedida em Gertrudes.
O menino abraçou e beijou a zelosa companheira de todas as horas.
Murmurou um agradecimento.
— Você é bem-vindo aqui, pestinha. — Gertrudes afagou os cabelos dele.
— Vamos, então. — Lily também deu um beijo na testa da amiga. —
Obrigada de novo. Por tudo.
Ela apanhou a mala com roupas e brinquedos de Timmy, que continuou
segurando o carrinho vermelho nas mãos. Levantou-o no colo e, com apenas
uma das mãos, abriu o porta-malas do carro e ajeitou a bagagem. Ao ligar o
motor do veículo, teve a sensação de que era observada.
Com um arrepio espinha abaixo, Lily desligou e apurou os ouvidos.
Escutou pássaros voando em torno dos carvalhos e azaléias, o miado de um
gato seguido do latido de um cão. Nenhuma voz ou figura humana, com
exceção da senhora que varria a rua perto dali. Na direção oposta, um casal
jovem conversava junto à cerca branca. Pouco depois, ela viu o beijo que
trocaram. Suspirou, de pura carência afetiva.
— Parque, mamãe. — Timmy a despertou do devaneio.
— Logo, meu amor. — Religou o carro e partiu.
Michael vibrou dentro de seu Ford alugado ao ver Lily saindo da casa de
Gertrudes com uma criança no colo. Mantinha-se oculto a poucos metros,
suficientes para notar que ela também trouxera bagagem para o porta-malas.
Finalmente tinha constatado a existência e o paradeiro do menino, de modo
menos discreto do que pudera imaginar, não obstante os olhares desconfiados
da mãe para os arredores.
Ignorava por que Timmy se hospedara na casa de Gertrudes Boudreaux,
mas só podia ficar alegre por vê-lo bem e seguro. Já seria a hora de avisar
Adam e passar a mão numa pequena montanha de dólares?
Por desencargo de consciência, o detetive seguiu Lily mais uma vez.
Notou que o Parque Audubon, perto da casa dela, seria um excelente lugar
para Timmy brincar. A mãe havia estacionado na entrada, resolvida a dar uma
pequena volta com o filho.
A criança era franzina, constatou o detetive ao utilizar seus binóculos,
enquanto a mãe empurrava Timmy sobre um balanço de ferro. Lembrou-se de
que ele mal completara três anos, mas era bonito como Elisabeth Webster.
Cabelos negros, feições delicadas, a mesma boca e o nariz da genitora. A
risada do menino, deliciado com o passatempo, também se assemelhava à de
Beth ou Lily, que ele havia admirado na lanchonete, despertando-lhe um novo
calor no coração.
O sol crepuscular acentuava o brilho do rosto e das mechas daquela
estranha mulher, cuja frágil beleza o impactava. Michael experimentou
novamente o aguilhão do desejo reprimido.
Irritado com essa reação, Michael se fixou na idéia de que Lily era apenas
seu troféu, um troféu vivo que lhe traria bastante dinheiro. Quando a focalizou,
atrás de uma árvore, percebeu que ela olhava em torno do balanço,
desconfiada, dilatando as íris verdes. Nelas, Michael reconheceu a presença do
medo.
A noção de que ela corria riscos — e não só por ter roubado o marido e
subtraído seu filho — atormentou o detetive por um instante, fazendo renascer
seu senso de proteção, sepultado havia tempo. Combateu a sensação
ponderando que Lily seria uma pessoa fria e calculista, não a bonita mulher e
mãe extremosa que brincava com o filho recém-curado.
Muito dinheiro estava envolvido na trama. Por isso, pela primeira vez,
Michael viu-se a pensar no motivo pelo qual Adam Webster se dispusera a
pagar tão alta soma pela localização da esposa fugitiva. Era um exagero, sem
dúvida. Talvez uma mentira, um golpe do empresário, que lhe daria um belo
calote assim que soubesse do paradeiro da mulher. O que acontecia? Nos dias
atuais, ninguém pertencia a ninguém, como uma propriedade que pudesse ser
livremente manipulada. Especialmente uma mulher como Lily.
Michael devia encarar os fatos: não simpatizara com Adam, e agora
cobiçava a mulher dele, procurando pretextos para agir como um herói. Talvez
assim conseguisse ganhar as atenções e favores de Lily.
Novamente ele tentou superar a impressão de sensual delicadeza que ela
lhe passava. Novamente recordou que ela fora capaz de armar um plano para
dopar o marido, roubar-lhe o cofre e o menino.
Era como Giselle havia agido contra o amigo e parceiro Pete Crenshaw.
Também Michael se tornara cego pela beleza daquela aventureira, sem
reconhecer a víbora que existia dentro dela.
Viu-se de volta a Houston, anos antes, numa diligência policial debaixo
de chuva. Entrara num armazém abandonado, cheio de ratos animais e
humanos, onde Pete localizara um bando de traficantes.
Tinha de salvar o parceiro. Tinha de salvá-lo, Michael repetiu as palavras
tal qual um mantra. Havia notado o comportamento diferente e esquivo do
colega, desde alguns dias antes, como se escondesse um segredo. Não queria
acreditar que Pete, negando seu juramento profissional, aderira ao bando de
meliantes. Fazia sentido, porém, que ele desejasse recolher uma boa quantia
em suborno, a fim de fugir de casa. Com Giselle.
— Passe-me o dinheiro — Michael ouvira o parceiro dizer, à porta do
armazém na penumbra.
— Não vou lhe dar mais nada — respondera o chefe dos traficantes. — A
droga era minha, o lucro é meu.
Tratava-se de um tal de Alexis, russo de origem, cujo rastro Michael e
Pete haviam seguido por algum tempo, na região de Houston.
— Não pode fazer isso — reclamou o policial, percebendo-se enganado
naquela transação ilegal.
— Sim, posso. Desarmem o homem — ordenou Alexis. Para surpresa de
Pete, e também de Michael, quem se adiantou, saindo das sombras, foi a
própria Giselle, ladeada por dois capangas mal-encarados. Ficou tudo claro: a
pretensa namorada de Pete, com quem planejava fugir abandonando a família,
era a amante secreta do traficante.
Curiosamente, Michael sentiu o sangue gelar, em vez de esquentar nas
veias. Talvez por isso, demorou-se a engatilhar seu revólver, como já faziam
os dois asseclas.
— Sinto muito, Pete. — A deslumbrante Giselle recolheu a arma do
policial, com um sorriso cínico.
— Peguem as malas e vamos embora — instruiu Alexis. Obviamente, a
bagagem consistia em pacotes de cocaína.
Um movimento em falso, e Michael foi visto pelo bando.
— Ah, temos companhia — disse o russo, que o conhecia bem. — Jogue o
revólver no chão, "seu" tira intrometido.
Pete valeu-se do desvio de atenção para avançar sobre Alexis, e no
mesmo instante foi fuzilado pelos capangas de Alexis. Paralisado junto à porta,
Michael hesitou em atirar, e assim entrou na mira dos assassinos, que o
desarmaram e passaram por ele em grupo, rumo à rua onde um carro ligado
os esperava. O policial sobrevivente permaneceu dentro do armazém, perplexo
e sozinho. Não sozinho, mas na presença do cadáver de seu melhor amigo.
— Mamãe, olhe! — O apelo de Timmy recolocou o detetive no tempo
presente. Imaginou que o menino, tal como Alexis, o havia notado atrás da
árvore. Não era isso. O menino apenas mostrava à mãe como era capaz de
oscilar no balanço até à altura máxima.
Michael pensou em Pete Júnior e Mickey, os filhos do ex-parceiro, e
comparou-os com Timmy. Eles mereciam ter a mesma alegria, as mesmas
oportunidades na vida, o que estava na dependência do dinheiro que
receberia.
Mas, e se Lily enfrentasse problemas?
Seria assunto dela, ou dele também? Pelo menos, aquela mulher não
parecia inclinada à traição e ao crime, como a maldita Giselle.
Ele esfregou os olhos cansados, após guardar os binóculos, e ponderou
que só precisava ligar para Adam Webster, pegar o restante do pagamento e
colocar sua vida nos eixos. Ao lado de Jane Crenshaw e dos meninos que
adorava, talvez.
Imaginou-se num veleiro, no mar aberto de Miami, gozando a existência.
Mas a mulher que o acompanhava nesse devaneio não era Jane, e sim Beth,
ou Lily, ou Elisabeth Webster. Ela ria de modo sedutor, aliciante. Era sua nova
companheira.
Aborrecido por tal fantasia, Michael deixou cautelosamente seu
esconderijo na trilha do parque. Foi direto ao seu hotel e, com os dedos
trêmulos, teclou o número de Adam.
— Webster aqui. No momento não posso atender. Deixe seu nome e
telefone.
— E Sullivan — disse o detetive, desconcertado por ter de falar à
secretária eletrônica. — Encontrei sua mulher e seu filho.
CAPÍTULO VIII

No apartamento de cobertura em Miami, Adam Webster desligara o


telefone a fim de ficar à vontade com sua nova amante, Annabelle, recrutada
em uma de suas casas noturnas. A moça era tímida e despojada, mas a
sensualidade, as pernas grossas e a calidez da pele agradavam ao empresário.
A meia-luz, poderia imaginar que estava com Elisabeth.
A sua Elisabeth! Ele pensou na esposa ausente enquanto apalpava e
sugava os seios de Annabelle. Ao erguer a cabeça, porém, visando-lhe os
lábios quentes, deparou com olhos que não eram verdes e cabelos de tom
diferente do mel. Isso o devolveu dolorosamente à realidade.
— Feche os olhos — ele pediu, na tentativa de manter a ilusão.
Assim ele possuiu a moça freneticamente, em ritmo de vingança, mal lhe
dando chance de apreciar o ato. Depois de sair de dentro dela, Adam a cobriu
com o corpo e voltou a pensar em Elisabeth, enquanto corria os dedos pelas
coxas firmes que tanto o atraíam. Contudo, Annabelle estava longe de ter a
beleza, a perfeição, o encanto de Elisabeth. Também não se abandonava ao
prazer, pois não fora treinada para satisfazer o amante.
— Você é minha, pertence a mim — ele murmurou, como costumava
dizer à esposa. — Elisabeth!
O insultante equívoco incomodou Annabelle mais do que o alívio sexual
solitário do parceiro.
— Você está me sufocando. Não consigo respirar — ela se queixou.
Dessa vez, foram a voz e o sotaque acaipirado que despertaram Adam.
Deus! Como faltavam classe e refinamento àquela mulher!
— Você gostou? — perguntou Annabelle.
— Sim, foi ótimo — ele mentiu, já considerando a hipótese de uma
rarefação em seus encontros amorosos no apartamento. O que fazer, porém,
se tanto necessitava daqueles momentos de afirmação machista?
Mesmo quando Elisabeth se mostrava alheia, pouco interessada em sexo,
tudo era muito diferente. Ela representava uma obra dele, só dele. Adam a
esculpira, a moldara de acordo com seus critérios. Também lhe havia tirado a
virgindade, fora seu primeiro e único homem.
Annabelle levantou-se para ir ao banheiro e o empresário a estudou, nua
e bela na penumbra. Mas deveria igualmente ajustá-la a suas preferências,
caso quisesse fruir o máximo de prazer.
— Voltei — ela riu pouco depois, colocando-se sobre o amante a fim de
encorajar uma nova rodada.
— Amanhã pretendo levá-la ao oculista, para ele receitar lentes de
contato verdes.
— Mas meus olhos são azuis — reclamou a ingênua mulher da noite.
— Prefiro verdes, compreende?
— Sim, Adam.
Ele cerrou as pálpebras e imaginou que era a esposa quem o tocava,
beijava e sugava até restabelecer a ereção. Adam repetiu o ato, de olhos
fechados, apreciando o calor e a maciez das dobras íntimas de Annabelle.
Quando ela chegou ao clímax e gemeu, ele ouviu em fantasia a voz de
Elisabeth.
Na manhã seguinte, ajoelhada em seu quintal, Beth usou as mãos e uma
pequena pá para cavar um buraco no canteiro de flores e plantar novas
mudas. Satisfeita com o resultado, podou os parasitas das plantas e acariciou
um botão de rosa que despontava.
Outro motivo de alegria era ver que Timmy, perfeitamente curado,
brincava no terreno com seus carrinhos de plástico. Tudo graças a Nancy Lee,
que lhe dera o fim de semana de folga, apesar do movimento duplicado na
lanchonete em dias de Mardi Gras. Beth aproveitou o tempo para dedicar-se ao
filho e habituá-lo ao novo quarto, sem que sentisse saudade da casa de
Gertrudes. Pretendia, assim mesmo, visitar a amiga com bastante freqüência,
ciente de que deixaria Timmy muito feliz.
Naquele instante, o peso dos últimos sete meses caiu como chumbo em
cima dela. Além da culpa pelo que sabia ser um crime, punível de acordo com
a lei, recriminava-se por não ter reconhecido em tempo a obsessão que Adam
alimentava por ela. De um lado, Timmy havia sido quase morto pelo pai
enciumado. De outro, o menino nunca teria um homem adulto que lhe en-
sinaria a nadar, andar de bicicleta ou jogar beisebol.
Cresceria somente com a mãe, já que não se podia contar com a velha e
combalida Gertrudes por muito mais tempo.
— Quero ajudar você, mamãe. — O menino se postou atrás dela, com
seus sérios olhos castanhos.
— Tudo bem, querido. Traga sua espada amarela, que vou lhe mostrar
como plantar flores.
Dez minutos depois, Lily elogiou a aplicação do filho naquele trabalho.
— Agora, precisamos de água para as plantas.
— Por quê?
— Porque elas têm sede. Como nós.
— Ah! — Timmy exclamou. — Vou pegar a mangueira.
Cuidadosamente, ele seguiu as instruções da mãe e molhou o canteiro.
Para o menino, era uma nova brincadeira. Mas Lily não pôde repetir o elogio
quando o filho voltou o jato de água na direção dela, rindo.
— Pare, Timmy!
Ao som de uma gargalhada masculina, Lily ficou estática. Surpreendido
pela visão que teve, o garoto fechou a torneira.
Era Michael Sullivan, de tênis e traje esportivo, a alguns metros quintal
adentro.
— O que está fazendo aqui? — ela questionou, com embaraço e uma
ponta de raiva. — Você me deu um susto.
— Desculpe-me. Acabei de ver a casa ao lado e resolvi passar por aqui.
— A sra. Davis o acompanhou?
— Não, tinha um compromisso, mas me deu a chave, em confiança.
Mandou lembranças para você e pediu que tirasse a placa da imobiliária, caso
eu gostasse do imóvel. Obrigado por indicá-lo.
Diante da figura atraente do detetive, Lily sentiu-se tola pelo surto
anterior de ira.
— Não tem de agradecer a mim, e sim a Gina, que se lembrou da casa
vaga.
— Mas foi com suas referências que a sra. Davis me aprovou como
potencial inquilino. Minha mãe também aprovaria a vizinha que pretendo ter.
— Você tem boa conversa, isso sim. Imagino que sua mãe deve ter
amargado grandes problemas com você.
— Quem é o garoto? — Ele mudou de assunto, apontando para a figura
assustada que se abrigava atrás de Lily.
Ela hesitou um pouco, mas não teve como mentir.
— E o meu filho Timmy.
Michael não deu sinal de que estivesse surpreso.
— Olá, Timmy — saudou simplesmente. — Eu sou Michael.
O garoto então mostrou-se por inteiro ao visitante.
— Ajudei minha mãe a cuidar das flores — afirmou com orgulho, ainda
segurando a mangueira desligada.
— Parabéns. Parece que fez um bom trabalho.
— As plantas têm sede, como nós — Timmy repetiu a explicação da mãe.
— Verdade? — O detetive fingiu espanto.
— Se você estiver com sede, eu lhe dou um refrigerante.
Claro que Michael não desprezaria um convite dessa natureza, que Lily
não ousara fazer. Ela puxou o filho pelo ombro.
— Michael não tem sede, apenas veio agradecer.
— Agradecer por quê? — o garoto insistiu.
— Deus do céu! Ele está na fase dos "porquês?" — disse Lily após
esboçar um sorriso constrangido.
— Você tem sorte de ser mãe de um menino tão esperto — afirmou
Michael, em tom de galanteio. — Por falar na casa vizinha, acho que ficarei
com ela. O dono do hotel não concordou em me dar um desconto nas diárias,
por causa do Mardi Gras.
— Você tem sorte por encontrar uma moradia vaga em Nova Orleans,
nesta época de festas.
— Gostariam de comer alguma coisa? — propôs Michael, decidido a
apreciar por mais algumas horas a companhia de Lily.
— Sorvete? — Timmy apressou-se em pedir.
Lily o recriminou, mas levou a mão ao laço do avental e agradeceu o
oferecimento.
— Não acha que vamos atrapalhar? — ela disse, embora adorasse a idéia
de sair um pouco. Sobretudo com Michael.
— Ao contrário. Vou gostar de passear com vocês. Além disso, cansei de
comer sozinho. Praticamente só conheço a River Bend nesta cidade.
Caindo em si, Lily mudou de idéia.
— Obrigada, mas não podemos.
— Por quê?
— Você também? — ela ironizou. — Vou ser clara. Aprecio seu interesse
por mim, por nós. Acontece que não estou tão empolgada assim.
— Por quê? — o detetive repetiu, gracejando. — Já que foi direta, devo
confessar uma coisa. Sei que é viúva e não está envolvida com ninguém.
Portanto, a questão é: não gosta dos homens em geral ou apenas de mim?
— Dos homens em geral — foi a pronta resposta.
—Certo, mas vi uma lanchonete do McDonald's perto daqui, e Timmy
poderia se esbaldar. Ele merece, depois do trabalho que fez no jardim.
— Quero um sundae duplo com cobertura — bradou o menino, quase
cedendo ao impulso de lançar-se nos braços de Michael.
— Bem, se não for um encontro sentimental... — Lily disse, olhando feio
para o filho e depois examinando seus trajes. — Precisaria tomar um banho e
me arrumar um pouco.
— Fique à vontade, mas você parece bem para mim, mesmo molhada.
—Mamãe é vaidosa — Timmy deu o serviço. — Mas nós, homens, sempre
podemos esperar pelas mulheres, não é?
Lily pesou suas opções. Um pequeno passeio, com escala no McDonald's,
viria a calhar. Tanto o filho como Michael pareciam teimosos. Intuiu que não
perderia a autoridade materna caso concordasse em sair.
— Tudo bem. Só vou me secar.
Para seu assombro, Timmy abraçou Michael pela cintura, como a um
novo e bom companheiro.
— Vá em frente — afirmou o detetive. — Eu cuido do garoto.
— Certo, mas é melhor que entrem.
Ensimesmada, Lily viu que o filho puxava Michael pela mão, até dentro da
casa.
— Então, pronto para cavalgar o pônei? — Michael incentivou Timmy.
Antes do lanche, havia dirigido até o Parque Audubon, onde existia uma área
cercada com animais de aluguel. — Segure firme nas rédeas.
— Ande, cavalinho! — ordenou o menino, mais feliz do que nunca,
esporeando o pônei com seus tênis infantis. Logo imitou um relincho.
Michael riu à solta, enquanto Lily se mostrava preocupada. As pontas de
seus cabelos ainda estavam molhadas. Vestia jeans apertado e uma malha
justa que lhe favoreciam as formas do busto, dos quadris e, sobretudo, das
longas pernas. Um toque de batom vermelho completara os preparativos para
sair. Não precisava disso, segundo o detetive. A pele clara e suave, os olhos
verdes, lhe pareciam perfeitos como complementos de uma sensualidade
inata. O desejo de Michael era cingir Lily contra si, beijá-la com ardor e in-
troduzir as mãos sob a malha e acariciar os seios livres que o enlouqueciam.
— Vai, cavalinho! — repetiu Timmy, fazendo círculos cada vez maiores
em torno do casal.
Michael deu graças aos céus por aqueles momentos de lazer e
descontração, que seriam completos se ele controlasse o impulso de agarrar
Lily. Pela primeira vez durante a investigação, começou a compreender a
obsessão de Adam Webster por sua mulher fugitiva. De qualquer modo, seu
faro indicava que havia algo escondido naquela relação.
— Vamos embora, Timmy — ela sugeriu após sentir o olhar estranho de
Michael sobre seu corpo. — O pônei precisa comer, e nós também.
O detetive interrompeu a cavalgada e tirou o menino do lombo do
animal, diretamente para seu colo.
— Pôneis gostam de hambúrguer? — Timmy indagou, já na lanchonete.
— Não, a comida deles é diferente. — Michael sorriu para o menino, que
mordia com gosto seu sanduíche duplo, acompanhado de batatas fritas e
sobremesa de sundae com calda de chocolate.
— Os caubóis também precisam — comentou o menino, imitando o gesto
do detetive ao pegar uma batatinha com os dedos.
Lily sentiu-se mais relaxada. Volta e meia, deparava com cenas
familiares no local de trabalho: pais, mães e crianças partilhando uma mesa e
rindo com doce cumplicidade. Seus temores quanto ao futuro de Timmy,
porém, não a deixaram em paz. Ao menos naquele instante, desfrutava um
raro senso de proteção, semelhante ao que havia experimentado no começo do
relacionamento com Adam Webster, antes da gravidez.
Michael, por sua vez, alternava o olhar entre Lily e a criança, avaliando
como eram parecidos em matéria de formosura e encanto pessoal. Por que
Adam Webster mostrara interesse em reaver tão-somente a esposa, não o
filho?
Ele se arrependeu de ter telefonado ao empresário e gravado mensagem
na secretária eletrônica. Gostaria de contar com mais tempo para decifrar os
meandros daquele caso nebuloso.
Lily levantou-se da mesa e voltou com um copo plástico de café. Para
Michael.
— Lembro-me de que você pedia café na River Bend, após as refeições.
— Obrigado. — Ele apreciou a gentileza. — E você, não toma?
— Procuro evitar cafeína. Já sou suficientemente nervosa.
— O nervosismo só aumenta seu charme.
Ela sorriu diante da investida masculina, mas o olhar foi reprovador.
— Parece-me que você é um emérito conquistador. O detetive olhou em
torno antes de responder.
— Por favor, não estrague minha reputação. Dessa vez, Lily riu
abertamente, como ele esperava.
— Mas você também é muito amável, e gosto da maneira como trata
Timmy.
— Esse é o único "mas"? — ele provocou.
— Bem, eu sou tudo o que Timmy tem. Ele é minha prioridade absoluta.
Não há lugar para ninguém mais em minha vida. Portanto, se você se sente
sozinho, seria melhor gastar seu dinheiro em lanches com outra mulher.
— Como sabe que tipo de mulher eu desejo? Também não há lugar
dentro de mim para qualquer uma, só porque estou sozinho.
Lily fixou o olhar nele. Não podia negar que se sentia atraída. Mas
Michael não completara 33 anos em castidade. Certamente, havia tido muitas
parceiras, se não uma esposa.
— Você merece franqueza — ela disse. — Não estou disponível.
A declaração atingiu o detetive como um tapa no rosto.
Claro que Lily, ou Beth, ou Elisabeth Webster não se achava inteiramente
disponível. Ainda estava unida a Adam pelos laços do casamento. E ele se
dispusera a pagar um milhão de dólares para tê-la de volta.
Ele sentiu raiva de si mesmo, dos sentimentos que nasciam em seu
coração, da excitação sexual que Lily causava, até mesmo da ternura que o
filho dela despertava dentro dele. Como lidar com tudo isso, quando havia um
curto prazo para encerrar a missão?
Lily aguardou Timmy devorar a sobremesa e então falou que já hora de
retornarem. O garoto não parou quieto no banco de trás do carro, até perto de
casa. Depois, esgotado, adormecera. Michael tomara um atalho a fim de barrar
suas emoções emergentes. Pelo modo como a passageira esfregava o couro da
bolsa, ela devia estar mais nervosa do que nunca.
— Se me der um minuto, eu levo Timmy para dentro e volto para me
despedir.
— O tempo que quiser — asseverou Michael, abrindo a porta do
motorista e fazendo a volta para soltar o cinto de segurança que protegia o
menino. — Posso levá-lo no colo.
— Não é necessário. Eu...
— Vá abrir a porta, Lily. — Ele transportou o sonolento Timmy como fazia
habitualmente com os filhos de Jane, a viúva de Pete Crenshaw. Seguiu a
mulher na direção da pequena varanda.
— O quarto dele fica no fim do corredor — ela informou ao entrar e dar
passagem.
A pequena casa era limpa e bem-arrumada, com um toque feminino
quase sofisticado na decoração. Michael colocou Timmy na cama e a mãe o
cobriu amorosamente com uma manta.
— Você fez um bom trabalho aqui — comentou o detetive, enquanto
acompanhava Lily rumo à cozinha.
— Obrigada. Também fico muito grata pelo passeio e pelo lanche.
— De nada. — Ele desviou o olhar para o primeiro objeto à vista: o
fogão. — Ah, esqueci-me de perguntar à sra. Davis. O gás é de rua, no bairro?
— Sim. O sistema de aquecimento também.
— Não entendo por que estas casinhas têm má fama.
— Michael, minha situação é, digamos, especial. Repito, não há espaço
em minha vida para ninguém mais, exceto Timmy.
— Nem mesmo para um amigo? — ele insistiu, olhando-a fixamente. —
Bem, você não precisa se preocupar. Lembra-se da mulher sobre a qual lhe
contei? Aquela com dois filhos pequenos?
Lily revelou indecisão, mas gesticulou afirmativamente.
— Ela se chama Jane. O marido foi meu melhor amigo e parceiro de
trabalho na polícia de Houston. Morreu baleado durante uma batida, cinco anos
atrás e... Bem, desde então Jane se dedicou inteiramente às crianças. Abdicou
de uma vida própria. Por isso, compreendo você.
Era verdade, e Michael sentiu-se aliviado por poder ser honesto com Lily,
ainda que ocultasse sua condição de detetive a serviço de Adam Webster. De
algum modo, tinha esperança de que a própria Beth confessasse sua
verdadeira identidade.
— Acontece que, há poucas semanas, Jane concluiu que estava sendo
injusta com os filhos, privando-os de um homem em casa. Injusta consigo
própria, igualmente. Talvez você esteja cometendo o mesmo erro.
— Não estou.
— Certo, mas se conseguir me aceitar como amigo...
— Creio que é impossível.
— Não valeria a pena tentar?
— Michael, eu...
— Vamos, Lily. Só estou pedindo sua amizade, e acho que isso não causa
danos. Que tal me oferecer outra xícara de café e me contar como veio parar
aqui?
CAPÍTULO IX

Lily não soube definir o que lhe acontecia. Um minuto antes, estava
pronta a rechaçar aquele homem para fora, gritando que não queria um
amigo, nem um amante. No instante seguinte, com o coração tão aquecido
quanto a água da cafeteira, ela preparava uma xícara destinada a Michael
Sullivan. Reservou outra para si e sentou-se à mesa da cozinha, disposta a lhe
contar a história do bairro.
— Foram trabalhadores pobres que construíram as casas em terras
devolutas, como meio de escapar dos impostos e dos fiscais. Com o tempo,
deslocaram-se para a periferia e as moradias foram sendo ocupadas por
aposentados e idosos. Estas casas geminadas provavelmente foram erguidas
para abrigar duas famílias.
— Notei que há muitas construções desse tipo na vizinhança.
—Em terrenos de dimensões modestas, é a melhor maneira de aproveitar
o espaço e ainda economizar na obra. Quarenta por cento das habitações de
Nova Orleans são assim.
Michael provou um biscoito de chocolate, pescando-o do pote de vidro
que Lily havia trazido à mesa.
— Engraçado. Consta que o bairro serviu de refúgio a bandidos, mas,
com sua explicação, talvez um morador nervoso, certo dia, tenha dado alguns
tiros para o alto, e a fama se espalhou.
Lily estremeceu ao recordar-se de que Adam guardava armas de fogo em
casa, ao alcance de um menino curioso como Timmy. Num acesso de violência,
o próprio pai poderia disparar um revólver contra o filho.
— Você tem idéia de que época data esta construção? — Michael quis
saber.
— Ao redor de 1900, pelo estilo italiano que era popular depois da Guerra
de Secessão. — Lily adorava estudar arquitetura, como passatempo. — Notou
os ornatos em curva, na fachada? Típicos do período vitoriano.
— Puxa! Para quem mora aqui há poucos meses, você entende do
assunto.
Lisonjeada, Lily misturou leite a seu café.
— Gosto de casas assim. Desde criança, brincava de desenhá-las. Agora,
meu hobby é identificar os detalhes ornamentais. Eles revelam a época da
construção.
— Talvez sua profissão certa seria de arquiteta ou restauradora.
— E verdade, mas nunca conseguiria.
— Por quê? Eu nunca fiz faculdade, mas você ainda é jovem.
— Tenho 25 anos e um filho para criar.
— E daí? Vá em frente e tire seu diploma. Há muitas mulheres que
voltam a estudar, depois de ser mães. Parece que existem currículos especiais,
mais curtos, para elas.
— Já escolhi minha carreira: cuidar de Timmy. — Ela suspirou. — Meu
marido me preferia como esposa e mãe em tempo integral.
— Ele morreu antes de Timmy nascer? — Michael pressentiu que estava
no rumo certo para obter confidencias de Lily.
— Sim. — Ela empalideceu e tomou um gole de café com leite para
disfarçar. — Mas, quando engravidei, ele insistiu em que eu ficasse em casa,
sem trabalhar, em vez de colocar o futuro filho em uma creche ou nas mãos de
uma babá.
— Seu marido devia ser bastante dominador.
— Não. Era mais velho e mais estudado. Eu respeitava os conselhos dele.
— Como agora você trabalha na lanchonete, suponho que deixe o menino
numa creche.
— Timmy fica com uma amiga, enquanto estou fora. Trabalho porque
preciso. Sou viúva — Lily mentiu.
— E o seu marido não lhe deixou bens ou um bom seguro?
— Claro, mas a morte dele foi repentina e a cobertura tornou-se
insuficiente.
— Conte-me o que aconteceu com ele.
— Como assim?
— Quero dizer, do que seu marido morreu? Doença fatal ou acidente?
— Acidente de carro — ela retrucou, pesando as palavras para não ir
longe demais. — Tive um problema sério durante a gestação e ele me levou
correndo ao hospital, numa noite de chuva. O automóvel derrapou numa curva
e bateu num poste. Ele teve afundamento do tórax e traumatismo craniano. Eu
saí ilesa, sem arranhão.
Lily lembrou-se da noite em que, já em trabalho de parto, ela sofrera um
corrimento de sangue e Adam a conduzira à maternidade, dizendo que, se
fosse um aborto espontâneo, Deus estaria corrigindo um erro, o erro de ela ter
engravidado. Adam nunca quisera ser pai, e ela gostava de acreditar que a
colisão fatal não era uma mentira.
— Sinto muito. Deve ter sido duro para você, dar à luz pouco depois de
perder o marido.
— Sim, claro. — Lily fechou os olhos, recordando. Timmy nascera
prematuro de um mês, mas saudável. Julgava que, ao tomar o bebê nos
braços, Adam mudaria de opinião e a felicidade conjugai seria restabelecida.
— Você está bem? — Michael notou o distanciamento da suposta viúva.
— Estou, apenas não gosto de falar desse assunto.
—Tome seu café. — O detetive passou-lhe um biscoito para acompanhar.
— Timothy era o nome de seu marido?
— Não, o nome veio de meu avô materno.
— Vocês eram muito próximos?
— Nunca o conheci, na verdade. Mas minha avó foi quem me criou e eu
aprendi a adorar o primeiro Timmothy pelas fotos e pelo que falavam dele.
— Parece ter sido uma pessoa realmente especial. Sua avó ainda vive?
Aqui em Nova Orleans?
— Não. — Lily começou a aborrecer-se com aquele interrogatório. —
Faleceu quando eu fiz 15 anos. Você faz perguntas demais.
Ela ergueu a xícara na direção dos lábios. A mão tremeu e a porcelana se
espatifou sobre a mesa, em dois ou três cacos. Sem escutar mais nada, Lily
viu a cozinha girar até transformar-se numa sombra escura. Desabou sobre a
mesa.
— Droga! Lily?
A voz tardou a chegar à mente da mulher desmaiada. Michael correu à
pia e molhou um pano de prato, que aplicou na testa de Lily e depois num
dedo que sangrava. Ao desfalecer, ela se vira de volta à mansão de Miami, ao
lado de Adam, mas presa numa corrente. Havia sangue no piso. Timmy estava
baleado. Sem vida.
— Lily, acorde. Olhe para mim.
Michael a ergueu nos braços e levou até à cama, depois de ver o medo
estampado no rosto pálido, mais do que alvo, e estancar o filete de sangue que
se formara no dedo ferido. Aceitaria qualquer nova mentira, desde que ela
manifestasse uma reação vital, qualquer reação. Dizer a si mesmo que se
tratava de uma mulher perversa, que roubara o marido e raptara o filho, já
não servia de lenitivo para seus sentimentos.
Ela finalmente abriu os olhos e focalizou quem a chamava.
— Espero que não esteja com medo de um ex-policial — ele disse,
esfregando as mãos da mulher deitada. — Se tem receio das multas de
trânsito que não pagou, saiba que nunca irei cobrá-las.
Um sorriso acompanhou a volta da cor ao rosto de Lily. O olhar, porém,
continuava denunciando culpa e temor. Michael examinou o dedo levemente
lacerado, que voltara a sangrar.
— Onde você guarda o estojo de primeiros-socorros?
— No armário do banheiro — ela murmurou em tom neutro.
— Aperte o pano contra o ferimento — ele pediu —, enquanto vou buscar
um curativo. A tontura melhorou?
— Um pouco.
—Tente ficar sentada na cama e colocar a cabeça entre os joelhos.
Voltarei em um minuto.
O detetive apressou-se até o banheiro, pequeno mas limpo e funcional
como o resto da casa. Também não era, pensou, um cômodo à altura da
mulher que subtraíra uma razoável fortuna em dinheiro e jóias. A imagem de
Elisabeth Webster, no papel de Beth ou Lily, veio-lhe como a de uma
competente atriz. Ou então Adam havia mentido sobre os atos da esposa. No
conjunto, o caso se tornava espantoso, quase absurdo. Tal como a ligação
farsesca de Pete Crenshaw com a traidora Giselle.
Ela sim, tinha sido uma mentirosa ainda melhor. Contara ao parceiro de
Michael uma história impressionante a respeito de abusos do próprio pai.
Dissera querer fugir e livrar-se da família, arruinando a de Pete.
Talvez Lily também estivesse interpretando, mas exibia uma fragilidade,
uma tristeza que não combinava com sua atuação. Lembrava mais uma
boneca quebrada do que uma ladra fugitiva.
De qualquer modo, estava ferida, e Michael voltou ao quarto levando o
estojo que encontrara sem dificuldade. Molhou uma bola de algodão com
antiséptico, removeu o papel que cobria a bandagem adesiva e prontificou-se a
cuidar de Lily, prevenindo-a de que o líquido poderia arder um pouco.
— Não sou médico, mas provavelmente ficará uma cicatriz mínima,
insignificante.
— Dispenso o curativo. — Foi quase uma ordem, que Michael
desobedeceu. Depois levantou-se e fechou o estojo, depositando-o no criado-
mudo. Sentiu-se sem ação.
— Ei, tenho certa prática de enfermeiro. Mas, se preferir o hospital, eu
pego Timmy e vamos.
— Não! — ela bradou. Saiu da cama de supetão e correu ao quarto do
filho, que ergueu no colo, estreitando-lhe as costas. Em segundos, a imagem
dela mudara para a de uma mãe extremosa. Adam Webster só podia ter
mentido, pensou Michael. Também concluiu que nada mais tinha a fazer ali.
No trajeto de volta ao hotel, o detetive bateu diversas vezes o punho
cerrado no volante.
— Droga! Droga! — repetia.
Após estacionar, recolheu seu telefone celular e alcançou o quarto. Sabia
que não conseguiria dormir e, além disso, a noite mal começava. Decidiu vestir
calção, camiseta e tênis, e correr um pouco no parque próximo. Quando se
trocava, o telefone soou.
— Olá, Jane. — Ele vira o nome da amiga no visor do aparelho. — Eu ia
justamente ligar para você.
— Como está indo o caso?
Estranho. A viúva de Pete nunca lhe perguntava nada sobre trabalho.
— O que há de errado? — Ele sentou-se na cama. — Você está bem?
— Sim, estou.
— E os meninos? — Uma ruga de preocupação vincou a testa de Michael.
— Igualmente bem. Nenhum dos dois se machucou.
— Então, o que aconteceu?
— Fui demitida de meu emprego, na semana passada — Jane revelou por
fim.
— Lamento. — Era sincero. Ele percebia como o trabalho de secretária
qualificada fazia bem à amiga, distraindo-a e dando-lhe um senso de
independência, apesar da ajuda financeira que recebia.
— Não se aflija por dinheiro para as despesas. Ainda tenho uma sobra de
meu adiantamento e vou receber muito mais.
Sim, desde que entregasse Lily a Adam Webster!
— Não preciso — Jane insistiu. — Tenho direito à indenização trabalhista.
Será o bastante para tomar conta de mim e dos garotos, até que encontre
outro emprego. Em todo caso, achei melhor avisar você.
— Fez bem. — Michael relaxou um pouco, mas suspeitou de algo mais.
— Decidi me mudar da Flórida e ir para o Oklahoma — ela confessou. —
Na verdade, estou aqui, na capital.
— Na cidade de Oklahoma? Você não voltou aí desde que se casou com
Pete.
— Tem razão. Mas aqui tenho parentes que me hospedaram. Uma tia e
dois primos, mais uma porção de amigos. Um deles, chamado Hal, com que eu
saí antes de conhecer Pete, falou-me de uma vaga no Fórum, para uma
secretária com experiência em legislação. Apresentei currículo, fiz a entrevista
e creio que conseguirei o emprego.
— Mas, e os meninos? Terão de trocar de escola, de ambiente e tudo o
mais. — Michael tentou absorver a inesperada informação.
— O fato é que ficaram empolgados com a mudança. Gostaram dos
primos, que têm filhos da mesma idade. Claro, é muito diferente da Flórida e
do sol maravilhoso, mas parece que minha decisão fez bem para Pete Júnior e
Mickey. Já era hora de eu pensar no futuro. Por que você não faz o mesmo?
Até então, as idéias de Michael sobre seu futuro se resumiam a manter
os filhos de Pete em segurança financeira e emocional. Para si, contentava-se
com um veleiro e, talvez, com quebrar sua solidão e a de Jane unindo-se a ela.
Mal podia digerir tantas novidades.
— Diga-me. Esse seu antigo namorado, Hal, é um sujeito decente?
— Sim, é advogado estabelecido e vai bem na carreira — declarou Jane
após rir ligeiramente, sabedora do contido ciúme que despertava no amigo. E
tão atirado quanto Pete, por isso nunca se casou. Gostava de mim, quando
rompi e me mudei da cidade. Só refez contato ao enviar condolências e, a
partir daí, trocamos cartões de Natal. Agora, ele diz que me esperou todo
esses anos. Fez-me sentir especial.
— Você é especial, Jane. — Michael reprimiu um suspiro de frustração. —
Quando pretende mudar-se?
— Em uma semana, dez dias. Por isso estou ligando. Voarei para
Houston somente para empacotar minhas coisas e pedir os papéis de
transferência de escola dos meninos. Não vou morar com nenhum parente.
Encontrei uma ótima casa em condições vantajosas: o aluguer será descontado
do valor de venda, caso eu decida comprá-la mais adiante.
— Fico contente por você e pelas crianças, Jane. Quanto a mim...
— Irei visitá-lo para me despedir, antes de sair da Flórida. Acha que
terminará o caso em tempo de voltar?
Michael avaliou sua situação com Lily. Sabia que poderia encerrar a
investigação naquele momento, se quisesse.
— Creio que sim. De qualquer modo, desejo ver você e os meninos. Se
necessário, irei a Oklahoma.
— Seria fantástico, Michael. As crianças também querem ver você. — E
ela?, o detetive pensou. — Da próxima vez, eu lhe passo o novo endereço.
Michael ouviu o barulho das crianças atrás de Jane, ansiosas para falar
ao telefone. Confirmou que elas estavam felizes com a mudança, com a nova
casa e os novos amiguinhos. Ao desligar, ele sentiu-se mais sozinho do que
nunca.
Bem, como adulto, teria de superar a decepção. Jane havia decidido fazer
o que achava melhor. Não lhe cabia intervir nos planos da amiga. Da mesma
maneira, por que se empenhar em resolver os problemas de Lily. Esse era um
assunto dela, por mais que a imagem de terror que ela exibia o comovesse.
"Não seja idiota", ele exigiu de si próprio. "Entregue Lily, pegue o
dinheiro e suma no mundo". Seria a medida mais lógica, mas Michael já não
encontrava condições interiores de submeter-se à razão. Sem Jane e as
crianças por perto, sua fantasia sentimental e sexual com Elisabeth Webster
tendia a crescer. Inclinava-se a lhe contar a verdade e ajudá-la ao máximo.
Assim, quando Adam telefonou, o detetive atendeu com a ansiedade em
alta.
— Retornei sua ligação ontem mesmo, mas não o encontrei — disse o
empresário, soando insultado como sempre. — Você realmente localizou
Elisabeth? Onde ela está?
— Calma, hoje eu descobri que não se trata dela.
— Como assim? Você disse que...
—Equivoquei-me. Encontrei uma mulher loura e um menino que se
pareciam com Elisabeth e Timmy, mas não são eles. Fiquei entusiasmado e
avisei você antes da hora. Desculpe-me.
— Pensei que você não cometia erros, Sullivan. Como sabe, dificilmente
eu os admito, principalmente depois de pagar-lhe uma pequena fortuna. Em
meu negócio, não posso aceitar desculpas. Falta pouco tempo para seu prazo
terminar.
— Estou consciente disso.
—Pelo nosso acordo, terá de devolver o adiantamento, mais as despesas,
se não me entregar Elisabeth. — Adam sustentou uma longa pausa. —
Considerando que minha esposa não é muito esperta nem sabe se manter
sozinha, é inacreditável que ela consiga escapar de um detetive hábil como
você.
Michael fechou um dos punhos e socou o ar.
— Acredite no que quiser. Talvez ela seja mais inteligente e prática do
que você imagina.
— Claro, inteligente o bastante para me roubar e tapear Michael Sullivan.
Mais uma vez, ele pensou que o empresário obtivera fartas informações
sobre sua capacidade, junto a fontes do FBI. Devia ter ouvido que ele possuía
o faro de um cão de caça. Obviamente, Adam desconsiderava o fato de Michael
ser também um homem sensível.
— Se preferir, eu saio do caso — concedeu o detetive, sentindo-se tolo
por perder tanto dinheiro.
— Não, quero que continue, até o prazo final.
— Está bem. — O raciocínio era de que não existia outro investigador no
rastro de Lily e Timmy, o que lhe dava maior liberdade de ação.
— Tem certeza de que a tal mulher em Nova Orleans não era Elisabeth?
— Tenho — Michael mentiu.
— E pena, pena mesmo.
—Mas consegui outra pista. Talvez ela esteja no Mississípi. Estou
rastreando seus passos.
— Então, comunique-me o resultado amanhã.
Um murmúrio interior alertou Michael de que Adam suspeitava de sua
lisura.
— Ele está mentindo — afirmou o empresário a seu segurança pessoal,
chamado Bernie, no escritório de Miami. — Reúna dois ou três homens, vá a
Nova Orleans e fique de olho em Sullivan.
— Certo, mas por que ele mentiria, se precisa entregar sua esposa para
receber uma montanha de dólares?
—Talvez Sullivan queira mais. Ou menos — disse Adam
enigmaticamente.
Um envolvimento do detetive com a bela mulher não estava excluído de
suas cogitações. Seria uma explicação para Michael ter mentido, protegendo
Elisabeth.
— Sullivan é muito esperto — Bernie elogiou, sugerindo que ele
dificilmente seria enganado por qualquer principiante. — Acho que ele vai
resolver o caso dentro do prazo.
— Espero que sim. Sullivan cometerá um erro enorme se tentar me trair.
— O empresário estalou os nós dos dedos, com expressão perversa.
A idéia de Elisabeth deixar-se seduzir e tocar por outro homem o tirava
do normal. A raiva bombeava mais sangue para suas artérias. Ele tombou o
porta-retrato com a imagem da esposa.
— Se ele fizer isso, é um homem morto.
CAPÍTULO X

Recostada na cabeceira da cama, Lily respirava em ritmo acelerado.


Havia tido mais um pesadelo. Depois de acender o abajur, um olhar para o
relógio digital a informou de que eram sete da manhã. Obrigou-se a levantar e
arrumar-se para ir trabalhar, compensando os atrasos anteriores. Reservou um
minuto, porém, para analisar o sonho. Dessa vez, fora pior. Mais apavorante.
Mais real.
Ela corria por uma rua escura, em busca de um canto para se esconder.
Na esquina, hesitou entre as duas direções a tomar. Ouviu vozes atrás dela. —
Peguem! Peguem!
Retomou a corrida, levantando água ao bater com os pés no pavimento
molhado. Avançou pelo Vieux Carré e desceu a via que levava ao histórico
Bairro Francês da cidade. Dobrou na esquina seguinte, relanceando o olhar
pelos prédios antigos, com suas sacadas cobertas de flores. Chegou à Bourbon
Street, templo do jazz e de boêmia, onde um músico de rua convidava os pas-
santes para as celebrações do Mardi Gras. Teve de desviar-se dos turistas que
se concentravam ali. As pernas doeram. A boca ficou seca. Ela perdeu o ritmo
e parou junto a um poste, entre luzes, risos e sons que a assaltavam por todos
os lados.
Em meio à multidão, rezou para que Adam e seus asseclas não a
encontrassem, nem machucassem Timmy. Tentou ler a placa e descobrir onde
estava. Gertrudes a havia prevenido para ter cuidado. Se virasse no sentido
errado, poderia dar com seus perseguidores ou a própria polícia.
— Para onde ela foi?
Lily distinguiu a voz de Adam entre o burburinho e reconheceu que corria
perigo. Nada poderia ser mais terrível do que ser capturada por ele. Com
esforço, voltou a andar depressa, apesar do frio, da umidade, dos músculos
doloridos, dos pulmões cansados. Viu-se de repente envolvida por uma densa
neblina.
Aterrorizada, correu às cegas, sem destino, até chegar ao muro sólido de
um beco sem saída. Gritou até não poder mais.
— Calma, Lily. Sou eu, Michael.
— Michael? — Ela encontrou alívio nos braços dele.
— Graças a Deus que você veio. Estava com tanto medo — murmurou,
aconchegando-se a ele.
Ele afagou-lhe os cabelos e pediu calma outra vez.
— Tudo bem. Eu não prometi que tomaria conta de você?
Lily ergueu o rosto a fim de observar seu salvador, agora que o nevoeiro
havia se dissipado. Só que não era a face de Michael, e sim a de Adam.
Apesar do sorriso, à meia-luz, os olhos brilhantes revelavam
perversidade.
— Você foi muito tola, Elisabeth, ao me dopar e fugir. Não imaginou que
eu a encontraria, onde quer que estivesse? Vou puni-la, mas primeiro preciso
achar o garoto. Trouxe-lhe um revólver e quero ensiná-lo a puxar o gatilho.
Roleta russa, ouviu falar? Ele gosta de brincar com armas de fogo.
— Adam, por favor — ela suplicou quando viu que o marido tirava uma
pistola da cintura. — Vou mandá-lo para longe, mas não machuque meu filho!
Ele continuou alisando a cabeleira solta de Lily, até agarrá-la com força e
puxá-la para trás, fazendo com que ela deitasse a cabeça. Em outras
circunstâncias, poderia apreciar as estrelas no céu.
— E tarde demais para isso — Adam sentenciou. — Você se tornou muito
apegada a Timmy, desde o início da gravidez. Recusou-se a abortar. — Ele
disse isso como quem se descartava de um par de sapatos velhos. — Mas eu
sempre fui indulgente, sempre a perdoei, não?
— Sinto muito se não me mostrei agradecida. Vou mudar meu
comportamento. — Lily esperava pacificar o marido.
— Claro que vai mudar. — Adam encostou a coronha da arma na
têmpora da esposa, que tremeu de medo. Talvez o alvo da bala não fosse ela,
mas Timmy. — Tem de se livrar do menino.
— Isso não! — ela bradou. O grito ficou parado no ar.
— Não! — ela repetiu em voz alta no quarto, suando e tremendo. Levou
as mãos às têmporas, procurando vestígios do pesadelo. Bem acordada,
imaginou como escapar da sanha de Adam.
Estava em relativa vantagem, concluiu. Ele ainda não conhecia seu
paradeiro. Fazia meses que os asseclas do empresário a haviam rastreado no
Arkansas. Por que então sentia tanto pavor?
Removeu uma mecha da testa e reparou no curativo plástico num de
seus dedos. Obra de Michael! Ela sentira temor e desconfiança ao ser
informada de que ele fora um policial. Normalmente, ex-policiais continuam a
carreira como seguranças ou investigadores particulares. Seria o caso de
Michael?
A incerteza é que tinha disparado o sonho, Lily deduziu. Mas ela não
desejava cair em paranóia, sofrendo de uma mania de perseguição que a
impediria de viver, com medo de tudo e, principalmente, temendo pelo filho.
Gelada, ela ouviu batidas na porta dianteira da casa. Olhou em torno de
si, à procura de uma arma para defender-se, uma faca de cozinha que fosse.
— Lily, é Michael! Michael?
Ela suspirou, afastando seus maus pensamentos. Ainda que Michael, por
hipótese, estivesse em seu encalço, ele lhe transmitia certo senso de
segurança. Não lhe faria mal, nem ao menino. Pelo olho-mágico, viu que ele
estava sozinho e abriu a porta.
— Vim trazer um presente. Uma cafeteira nova e xícaras para repor a
que você quebrou. — Ele estendeu-lhe uma sacola de loja.
— Não era preciso.
— E um prazer — Michael afirmou sorrindo. — Posso entrar?
— E cedo para visitas — ela disse secamente.
— Bem, imaginei que logo mais você sairia para trabalhar e não quis
incomodá-la na lanchonete. Além disso, poáèmos fazer café e tomá-lo com as
roscas que também comprei. — Ele exibiu outro pacote.
— Obrigada, Michael. Não sei se é uma boa idéia.
— Mamãe! — Timmy surgiu às costas de Lily, esfregando os olhinhos.
— Com licença, devo cuidar dele.
— Ao menos pegue os presentes.
— Mamãe! — o garoto choramingou, em clara manobra para chamar
atenção.
— Bem, esteja à vontade enquanto vejo o que Timmy quer e troco a
roupa dele. — Pegou o filho pela mão. — Mamãe já está aqui. O que perturbou
você? Um pesadelo?
— Não encontrei meu ursinho na cama.
— Você o largou na sala. Ali está. — Ela recolheu o bicho de pelúcia e o
passou ao menino.
— Tive medo de ficar sozinho.
Era de cortar o coração. Lily reviu mentalmente uma cena parecida,
meses antes, quando Timmy, ao procurar o ursinho no estúdio de trabalho do
pai, encontrara um dos revólveres que Adam mantinha dentro de casa. O
garoto introduzira o cano na boca, como se fosse um pirulito. A visão do perigo
a assustara tanto que Lily, tremendo, mal conseguira dar um tapa na arma e
jogá-la no chão. Seu instinto materno e protetor nunca tinha sido tão
solicitado, exceto no dia em que Timmy emborcara na piscina, sob o olhar
displicente do pai.
— O que houve? — Adam questionara, ao entrar e ver a mulher
agachada, histericamente abraçada ao menino.
— Estou protegendo meu filho.
— De quem? Do próprio pai dele? — Ele havia rido, zombeteiro. — Fiz o
que você sempre me pediu: dar atenção a Timmy.
— Deixando um revólver ao alcance de uma criança?
— Não tenho culpa de ele ser tão curioso. Se tiver de castigar alguém,
punirei você.
— Pois desista. — Elisabeth ganhara coragem para erguer a arma do
chão e apontá-la para o marido.
Com certeza, seria melhor que Timmy já tivesse saído do estúdio, para
não ver uma cena tão traumática entre seus pais. A mãe receava também pela
saúde psicológica do menino, e naquele instante decidira achar uma maneira
de fugir dali.
— Ei, caubói. Qual é o problema? — Michael acercou-se dos dois.
— Ele teve um pesadelo — explicou Lily, confortando Timmy com um
abraço forte. — E ainda perdeu seu ursinho de pelúcia.
— E verdade, caubói? — O detetive viu o garoto pestanejar e exibir o
bichinho recuperado. — Podemos colocar nele uma medalha de identificação.
— O que é isso? — Curioso, Timmy cessou de choramingar.
— Veja. — Michael puxou de seu pescoço uma correntinha prateada, com
uma espécie de moeda gravada. — E da época em que eu servi na Marinha. Se
você levar estes números ao computador, aparece sua ficha completa, com
nome e endereço.
— Mesmo?
— Que tal fazermos uma para o ursinho? Você gostaria?
— Sim. — Sorrindo, o menino se aproximou, com os olhos brilhantes de
admiração.
O detetive retirou a corrente e a colocou no bichinho de brinquedo.
— Michael, não precisava fazer isso — Lily objetou.
— Está feito.
— Obrigado — disse Timmy, abraçando o adulto.
Não era a primeira vez. Observando a cena, Lily percebeu que aqueles
dois se davam bem e que seu filho gostava muito de Michael. Praticamente o
elegera como pai substituto.
— Você e o urso estão com fome?
— Sim — Timmy repetiu.
— Então, vamos fazer um lanche na cozinha enquanto sua mãe se veste.
Ante esse comentário, Lily deu-se conta de que ainda estava de camisola,
com as curvas bem delineadas. Não tivera tempo de cobrir-se com o robe.
Nem percebera o olhar malicioso de Michael para seu corpo.
— Não estou me queixando, claro — ele gracejou —, mas preciso cuidar
de minha pressão. — Levantou Timmy no colo e saiu, sem esperar resposta.
Ao ver que ele se afastava, Lily sentiu um arrepio que havia muito não
experimentava. Arrepio agradável, acompanhado de um sensual calor à flor da
pele. Percebeu que, pela primeira vez na vida, sentia real desejo por um
homem. Não por um homem qualquer, ela emendou mentalmente. Por Michael
Sullivan.
Seu prazo estava se esgotando, ele admitiu. Na noite anterior, tinha
resolvido ajudar Lily. Diante dela, tão sedutora, reconheceu haver tomado a
decisão correta. Só permanecia em dúvida quanto ao momento de contar a
verdade. A mulher parecia desconfiada e, se ele revelasse que Adam Webster
o havia contratado para localizá-la, ela fugiria antes de ser levada ao marido.
Seria necessário conquistar-lhe a confiança em primeiro lugar. Apegar-se a
Timmy era um caminho seguro para isso, além de fácil. O menino e a mãe
eram encantadores. Michael adorava ambos.
Em seu quarto de hotel, o detetive consultou o relógio. Tinha duas horas
até encontrar-se de novo com Lily, para assistirem ao desfile de Mardi Gras.
Assim como a convencera a sair de noite, mantinha esperanças de que ela se
antecipasse e revelasse quem era e por que se escondia. Um mistério pairava
sobre o caso: por qual motivo Lily havia telefonado ao FBI?
Ao pensar no Bureau Federal de Investigações, Michael lembrou-se do
irmão, Travis, que não tinha retornado suas ligações. Empunhou o celular,
teclou o número e novamente foi atendido pela secretária eletrônica.
Dessa vez, não se incomodou em deixar recado. Acessou outro número,
aquele que raramente chamava desde que saíra de Houston: o da casa dos
pais. Não se comunicara com eles depois do último Natal.
Michael hesitou ante o som da voz de seu pai.
— Alô?
— Papai, é Michael.
Surpreso, o velho Sullivan, policial aposentado, ecoou o nome.
— Mamãe não está?
— Foi levar sopa a uma amiga que mora sozinha e está doente.
O detetive quase salivou ao lembrar-se da espetacular canja de galinha
que a mãe costumava fazer. Ela tinha orgulho em cuidar da família e servir
guloseimas aos amigos dos filhos, quando jovens.
— O senhor já se acostumou a ficar parado em casa? — A aposentadoria
datava de um ano.
— Na maior parte do tempo, sinto falta de trabalho. Mas os novatos
gostam de chefes mais jovens. As coisas mudaram na polícia desde que você
saiu. Lembra-se de Henderson?
— Sim, senhor.
— Foi ele quem me substituiu e vem fazendo um bom trabalho. — O
homem idoso suspirou. — Já que sua mãe está fora, posso ser útil em alguma
coisa?
Era melancólico para Michael falar com o pai.
— Não consigo contato com Travis. Sabe onde ele está?
— Não tenho notícias dele há duas semanas. Parece que foi designado
para uma missão especial. Deixou o novo número do celular, mas não sei onde
o guardei. Se você ligar de novo, daqui a pouco...
— Melhor o senhor dizer a Travis que me ligue, no celular. Estou em
Nova Orleans agora. — Michael informou o código de área.
— De resto, vai tudo bem?
— Sim, estou concluindo um caso por aqui. Complicado, pois envolve
uma mulher e uma criança. Eles têm problemas e precisam de ajuda.
— Quer que eu faça alguma coisa?
O detetive comoveu-se com o oferecimento, sobretudo levando em conta
a séria desavença que tivera com o velho Sullivan, quando resolvera deixar a
Corporação Policial de Houston para trabalhar por conta própria, roído pela
pretensa culpa na morte do parceiro Pete Crenshaw.
— Agradeço, papai, mas gostaria de falar com Travis antes.
— Certo, darei seu recado assim que puder. Saiba apenas que ainda
mantenho bons contatos.
Michael decidiu passar ao pai um resumo do caso. Deu o nome e o
endereço de Adam Webster, mencionou que a esposa fugitiva chegara a ligar
para o FBI, na tentativa de encontrar uma saída. Apreciou a própria atitude,
pois o policial aposentado, além de prestativo, mostrou-se muito contente por
voltar a participar de um bom mistério.
— Esse tal de Webster foi longe demais à procura da mulher — ele
comentou com o filho. — Talvez ela esteja de posse de algo que o
comprometa.
— Já considerei a hipótese, mas não creio. Ela levou apenas algum
dinheiro e jóias. E o filho pequeno, que é um menino maravilhoso.
— Parece que você se apegou ao garoto.
O pai não completou o pensamento, porém Michael o adivinhou.
— Estou apaixonado por ele e por ela. — A confidencia soou com
naturalidade. — Isso não me impede de continuar raciocinando como
investigador.
— E o que eu espero. Passarei os dados a Travis. Enquanto isso, cuide-se
bem, filho.
Michael desligou, perplexo mas satisfeito com a reação do veterano
Sullivan.
Havia chegado a hora de contar, decidiu o detetive ao bater à porta de
Lily. Torcia para que ela não o desprezasse após conhecer sua história, sua
verdadeira atividade ali.
— Olá! Tudo pronto para sairmos?
Ela equilibrava o sonolento Timmy no colo. Tinha cogitado em levar o
filho, em vez de deixá-lo na casa de Gertrudes, já que o desfile do dia era
especialmente dedicado às crianças.
— Não sei se é uma boa idéia. Tenho de trabalhar amanhã e Timmy
sarou da catapora há poucos dias.
— É uma bela noite — disse Michael, contendo a frustração. — Não faz
frio nem garoa. O ponto inicial da parada fica a algumas quadras daqui e eu
gostaria de vê-la. Você poderá voltar para casa em minutos, caso queira
verificar se ele está dormindo bem.
— Pensei em levá-lo conosco.
— Então, não desaponte Timmy nem eu.
— Por favor, mamãe, quero ir com vocês. — O garoto mostrou-se
totalmente desperto.
— Vou pegar um agasalho para ele e também o carrinho de bebê, para o
caso de Timmy se cansar.
— Sem carrinho — o menino protestou. — Já sou grande, não um bebê.
Sou um caubói.
— Caubóis usam carrinhos para transportar coisas como brinquedos e
jaquetas — Michael o convenceu.
— Está bem. — Já no chão, o garoto abraçou o adulto. — Gosto de você,
vaqueiro.
A comoção formou um nó na garganta do detetive. Nada falou, ciente de
que a voz sairia trêmula. Já era bastante ruim que Lily lhe roubasse o coração.
O filho também? Subitamente, Michael deu-se conta do que acontecia em seu
íntimo. Seria sábio conter seus arroubos de paixão.
Ele pegou o carrinho fechado das mãos de Lily, mas não o preparou para
Timmy sentar-se.
— Combinei de levarmos o carrinho só para transportar os brindes.
— Brindes? — Ela estranhou, notando que Michael piscava um olho.
— Não jogam brindes nesse desfile de Mardi Grasl
— Claro, claro — Lily compreendeu. — Também podemos comprar
máscaras e outros adereços.
— Sim, senhora. — Poucas vezes Michael se sentira tão relaxado, tão
alegre.
Saíram, ele puxando o carrinho atrás de si e Lily conduzindo Timmy,
devidamente agasalhado, pela mão. Logo chegaram à Saint Charles, a avenida
iluminada e enfeitada por onde o cortejo festivo passaria. Detalhe: Timmy dera
a mão livre ao detetive e os adultos tiveram de ajustar a ele o ritmo de seus
passos.
— Muita gente — Lily comentou, gritando para superar o barulho e a
música.
— Todos adotaram a mesma idéia que nós: chegar cedo e voltar cedo.
Conseguiram espaço junto à base de um arco de flores e luzes, onde
Michael encostou o carrinho. Ao lado, uma menina pouco mais velha do que
Timmy e seus pais haviam trazido cadeiras. Provavelmente inúteis, já que na
hora culminante teriam de erguer a garotinha nos ombros para ela ver melhor,
tal como Michael já fazia com Timmy.
— Vamos deixar seu urso tomando conta do carrinho — propôs Lily e
assim fez, ajeitando o bicho de pelúcia no assento de lona.
A agitação e o volume do som cresceram. Surgiu o primeiro grupo de
foliões, entre músicos negros, pessoas mascaradas e fantasiadas, dançarinos
agitados.
— Balance a mão, Timmy, e grite: "Atirem um brinde para mim". Isso
também vale para sua mãe.
— Vou apenas olhar — Lily avisou.
Michael sorriu, ciente de que, para o público, agarrar a primeira leva de
presentes constituía uma febre, um atropelo. Nada de muito valor, claro:
balas, moedas, bonecos de pano, pequenos brinquedos de menos de um dólar
cada.
Por isso, o detetive ficou admirado ao ver que Lily tinha agarrado um
longo e bem polido colar de contas coloridas. Também surpreendeu-se quando
ela ergueu os braços e acenou enfaticamente para os participantes, todos
homens, pedindo mais. Mesmo em jeans gastos, camiseta simples e tênis
comuns, ela era linda. Rindo de felicidade, como naquele momento, chamava a
atenção de todos.
A dele, mais ainda.
Quando os pais da menina ofereceram uma cadeira para "o filho do
casal", Michael não se preocupou em corrigir o engano.
— Parece que meus ombros terão um pouco de descanso — comentou.
— E se eu quiser subir aí? — Lily propôs, divertida.
— Tudo bem. — O detetive fingiu desânimo, mas logo sorriu. — Pode vir.
— Ele preparou um apoio com as mãos juntas e os braços arqueados.
— Não, só estava brincando. Isso é para jovens. Já sou mãe.
— Bobagem. Veja quantas mulheres entraram no cordão, nos ombros de
seus namorados.
— Vá em frente, querida — interveio a mãe da garotinha, que ouvira
tudo. — Eu não deixaria passar a oportunidade, se meu marido tivesse ombros
como os do seu.
— O que há de errado com meus ombros? — o homem ao lado dela se
intrigou.
— Nada, querido, mas acho que eles não me agüentam — respondeu.
— Venha, Lily. Aproveite agora que o desfile está mais devagar. —
Michael puxou-a pela mão. — Aí de cima você poderá espiar Timmy.
Convencida, ela recorreu a uma das cadeiras e escalou os ombros do
detetive. Por mais estranho que fosse, ele sentiu integralmente o calor do
corpo feminino perto da nuca, a forma das coxas sob suas mãos. Tirante a
excitação que isso lhe provocou, não houve problema em acompanharem a
pequena multidão que avançava pela rua.
— Olhem, mamãe conseguiu! — Timmy empolgou-se. Gostaria de ser
igualmente levado de cavalinho por Michael, mas entendeu que não deveria
abusar do novo amigo.
De fato, ele e Lily voltaram cansados, embora sorridentes, ao ponto
inicial.
— Pode me pôr no chão, Michael — ela pediu e foi atendida. — Acho que
merece um destes. — Valendo-se da posição agachada do homem, ela passou
o colar de contas coloridas pelo pescoço dele.
Deus! Era o prelúdio de um beijo, de um reconfortante e ardoroso beijo
na boca. Instintivamente, Michael envolveu Lily com os braços. Naquele
instante, os risos, as vozes, os sons se apagaram. Restaram a magia da noite,
a cintilação dos olhos que se encontravam.
Por um átimo, ele esqueceu que se tratava de Elisabeth Webster, casada,
fugitiva, procurada, cuja localização valia alto preço. Poderia ser o maior erro
de sua vida, mas Michael segurou Lily e beijou-a com paixão.
CAPÍTULO XI

Quase imediatamente após o beijo, Lily recuou. Michael ponderou se a


maciez da pele, o breve gemido que escapara dos lábios dela, eram produto de
sua imaginação. Um olhar bastou para confirmar: não, não eram, apesar da
precavida distância que Lily passou a manter.
Um pouco mais tarde, a parada terminou e ele novamente carregou
Timmy no colo, semiadormecido. Em casa, a jovem mãe tirou a roupa do
menino, vestiu-lhe o pijama e colocou-o na cama, sob duas cobertas.
— Ele está gelado — comentou. — Mas nós dois nos divertimos muito
hoje. Obrigada. — A voz denunciou certa tensão.
— O prazer foi meu.
— Também vou me preparar para dormir. Trabalho amanhã cedo.
— Vai me deixar sair sem um café ou um licor?
— Que tal um chocolate quente?
Michael aceitou e seguiu Lily até a cozinha. Estava igualmente nervoso e
conhecia o motivo.
— O que você vai fazer com tantos brinquedinhos e brindes que recolheu
durante o desfile?
— Algumas pessoas os guardam para, no próximo ano, elas mesmas
atirarem para o público.
— Boa idéia. — O detetive se aproximou para ajudar Lily a arrumar os
presentes e, naquele pequeno espaço, seu corpo inadvertidamente encostou
no dela. A boca tocou nos cabelos claros.
De imediato, ele aspirou o aroma suave, lembrando pêssego, que
recendia daquela mulher. Com as mãos nos ombros de Lily, fez com ela se
voltasse. Então, a resposta contida nos olhos dela ficou clara. Excitação e
desejo podiam ser lidos facilmente nas duas íris verdes.
Michael não resistiu. Lançou os braços em torno de Lily e a beijou outra
vez, sem encontrar resistência. Agora, as bocas e línguas se encontraram e se
exploraram à vontade, livres dos olhares da multidão e do próprio Timmy.
Ele conhecera o aguilhão da volúpia, antes. Sofrerá a pressão e a
urgência de fazer amor com uma mulher, antes. Nada se comparava, porém, à
chama que o abrasava naquele instante. Michael queria possuir Lily no mesmo
momento, sem demora. Seus dedos, cravados nas costas dela, deslizaram até
os quadris e estreitaram o corpo cobiçado contra sua virilha desperta.
Aos poucos, a luxúria cedeu à razão. Exatamente por desejar Lily com
tanto desespero, seria injusto ir adiante enquanto pairassem segredos entre
eles.
Michael pensava que seu lado mais terno e generoso havia morrido em
Houston, cinco anos antes, junto com Pete. Apesar disso, foi com extrema
meiguice que ele juntou as faces abrasadas de Lily entre as mãos.
— Eu quero você, quero muito. Mas antes precisamos conversar. Preciso
que você me conte a verdade.
Ela devia estar sonhando, Lily ponderou. Um sonho lindo, delicioso. De
outra maneira, como explicar as sensações que a percorriam, o arrepio na
pele, o formigamento em suas dobras íntimas? Desde a última noite partilhada
com Adam Webster, e fazia tempo, ela não conseguia suportar o toque de
nenhum homem. A abstinência a levara à falta de apetite sexual. Com Michael,
no entanto, o vulcão interior e sensorial havia rompido esse escudo protetor. O
beijo já não bastava. Ela ansiava pelo contato pele a pele, pelo atrito enlou-
quecedor com os músculos masculinos. Mas ele interrompera o sonho ao falar
com ela.
— Diga-me a verdade, Lily.
Ela pestanejou, reprimindo a vontade.
— Pode confiar em mim. — As mãos de Michael se limitaram a pousar
sobre os ombros dela. — Do que você está fugindo?
Silenciosa, Lily estremeceu. De certo modo, já esperava por essa
situação, temerosa de que Michael estivesse a serviço de Adam e viera ali para
levá-la de volta ao marido. Ele confidenciara que tinha sido um policial, e
Adam conhecia muitos deles.
— Não estou fugindo de nada — conseguiu articular. O detetive
aumentou a pressão nos ombros dela, sem machucá-la, mas também sem
permitir que escapasse.
— Do que tem tanto medo? — insistiu.
— Está enganado. O que aconteceu entre nós foi um erro.
— Refere-se aos beijos?
— Sim — ela respondeu.
— Não foi um erro, Lily. Foi algo inevitável. Acho que queríamos isso
desde o instante em que nos conhecemos, na lanchonete. Sei que a desejo e
que você também me quer.
Lily conseguiu se desvencilhar e deu-lhe as costas, mas não se afastou.
— Você confunde fantasia com realidade — falou timidamente. — Já disse
antes: não estou interessada em nenhum outro homem, em nenhum novo
relacionamento.
— Por causa de Timmy?
— Exatamente.
— Olhe para mim. — Ele a forçou a encará-lo. Lily identificou real ternura
nos olhos de Michael.
Quase cedeu quando ele atritou suas faces com os dois polegares.
— Posso ajudar você e seu filho, Lily, desde que me conte o que a
perturba.
Na verdade, ninguém poderia. Se ela se envolvesse com Michael, poria
sua vida e a de Timmy em perigo. Chegara a hora de mudar-se novamente de
cidade, planejou. Não existia outra saída. Ele era livre para amar, ela não.
Alguma coisa que dissera ou fizera havia despertado a desconfiança do ex-
policial. Odiava admitir, mas Nova Orleans não era mais um lugar seguro para
Elisabeth Webster.
— Deixe-me ajudar — ele insistiu.
— Se quer mesmo ajudar, vá embora e nunca mais me procure.
Michael sustentou o olhar, sem acreditar na sinceridade daquele pedido.
Ainda assim, decidiu poupar a mulher amada de uma discussão desgastante.
— Vou deixá-la, por enquanto, mas temos de esclarecer tudo entre nós.
Voltarei, e então falaremos.
Entre o alívio e a frustração, Lily observou as luzes do carro de Michael se
perdendo na distância. Fechou a porta de casa consciente de que, quando
Michael retornasse, ela não mais estaria ali.
Foi até o telefone e ligou para a casa de Nancy Lee, mais amiga do que
sua chefe.
— Desculpe-me por chamar tão tarde, mas tenho más notícias. Recebi
um telefonema do Hospital Central de Atlanta. Minha tia Sally sofreu um
derrame.
— Sinto muito — Nancy Lee respondeu. — Pensava que você não tinha
mais nenhum parente.
— Apenas a tia Sally — Lily mentiu. — Na verdade, ela é minha tia-avó.
Os médicos disseram que seu estado é grave. Detesto deixar você na mão a
dois dias do Mardi Gras, mas preciso pegar o primeiro vôo que conseguir.
— Jane, perdoe-me por lhe pedir isso. Você acaba de se mudar, e lá
venho eu empurrar dois estranhos para sua casa.
— Michael, já disse que está tudo bem. Desde que ela e o filho não se
importem em passar a noite em sacos de dormir, eu e os meninos não nos
incomodamos.
— Obrigado, Jane. Não teria lhe pedido esse favor, se Oklahoma não
fosse o último lugar onde alguém procuraria Lily. Além disso, você é a única
pessoa em quem posso confiar.
— Igualmente. Informe o número e o horário do vôo, e irei esperar seus
protegidos no aeroporto.
— Ainda não sei ao certo, mas avisarei em tempo. Ainda falta convencer
Lily a ir para sua casa. — Michael sabia que essa seria a parte mais difícil.
Retinia em seus ouvidos o pedido para deixá-la em paz.
— Bem, aposto em você — declarou a amiga.
— Grato de novo, Jane.
Michael esperava levar Lily a compreender que não era ele o inimigo. O
esclarecimento da situação talvez apagasse aquele pavor estampado em seu
olhar. Já a havia pressionado para contar sua história. Claro que ele também
confessaria tudo, que fora contratado por Adam Webster a fim de localizá-la,
mas resolvera, por vários motivos, apoiar Lily e Timmy em vez de cumprir sua
missão original.
Problema: Lily poderia descrer dele, e não caberia culpá-la. Caso trocasse
de lugar com ela, também não acreditaria. Por isso Michael resolvera
providenciar um abrigo seguro para Lily e Timmy, um lugar fora das cogitações
de Adam Webster. Seus velhos instintos indicavam que ela estava prestes a
fugir novamente. Certamente pensava nisso, desde a noite anterior. Com
sorte, ele teria um ou dois dias para agir, antes de perder-lhe a pista.
— Essa mulher deve ser muito especial para você fazer tudo isso —
comentou Jane ao telefone.
— E é — Michael admitiu de viva voz pela primeira vez. —
Provavelmente, Lily irá me odiar quando souber o que vim fazer aqui. Por isso
mesmo, pretendo ajudá-la, quer ela queira ou não.
— Pelo visto, houve grandes mudanças em sua vida — Jane observou,
com um riso amistoso.
— O que está pretendendo dizer? — O detetive franziu a testa.
— Que agora parece que voltei a ouvir o velho Michael Sullivan. Aquele
que, certo dia, disse que tinha escolhido a carreira de policial para servir à
comunidade.
— Bem, alguém precisava ajudar Lily.
— Ela não poderia estar em melhores mãos.
— Obrigado, Jane. Fico lhe devendo essa gentileza.
— Esqueça. Vá falar com a moça e me informe a hora da chegada.
Surpreso, Michael descobriu após vários telefonemas que as viagens
aéreas tinham se tornado um problema. O fluxo de turistas chegando a Nova
Orleans, para participar do Mardi Gras, equiparava-se ao volume de moradores
que deixavam a cidade. O primeiro vôo com lugares disponíveis para
Oklahoma seria na terça-feira.
— Tudo bem — ele conformou-se. — Preciso de duas passagens. Adulto e
criança. — Passou os nomes de Lily e Timmy. — Gostaria de pagar em
dinheiro. Pode manter os bilhetes no balcão, para serem retirados amanhã ou
na hora do embarque?
— Não posso garantir, senhor — informou a atendente. — Seria mais
prático que me informasse o número de seu cartão de crédito.
O detetive preferia evitar esse risco, pois caso Adam Webster estivesse
monitorando seus gastos, duas passagens aéreas — para adulto e criança —
despertariam suspeitas.
— O senhor não precisa ir ao Aeroporto Louis Armstrong para pagar os
bilhetes — completou a funcionária. — Nossa agência central fica no bairro
comercial. Lá é possível confirmar as reservas e fazer o pagamento.
— Ah, obrigado. — Michael exultou com a informação. Depois que Lily e
Timmy chegassem em segurança à nova casa de Jane, na cidade de
Oklahoma, ele se entenderia com Webster. Até que ela lhe confessasse por
que temia tanto o marido, contava com obter algum dado novo, conseguido
por seu irmão Travis ou pelo velho pai. De imediato, devia ligar novamente
para o empresário e decidir se este pressentia algo errado.
Passava da meia-noite em Miami quando Webster atendeu em sua linha
particular.
— Ah, Sullivan! Espero que tenha boas notícias para mim.
— Infelizmente, não — Michael começou, explicando que se achava num
beco sem saída. — Sei que nosso acordo de trinta dias vence neste fim de
semana. Creio que uma prorrogação não fará a menor diferença, por isso vou
lhe devolver o adiantamento e cortar minhas despesas a partir de agora.
— Fico muito desapontado, Sullivan. Achei que você queria aquele milhão
de dólares. Apostei em sua competência e também na sua ambição.
— Não pense que é fácil para mim desistir de tanto dinheiro.
— Então, por que fala em cessar a investigação? Posso lhe dar mais uns
sete dias — Webster ofereceu.
Michael não pôde evitar a sensação de que o empresário brincava com
ele, jogando verde para colher maduro.
— Já disse que mais alguns dias não farão diferença. Sei reconhecer
quando perco um jogo. Sua mulher apagou todas as pistas. Chego a pensar
que ela saiu dos Estados Unidos, e eu não aceito trabalhos fora do país.
Devolverei o que lhe devo e vou procurar outro cliente.
— Menos de um mês atrás, você estava certo de que encontraria
Elisabeth. Do contrário, eu não teria lhe adiantado tanto dinheiro.
Do outro lado da linha, Michael rilhou os dentes.
— Nós dois sabemos perfeitamente que você só me contratou porque
outros detetives fracassaram. Imagino que o próximo, depois de mim, também
fracassará. — Ao menos ele torcia por isso. — Estou voltando à Flórida e
acertaremos as contas.
Adam Webster ouviu Michael desligar e ferveu de raiva. Será que o outro
ousava pensar que ele era tolo? Com alta probabilidade, Sullivan havia
localizado Elisabeth e se recusava a revelar seu paradeiro.
Serviu-se de uísque, no bar da sala, e pelo interco-municador chamou
seu guarda-costas Bernie.
— Você mandou alguns rapazes a Nova Orleans, como lhe pedi?
— Sim, patrão. Estão lá.
— E por que estão demorando tanto para localizar aquela vagabunda?
— Não sei, senhor. Mencionaram a festa de Mardi Gras, que deixa a
cidade em polvorosa.
— Dane-se a festa. Sullivan descobriu onde está Elisabeth e não quer me
contar. E melhor que o apanhem logo.
— Transmitirei a ordem, patrão.
— Cuide bem disso, Bernie. Se Elisabeth fugir de novo, você é quem
pagará. Entendido?
— Sim, patrão. Ela não vai escapar, nem Sullivan. O uísque puro que
ingeria não aplacou sua fúria.
Adam retornou ao quarto adjacente, tirou o robe e deitou-se, disposto a
combater suas frustrações. Sentia falta de Elisabeth, principalmente na cama.
De repente, irrompeu pela porta a amante sulista que ele havia recrutado
numa de suas boates. Motivo para mais irritação. Annabelle estava proibida de
entrar ali.
— O que veio fazer em meu quarto particular? Há outro para você. E por
que está vestida assim?
— Você rasgou minha roupa agora há pouco, não se lembra? —
Annabelle choramingou. — Pensei que não haveria mal em tomar emprestado
um vestido de sua mulher, para ir embora. Devolvo depois.
Em passos rápidos, Adam acercou-se de Annabelle e desferiu em seu
rosto um tapa forte, que a derrubou no carpete.
— Tire tudo! — ele ordenou.
— Sim, sim. — A amante não tardou em atender. Ver-lhe o corpo
trêmulo, a nudez exposta, inflamou Adam, fazendo-o pensar em Elisabeth e
em como ela o desobedecia. Justamente a ele, o homem que lhe dera tudo.
Apanhou o vestido, cheirou-o com obsessão, percebeu que Annabelle vertia
lágrimas. Transtornado, confundiu-a com a esposa ausente.
— Sabe o que acontece com crianças mal-educadas?
— Não sou mais criança — ela ensaiou protestar.
— Você é o que eu quiser que seja — Adam esbravejou. — Crianças mal-
educadas precisam ser punidas. E eu vou castigá-la, Elisabeth.
Apanhou um largo cinto de couro e ergueu o braço.
CAPÍTULO XII

Lily saltou de susto ao toque do telefone. Repetiu "alô" diversas vezes,


em vão, e desligou o aparelho. Um arrepio desceu-lhe pela espinha diante do
silêncio suspeito.
Normalmente, cogitaria de um engano, de número errado. Agora, já não
estava tão certa disso. Meses antes, tivera de dar seu nome verdadeiro ao
abrir uma conta de poupança em banco.
Ingeriu várias aspirinas, consultou o relógio e foi acordar Timmy. Seu
coração mais uma vez se aqueceu à visão do filho adormecido. Deu um beijo
nos cabelos negros, outro na testa do menino.
— Timmy, é hora de se levantar.
— Sono — ele murmurou, mal abrindo os olhinhos.
— Sei disso, querido. Mamãe planejou um dia especial. Vamos viajar.
— A Disneyworld?
— Não, algo melhor. Que tal irmos ao Texas e ver de perto grandes
fazendas, com belos cavalos e caubóis de verdade?
— Michael pode vir conosco?
A pergunta inocente doeu-lhe no fundo do ser.
— Não, não pode.
— Por quê?
— Porque eu e você formamos uma família, e famílias viajam juntas. Ele
não faz parte da nossa.
— Mas eu gosto de Michael.
Aquele homem havia roubado também o coração do filho, Lily concluiu,
enquanto trocava o pijama de Timmy por jeans e camiseta.
— Michael gosta de você, tenho certeza, mas esta viagem é só para nós
dois. Compreende?
O menino balançou a cabeça afirmativamente, sem esconder a tristeza
no olhar.
— Quer um pote de cereais com leite, para o desjejum?
— Daqueles com gosto de chocolate — animou-se Timmy.
Seria fácil atender ao pedido, e Lily preparou a mesa da cozinha antes de
telefonar para Gertrudes. A velha amiga alarmou-se com a chamada fora de
hora.
— Caiu da cama hoje, Lily? Timmy ficou doente de novo?
— Não, tudo normal — ela assegurou. — Posso deixá-lo mais cedo, hoje?
Prometo explicar a situação quando chegar aí.
Pouco depois, a apreensão de Gertrudes aumentou, em vez de diminuir,
ao escutar de Lily o plano de fuga. Segundo a jovem mãe, Adam Webster
havia descoberto seu paradeiro, e só lhe restava escapar antes que o pior
acontecesse. Gertrudes expressou desacordo.
— Se sua avó fosse viva, que Deus a tenha, ela lhe diria o mesmo que
eu. Você precisa parar de fugir, parar de ter medo. Não é bom para Timmy,
muito menos para você. Basta reparar em seu aspecto.
Por Detrás da Máscara
— Pareço mal porque não dormi esta noite. Tudo ficará bem, longe daqui
— Lily justificou-se.
— Não concordo. Por que não abre um processo de divórcio, luta pela
guarda legal de Timmy e põe fim a essa história?
— E difícil enfrentar Adam e ganhar dele.
— Não acho isso. Por mais que ele seja poderoso, a Justiça é neutra e lhe
dará a custódia de Timmy, reconhecendo o que é melhor para a criança. Adam
teria de provar que você não foi uma boa mãe.
— Você não o conhece, Gertrudes. Ele seria capaz de forjar evidências
contra mim. Sempre consegue o que quer.
Adam quisera alguma coisa do agente Carter, Lily rememorou, e ele fora
encontrado morto. Também desejara eliminar Timmy, e quase alcançara seu
sinistro objetivo.
— Ele tem muita influência — insistiu. — Vive dando jantares para altas
autoridades. Encontraria um meio de me tirar meu filho. Apareceria na
imprensa como marido enganado e pai extremoso.
— Você também tem amigos — retrucou Gertrudes —, e todos podem
testemunhar em seu favor, jurando que é uma mãe maravilhosa.
— Obrigada pela intenção, mas não posso arriscar.
— Lily, não suporto a idéia de que você e Timmy vão embora daqui. — A
idosa senhora mostrou lágrimas de antecipada frustração.
— Se existir uma mínima possibilidade de voltarmos, em segurança,
então voltaremos — Lily prometeu. Em seguida, beijou Timmy e explicou-lhe
que se ausentaria por alguns dias, retornando para levá-lo com ela, rumo ao
Texas.
Ela teria de recomeçar tudo, sepultar a vida fictícia de Lily Tremont em
Nova Orleans.
— Ei, vaqueiro, faz tempo que não aparece. — A saudação de Gina, na
lanchonete River Bend, foi acompanhada de um abraço mais discreto do que
ela gostaria de dar.
— Bom dia, Gina — disse Michael, verificando o horário: onze da manhã.
— Andei ocupado.
Na mesa junto à janela, ele bateu a mão no bolso da camisa, a fim de
certificar-se de que as duas passagens aéreas, para Lily e Timmy, continuavam
ali. Sentiu-se bem com as decisões tomadas, ainda que esperasse uma reação
negativa de Lily ao saber que ele estava — ou estivera — a serviço de Adam
Webster. Mostraria os bilhetes para Oklahoma como sinal indesmentível de
preocupação com a segurança dela e a de Timmy. Durante a estada de mãe e
filho com Jane e os garotos, mudaria o alvo da investigação para o próprio
Adam. Pretendia descobrir por que o empresário era tão obcecado pela
localização da esposa.
Sem fome, Michael desprezou o cardápio e manteve os olhos na porta da
cozinha, impaciente com a entrada de Lily no salão. Gina lhe trouxe um copo
de água e permaneceu parada, com o bloco de pedidos na mão.
— Já escolheu?
— Por que você está cobrindo o setor de Lily?
— Porque ela pediu dispensa. Avisou Nancy Lee que alguém da família
passava mal. Ficará fora por alguns dias.
— Sabe se algo aconteceu com Timmy, o filho dela? — Michael afligiu-se.
— Nada disso. Uma tia dela, em Atlanta, sofreu derrame cerebral. Lily
ficou de tomar o primeiro vôo da manhã. Só não sei como conseguirá lugar, na
véspera do Mardi Gras.
Na verdade, Lily nem se preocupou em enfrentar o aeroporto lotado, uma
vez que não ia para Atlanta, onde também não tinha nenhuma tia doente.
— Gina, Lily passou por aqui esta manhã, para pegar pertences ou o
cheque de pagamento?
— Sim, mas como você adivinhou?
— Pressentimento. Quanto tempo faz?
— Foi logo que abrimos, pouco depois das oito.
— Ela veio com Timmy?
— Não, pelo menos não vi o menino. Lily estava bastante apressada,
talvez tenha deixado o filho esperando no carro.
Não, claro que não. Uma mãe naquela situação jamais faria isso.
— Lily não me pareceu bem, Sullivan. Será por causa da tia internada ou
por estar metida em alguma encrenca? — Gina acrescentou.
— Ainda não sei, mas vou descobrir.
Michael saiu depressa da lanchonete, ciente de que Lily contava com
quase três horas de avanço. Para qualquer lugar que fosse fugir, teria de levar
dinheiro. Supostamente, iria descontar seu cheque, mas os bancos abriam às
dez, já com imensas filas por causa do grande fluxo de turistas e do feriado do
dia seguinte. Enfim, existia uma boa chance de encontrá-la.
Informado do endereço da agência bancária, o detetive acelerou o carro.
Outra dedução plausível era de que Lily deixara Timmy sob os cuidados de
Gertrudes Boudreaux, enquanto tomava providências para sua saída da cidade.
Para onde ir primeiro? Ao banco, à casa de Gertrudes ou à da própria Lily?
Michael hesitou, com o coração apertado.
Optou pela última hipótese e teve sorte. Ela se achava lá. Pelo menos
seu carro estava, repleto de malas, sacolas e caixas de brinquedos.
— Lily? — ele gritou, rodeando a habitação. Encontrou-a na cozinha,
preparando uma cesta de piquenique, com lanches e bebidas.
— O que faz aqui? — ela questionou, visivelmente irritada com a
intrusão.
Gina tinha razão. Lily parecia pálida, tresnoitada, com olheiras que lhe
escureciam o verde das íris. Acima de tudo, prevalecia a expressão de medo.
— Aonde você vai? — Michael pressionou.
— Não é da sua conta. — Ela guardou uma caixa de suco de laranja
gelado na cesta e deu por terminada a tarefa, mas as mãos se tornaram
trêmulas.
— Estou assumindo a situação como sendo da minha conta, sim. — Viu
que Lily o ignorava.
— Saia de meu caminho, Michael.
— Só depois de você me dizer para onde está fugindo e por quê.
— Não vou fugir, apenas ir para Atlanta, ver uma tia doente.
— Você não tem tia alguma, em nenhum lugar — o detetive disparou.
— Como sabe?
— Por você mesma. Contou-me que, depois de enviuvar, só lhe restou
Timmy no mundo.
Em gesto de contrariedade, ela mordiscou o lábio.
— Esqueci-me da tia Sally —justificou. — E a irmã de minha avó.
— Bem, deixe-me levar a cesta. Parece pesada. — E era, constatou
Michael após certa relutância da parte de Lily. Transportou-a até o carro e
voltou. — Quanto tempo pretende passar fora?
— Uma semana, talvez. Devo ajudar minha tia-avó e rezo para não ter
de enterrá-la.
— Tenho a impressão de que você está levando malas e pacotes para
uma temporada mais longa.
— Não — ela mentiu, mas Michael a acompanhou até o quarto e viu os
armários vazios, de portas abertas.
— Onde foram parar todas as suas roupas?
— Por favor, não tente me deter. Preciso sair logo daqui, com Timmy.
— Por quê?
— Não lhe devo explicações.
— Do que tem medo? — ele insistiu.
Detestava pressioná-la, mas uma confissão, da própria boca de Lily, seria
um sinal de confiança. Michael precisava disso, pois era a única maneira de
poder apoiá-la.
— Vamos, Lily — estimulou. — Confie em mim. Deixe-me ajudar.
Por um momento, o pavor deu trégua e ela soltou-se nos braços de
Michael, que a acolheu com ternura. De repente, o telefone soou. Lily
estremeceu. O detetive reconheceu o medo de volta aos olhos dele.
O instinto de sobrevivência — o mesmo que levara Lily a fugir de Miami,
sete meses antes — havia conduzido a assustada mulher a revelar seu
segredo, ou parte dele, a Michael. Ela tremia inteira ante a idéia de que o
marido pudesse alcançar Timmy.
— Preciso ir embora daqui, antes que meu filho corra algum risco.
— Certo, Lily. Mas tenha calma. Ninguém vai encontrá-los, prometo.
— Você não conhece meu marido, senão saberia que é um homem cruel
e temível. — Conseguindo raciocinar, ela notou que Michael não se
surpreendera com a revelação de que tinha marido, quando até então se
passara por viúva. O fato não lhe escapou, mas o objetivo de partir dali
rapidamente era prioritário. — Não me impeça de sair.
— Vou acompanhá-la no meu carro, e no caminho
— Vai atender?
— Não. Preciso ir. — Desvencilhou-se do abraço, e foi Michael quem
levantou o receptor.
— Alô? Silêncio.
— Sim? Quem é? — A ligação foi interrompida, sob o olhar ansioso de
Lily.
— Oh, meu Deus! Deixe-me ir — ela implorou.
— Conte-me o que há de errado.
— E ele. Já me localizou.
— Quem é ele? Quem a localizou?
— Meu marido — Lily sussurrou, apavorada — pegaremos Timmy. —
Ele empunhou o celular. — Antes, quero alertar a polícia e conseguir proteção.
— Não! — Lily exclamou.
Estava convencida de que aquela providência de nada adiantaria. Adam
contava com muitos policiais, advogados e até juizes em sua lista de propinas.
Todos ficariam do lado do empresário, a quem entregariam esposa e filho,
acusando Lily de algum transtorno mental.
Ela correu porta afora, sem se preocupar em trancar a casa ou o portão
de acesso. Nervosa, teve dificuldade em ligar o próprio carro, o que deu tempo
a Michael para alcançá-la.
— Lily, espere!
Naquele momento, a obsessão dela era pegar Timmy o mais rapidamente
possível. Adam sabia de tudo. Devia estar em seu encalço, a caminho de Nova
Orleans, no rastro da esposa e do filho.
— Por favor, Michael. Preciso sumir, e depressa. — Tentou fechar a
janela do veículo, apesar da mão do detetive firmemente pousada no vidro.
— Não sem mim. Vou com você.
— Desista. E perigoso.
— E acha que isso me importa? Preocupo-me com você e com Timmy.
Pode confiar em mim.
— Confiar?
Essa era outra história. Lily gostaria de entregar-se aos cuidados de
Michael, mas não com a vida de Timmy em risco. Ansiosa e exausta, principou
a chorar.
— Não posso confiar em ninguém — afirmou, embora ignorasse o que
fazer como alternativa.
— Você não tem escolha. Deixe-me ajudá-la.
— Mas...
— Desligue a chave do carro e aja normalmente, como se estivéssemos
conversando ou saindo para um passeio. — Tomando o banco do passageiro,
Michael manteve os olhos no espelho retrovisor. — Estamos sendo vigiados.
— Como? — Lily sobressaltou-se. — Onde ele está?
— São dois, na esquina, mas não se vire. — Lentamente, ele ajustou o
espelho para ela ver. — Não quero que saibam que os descobrimos. Fique
parada.
Lily tremia por dentro, mas seguiu as instruções.
— Viu o Lincoln vermelho estacionado na esquina, com dois vultos
dentro?
— Sim — Lily confirmou, controlando a tensão.
— Notei o carro logo que cheguei e pensei que eram turistas vindo para o
Mardi Gras ou à espera de alguém. Só que o veículo não saía do lugar e os
vultos não se moviam.
Além do frio na boca do estômago, Lily sentiu que a corja lhe abandonara
o rosto. Apertou com força o volante. Perdeu a noção do tempo decorrido
desde que deixara o filho, prometendo voltar logo. Seu tremor se intensificou.
Teriam os dois espiões seguido seu carro até a casa de Gertrudes?
— Pelo reflexo da luz, parece que um dos homens tem uma máquina
fotográfica ou uma filmadora — disse Michael, estreitando os olhos bem
treinados. — Você os reconhece?
— Não, mas Adam... meu marido tem uma porção de gente trabalhando
para ele. Não conheço nem metade deles.
O ponto crucial era que, entre os capangas de Adam Webster, poderiam
existir assassinos frios, dispostos a liquidar com ela e com Timmy. O que
fazer?
— Se estão a serviço dele, parece que esperam por novas instruções. Ou
aguardavam por Adam em pessoa, pensou Lily.
Quando Michael lhe assegurou que poderiam despistar os espiões, ela
admitiu que, suspeitas à parte, ele era um bom sujeito, talvez bom demais
para meter-se em confusões como aquela.
— Aprecio e agradeço o que está tentando fazer, Michael. Mas seria
melhor para nós dois que saísse do carro e me deixasse resolver meus
problemas sozinha.
— Como pretende escapar? Pode haver mais gente no seu rastro, além
dos dois gorilas no Lincoln vermelho.
— Já fugi antes. — Lily esboçou um sorriso de orgulho. — Tenho certa
experiência no assunto.
— Este seu velho carro será facilmente alcançado pelo Lincoln, por mais
que corra. Teríamos melhor chance no meu Ford, mas é arriscado trocarmos
de veículo agora. Qual a velocidade que você costuma atingir?
— O limite é de cem por hora, na estrada interestadual.
— Você se incomoda em ultrapassá-lo? É uma boa motorista?
— Não e sim. Por quê?
— Porque dentro de um minuto você ligará o motor e sairá com calma.
Assim que dobrar a esquina, acelere. Quero aqueles dois longe de nós.
Lily obedeceu, mas a fumaça visível no escapamento do Lincoln indicava
que os capangas de Adam Webster estavam prontos para segui-la. Assim
aconteceu e, um pouco mais adiante, o sinal de trânsito mudou.
— Vá devagar e pare na luz amarela — Michael instruiu. — Logo que der
vermelho, pise no acelerador antes que os carros da outra rua comecem a
andar.
Lily sentiu o efeito da adrenalina, os pneus cantaram. Escapou por pouco
de bater contra um Mercedes que vinha pela transversal. Em todo caso, perdeu
de vista seus perseguidores.
— Mais à frente há uma saída para a rodovia — o detetive continuou
orientando a motorista. — Tome a direção do lago.
Movida pelo medo, que em aparente contradição lhe transmitia coragem,
Lily entrou na alça de acesso em alta velocidade. O carro bailou na pista,
desviando-se dos veículos que lotavam as faixas.
— Pode desacelerar agora — Michael pediu. — Acho que os despistamos.
Ela suspirou de alívio. Não se arrependeu de ter confiado no investigador.
— Já posso apanhar Timmy? — confiou de novo.
— Onde ele está?
— Com uma amiga. Ela geralmente cuida dele enquanto trabalho. Deve
estar preocupada com minha demora.
— Vá em frente, saia da rodovia e pare ali. — Michael apontou para um
estacionamento junto ao muro que delimitava a praia.
Depois de acatar as novas instruções, Lily fez a cabeça pender sobre o
volante, incapaz de definir o que sentia, a não ser o extremo cansaço e um
reprimido desejo. Se aquela aventura terminasse bem, ela finalmente poderia
atirar-se nos braços de Michael e assumir toda a sua atração por ele.
— Você está bem? — o detetive quis saber.
— Sim. — Ergueu o rosto. Michael lhe passou o telefone celular.
— Ligue para a babá de Timmy e veja se ela tem um lugar seguro para
levar o menino e encontrar-se conosco.
Deu certo. Gertrudes concordou em conduzir Timmy à casa de uma
amiga, de quem informou nome, endereço e telefone. Combinou de ficar lá, à
espera de um chamado. Quando recebeu de volta o celular, o detetive por fim
distendeu os músculos, aliviado.
— Já que você não quer que eu avise a polícia, pedirei a meu pai que
venha para cá e recolha Timmy.
— Seu pai? — ela estranhou. — E se Adam...
— Adam não sabe onde você está, no momento. Também é impossível
que tome um avião para Nova Orleans, hoje, por causa do movimento do
Mardi Gras. Mas Houston, onde mora meu pai, fica a seis, sete horas de carro.
Ele tomará conta de seu filho até que possamos levá-lo. Concorda?
Ela acedeu com um gesto de cabeça. Guardou silêncio enquanto Michael
telefonava ao velho Sullivan, explicava a situação e ajustava detalhes. Como
esperava, o pai não só concordou em ajudar, mas também ficou empolgado
com a possibilidade de voltar aos antigos tempos de polícia.
— Bem — o detetive concentrou a atenção em Lily após desligar —,
chegou a hora de você falar. Preciso me inteirar do que está acontecendo e por
que alguém planeja eliminar você e Timmy.
— Não eu, apenas meu filho — ela explicou. — Sei que parece um
absurdo, mas é verdade.
— Quem deseja ver Timmy morto e por quê?
— Você não vai acreditar, se eu contar.
— Experimente — Michael animou a jovem mãe. Lily produziu um suspiro
comovido e comovente.
— Nem sei por onde começar.
— Comece dizendo-me quem você realmente é.

CAPÍTULO XIII

A brisa soprava suave do lago violáceo, enquanto eles caminhavam ao


longo da amurada.
— Meu verdadeiro nome é Elisabeth Webster — ela principiou, em tom
contido. — Lily é como minha avó costumava me chamar. Acrescentei o
sobrenome Tremont, de um velho parente, e forjei uma nova identidade para
mim.
Michael ouviu sem grande choque o relato que Liiy lhe fez, referente aos
últimos sete meses. Conhecia tudo ou quase tudo. Por isso, surpreendeu-se e
indignou-se quando soube das repetidas tentativas de Adam Webster para
livrar-se de Timmy.
Em silêncio, ele vibrou interiormente ao tomar ciência de como a jovem
mãe, tal qual uma heroína de cinema, havia dopado o marido, roubado
dinheiro e jóias do cofre, e enganado os seguranças para sair de casa ilesa,
com o filho pela mão, alegando uma consulta urgente com o pediatra dele. Boa
parte do dinheiro que subtraíra fora usado nas viagens de fuga e na compra da
identidade falsa. Assim, vivia modestamente e tinha de trabalhar para se
manter.
O que o detetive não conseguia digerir era a idéia de que um pai
planejasse matar o próprio filho. Um absurdo total, sem sentido.
— Então, sua fuga foi basicamente para proteger Timmy? — Viu que Lily
confirmava com um gesto de cabeça. — Por que apenas não pediu divórcio?
— Pelo mesmo motivo por que não quis que você chamasse a polícia.
Adam é poderoso, influente, com amigos nas altas esferas. Ainda que
conseguisse me separar legalmente, ele daria um jeito de ficar com a guarda
de Timmy. Eu não podia correr esse risco.
A Michael não escapou o tremor contínuo de Lily, atribuível muito mais às
lembranças de Adam do que à brisa que encrespava as águas do lago.
— Naquela noite no estúdio, quando flagrei Timmy com o revólver na
mão, convenci-me de que era só uma questão de tempo para Adam conseguir
seu intento e fazer tudo parecer um acidente.
— Mas Timmy é o filho dele! — o detetive continuou revoltado.
— Sei que é difícil entender.
— Pois faça com que eu entenda. — Michael interrompeu a caminhada,
segurou Lily pelos ombros, encarou-a de perto. Temia que seus sentimentos
por ela influíssem em sua capacidade de julgamento.
— Eu tinha só 15 anos quando minha avó morreu. Foi ela quem me criou.
A partir desse dia, fui viver com minha mãe, que era bonita como uma artista
de cinema.
Isso era bem mais fácil de aceitar, pensou Michael, seduzido pela radiosa
beleza de Lily. A formosura dela, porém, possuía contornos mais etéreos do
que flagrantemente sensuais.
— Ela foi convidada para ingressar numa agência de modelos —
prosseguiu Lily —, antes mesmo de completar o colégio. Fez trabalhos
ocasionais, mas a grande chance estava em Nova York, para onde se mudaria
assim que terminasse os estudos. Deu tudo errado.
— O que aconteceu?
— Engravidou de mim no último ano do colégio e seus planos de fazer
carreira no mundo da moda e da televisão foram por água abaixo.
— E seu pai? — Michael estranhou a falta de referências a ele.
— Nunca conheci, nem minha mãe me contou quem era. Creio que ela
própria tinha dúvidas. Descobri que havia sido bastante promíscua, como
forma de abrir caminho para o sucesso. Pessoalmente, desconfio que se
tratava de um homem casado, e que minha mãe fez de tudo para retomar a
carreira após a gestação. Mas não aconteceu. No momento em que soube da
gravidez, a agência a descartou.
A conclusão de Michael, mesmo sem conhecer a mãe de Lily, foi de que
ela não merecia a filha que tivera.
— Não sei se a gestação já estava muito avançada ou a formação católica
prevaleceu, mas minha mãe teve medo de abortar. Queria, sim, dar-me para
adoção logo que eu nascesse, e foi vovó quem impediu, assumindo minha
criação. Sabia ser teimosa depois de colocar algo na cabeça.
— Tal como a neta, suponho.
— Talvez. De qualquer modo, passados três meses, minha mãe sumiu no
mundo, dizendo que iria lutar para refazer sua vida, e nunca mais deu notícias.
Lily comparou o desvelo da avó com a leviandade da mãe, que jamais se
tornara a supermodelo ou a estrela de televisão que sonhava ser. Isso fez com
que Michael recordasse e abençoasse sua própria família, modesta mas sólida.
Na fase de crescimento, ele tivera desavenças com pai e mãe. No entanto,
acima de qualquer dúvida, sempre se sentira desejado e amado.
— Depois que minha avó faleceu, o Juizado de Menores localizou mamãe
e me enviou para viver com ela.
— Ela deve ter adorado... — Michael ironizou.
— A verdade é que concordou em me receber. Na época, trabalhava
como cantora de boate e me apresentou seu patrão, Adam Webster, que aliás
foi muito bondoso comigo.
— Com 15 anos, você ainda era uma criança.
— Eu parecia mais velha. Já tinha corpo de mulher. — Lily examinou a
própria figura. — Estou muito magra, pois perdi peso no último ano.
— Você me parece ótima. — O detetive observou Lily com ar de
aprovação. De fato, estava mais magra do que nas fotos fornecidas por Adam,
mas a beleza não só fora mantida como ganhara um ar de fragilidade que
clamava por proteção.
— De qualquer modo, Adam manifestou interesse em cuidar de mim.
Comprou-me roupas, pagou meus estudos, levou-me a frequentar eventos
culturais, e por vezes cheguei a pensar que tinha um pai. Dois anos mais
tarde, minha mãe morreu e ele se tornou meu tutor legal.
— Como assim? Não era seu parente.
— Aparentemente, mamãe deixou um testamento em que pedia isso.
Havia feito economias, que Adam administraria em meu nome, caso ela viesse
a me faltar.
— Soa muito conveniente — replicou o detetive, ainda incrédulo.
— Hoje eu percebo melhor. Mas, na época, era grata a Adam por se
encarregar de mim e me mandar para um colégio interno católico. Vinha
visitar-me a cada quinze dias, ou me levava para passar o fim de semana com
ele. Sentia-me solitária, claro, mas protegida. Não precisava me preocupar
com dinheiro. Só que, ao completar 18 anos, Adam mudou de atitude. Passou
a demonstrar um interesse nada paternal.
Ela voltou a caminhar pela margem murada do lago, dedicou alguns
minutos à contemplação de um barco ao longe. Michael viu-se obrigado a
seguir-lhe os passos.
— Talvez Adam não tenha mudado, apenas tirado a máscara. Não tenho
certeza. Bastou eu me formar e tornar-me maior de idade, e ele disse que eu
já era mulher feita, que me amava e queria casar-se comigo. Deu-me um anel
de diamantes para reforçar o pedido.
— Mas você o amava, pelo menos um pouco? — perguntou Michael com
certa amargura.
— Não de uma maneira física, com a atração sexual que provavelmente
Adam sentia por mim. Mas do modo como uma filha ama o pai.
— Ele não era seu pai.
— Sabia disso. Por outro lado, Adam foi praticamente o primeiro e único
homem em minha vida. Eu não passava de uma adolescente tímida, e ele fez
sentir-me como uma mulher madura, especial.
— Bom motivo para casar-se... — Michael zombou mais uma vez. — Por
que não disse "não" e caiu fora? Ou será que aquele estilo luxuoso de vida
despertou sua ambição?
Lily focalizou o detetive com um traço de mágoa no olhar. Cansara-se de
ouvir acusações similares.
— Desculpe-me — disse Michael. — Não pretendia...
— Está tudo bem. Sei que a definição de cavadora de ouro serve em
mim.
— Ninguém tem o direito de julgá-la. Eu só tentava compreender.
— E eu só tentava explicar. Casei-me com Adam porque ele foi bondoso
comigo. Estava sozinha, desnorteada, e julguei que, com o tempo, aprenderia
a amá-lo.
— Conseguiu? — Michael odiou a si mesmo por importar-se tanto com a
resposta.
— Não. Foi um dos motivos por que quis ter um filho. Acreditava que
assim salvaria o casamento.
— Não salvou, claro.
— Para minha surpresa, Adam mostrou-se totalmente contrário à idéia de
ser pai. Disse detestar crianças e mostrou-se intransigente. Talvez fosse
possessivo demais, a ponto de ter ciúme de um filho. Acusou-me de ter
engravidado de propósito, o que era verdade, e quis obrigar-me a um aborto.
— Admira-me que você tenha resistido.
— Bem, eu só contei que estava grávida quando era tarde demais para
abortar sem risco.
— Boa manobra, mas como um homem dominador, obcecado pela
esposa, não percebeu que você esperava um filho?
— Tive sorte. Ganhei pouco peso, a barriga não apareceu até o quarto
mês. Quando começou a crescer, aleguei uma gripe forte, depois uma infecção
qualquer, e com isso nós não... ele não...
— Entendi — cortou Michael, disfarçando o ceticismo com um sorriso.
— Claro que a farsa não durou por muito mais tempo, mas então Adam
já não podia forçar-me a tirar o filho sem arriscar minha vida também.
— Cristo! Em que século estamos? Aquele homem não era seu dono. — O
detetive ficou inconformado com tudo o que ouvira.
— Pensava que era. O que eu poderia fazer? Ele me educou, me vestiu,
me transformou naquilo que eu sou.
— Você se fez sozinha — Michael contrapôs.
— Aos olhos de Adam, eu pertenço a ele, a ponto de não aceitar dividir-
me com mais ninguém.
— Nem com o próprio filho?
— Nem com Timmy.
Irritado, o detetive afastou-se de Lily. Com as mãos na amurada,
contemplou as águas do lago. Desejou ardentemente estar no barco que
balançava ao longe, em vez de ouvir a história de uma mulher linda e frágil,
manipulada por um crápula. Aborrecera-se com Adam e também com Lily, pois
acabara de constatar que os sentimentos dela não se concentravam nele,
Michael, mas pairavam indefinidos, soltos no ar. Até que ponto ela conhecera e
praticara o amor, exceto o de mãe?
— É horrível — murmurou.
—Eu sei — Lily rebateu, baixando o olhar como se estivesse
envergonhada. — Levei tempo até perceber que os sentimentos de Adam por
mim não eram... normais. Toda aquela obsessão era doentia, e eu tive de
suportá-la por causa de Timmy. O resto você sabe. Quando Adam estendeu
suas garras para meu filho, resolvi fugir.
Michael sabia. Graças a ele, o canalha havia localizado Lily em Nova
Orleans. Seus instintos o tinham alertado para as suspeitas de Adam quanto a
sua lealdade, mesmo ao custo de um milhão de dólares. O empresário colocara
alguns capangas em seu rastro, providência fácil em vista do poder que a
própria Lily temia.
Isso sinalizava, porém, que não era hora de confessar sua participação
pessoal na implacável busca que Adam movia à esposa e ao filho. Se Michael
contasse, Lily fugiria dele, mas não conseguiria escapar da sanha de seus
perseguidores. E se Timmy sofresse um só arranhão... Nem queria pensar no
que faria.
O detetive bateu a mão no casaco e sorriu ao confirmar que as
passagens aéreas estavam ali, bem guardadas. Restava-lhe proteger mãe e
filho até a hora mais indicada, então os colocaria em segurança num avião
para a Cidade de Oklahoma, e depois resolveria a pendência com Webster.
Lily manifestou-se repentinamente, como se despertasse de uma longa
divagação.
— Vou entender se, depois de ouvir minha história, você desistir de me
ajudar. Pode dispensar seu pai e dizer-lhe para não vir. Não é seguro levar
você de volta até seu carro, por causa daqueles dois homens, mas posso
deixá-lo em seu hotel ou chamar um táxi.
Michael mal escutou as considerações de Lily, por considerá-las
desnecessárias. O fato de possuir dois bilhetes aéreos era animador. A
impossibilidade de revelá-lo, sem expor suas conexões com Adam Webster,
era frustrante.
— Então, quer ficar no hotel?
— O quê? — Ele acordou. — Não, não podemos voltar lá. Provavelmente,
os homens de Adam checaram as placas de meu carro e descobriram minha
identidade. Com isso, será fácil me localizar na cidade. O melhor, creio, é nos
escondermos até que eu consiga tirar você e Timmy de Nova Orleans.
— Ainda quer me ajudar?
— Claro. Por que mudaria de idéia?
— Adam Webster é poderoso e imoral. Amigo meu se torna inimigo dele.
Você passaria a correr riscos também. Enfim, não precisa fazer isto, Michael.
— Como não? Preocupo-me com você. — Ele correu os dedos pelos
cabelos castanho-claros. — E gosto demais de seu garoto. Não permitirei que
alguém o machuque ou magoe você, Lily.
— Não sei o que dizer.
— Diga apenas que confia em mim.
— Está bem. Confio. — Ela cravou nele os misteriosos olhos verdes.
— Isso é tudo, Lily? — Michael ergueu com os dedos o queixo dela.
Adotou um tom esperançoso. — Nada mais?
Ela hesitou demoradamente, depois balançou a cabeça.
— Nada mais.
— Certo — ele disse com secura, mas prendeu Lily nos braços para dar-
lhe um beijo ardente. Não foi rejeitado.
Quando descolou os lábios, Michael pensou que jamais, em momento
algum, seria possível confundir aquela mulher com a traidora Giselle.
— Tenho um plano — declarou —, mas antes preciso saber com quanto
dinheiro contamos.
— De minha parte, pouco mais de mil dólares.
— Bom. Juntei outro tanto. Deve ser o bastante.
— Bastante para o quê?
— Para subornar o gerente e conseguir vaga num hotel de luxo, em pleno
feriado de Mardi Gras.
— Consegui — anunciou Michael retornando do carro, onde se isolara
para fazer algumas ligações pelo celular.
Lily permanecera junto à mureta, observando os barcos que singravam o
lago. O vento, agora mais forte, fazia seus cabelos esvoaçarem em torno do
rosto.
— Onde?
— No Hotel Saint Charles.
A menção de um dos hotéis mais caros da cidade, ela soergueu as
sobrancelhas. O problema não era tanto o custo, mas a superlotação por causa
do Mardi Gras e o costume, vigente em datas festivas, de exigirem no mínimo
quatro diárias.
— Quantos barris de petróleo do Texas isso vai custar? — ela brincou.
Michael aproximou-se e tomou lugar junto à amura-da, ao lado de Lily.
— Você não acredita que meu charme é suficiente para obter um quarto,
sem suborno?
Era verdade que o detetive possuía um forte encanto pessoal, mas e daí?
Adam Webster também tinha sido charmoso e convincente.
— Quanto?
— Seiscentos dólares por uma noite.
Lily produziu uma exclamação de espanto e arregalou os olhos.
— Mais cem — completou Michael — para o recepcionista que
"encontrou" o apartamento vago. Poderemos entrar nele dentro de duas horas,
o que nos dá tempo de comprar fantasias para usarmos amanhã, na Terça-
feira Gorda.
— Conheço alguém que vende roupas especiais. E um estilista chamado
Ricardo, frequentador da lanchonete. Dias atrás, ofereceu às garçonetes da
River Bend fantasias pela metade do preço.
— Ótimo. Então, passaremos primeiro por lá. Pronta? Michael seguiu Lily
até o carro, indeciso quanto a tomar-lhe a mão ou enlaçá-la pela cintura.
Decidiu que aquele não era um momento de sedução, mas sim de assegurar
abrigo. De qualquer modo, passaria a noite com ela e talvez...
— Michael, você acha que seu plano vai dar certo?
— Sim, com um pouco de fé. A melhor maneira de nos escondermos é
ficarmos à vista de todos, usando fantasias.
— Como esses casaizinhos?
O lugar, obviamente, era um ponto de encontro de namorados. Junto à
mureta do lago, sucediam-se casais aos beijos e toques, rostos ocultos na
confusa troca de carícias. Lily nunca tivera namorado nem saíra com alguém,
exceto Adam. O cenário sensual e a proximidade calorosa de Michael a
devolveram à fase da adolescência, naturalmente povoada de fantasias.
— Positivo — ele respondeu por fim. — Adam vai nos procurar em
possíveis esconderijos, enquanto estaremos misturados à multidão de foliões
do Mardi Gras.
— Você é bastante inteligente.
A reação de Michael ao elogio foi um inevitável segundo beijo na boca de
Lily. Diante do embaraço que ela mostrou, o detetive instalou-a no banco do
passageiro e fechou a porta do carro.
— Podemos passar na casa de Gertrudes e apanhar Timmy? — ela pediu.
— Acho melhor deixá-lo onde está, por enquanto. — A resposta veio
sóbria. — É mais seguro.
— Não quero ficar longe de meu filho.
— Lily! — ele assumiu um tom autoritário. — Meu pai logo estará aqui e
cuidará da segurança de Timmy, até o momento certo de você pegá-lo.
— Mas...
— Pense no seguinte: para Adam ou seus capangas, seria mais fácil
procurar uma mulher com uma criança. Já tomei providências para tirar você e
Timmy da cidade. Uma amiga minha lhes dará refúgio.
— Quem? Onde? — Lily surpreendeu-se.
— Lembra-se de Jane Crenshaw, de quem lhe falei? Ela tem dois meninos
e...
— A mulher que foi esposa de seu parceiro, morto durante uma operação
policial?
— Sim, essa mesma — Michael confirmou, com tristeza na voz. — Ela e
os filhos mudaram-se para o Oklahoma. Você e Timmy poderão ficar lá, até
que essa confusão termine.
— Ela aceitou me abrigar? Sem me conhecer?
— Conhece a mim. E também sabe alguma coisa sobre você.
— Como assim?
— Sabe que você é importante para mim.
Lily engoliu em seco, incerta sobre o que dizer. Queria confiar em Michael
— aliás, não tinha outra alternativa —, mas o conhecia fazia tão pouco tempo!
Poderia colocar seu destino e o de Timmy nas mãos dele? Tal ponderação
trouxe-lhe arrependimento. Arrependimento por não ter relatado que também
tinha roubado do cofre de Adam um disquete comprometedor.
Lily debateu-se entre o impulso de revelar a verdade e o instinto de
autoproteção. Decidiu que um ex-policial como Michael, que havia perdido o
parceiro numa ação desastrada, correria para entregar o disquete às auto-
ridades. Era um risco que ela não desejava acrescentar aos outros, apesar do
empenho de Michael em ajudá-la. Confiar nele era uma coisa. Confiar a ponto
de lhe passar o disquete, com a vida de Timmy em perigo, era outra.
— Bem, estamos por nossa conta — disse o detetive, a caminho do
centro. — Onde fica a loja de seu amigo?
— Na Avenida Saint Charles. Chama-se Ricardo.
— Parece ser um lugar chique e caro.
E era, Lily descobriu no instante em que entrou na loja. Nenhuma mulher
poderia ter vivido sete anos com Adam Webster sem aprender a reconhecer
artigos de luxo. Ricardo não vendia apenas roupas, mas também antiguidades
como cristais, vasos, jogos de porcelana e outros itens que valiam pequenas
fortunas.
Muitos clientes de última hora disputavam as fantasias, revirando-as
sobre o balcão, e todos eram servidos com uma taça de champanhe. A
primeira reação de Michael foi desaparecer dali, principalmente ao notar que só
havia mulheres e travestis. Uma figura alta experimentava uma roupa no estilo
Carmen Miranda e balançava o chapéu cheio de penas e frutas de cera. O
pomo-de-adão pronunciado, além do tamanho das mãos, denunciava que não
se tratava de alguém do sexo feminino.
— Seu amigo tem uma clientela interessante — comentou com Lily.
— O que acha deste traje? — Ela o reteve para opinar. Colocou à frente
do corpo um conjunto de short e bustiê de couro, com placas de metal e um
escudo para complementar. Algo como a roupa de Xena, a Princesa Guerreira.
— Acho que não. Para nenhum de nós. — O detetive riu do próprio
gracejo. — Talvez seja melhor irmos a uma grande loja de departamentos, em
busca de fantasias mais simples.
— Lily! E você, querida? — Ricardo tinha acabado de reconhecê-la e veio
saudá-la. — Finalmente você apareceu por aqui.
— Olá, Ricardo. — Lily pensou, na mesma hora, em como se livrar do
incômodo.
— Querida, não vai me apresentar seu amigo? Ela corou levemente e fez
as apresentações.
— Depois de tanto tempo, ainda não sei seu sobrenome, Ricardo —
ressalvou.
— Não tem importância, Lily. Sou como Cher. Apenas um nome. Quem
precisa de mais? Mas é um prazer conhecer seu acompanhante.
— Igualmente — murmurou Michael, forçando seu lado gentil.
— Se vieram escolher fantasias para o Mardi Gras, chegaram tarde.
Restou pouca coisa e, como podem ver, a loja ainda está repleta.
— Bem, não queremos tomar seu tempo — Lily preparou a saída.
— Já têm trajes para os festejos de amanhã?
— Não, mas... — Lily deu um profundo suspiro e fez menção de partir.
— Esperem. — Ricardo acenou as mãos no ar com afetação. — Venham
para o fundo da loja e bebam champanhe, enquanto eu vejo o que posso fazer.
— Mas... — Foi a vez de Michael protestar.
— O que há com vocês, americanos? Todos só falam "mas". — Ricardo
escoltou o casal e gritou para uma exótica criatura de sexo indefinido, enrolada
em boal: — Phoebe! Traga-me aquele vestido de Cleópatra que não serviu
para a sra. Saint Clair. — Depois falou com Lily em tom confidencial: — Ela
insiste em encomendar roupas dois números abaixo de seu manequim.
Ao som de música Nova Era, Ricardo encheu duas taças de champanhe
para a dupla de visitantes. Ao ver o modelo trazido por Phoebe, Lily começou a
balançar a cabeça, em desacordo.
— Vai lhe servir perfeitamente — decretou o modista. — Experimente-o
no provador e leve também os sapatos e a peruca.
Outros complementos, como braceletes de metal e colares de vidrilho,
ficaram sobre o balcão, embora fizessem parte da fantasia. Michael esperou a
transformação de Lily em Cleópatra. Ficou mudo e pasmo quando ela saiu do
provador.
— Perfeito! Maravilhoso! — empolgou-se Ricardo. — Veja no espelho e
me diga se não tenho razão. Falta só um pouco de rimel.
Lily gostou do que viu. Pelo menos, era uma transformação e tanto, um
disfarce excelente.
— Com seus olhos, sua pele e seu corpo, temos uma nova Rainha do
Nilo. Não concorda, sr. Sullivan?
— Sim. Mais bonita do que Liz Taylor, no filme com Richard Burton.
Lily enrubesceu, num misto de prazer e excitação, quando Michael a
examinou de perto. Ele a desejava loucamente, deduziu. Aprendera também a
reconhecer o desejo nos olhos de um homem, ao ser possuída por Adam
Webster. No caso, porém, existia mais do que pura volúpia. Havia admiração,
cumplicidade, ternura. Michael demonstrava almejar mais do que a simples
possessão sexual. Por isso mesmo, ela tivera dificuldade em disfarçar o calor
viscoso e íntimo que a invadia quando beijada por ele.
— Se está satisfeita com essa fantasia, leve-a como presente meu —
informou Ricardo, entre os mais variados trejeitos.
— Gostei muito, mas não posso aceitar.
— Vai insultar-me com sua recusa?
— Não, mas...
— Outra vez essa cansativa história de "mas". O vestido foi pago e
devolvido pela sra. Saint Clair. Por favor, fique com ele. Pague-me somente o
material de maquilagem.
— Está bem — Lily concordou por fim, contente por poder economizar
uma bela soma.
— E o senhor? — Ricardo voltou-se para Michael. — Que tal uma roupa
de imperador romano, para combinar com a de Lily?
— Não, de modo algum. Ficaria pouco à vontade em um saiote.
— Gladiador, então? Muito másculo e apropriado ao seu tamanho. —
Piscou maliciosamente para o detetive. — Não viu Russell Crowe no filme
Gladiador? Parecia feminino?
— Não — Michael teve de concordar.
Era forçoso reconhecer que Ricardo sabia como convencer as pessoas.
Com seus ademanes e boa conversa, vencera a segunda discussão.
— Vamos levar a fantasia dele também — disse Lily, antecipando-se à
recusa já ensaiada por Michael. — Mas estamos com pressa, por isso você
pode embrulhar o traje de gladiador junto com o meu.
Ricardo sorriu, satisfeito, e cumpriu a instrução, recebendo do detetive o
pagamento em dinheiro. Ao contrário do dono, Michael saiu da loja amuado.

CAPíTULO XIV

Michael não deu trégua a Lily até que ela o levasse a uma loja
simples, onde o detetive adquiriu uma calça jeans, camisa xadrez, cinturão de
fivela grande e um chapéu de vaqueiro.
Saindo do provador, ele ajeitou a aba larga e apresentou-se a Lily.
— Que tal?
— As pessoas vão estranhar uma Cleópatra ao lado de um caubói. Além
disso, é pena descartar a fantasia de gladiador, tão bonita.
— Esqueça. Eu não uso saiote.
— Russell Crowe não se importou.
— Ele não veio do Texas — Michael retrucou, satisfeito porque a correria
atrás de fantasias tinha distraído Lily da preocupação com Adam Webster.
Uma vez guardadas as sacolas no carro, o detetive abriu a porta para Lily
e assumiu o volante.
— Só mais uma parada, para eu comprar um novo telefone celular, e
então iremos direto ao hotel.
— O que houve com o seu aparelho?
— A bateria acabou e esqueci o carregador no meu hotel. E mais fácil e
seguro adquirir outro. — Michael omitiu que o verdadeiro motivo era impedir
que Webster rastreasse seus movimentos pelo número antigo. Lily o focalizou
com ar de suspeita.
— Não é por isso, certo? — ela questionou, perspicaz. — Você acha que
Adam o identificou, pelas placas do carro, e pode ter obtido o seu número de
celular.
— Tem razão — ele admitiu. — Não custa nos prevenirmos. De qualquer
modo, mesmo com bons contatos, Adam levará algum tempo para descobrir o
novo número.
— Então, por que mentiu para mim?
— Porque não quis assustá-la.
— Já estou suficientemente assustada. — Os lábios dela tremeram. — Só
porque tenho medo, não quer dizer que eu seja idiota. Nem que não farei o
possível e o impossível para proteger meu filho.
Michael tocou-lhe a face.
— Nunca pensei que você fosse idiota, Lily. Não precisa me convencer de
sua coragem. Considerando tudo o que lhe aconteceu, você é provavelmente a
mulher mais corajosa que conheci.
— E você não precisa me proteger dos fatos, Michael. Gostaria de saber
tudo o que ocorre, porque assim posso me preparar. Certo?
— Certo.
Para decepção de Michael, o encanto das horas anteriores terminara.
Mesmo depois de se registrarem no Hotel Saint Charles, Lily manteve-se
sóbria, preocupada. No balcão, representou junto com Michael o papel de casal
feliz, mas ele desconfiou de que ela não gostara da encenação. A maneira
como olhou para um menino de três anos, no saguão, oprimiu o coração do
detetive. Ela só tinha pensamentos para Timmy.
— Você acha que seria seguro avisar Gertrudes de onde estamos? —
perguntou ao sair do elevador, no décimo andar.
— Vá em frente — disse Michael, abrindo a porta do quarto. — Dê-lhe o
número do celular também.
Malas e sacolas foram depositadas sobre o carpete grosso e claro. A
decoração do aposento incluía flores frescas e objetos antigos, de gosto
refinado. Mas comodidades modernas, como frigobar, televisão e mesinha para
café, com duas poltronas, estavam igualmente presentes. Principal detalhe:
havia apenas uma cama, larga e coberta de almofadas coloridas.
— Parece pouco para uma diária de seiscentos dólares — ele comentou. A
fim de aplacar a consciência, disse a si mesmo que não tinha premeditado
partilhar uma cama de casal com Lily, embora a idéia lhe fosse absolutamente
empolgante.
— E pequeno, mas limpo e agradável — comentou ela, examinando o
banheiro interno.
— Ouça, Lily. A respeito da cama, eu não planejei nada. Contava com
duas de solteiro. Aparentemente, o hotel só tinha quartos de casal.
— Com certeza — ela emendou enigmaticamente, dirigindo-se à janela.
— Pelo menos, temos uma bela vista.
Michael se juntou a ela e contemplou a Avenida Saint Charles, uma das
primeiras vias da cidade a abrigar mansões e condomínios de luxo.
Comportava faixas duplas de tráfego, separadas pela linha de bonde que
levava ao centro, cortando as alamedas. Como a avenida estava no roteiro do
desfile de Mardi Gras, muitas pessoas e famílias já ocupavam os passeios, com
cadeiras dobráveis e cestas de lanches.
— O rapaz da recepção disse que, pela manhã, a calçada já estará
parecendo um formigueiro — Michael comentou.
— E uma das formigas pode ser Adam — Lily murmurou, desalentada.
Novamente o detetive sentiu um peso no coração. Julgava-se culpado
pela situação de Lily.
— Se ele estiver aqui, saberemos em tempo e poderemos nos defender.
— Como fará isso?
— Tentarei falar com meu irmão Travis, que trabalha para o FBI. Ele tem
meios de descobrir se Adam está em Nova Orleans.
— Você nunca mencionou um irmão antes. Pensei que dependia só de
seu pai para uma ajuda externa.
— Na verdade, meu pai e eu nos desentendemos. Estávamos brigados.
— Lamento muito. Eu adorava minha avó e sempre acreditei que uma
família normal e pacífica, com pai e mãe, era uma bênção para qualquer
criança. Jamais tive um lar assim, mas aposto que em sua casa você nunca se
sentiu sozinho.
— Tem razão. Um pouco irritado, às vezes, mas jamais sozinho.
— Eu o invejo por isso. — Lily suspirou. — Contou-me que seu pai foi
policial. Por isso você escolheu a mesma carreira?
— Suponho que sim. Toda a família Sullivan, incluindo avô e bisavô, era
de homens da lei. Uma espécie de tradição. Tradição que eu rompi ao deixar a
polícia, depois de um incidente fatal com meu parceiro.
— Seu pai deve ter ficado decepcionado com sua decisão, não é?!
—Digamos que não ficou feliz — emendou Michael, disposto a não
mentir.
— O que aconteceu de verdade?
— Longa história.
— Bem, tempo não nos falta. — Lily acomodou-se na poltrona junto à
janela.
— Pete foi baleado porque eu me acovardei — explicou Michael,
ocupando a outra cadeira estofada.
— Difícil de acreditar.
— Mas é verdade — ele insistiu, antes de resumir o encontro fatal com o
grupo de traficantes ao qual Giselle tinha aderido.
Se tivesse sido um bom policial e investigado Giselle, pensou Michael,
talvez Jane ainda contasse com um marido e as crianças, com um pai.
— Havia uma investigação em andamento, sim, e tecnicamente eu
estaria a salvo de erros. Mas errei, e a culpa foi minha. Causei embaraço a
meu pai, desonrei o nome da família Sullivan. Por isso, resolvi sair da
Corporação Policial de Houston e recomeçar a vida em outro lugar. Era melhor
para aqueles que eu amava.
— Como poderia ser melhor, com você ausente da vida deles? Para mim,
ficar sem notícias, perder uma pessoa de vista, é pior do que sabê-la morta.
Vivi essa experiência com minha mãe. E terrível, mais terrível para quem fica
do que para quem parte.
— Não havia analisado a questão por esse ângulo — Michael admitiu. —
Talvez a mágoa de meu pai tenha crescido em razão de meu distanciamento.
— Claro. Apesar de tudo, ele não esqueceu você. Provavelmente,
continua amando o filho da mesma maneira que antes.
O que ele tinha feito? Michael ponderou. Havia isolado o pai num canto
da memória, pressupondo que estava zangado e que nunca o perdoaria.
Reconhecera o desapontamento nos olhos paternos, mas jamais poderia dizer
que neles faltava afeto.
— Bem, não conheço bem a dinâmica familiar — Lily complementou. —
Rezo para que tudo dê certo e Timmy não tenha de pagar pelos meus erros.
— Você vai se safar, garanto — Michael lhe assegurou. — E Timmy
crescerá forte e bonito.
— Gostaria de falar com ele.
Michael levantou-se e passou a Lily o celular.
— Enquanto liga para Timmy, vou descer ao saguão e fazer alguns
telefonemas de lá.
— Se está precisando usar o aparelho... — Ela esticou o braço no gesto
de devolver o celular.
— Não, fique com ele. Quero andar um pouco lá em baixo e testar a
segurança do hotel. Tranque bem a porta quando eu sair. Não abra para
ninguém mais.
— Sinto muito, patrão, mas ela despistou nossos homens — reportou
Bernie a Adam Webster, depois de falar com seus colegas de Nova Orleans.
Nervoso, o guarda-costas perfilava-se diante da mesa onde o chefe devorava
um daqueles pratos japoneses de peixe cru.
— Elisabeth é mulher e, pelo que sei, não das mais espertas. Como pôde
tapear dois profissionais experientes?
— E que ela teve ajuda, patrão. Há um homem com ela e, pela descrição,
parece ser Michael Sullivan.
Adam quase deixou cair o bocado de sushi que prendia entre os palitos
orientais.
— Não estou nada feliz com isso, Bernie — ele rosnou. — Na verdade,
fico muito aborrecido. Você falhou duas vezes. Primeiro, recomendou-me
Sullivan e garantiu que ele poderia localizar Elisabeth. Agora, seus homens
perderam a pista dela. Sabe como eu detesto erros, Bernie.
— Sei, chefe, e sinto muito — o grandalhão repetiu, quebrando um palito
em uma demonstração de como quebraria um pescoço humano.
Adam era um patrão difícil de contentar, exigente e implacável. Usava
uma máscara de polidez e afabilidade, mas Bernie já o vira cortar o pescoço de
um desafeto e sentar-se para comer, enquanto a vítima sangrava até morrer.
Como fiel servidor, Bernie juraria que o chefe tinha gelo nas veias, exceto
quando lidava com aquela vadia com quem se casara. Então, Adam assumia
modos de cachorro manso, embora tresloucado de desejo. Por isso, o guarda-
costas detestava admitir: o patrão o enojava.
— Quero Elisabeth e Timmy devidamente localizados, Bernie. E sem
novas desculpas.
— Meus homens descobriram em que hotel Sullivan está, mas ele não
voltou para pegar o carro. Com certeza, Elisabeth o acompanha. Como é Mardi
Gras em Nova Orleans, os dois precisarão de muita sorte para sair da cidade
por via aérea. Tenho agentes postados no aeroporto, por via das dúvidas.
— A criança estava junto com a mãe?
— Não. Só viram Elisabeth e Sullivan.
— Encontre o menino. Elisabeth não irá a lugar nenhum sem Timmy.
Tome providências — ordenou Adam.
— Estamos tentando, mas...
Adam bateu o punho na mesa, com raiva.
— Já disse: sem novas desculpas. Quero que você dê um jeito, Bernie.
— Perfeitamente. — O capanga girou nos calcanhares e abriu a porta
para sair.
— Bernie?
— Pois não?
— Não me desaponte, porque será a última vez. Entendido?
— Sim, patrão.
—Espere um momento. — Adam contatou sua secretária pelo
intercomunicador. — Chantal, ligue-me com o prefeito de Nova Orleans,
rápido.
Bernie ouviu o patrão falar com um assessor da autoridade municipal,
sob a sensação de ter perdido o jogo. Com um calafrio, lembrou-se do agente
federal que havia tentado achacar Adam depois de entregar um disquete com
dados sigilosos da Receita. Vira Webster colocar a faca no pescoço do homem
e, por incrível que parecesse, sorrir enquanto o degolava. Tinha sido esperto o
bastante para lançar o corpo ao mar, aos tubarões. O chefe realmente possuía
colhões e neurônios, pensou o guarda-costas. Só se comportava cordialmente
com a bonequinha que havia desposado.
Ninguém jamais ousara contestar qualquer de seus atos em benefício da
loirinha por quem se encantara, filha da cantora de uma de suas boates.
Agora, ela o havia abandonado, talvez por boas razões. Adam não perdera
tempo e convocara Annabelle para dar-lhe prazer. Mas, de acordo com Kit, o
gerente da casa noturna, ele a havia espancado até quase matá-la. Otto, o
chefe de segurança, a internara no hospital com a mentira de que fora vítima
de uma tentativa de assalto e estupro.
— Obrigado — disse Webster ao telefone. — Ficarei grato se o prefeito
me ligar no meu número particular. E um assunto pessoal e preciso de ajuda.
Quando o empresário desligou, Bernie criou coragem e disse:
— Patrão, o senhor não precisa recorrer a nenhum político. Eu posso
cuidar de Sullivan.
Webster sorriu, com ar superior.
— Eu não ia pedir um favor para o trabalho que lhe cabe. — Observou
longamente o porta-retrato com a imagem de Elisabeth. — Peça para Sammy
ficar de prontidão. Vamos fazer uma pequena viagem.
— Para onde, se me permite perguntar?
O empresário sorriu de novo, e de novo Bernie sentiu medo diante
daquele olhar alucinado. Chegou a ter pena da pobre Elisabeth, mas não o
bastante para arriscar a própria pele.
— Vamos a Nova Orleans, ao Mardi Gras.
Michael saiu do quarto, no décimo andar, mas em vez de tomar o
elevador preferiu descer as escadas. Em cada andar, verificou as portas de
acesso, todas abertas.
— Em que posso servi-lo, senhor? — indagou um senhor grisalho quando
o detetive alcançou o saguão de entrada.
— Como vocês têm um só elevador, eu estava checando as escadas para
ver se estão devidamente desimpedidas. Nunca se sabe o que pode
acontecer...
— Claro, senhor. Pelas normas de segurança, temos de manter as portas
abertas em toda a escadaria. Os funcionários costumam usá-la bastante,
embora também contem com o elevador de serviço.
— Obrigado. Foi o que imaginei.
No balcão de recepção, ele foi atendido por uma loira oxigenada.
— Minha mulher e eu já recebemos os crachás especiais para entrar e
sair do hotel livremente, amanhã. Gostaria de saber se é possível conseguir
mais dois ou três crachás para amigos que estamos esperando.
— Bem, os passes são restritos a hóspedes efetivos, mas talvez eu possa
ajudá-lo. De quantos crachás extras o senhor precisa?
— Vou confirmar se os tais amigos realmente virão e avisarei depois.
Está bem assim?
Primeira falha de segurança, Michael concluiu. Encontrou outra na porta
dos fundos, depois da área de telefones públicos e dos banheiros do térreo,
que permanecia aberta o tempo todo. Aparelhos novos, cabines velhas.
O detetive usou seu cartão telefônico e ligou para o celular do pai.
— Papai, aqui é Michael. Só estou chamando para saber se tudo está em
ordem.
— Claro, tudo em ordem, menos pelo trânsito. Vou levar mais tempo
para chegar do que imaginava. Mas logo estarei aí, com certeza. Conseguiu
contato com seu irmão?
— Ainda não, mas continuarei tentando. Nesse meio tempo, a cidade
começa a ferver de gente. O que é bom para nos perdermos na multidão e
recolhermos Timmy.
— Tem certeza de que não quer apoio da polícia local? Tenho amigos lá,
você sabe.
— Pensei nisso, mas Lily não quer a polícia envolvida. Alega que o
marido, Webster, tem muita influência junto às autoridades. Deve pagar
suborno.
— Sabe como me sinto a respeito de policiais corruptos. Faz sentido que
um homem capaz de pagar um milhão para localizar a esposa possa colher
algumas maçãs podres no pomar.
— A verdade é que, com o Mardi Gras, a polícia está totalmente
mobilizada. Por isso pensei que, se Travis indicasse algum amigo do FBI, seria
melhor. Além disso, diante de um federal, Webster pensaria duas vezes para
cometer uma bobagem.
— Não conte com isso. Pelo que me relatou, esse homem é obcecado,
perigoso. Tome cuidado, filho — pediu o velho Sullivan.
— Certo, papai. E obrigado.
Lily circulava pelo quarto, ansiosa, à espera de Michael. Estaria agindo da
maneira certa? O plano funcionaria? Ela pensou em Timmy com dor no
coração, enquanto recordava a decepção do menino quando lhe dissera que a
viagem fora adiada. Pobre Gertrudes. A boa senhora ficara assustada com toda
aquela história de disfarce e dissimulação.
Abriu a trava da porta à primeira batida e quase atirou-se nos braços de
Michael. Imediatamente, ele estreitou os olhos vigilantes.
— O que é? Aconteceu alguma coisa?
— Não — Lily explicou, com voz embargada como se estivesse a chorar.
— Falei com Gertrudes e com Timmy. Ela se assustou, afinal, essa situuação é
inusitada para ela. Quanto a Timmy... — Ela suspirou. — Michael, quero meu
filho.
Ele a segurou nos braços e abraçou-a apertado.
— Só mais algumas horas, prometo.
Dizendo a si mesma que se comportava infantilmente, Lily recuou.
Enxugou a face úmida e respirou fundo.
— Desculpe-me. Olhar para toda aquela multidão lá em baixo, reunindo-
se para o desfile de amanhã, não me faz bem. Parece uma febre que aumenta
sem parar.
— Sei o que quer dizer. É a loucura do Mardi Gras, uma liberação de
energia que caracteriza o carnaval de todos os lugares do mundo.
— Esperar aqui, trancada, enquanto a alegria explode nas ruas... Bem,
isso me deixa um pouco deprimida.
— Compreendo. Sei que não é fácil para você manter-se longe de Timmy.
Já falei com meu pai. Ele está a caminho. Portanto, agüente firme por mais
algumas horas, certo?
Lily anuiu com um gesto de cabeça, mas o olhar permaneceu triste.
— Você deve estar com fome — Michael adivinhou. — Vamos
experimentar o restaurante do hotel. Parece bom.
Na verdade, apesar do apetite, Lily nem havia pensado em alimentar-se.
Por isso, após descer com Michael pelo elevador, surpreendeu-se ao salivar
diante de um rico prato de massa com frutos do mar e molho cremoso
escolhido por Michael. Ela comeu avidamente, quase sem perceber que o fazia.
— Sente-se melhor agora? — Michael questionou.
— Sim, muito melhor — ela admitiu, levando aos lábios uma taça de
vinho branco. Naquelas circunstâncias, porém, parecia anormal dividir uma
mesa, comida e bebida com um homem tão atraente quanto Michael.
Seus jantares com Adam Webster haviam sido diferentes, sofisticados,
num ritual que durava horas, contando, o tempo de preparação para tornar-se
bela aos olhos dele. Jóias caras eram usadas nessas ocasiões, e Lily sentia
asco da admiração que despertava entre outros homens, para gáudio de
Adam. Ele não era um marido generoso, e sim um tirano exibicionista, que
exultava ao mostrar que detinha a posse de Lily, na mesa e na cama. Ela
transpirou ao recordar a última noite na companhia do empresário.
— Algo de errado? — A ansiedade dela não escapou ao detetive.
— Não, não. Acho que o vinho que me deixou um pouco acalorada.
— Sobremesa?
— Não, mas peça você, se quiser. — Riu ao observar seu prato vazio. —
Para quem imaginava não estar com fome, fiz uma boa limpeza nessa massa.
Obrigada pela sugestão.
— Fico contente por você ter gostado. — Ouviu-se um som de cometas
na rua e Michael comentou: — Parece que os nativos estão ficando agitados.
Será que passarão a noite em claro?
— Provavelmente — Lily comentou. — Aposto que alguns funcionários do
hotel irão faltar ao trabalho.
Quando notou Michael desviar o olhar no sentido do saguão principal, Lily
procurou voltar-se para ver o que lhe havia chamado a atenção. Mas o detetive
ergueu-se bruscamente, rodeou a mesa e afastou a cadeira dela.
— Há muito movimento por aqui. Vamos subir? Ela não discutiu, nem
mesmo contestou a decisão de galgarem as escadas até o décimo andar.
— Seu pai já não deve estar chegando a Nova Orleans?
— Vou dar mais uma hora e, se ele não me chamar, eu ligo. Também
quero telefonar para meu irmão, de novo.
Michael não fizera mais nenhum contato. Teve sorte. Assim que adentrou
o quarto, o celular tocou.
— Olá, papai — ele atendeu. Houve várias pausas e depois o detetive
completou: — E melhor você apanhar logo Timmy e Gertrudes, e retornar para
Houston.
— O quê? — Lily murmurou, a dois metros de distância. — Do que você
está falando, Michael?
Ele apenas ergueu a mão no ar, pedindo silêncio.
— Certo, fico esperando confirmação. Explicarei a ela.
— Explicar o quê? Seu pai não ia trazer Timmy para mim? Houve algum
problema? Pelo amor de Deus!
O investigador desligou e selou com dois dedos os lábios de Lily.
— Calma — falou em tom baixo. — Estou despistando um capanga de
Adam, que ficou nos observando do saguão. Felizmente, eu o reconheci.
— Oh, meu Deus!
Prendendo as mãos de Lily, Michael conduziu-a para a cama, onde a
sentou.
— Nós vamos deixar a cidade amanhã cedo, conforme o previsto.
Usaremos as fantasias e pegaremos Timmy e Gertrudes, caso esta também
queira vir. Então iremos ao aeroporto e voaremos para Oklahoma.
— Não se preocupe comigo — ela insistiu. — Deixe seu pai levar Timmy e
Gertrudes para Houston. Talvez seja mais seguro.
— Gertrudes está estressada, sem condições de viajar. Meu pai passará a
noite na casa dela, tomando conta dos dois até que nós cheguemos.
— Se Adam encontrar Timmy... Michael, não quero nem pensar!
— Não encontrará. Ainda que o faça, meu pai é um velho e bom policial.
Não permitirá que nada aconteça ao menino.
Lily meneou a cabeça, demonstrando não estar completamente
convencida.
— Vou tentar um contato com Travis, meu irmão do FBI — avisou o
detetive.
Não houve necessidade. Antes de começar a teclar, o aparelho tocou.
Sem conseguir ouvir o que Travis Sullivan falava, Lily procurou atinar com o
conteúdo da conversa pelas respostas de Michael. O resultado foi precário.
— O que ele disse? — perguntou assim que o detetive desligou.
— Travis está finalizando uma investigação sobre Webster. Tão logo
tenha algo concreto, ele nos avisará. Mas parece que os federais já estão
preparando uma boa cela para ele. Pedi para meu irmão mandar alguém ao
aeroporto, amanhã, mas normalmente o FBI não se envolve nesse tipo de
ação.
Lily exibiu uma expressão decepcionada.
— Por outro lado, Webster é continuamente seguido e vigiado, o que
limita seus movimentos — Michael acrescentou.
O coração dela ficou acelerado. Lembrou-se do homem que vira falando
com Adam Webster no escritório, o mesmo homem que tinha aparecido morto.
Lembrou-se ainda do disquete incriminador que tinha retirado do cofre, junto
com dinheiro e jóias. Michael ignorava que ela o possuía. Mas, e se o
entregasse ao investigador e mesmo assim o FBI falhasse em prender Adam?
Onde ficaria a segurança de Timmy? Lily não poderia correr esse risco.
— Você não parece surpresa — Michael estranhou.
— Não, porque há tempo desconfiava de que Adam não tinha enriquecido
apenas com os negócios da noite, mas com corrupção, tráfico de drogas e
sonegação de impostos. Ele sempre tinha capital disponível para comprar
boates quase falidas e transformá-las em pontos de sucesso.
— Você chegou a comprovar algo ilegal ou irregular?
— Não — ela vacilou um pouco. — Adam me deixava totalmente fora de
seus negócios.
— Ele só queria você na cama...
A alusão fez Lily estremecer, mas não se sentiu ofendida. Com um
suspiro respondeu:
— É verdade. Prazer era tudo o que ele esperava de mim. E você não é a
primeira pessoa a me considerar uma vadia.
— Lily... — O investigador arregalou os olhos, constrangido com o
comentário.
— Estou muito cansada, Michael. Preciso dormir um pouco, mesmo
porque amanhã será um longo dia.
— Claro. Desculpe-me. — A fantasia masculina de uma ardente noite de
amor acabara de escoar pelo ralo.
Pelo olhar torturado de Michael, Lily não duvidou de que o pedido de
desculpas fosse sincero. Julgava que não era o momento de abrir-se, física e
afetivamente, para aquele homem. Havia fantasiado, sim, com um
relacionamento íntimo com Michael, nos breves instantes em que fora beijada.
Prezava-se, porém, de viver no mundo real. E nesse mundo um ex-policial
como Sullivan sempre a veria como uma amante disponível, capaz de ser
comprada e usada por um homem rico.
— Sinto muito — ele repetiu, deslizando os dedos pela cabeleira negra,
como um adolescente desastrado. — Falei sem pensar. Juro que não a vejo
assim, nem nunca verei.
— Não espere que eu lhe diga que me arrependo de ter casado com
Adam Webster. Porque não seria verdade. Na época, eu era ingênua,
despreparada para a vida. Além disso, sem Adam eu não teria Timmy, que é
meu maior tesouro.
Michael calou-se e simplesmente olhou para o outro lado, a fim de
esconder sua expressão frustrada. Assim, apenas pressentiu que Lily se erguia
da cama e rumava para o banheiro, onde se demorou uma eternidade.
A espuma na banheira ajudou a relaxar seus músculos tensos, mas,
infelizmente, pouco influiu na dor que ela sentia no coração.
Saiu da sala de banho com uma longa camiseta de dormir, que vestira
após recordar-se do embaraço de Michael ao vê-la de camisola, certa manhã.
Preocupou-se porque o traje só lhe cobria metade das pernas. Era temerário,
levando em conta que dividiria a cama com ele. Mas não havia outra opção a
não ser arriscar-se e enfrentar a situação.
— E todo seu — afirmou ao reentrar no quarto e deparar com o detetive
à janela, contemplando a paisagem noturna. Esticou a camiseta sobre as
magníficas coxas à mostra.
Ele voltou-se todo animado, com os olhos acesos de desejo.
— O banheiro é todo seu — ela frisou, desfazendo o mal-entendido.
CAPÍTULO XV

Debaixo do chuveiro, Michael fechou os olhos e tentou apagar a


imagem de Lily, sensualíssima com a pele úmida e as pernas sedutoras. O
olfato capturou um vestígio do aroma dela, uma combinação de pêssego e
espuma de sabonete. Havia sido árduo conter o impulso de beijá-la, ajoelhar-
se a fim de acariciá-la com a boca, depois erguê-la e depositá-la na cama,
fazendo amor até que a tristeza desaparecesse daqueles incríveis olhos verdes.
Para aplacar o desejo, Michael optara por um banho frio. Droga! Como
tinha deixado que Lily o enfeitiçasse, escravizando-o por inteiro, por dentro e
por fora? Se metade do que Travis lhe contara fosse verdade, ela e Timmy
corriam perigo maior do que ele tinha imaginado. Emoções só poderiam
atrapalhar seu serviço. Conhecia o impasse por experiência própria. Não
suportaria errar outra vez e, depois de Pete Crenshaw, perder Lily e Timmy.
No entanto, Michael repetia o comportamento passional. Agora, era dez
vezes pior do que com Giselle e Pete. Excitado, ele cedia à atração, ansiava
por ter Lily tanto quanto por respirar.
"Se não começar a pensar como policial, em vez de como homem, Lily
poderá ser morta", procurou convencer-se. Saiu do banheiro vestindo apenas a
calça jeans e jurou controlar-se. Até que a viu e tudo mudou.
Ela estava à janela, com os cotovelos apoiados no peitoril, as mãos
juntas como que em oração, encostadas na testa. Havia aberto uma fresta e
oferecia os cabelos louros ao vento suave da noite. Parecia não notar o ondular
das madeixas e batia o pé no ritmo da música que soava ao longe. Quando se
inclinou para ver alguma coisa na rua, a camiseta ergueu-se com o
movimento, revelando um pouco mais das pernas alvas e convidativas.
Inadvertidamente, Michael fez algum ruído e Lily voltou-se para observá-
lo.
— Pelo jeito, há uma festa aqui perto.
— Sim, e teremos de fechar bem a janela para podermos dormir.
— Certo — ela acatou a sugestão, e mais uma vez a camiseta subiu.
— Pode deixar — disse o detetive, acercando-se para acionar a trava. —
Olhe, sobre o que eu falei antes, estou realmente arrependido.
— Eu sei — Lily limitou-se a murmurar, notando que, se continuasse a
olhar para Michael, um beijo seria inevitável. — Escolha seu lado na cama —
propôs.
— Vou juntar as duas poltronas, pegar lençóis e travesseiro no armário.
— Michael apontou para os móveis que pretendia deslocar. — Ficarei bem.
— Com o seu tamanho, metade do corpo não vai caber. — Lily suspirou.
— Somos adultos, Michael. E a cama é grande o bastante para dois.
— Lily, se eu for para a cama com você, não será para dormir — ele
declarou com total honestidade, temendo pela reação da mulher. Nos olhos
dela, viu a tentação misturada ao medo, exatamente como pensava. — Vá
para a cama, Lily. Dormirei bem nas poltronas e, como você disse, amanhã
teremos um longo dia.
Aquela noite também seria particularmente longa, ao menos para ele.
Enquanto Lily deitava-se, o detetive preparou seu leito provisório do
modo mais confortável possível. Após meia hora tentando adormecer ali, atirou
as mantas ao carpete e procurou dormir no chão.
Era difícil conciliar o sono, porém, com a figura de Lily ha mente e o
gosto de seus lábios na boca. Frustrado, Michael começou a aceitar o fato de
que passaria a noite em claro. Sentou-se e, numa rápida consulta ao relógio,
verificou que passava da uma da madrugada. Debateu-se entre as idéias de
sair para passear e de tomar outro banho frio, a fim de combater a tensão
sexual.
— Michael? — A voz doce de Lily soou na penumbra.
— Desculpe-me. Não queria acordar você.
— Não acordou. — Ela sentou-se à beira do colchão. — Também não
consigo dormir.
Como as cortinas não tinham sido corridas, a pálida luz externa envolvia
o quarto. O rosto e o corpo de Lily, com a pele luminescente, lembravam uma
pintura imemorial ou uma perfeita escultura em marfim.
— Tente adormecer — Michael pediu, acalorado, colocando camisa e
sapatos.
— Aonde você vai?
— Passear um pouco, tomar ar.
— É isso o que você quer?
— Não — ele disparou. — O que eu quero é fazer amor com você.
— Eu também quero — ela sussurrou em doce consentimento.
O efeito foi estranho. Michael assumiu uma expressão de espanto e
choque. Mortificada pela concordância tão direta, Lily escondeu a face no
travesseiro. Nunca lhe havia ocorrido expressar assim seus desejos, nem
mesmo com Adam. No entanto, jamais tinha ansiado tanto pelo toque, pelas
carícias de um homem, especificamente de Michael.
Ele caminhou até a cama com o coração aos saltos. Antes de se despir e
deitar-se, estendeu os braços à procura da parceira.
— Pode repetir o que me disse? — Michael pediu. Lily mal ouviu a frase,
porém reconheceu o brilho da volúpia nos olhos do detetive. Seu pulso
acelerou-se. Um formigamento agradável se fez sentir na virilha. Após engolir
em seco, ela manifestou-se:
— Eu disse que queria fazer amor com você.
— Tem certeza?
— Sim. — Lily afastou os lençóis e, excitada, mostrou-se ao homem
tirando a camiseta.
Sublime era o mínimo que Michael poderia dizer da cena, quando os
cabelos de Lily cobriram parcialmente os seios firmes e fartos. Ele se desfez da
camisa e permitiu que ela observasse um torso não menos magnífico, com os
ombros largos, os músculos acolhedores e a provocante trilha de cabelos
anelados que formava um triângulo, depois uma flecha a desaparecer provo-
cativamente abaixo da cintura. Com um fascínio que a princípio a chocou, Lily
esperou que o parceiro tirasse o jeans, junto com a sunga, e admirou o corpo
masculino, bastante diferente, para melhor, daquele do único homem que
conhecera.
— Quero lhe dar prazer — ela murmurou por entre os dentes, talvez
habituada a servir Adam Webster como objeto.
— Não — Michael contestou. — Vamos ter prazer juntos, se é isso o que
deseja.
— É só o que desejo — Lily confirmou, abrindo os braços para recebê-lo.
Não era nenhuma freira inocente. Estivera casada por sete anos, dera à
luz um filho. Conhecia os segredos do sexo, o ritual de entregar-se aos
caprichos de um macho. O que ignorava, de fato, era a doçura dos beijos
repetidos nos cantos dos lábios, a sensação do queixo abocanhado, da língua
fazendo evoluções sem pressa.
— Abra a boca ao beijar — Michael pediu, demorando-se nas carícias que
fizeram Lily derreter-se de tesão.
Por sua experiência anterior, ela julgou que o fim estava próximo e era
bom, pois aquilo era o máximo de prazer que concebia. Assim, ergueu as
ancas à espera do parceiro.
— O que está fazendo? — Michael estranhou aquela atitude.
— Nada, por quê? — Lily imaginou o motivo da demora em ser possuída.
Ele a contemplou amorosamente e, de repente, compreendeu o que
acontecer.
— Posso lhe dar muito mais, a não ser que você não queira.
— Oh, Michael... — Com um gemido, ela se aconchegou de novo ao
corpo dele e beijou-lhe o peito, os mamilos, antes de traçar com os lábios a
trilha de pêlos, do peito até a virilha. Hesitou um momento diante do membro
rígido, mas logo o afagou com a boca ávida.
— Isso é maravilhoso — ele se contorceu, surpreso com a iniciativa de
Lily. — Contanto que você também receba o mesmo em troca.
Então, ele inclinou-se e começou pelo rosto, que beijou ponto a ponto.
Desceu para o pescoço, para a curva dos ombros, para os aveludados seios
cujos mamilos sugou um a um. Roçou os lábios na cintura de Lily, depois entre
as coxas. Colheu a intimidade dela com a boca aberta, usando a língua para
tocar o ponto mais sensível da mulher.
Lily vibrou, entre confusa e excitada. Conteve com a mão espalmada os
gemidos de prazer. Claro, tinha ouvido falar de todos esses jogos sexuais, mas
jamais os sentira na pele. Adam sempre fora rápido na busca da própria
satisfação, e poucas vezes ela conhecera o orgasmo.
— Mais, mais... — pedia.
— Já disse — Michael fez uma pausa proposital. — Quero que faça amor
comigo, não para mim.
— Rápido, então — ela exigiu de um Michael entre surpreso e orgulhoso.
Ele preparou-se para consumar a união dos corpos. Lily nunca sentira
tanto desejo antes. Seu coração, ou qualquer outro órgão dos sentidos, já não
lhe cabia no corpo. No auge da excitação, ela recebeu mais um carinho oral.
Debateu-se até sentir-se preenchida e acompanhar os movimentos ritmados
do parceiro.
— Michael! — Lily gritou, sem ter certeza de que ele entenderia o apelo
para terminar. O fogo interno ameaçava incendiá-la.
Quando julgou que não mais poderia retardar o clímax, Lily sentiu
Michael totalmente dentro dela, preenchendo-a com mais calor, mais volúpia.
— Vamos, meu amor — ele balbuciou no ouvido dela.
Lily efetivamente desconhecia aquela explosão de prazer. A intensidade
da posse causou-lhe espasmos, acompanhados de gemidos e gritos, até que
Michael a levou perto do clímax, mas não completou o ato.
— O que houve? Pelo amor de Deus, não pare! — ela conseguiu dizer,
suada.
— Precisamos disto. — Ele alcançou uma embalagem quadrada no bolso
da calça e mostrou a embalagem do preservativo.
— Deixe comigo. — Em mais uma atitude imprevista, Lily fez questão de
colocar a camisinha no membro de Michael e acariciá-lo durante o processo,
dessa vez com maior descontração e empenho.
Uma pausa que serviu para refrescar dois corpos suados e abrasados. A
retomada, pensou Lily, revelou-se ainda melhor, se isso fosse possível. Agora
mais calmo, mais ritmado, Michael a beijou passionalmente e a conduziu a
uma explosão inimaginável, ao mesmo tempo que também chegava ao auge.
Passada a tempestade de amor, de volta à Terra, Lily deu-se conta de
que havia cometido um erro terrível: acabara de apaixonar-se por Michael
Sullivan.
— Pete, cuidado!
— Michael, acorde!
Ele agitou-se na cama, com o coração disparado. Respirando com
dificuldade, examinou o quarto semi-escuro em busca de seus pertences. Só
depois percebeu a mulher ao lado dele.
— Lily... — murmurou, enquanto a abraçava com força.
— Tudo bem — ela o tranqüilizou. — Foi só um sonho mau, um pesadelo.
— Aplicou vários beijos no parceiro e recebeu outros tantos em retribuição.
Michael recostou-se após deslocar um travesseiro. O real conforto,
porém, vinha da presença suave e perfumada de Lily.
— Você sonhou com seu amigo Pete, não?
— Sim, exatamente com a noite em que ele morreu.
— Vocês dois devem ter sido muito chegados — ela comentou.
— E éramos. Crescemos juntos. Para mim, Pete era como um irmão.
— Fale-me dele.
Era bom desabafar, e Michael relatou para Lily as rondas policiais
divididas com Pete, os riscos, êxitos e fracassos que haviam partilhado. Tudo
acabara, porém, na noite em que Pete entrara sozinho num galpão em
Houston, no fim de uma investigação contra traficantes. Michael permanecera
a distância, na porta, e vira o amigo negociar com os suspeitos. Com eles,
estava uma mulher que ele conhecia: Giselle, a amante de Pete.
Era estranho, e Michael não compreendeu o que se passava. Por isso,
ficou paralisado e não reagiu quando um dos criminosos apontou o revólver
para a cabeça de Pete e atirou.
— Foi trágico, concordo — Lily comentou —, mas não foi sua culpa.
— Ele precisava de ajuda e eu sinto que falhei na hora decisiva.
— Você tentou ajudá-lo, Michael. — Ela o contemplou com os olhos
verdes bem abertos. — Pete é que foi fraco, deixou-se corromper. A falha foi
dele. Você devia orgulhar-se de sua nobreza, guardando segredo sobre o erro
de seu parceiro e ajudando a família dele. Pelo que me contou, a viúva e as
crianças adoram você. Por favor, compreenda isso e pare de se culpar.
Lily tinha inteira razão, Michael concedeu, surpreso com a sabedoria de
vida revelada por aquela mulher. No fundo, acreditava não merecer o amor de
Jane e dos filhos de Pete. Agora, cometia o mesmo erro. Não confiara em Lily o
suficiente para segredar-lhe que havia se aproximado dela a serviço de Adam
Webster. Por isso mesmo, o empresário estava prestes a localizá-la.
— Você é mais experiente na vida do que parece — Michael elogiou.
— Nem tanto. Senão, não teria colocado Timmy e eu nessa confusão.
— Vamos superar isso juntos. Amanhã à noite, você e seu filho estarão
seguros na cidade de Oklahoma.
— E você, Michael? O que será de você? Nós nos veremos de novo?
— Com certeza — ele exaltou-se, beijando Lily profundamente enquanto
rezava para que ela não o rejeitasse após conhecer toda a verdade. — Bem,
logo vai amanhecer. Melhor descansarmos um pouco.
— Duvido que consiga dormir longe de Timmy e sem saber onde estão os
homens de Adam.
— Não pensei exatamente em dormir — ele afirmou, odiando ser em
parte responsável pelas preocupações de Lily.
— Não? — ela estranhou. -— Então me diga o que tem em mente.
— Vou lhe mostrar, em vez de dizer.
Ato contínuo, Michael rolou sobre a cama e agarrou Lily com os braços,
imobilizando-a. Os derradeiros vestígios do pesadelo e da sensação de culpa
desapareceram quando ele a provocou com beijos intermitentes por todo o
corpo. Ao sentir-se pronto, Michael a posicionou sobre ele, e Lily o cavalgou
obsessivamente, até que os músculos convulsionados encontraram alívio e
refúgio num orgasmo conjunto.
Mais tarde, com Lily dormindo aninhada em seu peito, Michael sentiu o
peso do passado abandonando seus ombros. Pela primeira vez em muito
tempo, permitiu-se pensar no futuro. Se desistisse de trabalhar como
investigador autônomo, poderia voltar à polícia ou ingressar no FBI. Perspicaz,
Lily havia percebido que ele vivera se castigando até então, porque estava vivo
e Pete, morto. No entanto, qualquer que fosse o papel desempenhado na
morte do parceiro, as escolhas tinham sido dele, não suas. Agora já conseguia
enxergar.
Contemplou a mulher em seus braços. Gostaria de construir um futuro
com ela e com Timmy. Fosse racional ou não, ele amava Lily. Imaginar-se
casado com ela, chegar em casa à noite, ver a esposa e abraçar o menino
tornavam-se aos poucos idéias fixas na mente de Michael.
E o que aconteceria quando Lily descobrisse que ele a havia enganado,
passando a pista dela e do filho ao abominável Adam Webster?
A percepção do terrível fato dissolveu suas fantasias. Lily iria odiá-lo, e
com razão. Com mais razão, ele cairia de novo num poço de culpa.
Lily percorria em círculos o quarto do hotel. Controlava no relógio a
passagem do tempo. Ansiosa, incapaz de sentar-se quieta, estava acordada
desde o amanhecer. Já havia se trocado, vestindo a fantasia de Cleó-patra,
bem como se penteara e fizera a maquilagem apropriada. Esperava o instante
inicial dos desfiles de Mardi Gras para ir buscar Timmy. Por isso, verificava pela
janela o movimento na rua.
— Tente relaxar, querida — pediu Michael, levantando-se. Ele a abraçou
pela cintura.
— Não consigo, até que tudo isso termine e eu esteja com Timmy.
— Calma. Falta pouco agora.
— Liguei para meu filho e ele estava choramingando. A casa de
Gertrudes fica perto do roteiro do desfile e Timmy não compreende por que
não pode ir.
— Voltaremos no ano que vem, para levá-lo — prometeu Michael.
Lily não tinha pensado nisso, mas a idéia, além de viável, a agradou.
Seria ótimo retornar a Nova Orleans como turistas normais, com Michael e
Timmy, depois que Adam Webster estivesse fora do caminho, condenado e
preso, com os bens confiscados como antecipara Travis e o FBI. Por intermédio
do irmão, o agente a preparara para o fato de que ela não teria direito à
fortuna ilegal de Webster. Mas ela não se importava com dinheiro. Almejava
liberdade e segurança, o direito de respirar.
E Michael? Estaria presente nesse projeto de futuro? Ela já admitia
sonhar com isso, mais do que sonhara com qualquer outra coisa antes.
— Veja a multidão! — Lily exclamou ao olhar pelo vidro. — Deve haver
mais do que cinqüenta pessoas naquele grupo de foliões fantasiados.
A massa avançava devagar pela avenida, balançando os braços e corpos,
ao som de tambores.
— Devem ter ensaiado durante o ano inteiro. Não é à toa que Nova
Orleans tem a fama de cidade de festa permanente.
Ao toque do celular de Michael, Lily se assustou. Ele repetiu o pedido de
calma, enquanto atendia. Pelas respostas dadas, ela pouco pôde concluir. O
detetive mais ouvia do que falava. Um ocasional "sim" ou "não". Uma
expressão fugidia.
— Não preciso fazer isso, eu sei — ele disse. — No minuto em que você
descobrir, me avise. Sim, tudo bem. Obrigado, Travis.
Quando a chamada terminou, Michael acercou-se de Lily antes mesmo
que ela, curiosa, se aproximasse.
— O que foi que Travis contou?
— Venha cá e sente-se, Lily.
— Não vou me sentar — ela resistiu. — Se há algo errado, quero saber
já. Aconteceu alguma coisa com Timmy?
— Não. Mas sua casa foi invadida e vasculhada na noite passada. O
mesmo ocorreu com meu quarto de hotel e com meu carro. Travis está
convencido de que foram os capangas de Webster. Claro, não estão somente
atrás de você, mas de alguma coisa que você possui. Tem idéia do que possa
ser?
Lily pensou de imediato no disquete e, mais uma vez, considerou a
hipótese de revelar o segredo a Michael. Mas, se o plano dele falhasse, com o
que ela contaria para salvar sua pele e a de Timmy? Resolveu calar-se.
— Talvez seja o dinheiro que tirei do cofre de Adam.
— Talvez — o detetive ecoou.
— Ouviu mais alguma coisa sobre Adam? Travis o mantém sob vigilância
em Miami?
Foi a vez de Michael silenciar, e então um frio incômodo desceu pela
espinha de Lily. Ela compreendeu plenamente o significado de ser assombrada
por um fantasma atormentador.
— Pode me dizer, Michael. Seja o que for.
— Webster está aqui... em Nova Orleans.
CAPÍTULO XVI

Solte! Deixe-me ir! — Lily debateu-se contra a força que Michael teve
de usar para retê-la no quarto.
Ele sofreu ao notar o medo renascido nos olhos dela, mas não a liberou.
— Pare e pense, Lily. Timmy está seguro com meu pai na casa de
Gertrudes, porque o bando de Adam nada sabe sobre ela. Se você sair e for
seguida, estará levando os canalhas diretamente a seu filho.
— Oh, Deus! — Ela soluçou, convencida, e desabou no ombro dele.
Michael afagou-lhe os cabelos a fim de acalmá-la.
— Só precisamos de um pouco mais de paciência. Na hora do grande
desfile, sairemos fantasiados, misturados à multidão, e Adam precisaria de um
exército para nos localizar na rua. — Depois de um beijo cálido na testa de
Lily, ele recuou para encará-la. — Dará tudo certo. Travis e seus homens estão
na pista de Adam.
— E se não conseguirem detê-lo?
— Vão conseguir — Michael assegurou. — Estamos falando do FBI, não
de qualquer pequena polícia do interior.
Travis merecia crédito? Michael pensava como policial ou como homem
comum? Se Adam Webster queria recuperar Lily e seu filho, por que
vasculharia a casa dela, vazia? E quanto ao quarto e ao carro dele? O que
aquele bandido procurava? Caso Lily lhe escondesse algo, não poderia culpá-la,
já que também ele omitira sua conexão inicial com Webster.
— Quero ligar de novo para Timmy e saber se está bem.
— Certo — Michael concordou e passou-lhe o celular. — Mas você acabou
de telefonar. Tenha cuidado para não assustar o menino, nem Gertrudes. Meu
pai ficou preocupado, ontem à noite, em ter de levá-la ao hospital, por causa
da pressão alta.
— Tem razão. Eu é que estou assustada. — Devolveu o aparelho sem
usá-lo.
— Já percebi.
O detetive compreendia o nervosismo de Lily, mas o lamentava por
trazer maus presságios. Também não gostava do fato de Webster ter
balançado a cauda, como se atraísse Travis para a pista errada. Acima de
tudo, detestava a sensação crescente de que Lily lhe escondia algo importante,
a ponto de levar Webster a correr um enorme risco. Gostaria de saber, ainda,
o que havia por trás daquele telefonema que Lily dera ao agente Logan. De
acordo com seu irmão Travis, a mulher que falara com Logan tinha relatado o
assassinato de outro agente do FBI. Quem? E como?
Michael avaliou a recusa de seu pai em chamar alguns colegas de Travis
para dar retaguarda a Gertrudes. Alegara que podia lidar sozinho com a
situação, mesmo que ela envolvesse um homem perigoso como Adam
Webster. Teria sido a decisão certa?
— Creio que vou chamar Travis e pedir reforço para a vigilância de
Timmy e de Gertrudes. O que acha?
— Sim, sim, eu ficaria muito grata.
O investigador completou a ligação e defendeu sua idéia, embora os
federais fossem encontrar dificuldades de chegar até a casa, por estar na área
do desfile de Mardi Gras. Travis aceitou a sugestão e aproveitou para falar:
— Michael, quanto ao que eu disse antes, sobre você pensar como
homem e não como um policial, peço desculpas.
— De nada, mano. Você tinha razão. — Ele não se importou com o fato
de Lily ouvir. — Eu estava perto demais da situação para ser objetivo.
— Ela é especial, não?
— Sim, muito especial. Assim como o garoto.
— Espero conhecê-los em breve e rever seu traseiro murcho.
— Igualmente — retrucou Michael, ansioso para apresentar Lily e Timmy
para Travis e para seu pai. — Avise-me quando seus homens confirmarem que
está tudo bem na casa de Gertrudes.
— De acordo.
O investigador voltou-se para Lily e confirmou que Travis poria alguns
federais de vigília no esconderijo de Timmy. Ela agradeceu outra vez, tão
comovida que Michael torceu para que suas promessas se tornassem reais.
— Bem, já que a arrumadeira do hotel ainda não veio, nem o desjejum,
vou descer e pegar alguma coisa para nos alimentarmos. Enquanto isso, passe
mais rimei nos olhos de sua Cleópatra.
— Devo parecer um guaxinim, com a cara borrada de preto.
— Um lindo guaxinim — ele provocou, beijando o nariz da parceira.
— Na volta, depois de comermos, já será tempo de sairmos. Vamos
arrasar como o maior vaqueiro do Texas e a Rainha do Nilo.
Lily riu pela primeira vez em dias. Michael estava todo paramentado
como caubói, incluindo o chapéu de aba larga.
— Relaxe, Bernie — pediu Adam a seu inquieto guarda-costas, enquanto
os dois e mais Sammy tomavam o café da manhã num hotel modesto.
Vestidos com trajes ridículos e máscaras toscas, tinham chegado a Nova
Orleans em jatinho fretado, facilmente providenciado pelo poderoso chefão.
Bem mais difícil era suportar dois idiotas grosseiros ao seu redor.
— Perdão, chefe — Bernie murmurou.
Adam vasculhou com o olhar o saguão repleto de foliões fantasiados. O
próprio desjejum se transformara numa festa ruidosa. No entender do
empresário, as pessoas lembravam caipiras recém-chegados, deslumbrados
com a cidade grande. Pior era ver que Bernie e o outro capanga estavam
entrando no mesmo espírito.
Havia sido um lance de gênio de sua parte, avaliou, vir cuidar
pessoalmente de seus interesses, mesmo que fosse em pleno Mardi Gras. No
hotel, fora informado da tradição de um farto café da manhã antes do desfile,
coroado por bebidas alcoólicas para animar os participantes. Costume tolo,
Adam pensou, pois os drinques só seriam estimulantes se o tempo estivesse
frio. Sob a máscara que usava, ele sorriu da própria esperteza. Por infantil que
fosse a situação, que disfarce melhor haveria do que se misturar aos foliões?
Quando Bernie agitou-se ao lado dele, Adam voltou à carga.
— Já disse para relaxar.
— Sinto muito, patrão. Sempre tenho a impressão de que os federais
estão na nossa cola.
— E eu continuo dizendo que ninguém vai nos incomodar durante um
evento do porte do Mardi Gras, que atrai tantos turistas para cá. Vamos nos
comportar como três deles, acompanhando o desfile e jogando flores e
serpentinas. Terminem de beber.
— Mas — contestou Sammy —, como tomar um drinque com essa
máscara do rosto?
— Levante-a de sua boca, idiota.
— Ah, certo, patrão.
— E pare de me chamar de patrão.
— Certo, pa... Certo.
Dentro de pouco tempo ele se livraria de gente como aqueles capangas.
Afinal, já estava muito bem situado na vida e não precisava de homens
truculentos e boçais a sua volta. Contrataria seguranças finos, elegantes e bem
treinados.
— Chega de comer, Bernie, e ligue para Deacon. Veja se ele já conseguiu
alguma pista do menino.
— Claro, claro.
Estava decidido. Assim que recuperasse Elisabeth e o disquete, ele se
livraria de Bernie. Á mesa, Adam procurou portar-se como membro da
comunidade e consumiu um bom copo de bebida. Olhando em torno, julgou
que a maioria dos foliões não suportaria de pé horas de desfile.
Bernie regressou animado ao salão.
— Deacon pegou o menino. Mas ele berrava como louco porque perdeu o
seu ursinho de pelúcia. Então, Deacon seguiu as instruções e deu-lhe um
comprimido forte para dormir.
— Esqueça o garoto, idiota. — Adam não ligava para Timmy, como
sempre. O filho era apenas um meio de chegar a Elisabeth. E ao disquete
incriminador, que precisava reaver de qualquer maneira. — Novidades sobre
Elisabeth?
— Ela não estava na casa. Apenas o menino, a velha senhora e o pai de
Sullivan.
— Pai de Sullivan? — Adam estranhou. — Deve saber de algo.
— Foi devidamente tirado do caminho e pressionado, mas nada falou.
Deacon acha que ele não conhece o paradeiro de Elisabeth.
— E a mulher de idade? Deu o serviço?
— Também não, apesar de ameaçada. Está mal de saúde e praticamente
desmaiou, mas antes contou que Elisabeth estava em algum hotel chique da
cidade.
— O nome do hotel ou o telefone?
— Negativo. Tudo o que a mulher tinha era um número de celular.
— Ótimo. — Adam respirou fundo, desanimado. — Você faz idéia de
quantos hotéis de luxo existem em Nova Orleans?
— A mulher disse que era muito chique e que sua esposa prometeu a
Timmy conseguir para ele um turbante do rei da Arábia. — Bernie sentiu que o
chefe sorria atrás da máscara. — Quer que eu vá até a casa e aperte a
velhota?
— Isso não será necessário, Bernie. Já sei onde Elisabeth está.
— Sabe?
— Se você lesse os jornais, saberia que o rei da Arábia com sua comitiva
sempre se hospedam no Saint Charles para ver o desfile da sacada especial.
— O senhor está falando do hotel que fica logo aí abaixo? Que sua esposa
está nesta mesma rua?
— Acertou, Bernie. Parabéns. Agora, me passe o número, pois preciso
ligar para minha querida Elisabeth.
Lily reprimiu o riso quando Michael voltou ao quarto, portando sacolas de
sanduíches e cervejas. Estava coberto de purpurina e, ao notar o detalhe,
bateu o chapéu na borda do cesto de lixo, murmurando um xingamento. Lily
não se conteve mais e gargalhou.
— Ainda bem que um de nós acha isso engraçado — disse o investigador.
— Desculpe-me, mas se você pudesse ver sua cara...
— Nunca soube que no Mardi Gras as pessoas ainda atiravam purpurina.
Confete é menos grudento.
— Claro. De qualquer modo, também é estranho tomar cerveja no
desjejum.
— Querida, você nem imagina as fantasias estranhas que vi lá embaixo.
— Ele ajeitou os lanches na mesa próxima do frigobar e tirou as botas para
limpá-las. — Acho que preciso de um banho. Logo mais, ligarei para Travis e
verei se já podemos sair.
Que não demorasse, pensou Lily ao ver-se presa de um novo surto de
nervosismo. Mirou-se no espelho de parede, ajustou a peruca de Cleópatra e
surpreendeu-se ao notar um revólver entre os pertences de Michael. Foi um
momento de apreensão, embora uma arma combinasse perfeitamente com a
fantasia de vaqueiro texano, além de fazer sentido na cintura de um ex-
policial.
Naquele instante, o celular de Michael tocou. Lily hesitou um pouco,
considerando a hipótese de chamar o detetive, mas o som do chuveiro ligado a
demoveu dessa idéia. Lembrou que o velho Sullivan, Gertrudes, Travis e seus
homens possuíam o número, e por tudo isso resolveu atender.
— Alô, Elisabeth?
Céus! Aquela voz cavernosa e perversa, que freqüentava seus pesadelos,
ela reconheceria até nas profundezas do inferno.
— Está aí, querida?
— Sim, estou — Lily balbuciou.
— Senti sua falta. E você, teve saudade de mim? — Sem resposta, Adam
prosseguiu: — Cansei-me desse jogo, Elisabeth. Volte logo para casa.
— Não voltarei, Adam. Vou pedir divórcio. Ele riu sonoramente do outro
lado da linha.
— E acha que vou permitir?
— Dispenso sua aprovação. Você não é meu dono. — Para expressar-se
assim, Lily vislumbrou os dias passados na companhia de Michael, quando se
sentira tão protegida, tão segura e... tão apaixonada.
— Nisso você se engana, querida. Sabe que eu sempre conservo o que
me pertence. Portanto, seja boazinha e venha me encontrar no Hotel Regente,
a uma quadra do Saint Charles.
Lily estremeceu ao ter notícia da proximidade de Adam. Determinada a
ser forte, sem ceder ao medo, ela voltou a impor-se:
— Não, não vou. Desista, Adam. Acabou.
— Você virá, Elisabeth, ou nunca mais verá Timothy de novo.
— Está mentindo. Nem mesmo sabe onde Timmy está.
A risada de Adam pareceu ecoar no interior das veias de Lily, gelando seu
sangue.
— Já descobri tudo sobre sua velha amiga Gertrudes Boudreaux.
Não era possível. Ela empalideceu. O marido havia encontrado Timmy.
— É mentira — rebateu, controlando o pânico. Claro, quem estava com
seu filho eram o pai de Sullivan e os homens de Travis, não os capangas de
Adam Webster. Eles não permitiriam que Timmy corresse perigo.
— E quando foi que eu menti? — o empresário retrucou. —
Lamentavelmente, meus homens tiveram de se livrar do velho Sullivan. E é
compreensível que Gertrudes resistisse à idéia de entregar Timmy ao próprio
pai, mas Deacon e Otto a convenceram. Lembra-se de Otto, querida?
O estômago de Lily doeu. Ela fechou os olhos à lembrança do truculento
segurança de Adam, um verdadeiro troglodita sem alma ou coração. Não
conseguia, porém, atinar com o que tinha exatamente acontecido com
Gertrudes e Mike Sullivan. Ou mesmo com seu filho.
— Deixe-me falar com Timmy — pediu como prova de vida.
— Poderá falar com ele quando chegar aqui — disse o outro, passando o
número do quarto de hotel e outras instruções. — Venha sozinha,
naturalmente.
— Está bem — ela concordou, após anotar tudo num papel e guardá-lo
numa dobra de sua túnica oriental.
— Elisabeth?
— Sim.
— Nem pense em deixar Sullivan ou um agente federal seguir você. Terei
vários homens a postos. Diga-me o que estará vestindo.
Ela contou.
— Ótimo. Lembre-se, se eu perceber qualquer sinal de Sullivan ou de seu
irmão, mato Timmy na hora. Compreendeu?
— Compreendi.
— Agora venha. Você tem quinze minutos.
— Quinze minutos? Com todo esse povo nas ruas e o início do desfile...
— Quinze minutos, no relógio. Se não estiver aqui nesse prazo, o menino
morre. Depressa, querida. Você não quer vê-lo vivo?
— Adam, por favor. Qualquer coisa, menos ferir Timmy.
A ligação foi encerrada no segundo em que Michael saiu do banheiro,
com os cabelos úmidos e envolto em uma toalha.
— É uma armadilha, Lily — ele foi dizendo tão logo a viu, transfigurada
de pavor.
— Não me importa. Tenho de ir e ver Timmy.
— Adam não tem o garoto. Você sabe e eu sei: meu pai está de vigília na
casa de Gertrudes e Travis acaba de mandar mais homens para lá. E uma
armadilha, acredite.
— Talvez seja, mas não posso correr o risco — Lily argumentou.
— Dê-me um minuto, então. Deixe-me ligar para meu pai.
Ela lhe passou o celular, não obstante a incerteza e a pressão do tempo.
— Rápido, então, por favor.
Michael teclou o número e em seguida praguejou. Tentou outra vez.
— Droga! Está dando caixa postal, e não consigo falar com Travis porque
as linhas estão sobrecarregadas. Qual o número de Gertrudes?
Também não houve resposta, e Lily não quis mais esperar.
— Tenho de ir. Sozinha — alertou, ao ver que Michael se vestia
apressadamente a fim de acompanhá-la. — Se alguém me seguir, Adam
acabará com Timmy.
— Não posso deixá-la ir sozinha. — Michael terminou de aprontar-se,
colocando o chapéu de vaqueiro.
— Vai deixar, sim. — Lily empunhou o revólver que vira na cadeira e
apontou para o detetive. Parecia firme com as mãos, apesar das lágrimas que
rolavam por sua face. — Dê-me suas roupas. Todas.
— Lily, não...
Ameaçado, Michael despiu-se, passou a Lily as peças que ela juntou com
as outras, no armário, fechando depois a porta à chave. O investigador ainda
não tinha dominado seu espanto quando ela saiu correndo pelo hall e pelas
escadas, sem esperar pelo elevador. Ao cruzar o saguão, jogou a chave do
armário num cesto de lixo.
Não era fácil abrir caminho entre a multidão, mas Lily rezou para que
chegasse em tempo.
Furioso com Lily e consigo próprio, Michael atirou o celular contra a
parede mais próxima e ouviu com satisfação o som de plástico quebrado.
Depois, varreu o telefone do hotel da mesa em que estava. Como podia ter
acontecido tudo aquilo? Como permitira que Lily fosse ao encontro de seu
algoz?
E quanto ao pai? Michael se recusava a acreditar que o velho Mike estava
morto, executado pelos capangas de Webster. Impossível crer. O inimigo só
podia estar mentindo.
Ao socar a mesa com raiva, o investigador viu o bloco de recados, notou
alguma coisa em baixo-relevo e, raspando a caneta sobre as ranhuras,
conseguiu recuperar a mensagem que fora escrita na folha arrancada por Lily.
— Regente, suíte 502 — leu em voz alta.
Tinha de impedir que ela chegasse lá. Examinou o armário fechado, em
busca de uma maneira de abri-lo e apanhar algo com que se vestir. Até então,
continuava de toalha na cintura. Apenas a bota estava acessível. Então, ele
divisou num canto do quarto a grande sacola da loja de Ricardo, com a
fantasia de gladiador.
— Melhor do que uma toalha — murmurou, decidido, constatando que,
além da roupa, o traje incluía sandálias de tiras de couro, escudo e espada de
isopor. Como arma, Michael preferia o revólver que Lily levara, mas, no
escuro, bem que aqueles apetrechos podiam enganar.
Trocou-se e desceu pelas escadas, evitando o elevador não só porque era
lento como por abrigar pessoas excessivamente curiosas. Os degraus foram
pulados, dois a dois, e Michael gabou-se da boa forma física. Ao chegar no
segundo pavimento, porém, quase colidiu com um homem que vinha subindo.
— Ei, veja por onde anda! — o outro reclamou.
— Travis!
— Michael! O que está havendo? — O agente federal não reteve o riso. —
Deu para usar saiote, mano?
— Nem me pergunte! — Percebeu que, em contrapartida, Travis usava
uniforme de segurança, com colete à prova de balas.
— Vim até aqui porque seu celular se apagou de repente e o telefone do
quarto também não responde.
— Houve um acidente com os dois aparelhos... — Michael ensaiou uma
explicação e logo desistiu. — Travis, Webster anda dizendo que os homens
dele liquidaram nosso pai!
— Uma mentira de merda — afirmou o agente, mantendo a calma. — O
menino deixou seu ursinho de pelúcia no parque e papai foi apanhá-lo. Os
bandidos esperaram que voltasse, mas o velho Sullivan baleou um deles e pôs
o outro para correr. Levou o ferido até o hospital, no ombro!
— Então, ele está bem?
— Está ótimo, apenas com o orgulho um pouco ferido por ter deixado
escapar um de seus agressores.
Aliviado, Michael suspirou.
— E Timmy?
— Foi levado por outra dupla de capangas. Por isso eu tentava entrar em
contato com você.
— E seus homens? Pensei que poderíamos contar com eles para dar
apoio a nosso pai.
— Um só homem. Não consegui mais, por causa da escalação para o
Mardi Gras. Quando cheguei, papai estava dominado e aquela mulher,
Gertrudes, assustada e machucada.
— Machucada?
— Ferimentos leves. Acima de tudo está preocupada com a criança.
Fazia sentido, Michael pensou, pois em nenhum momento duvidara
daquilo que ouvira Webster falar com Lily. O poderoso empresário era doente,
talvez doente de ciúme, mas mentalmente perturbado a ponto de encarar o
próprio filho pequeno como rival no amor de Elisabeth.
— Quer dizer que Adam está com Timmy! — resumiu o investigador,
enquanto conduzia Travis rumo à porta que dava para o pavimento térreo do
hotel.
No saguão, os dois cruzaram com moças vestidas de odaliscas e com
árabes que pareciam reais. O movimento só era menos intenso ali do que na
rua, com as calçadas repletas de foliões fantasiados e espectadores da festa.
— Aonde estamos indo? — Travis quis saber.
— Ao Hotel Regente, onde Webster se instalou. Lily foi para lá.
— Droga! Por que não a fez esperar?
— Porque ele ameaçou matar Timmy caso ela não fosse depressa.
Uma barreira policial os interrompeu na esquina, e Travis teve de
mostrar sua carteira funcional do FBI para poder passar. O guarda olhou
desconfiado para Michael, na pele de gladiador romano.
— Esse aí trabalha disfarçado — o agente explicou, e foi liberado junto
com o irmão para atravessar a esquina. Melhor ainda, o guarda local levantou
seu cassetete e abriu caminho em meio à multidão, como Moisés no Mar da
Galiléia.
— Boa manobra, mano. Fico lhe devendo essa — comentou Michael.
— Seria melhor você se livrar logo dessa saia ridícula — Travis gracejou.
Apesar da breve descontração, o investigador continuava preocupado
com Lily e com Timmy. Havia mais um detalhe: o que fazer para punir Webster
à altura?
A frente do hotel, Michael segredou no ouvido do irmão:
— Webster avisou Lily que poria gente à espreita e, se ela fosse seguida,
Timmy morreria. Acho que é um blefe, mas não podemos correr riscos.
— Certo, vou dizer a meu pessoal que mantenha distância e fique fora de
vista. Já que Webster deve conhecer minha aparência e a sua, não deveríamos
entrar pelos fundos?
— Claro. Obrigado pelo toque, Travis.
— Ele reconheceria você com essa fantasia, a máscara e tudo?
— Talvez não — disse Michael, pela primeira vez feliz com a idéia de
vestir-se de gladiador.
— Um último detalhe: você já descobriu o que Elisabeth possui e que
Adam tanto deseja?
— Não, e não me importa. Ele não teria nenhum dos dois na mão, se não
fosse por mim. E uma questão de honra pessoal que Lily e seu filho saiam
incólumes dessa enrascada. Não posso perdê-los, Travis, não posso.
— No que depender de mim, não perderá. Onde está sua arma? Debaixo
do saiote?
— Não. Lily a levou.
O agente federal franziu a testa e nada disse. Dobrou o corpo, mexeu na
perna perto do tornozelo e dali retirou um revólver pequeno, que passou ao
irmão.
— Bom, agora vamos! — incitou Travis. — Atrás de sua garota e do seu
menino querido.

CAPÍTULO XVII

Mal a porta da suíte 502 se abriu, Lily forçou passagem pelo guarda-
costas Deacon e entrou.
— Onde está ele? Quero ver Timmy!
— Calma, querida. Isso é maneira de cumprimentar seu marido? — Adam
desafiou. — Sente-se e tome um drinque.
— Não preciso de um drinque. Preciso do meu filho.
— Deacon, por favor, deixe-nos a sós — pediu o empresário em tom
forçadamente suave.
O brutamontes saiu e Lily lamentou que, um dia, tivesse considerado
Adam Webster um cavalheiro. Na verdade, era um vilão perverso, um ser
humano desprezível, e a jovem mãe tudo faria para tirar Timmy de seu
alcance.
Adam abandonou o copo e aproximou-se dela.
— Você faz uma linda Cleópatra, querida.
Mais do que a fantasia, ele examinou-lhe a aparência, procurando por
rugas e sardas. Sempre fazia isso, e imediatamente a mandava a uma clínica
de estética quando detectava marcas de que não gostava.
— Prefiro você loura — ele declarou, focalizando a peruca lisa de franjas.
— E sem roupa nenhuma.
Engolindo em seco, Lily permaneceu firme e calada, enquanto o marido
produzia um som de muxoxo.
— Mas não se preocupe — ele completou. — Em casa, tudo voltará ao
normal e você ficará bonita como antes.
— Adam...
Ele a segurou pela nuca e aplicou um beijo possessivo na boca. Lily teve
vontade de gritar. No entanto, entre perder Timmy e ser beijada à força,
preferia a segunda opção. Suportaria aquela invasão com gosto de uísque, se
isso representasse a segurança do filho. Adam não se satisfez com pouco,
porém. Deslizou a mão livre pelas costas da esposa e acariciou-lhe os seios.
Lily teve ânsia de vômito. Recuou, libertando-se, e respirou fundo.
— Senti sua falta, querida. — Com a mão na virilha, Adam fez notar sua
ereção. — Não imagina como fiquei carente sem você.
Um amargor de bile subiu à garganta de Lily, acentuando a certeza de
que ela iria vomitar. Mas Adam repetiu o ataque. Segurou a cabeça dela e
beijou-a mais uma vez.
— Quero ver meu filho — ela conseguiu dizer ao livrar-se.
Por um momento, Lily temeu que a rejeição deixasse Adam furioso, com
conseqüências graves para o menino. Mas a expressão cordata voltou e ele
assumiu outra vez o papel de cavalheiro.
— Muito bem, Elisabeth. Se deseja ver Timmy, venha aqui.
Adam caminhou um pouco e abriu a porta do quarto adjacente, sem tirar
a mão da maçaneta. Lily espiou rapidamente e foi impedida de entrar.
— Pronto. Já viu. — Ele fechou a porta.
— Mas Timmy está tão quieto — ela comentou, aflita por não vê-lo
respirar. — Nunca dormiu assim.
— Deacon lhe deu um sonífero, para mantê-lo em silêncio.
— Você dopou meu filho! — Lily manifestou toda a sua raiva.
— Foi necessário. Na pressa de trazer meu filho de volta para mim,
Deacon largou o ursinho de pelúcia e Timmy ficou histérico, chorando sem
parar.
— Ele nunca abandona o ursinho — Lily informou. — Por favor, Adam,
deixe-me entrar no quarto e saber se Timmy está realmente bem.
— Claro, claro, mas antes terá de me dar o que desejo. — Adam exibiu
um sorriso maldoso.
— E o que é que você deseja? — Lily preparou-se para outro vexame.
— O que sempre desejei, desde que coloquei meus olhos em você, com
15 anos. Quero você nua em minha cama. — Ele correu os dedos ásperos pelo
rosto dela.
Lily repeliu o toque. Era abominável pensar em Adam invadindo seu
corpo.
— Também quero aquele disquete que você roubou.
— Você terá o disquete de volta — ela prometeu —, desde que me
permita ir em paz, levando Timmy.
— Elisabeth! — O tom foi de quem repreendia uma criança. — Depois de
todo o trabalho que me deu, como posso deixá-la ir embora?
Como se campainhas soassem dentro de sua mente, Lily ficou
absolutamente alarmada. Não imaginava que sua proposta falhasse.
— Que trabalho? Eu fiquei ao seu alcance quando vim morar com minha
mãe, depois que minha avó morreu.
— Sim, e sua mãe também morreu logo depois, de overdose. Uma
tragédia.
— Não, um acidente — ela contrapôs. — Você gostava de minha mãe,
por isso concordou em me tomar sob sua guarda.
— Sim, eu gostava de sua mãe, mas já amava você.
— Foi um acidente — Lily repetiu, como se precisasse convencer-se.
— Tão ingênua, querida. Acreditou naquela história de coma diabético?
— Está insinuando que... — Ela percebeu, horrorizada, que Adam poderia
muito bem ter proporcionado à mãe uma dose excessiva de entorpecentes. —
Não é possível! Ela era sua amiga! E você gostava dela!
— Já disse. Gostava mais de você e a queria para mim. Sua mãe
começou a notar meu interesse e a reclamar. Pretendia mandar você para
longe, por isso tive de resolver o problema. Fiz isso por nós, para que
pudéssemos estar juntos.
Era insano, completamente insano. Lily tinha de resgatar Timmy e sair
correndo dali, encontrar um lugar seguro com a ajuda de Michael. Queimou
seu último argumento.
— Conheço o conteúdo do disquete, Adam. Vi no seu escritório aquele
homem que você dizia ser um parceiro de negócios. Era um agente federal, e
ele apareceu morto. O disquete indica uma conexão.
— E daí?
— Daí que posso lhe devolver o disquete e jurar que nunca direi uma
palavra sobre isso, a ninguém. Mas você precisa me deixar ir embora com
Timmy.
— Chega de conversa fiada! — ele explodiu, apertando o braço de Lily
com tanta força que ela previu o surgimento de hematomas. — Dê-me o
disquete e eu garanto a vida de Timmy. Quanto a você, não vai a lugar
nenhum.
Aterrorizada, Lily livrou-se com um safanão das garras de Adam e correu
para a porta do quarto onde estava Timmy, mas o marido dessa vez a segurou
pelo pulso, empurrou-a pelas costas e derrubou-a no sofá. Começou a tirar as
próprias calças.
Céus! Adam ia estuprá-la, era claro como água. Lily sabia disso, só que
agora não iria submeter-se nem sofrer em silêncio. Nunca mais, decidiu.
Assim, quando o marido começou a puxar-lhe para baixo a túnica de
Cleópatra, ela reagiu com socos e pontapés, nos quais colocou toda a força de
que era capaz.
Atingido na boca, Adam enfureceu-se, vermelho de raiva.
— Sua vadia! — Bateu-lhe no rosto, com vigor, deixando-a estonteada.
Ela sentiu o gosto de sangue na boca, junto com um toque de alarme nos
ouvidos.
— Que diabo é isso? — O toque também soara para Adam.
— Alarme de incêndio — Lily definiu ao reconhecer o som, conseguindo
sentar-se no sofá e recompor-se.
Alguém deu pancadas fortes na porta.
— Abram logo. E a segurança do hotel. O prédio está pegando fogo.
Adam furtou-se a responder, para ganhar tempo e certificar-se da
ocorrência.
— Segurança — a voz repetiu. — Abram ou teremos de arrombar a porta.
Todos os hóspedes devem evacuar o prédio.
O som agudo do alarme continuava a soar pelos corredores.
— Adam, pelo amor de Deus! Vá lá e abra. Quando ele finalmente
obedeceu, Lily correu para o quarto a fim de resgatar o filho.
— Timmy, acorde. E mamãe.
— Mamãe?
— Sim, querido. Estou aqui.
— Mãe, perdi meu ursinho.
— Não está perdido — ela disse, erguendo o menino no colo. — Lembra-
se? Michael colocou nele uma placa de identificação. Deve estar esperando por
você, em casa.
— Então, quero ir para lá.
— Iremos logo mais, querido — ela disse, correndo com o garoto nos
braços até a porta externa.
Dois homens entraram, um vestido de bombeiro e outro que parecia
integrar a equipe do hotel. Adam os interrogou febrilmente sobre as condições
de segurança do lugar, mas o suposto funcionário se acercou de Lily.
— Pode entregá-lo para mim, madame. Ficará perfeitamente seguro.
Lily desceu Timmy até o chão, e ele se agarrou à perna dela.
— Quero ficar com você, mamãe.
— Certo. Eu mesma o levarei para fora — comunicou, ao pegar o filho
pela mão. Rezava para que o caos instalado no hotel não atingisse Timmy e,
ao contrário, colocasse Adam fora de combate.
Mas o marido novamente a segurou pelo pulso.
— Fique onde está, Elisabeth. Não vamos a lugar algum. — Ele deu as
costas aos dois intrusos, alheio ao zumbido irritante da sirene. — Tragam-me o
gerente. Não darei um passo antes de falar com ele. Não vejo fumaça nem
gente correndo. Provavelmente, algum moleque abusado acionou o alarme no
corredor.
— Não é brincadeira, senhor. Por cautela, deixe-nos levar o senhor e sua
família daqui.
Adam continuou parado e de cara amarrada, quando o segundo homem,
uniformizado, aproximou-se de Lily. Ela percebeu simpatia no olhar dele.
Ajeitou a alça torcida da túnica, incomodada por exibir a curva inicial de um
seio.
— Seria melhor que nós cuidássemos desse menino, madame — disse o
funcionário. — Há uma enorme confusão lá fora e ele pode sair ferido.
— Tudo bem — Lily finalmente concordou, percebendo algo de familiar a
respeito daquele homem. — Vá com ele, Timmy. Mamãe estará bem atrás de
você.
— Vamos, garoto. Que tal ver de perto um caminhão de bombeiros de
verdade?
— De verdade? — Timmy se interessou. — Com aquelas mangueiras e
todas as escadas?
— Isso mesmo — confirmou o homem, conduzindo o menino para fora do
quarto.
— Um momento! — gritou Adam, interrompendo a ação.
— Deixe-o ir, Adam — pediu Lily. — Ele já está assustado com o barulho
e ficará pior ainda com a confusão lá embaixo. O homem da segurança saberá
distraí-lo. Ou você prefere ouvir o choro e os gritos de Timmy?
— Que seja. Pode levá-lo.
— O senhor também precisa vir — o bombeiro comunicou.
— Vou ficar. Agora saia. — Adam arrastou o outro homem até a porta.
— Então, que venha a senhora — ele afirmou. — Não é seguro ficar aqui,
e seu filho logo estará chamando pela mãe.
— Mas meu marido... — Lily sabia que Adam a impediria de sair.
— Alguém tomará conta de seu marido. — Naquele momento, os olhos
azuis do bombeiro encontraram os dela, causando uma súbita iluminação.
Lembravam os de Michael, e o coração de Lily bateu mais depressa.
— Certo, oficial. — Ela começou a acompanhá-lo, tomada de coragem.
Foi a hora em que o olhar raivoso de Adam pousou no rosto dela e do
bombeiro.
— Tire as mãos de minha mulher! — exclamou, trazendo violentamente
Lily para junto de si.
— Por Deus, Adam! Se o hotel está em chamas, precisamos sair.
— Vamos ficar, já disse. E quero vocês dois fora de meu quarto. —
Apontou acusadoramente para os dois intrusos.
— Minha instrução é para retirá-los daqui — declarou o bombeiro antes
de estender a mão até o braço de Lily.
Incerta do que Adam poderia fazer com o irmão de Michael, Lily recuou.
— Tudo bem. Pode ir, oficial.
— Mas...
— Você ouviu minha esposa. Saia!
Hesitante, o homem abriu a porta. Imaginando uma armadilha, Adam
empunhou um taco prateado de golfe, retirado do cesto existente no canto do
quarto.
— Cuidado! — Lily gritou.
Adam atingiu o bombeiro nas costas e o empurrou para fora. Mantendo o
taco na mão, colocou todo o seu peso contra a porta, a fim de fechá-la apesar
da pressão do outro. Horrorizada, Lily ouviu gritos no corredor e, depois, um
braço masculino introduzir-se pela fresta, segurando uma arma.
— Cuidado! — ela repetiu, sem dirigir-se a ninguém em especial.
O empresário bateu o taco no cano do revólver e conseguiu derrubá-lo no
chão. Ao som de um grunhido, Lily viu Michael esgueirar-se porta adentro,
arrastando-se pelo solo. Com isso, Adam pôde fechar a entrada, isolando todos
dentro da suíte.
— Abra, Webster — alguém bradou do lado de fora.
— Michael! — Lily voltou sua atenção para o amigo vestido de gladiador,
que jazia no carpete espesso. — Você está bem?
— Sim, estes malditos sapatos me atrapalharam.
Subitamente, Lily lembrou-se de que tinha uma arma na bolsa, a mesma
que subtraíra de Michael no Hotel Saint Charles. Correu ao sofá, procurou o
revólver e... nada!
Adam observava tudo, rindo maleficamente. Mostrou a mão com a arma
que havia retirado da bolsa de Lily.
— Não tente pegar nada, Sullivan. Estou armado. — Bateu a ponta do
cano na testa, querendo mostrar que era mais inteligente. — Avise seus
amigos lá fora para sumirem. Ou eu enfio uma bala no meio de seus olhos.
— Vá para o inferno!
— Só se você for — Adam sublinhou, engatilhando o revólver.
— Michael, por favor. Faça o que ele pediu. Depois de se erguer, o
investigador aproximou-se da porta trancada.
— Travis, afaste-se com seus homens — gritou.
— Ora essa, Michael...
— Faça isso, Travis. Ele tem uma arma engatilhada.
— Está bem. Já vamos embora. — Passos em retirada puderam ser
ouvidos.
— Ótimo, Sullivan. Agora, Elisabeth, fique longe dele.
— Não. — Ela se colocou à frente de Michael. — Não vou deixar que você
o mate. Deixe-o em paz, Adam. Ele não tem a ver com tudo isso.
Adam riu, como se escutasse uma anedota.
— Essa é boa, querida. Francamente, acha que posso? Quem você pensa
que me ajudou a localizá-la? Sullivan trabalha para mim.
— E mentira! — Lily exclamou, perplexa.
— Pois pergunte diretamente a ele.
— Michael? — Ela o focalizou com os olhos marejados e notou uma
sombra de culpa refletida nas íris azuis do investigador, junto com um lampejo
de dor.
Avaliou que, se isso fosse possível, seu coração literalmente se partiria
em pedaços.
Então, Lily concluiu que o detestável Adam havia dito a verdade.
Michael percebeu que não dominava suas emoções. Pensava que a culpa
e a autopiedade tinham chegado ao extremo por ocasião da morte de Pete
Crenshaw. Mas isso não era nada comparado ao que sentia naquele momento.
— Lily, posso explicar.
A cintilação verde desapareceu dos olhos dela.
— E verdade, não é? Você trabalha para ele. Frustrado, sem saber como
fazê-la entender, Michael respondeu com franqueza:
— Sim, ele me contratou para localizar você. Mas eu caí fora da missão
porque me apaixonei por você. Eu a amo, Lily. — Deveria ter-se declarado
antes, ciente de como as mulheres eram sensíveis às palavras. — Já ia lhe
revelar tudo. Planejei contar-lhe depois que você e Timmy estivessem em
segurança. Aliás, essa se tornou minha prioridade. Temi apenas que, se lhe
contasse, você recusaria ajuda.
— Como se atreveu a cair de amores por minha esposa, Sullivan? —
Adam rugiu, com ar vingativo. — Só por causa disso, mereceria morrer.
— Adam, não! — Lily gritou.
— O que lhe importa se eu matá-lo? — retrucou o empresário. — Ele
nada significa para você, certo? E apenas um mercenário, um caçador de
recompensas. Cumpriu seu papel, agora pode ser descartado.
— Acha que pode me balear e sair andando? — Michael ganhou tempo.
Já não duvidava da insanidade total do desafeto. — Meu irmão é agente
federal. Se não estiver do outro lado da porta, está por perto. Você não
conseguirá livrar-se da cadeia.
— Posso sair daqui da mesma maneira como entrei: fantasiado. E Lily
tem a fantasia dela...
— Não vai funcionar.
— Não? Quero ver seu irmão me encontrar no meio da multidão que
celebra o Mardi Gras. São centenas, milhares de pessoas festejando nas ruas.
— Eu localizei você, apesar de tudo — Michael o relembrou.
— Pensa que é muito esperto, Sullivan, mas eu sou mais. Encontrei
sozinho a pista de Elisabeth, como qualquer escoteiro.
— Não sou escoteiro, Adam, e você não conseguiria achá-la se eu não
agisse.
— Talvez, mas não espere embolsar o resto de seu milhão de dólares.
— Dispenso seu dinheiro. Por que não abaixa essa arma e nos deixa sair
daqui, eu e Elisabeth?
— Você e Elisabeth? — Adam deu uma risada de zombaria. — Está
delirando, Sullivan. Ela é minha mulher. Pertence a mim. Ficará comigo. Venha
cá, querida.
Após vacilar um pouco, Lily acatou a ordem. Ele a envolveu por trás, pela
cintura, pressionando o corpo contra as curvas da esposa.
— Ela não é propriedade sua, Adam.
— Como não? Não está vendo? — A mão em concha apertou um seio de
Lily.
Era repulsivo. O desconforto e a vergonha se estamparam na face dela.
— Deixe-a em paz, senão acabo com você com minhas próprias mãos.
Adam sorriu.
— Muito galante de sua parte, Sullivan. Parece que assumiu a
personalidade de sua fantasia do Império Romano. Elisabeth é minha, queira
você ou não. — Ele apertou com dois dedos sobre a túnica o mamilo direito da
mulher.
— Canalha! — A raiva de Michael chegara ao limite e ele se moveu na
direção do empresário.
— Pare! Mais um passo e puxo o gatilho!
— Por favor, Adam — Lily choramingou. — Deixe-o ir e eu fico com você.
— Impossível fazer isso agora, querida, e você sabe. — Preparou o
disparo.
— Não! — Lily voltou-se de encontro a Adam e seu jogo de corpo o
desequilibrou. O tiro saiu sem direção.
Michael tentou puxar Lily para si, livrando-a do perigo de uma segunda
bala. Afastou-a até o canto, como medida de proteção, mas viu que Adam
Webster observava os movimentos dos dois com visível ira.
— Você transou com ela — Adam como que cuspiu as palavras. — Sim ou
não?
Michael guardou silêncio.
— Responda, miserável. Transou com Elisabeth?
— Não — ela interveio rapidamente, procurando transmitir coragem. Para
tanto, levantou o queixo e exibiu uma expressão superior. — Transar é o que
você faz, Adam. Eu e Michael fizemos amor, trocamos sentimentos e
sensações. Ele é um homem de verdade, não um animal!
— Sua vagabunda! Dei-lhe tudo, tudo! Roupa, comida, educação e, por
fim, casei-me com você. E é assim que me paga? Com uma traição infame?
Permitindo que esse patife tocasse o que é meu?
— Você me comprou — Lily reagiu. — E tive de pagar um alto preço por
sua suposta generosidade.
Adam estapeou a mulher tão repentinamente que Michael ficou sem
ação, tão forte que ela caiu sobre o carpete.
— Vadia, vadia! — ele gritava.
— Canalha! — Michael saltou sobre Adam, que pressionou o gatilho.
Foi de raspão, mas o detetive sentiu um líquido quente e grosso brotar
em sua têmpora esquerda.
— Pare, Adam. Chega. — Lily ergueu-se a fim de se colocar entre o
marido e Michael.
— Saia! Saia daí! — bradou o detetive. Quem poderia assegurar que
Adam não atiraria contra a esposa?
— Você tem toda a razão, querido — ela disse com repentina afabilidade.
— Foi bom para mim, e em todos esses anos deu-me tudo de que necessitava.
Eu devia ficar grata a você. Agora vejo como me portei mal. Por favor, leve-me
para casa e mostrarei como estou arrependida, como posso agradá-lo até você
me perdoar.
— Por que pensa que ainda quero você? — Adam a surpreendeu com a
resposta. — Agora que foi maculada por outras mãos, não significa mais nada
para mim, a não ser uma boa parceira na cama. De você, só desejo aquele
disquete.
— Disquete? — Michael arregalou os olhos. Nunca tinha ouvido falar do
dispositivo, embora suspeitasse, tal como Travis, que Lily escondia alguma
preciosidade que o empresário cobiçava.
— O que foi? — Adam riu de novo, confiante. — Você transou com ela e
não ficou sabendo do disquete que ela roubou de meu cofre? Por que acha que
me dispus a pagar tanto dinheiro para encontrá-la?
— Pensei que estava obcecado por ter Elisabeth de volta.
— Pensou corretamente. Eu a queria, sim, por isso investi um milhão na
busca. Mas achava que ela iria se arrepender e que me devolveria o disquete,
antes que caísse em mãos erradas.
Mãos erradas? As do FBI, por exemplo. Michael recordou-se com detalhes
das conversas com o irmão. No entanto, por gostar de Elisabeth, preferia estar
enganado em suas suspeitas, tal como lhe acontecera anos antes, com
respeito a Pete.
— Não me surpreende que Elisabeth não lhe tenha contado — prosseguiu
o empresário. — Até mesmo de mim ela guardava segredos.
Impossível culpá-la, pensou Michael, pois ele também omitira sua ligação
com Adam Webster. Apenas o motivo poderia ser considerado justo: ele não
queria perder Lily, já que a amava. Agora, era tarde para reparar o erro. Ainda
que saíssem ilesos e juntos dali, havia pouca chance de uma conversa com
base na confiança mútua.
— Nada disso importa, não é? Minha paciência acabou. Quero meu
disquete. — Adam fixou o olhar na esposa. — Onde ele está, Elisabeth?
— Não lhe conte — Michael declarou, afobado. — Se ele colocar as mãos
no disquete, nos matará em seguida.
— Eu matarei você agora mesmo, se ela não revelar.
— Adam mirou a arma contra Michael.
— Não atire nele, Adam — Lily suplicou.
— Esqueça de mim. Pense em Timmy. Não dê o disquete.
— Onde ele está, Elisabeth? — Adam insistiu. Hesitante, Lily alternou o
olhar entre o marido e Michael.
De repente, Adam agarrou a mulher de novo, dessa vez passando um
braço por seu pescoço, e encostou o revólver diretamente na cabeça dela.
— Convença-a a entregar o disquete, Sullivan. Senão, juro que vou
atirar.
Michael esfregou as mãos, impotente. Saltaria sobre aquele monstro e o
encheria de socos, caso Lily não estivesse sob sério risco de morte. Na
verdade, a mão que segurava a arma não se mostrava firme, mas com o braço
Adam poderia estrangular a mulher. Ela já aparentava ter dificuldade para
respirar, enquanto o olhar do empresário continuava perverso.
— Tudo bem — Lily balbuciou com a voz abafada.
— Mas não tenho o disquete aqui comigo. Posso levar você ao lugar.
— Está mentindo — acusou Adam.
— Não, juro que não. — O apertão no pescoço foi aliviado e ela tossiu. —
Guardei o disquete em lugar seguro, mas vou levar você lá.
Após alguns segundos, Adam afastou completamente a arma da cabeça
de Lily.
— Certo, mas sem artimanhas. Se me enganar, matarei não só você
como o garoto que tanto ama. Entendido?
Ela confirmou sua disposição com um gesto de cabeça.
— Não faça isso, Lily — Michael contrapôs. — Ele não pode machucar
Timmy. Seu filho está em segurança. Você é que morrerá, no momento em
que lhe entregar o disquete.
— Chega, Sullivan! — Adam ameaçou, apontando o revólver.
— Não! — Lily demoveu o marido. — Vou lhe mostrar onde está o
disquete, mas deixe Michael viver.
— Não sei o que me impede de acabar com vocês dois agora.
— E que você precisa do disquete para se livrar do tribunal e da cadeia —
provocou o investigador.
Adam reservou um minuto para avaliar suas opções. Estudou Michael,
depois Lily.
— Tudo bem. Não vou matar Sullivan, mas ele terá de fazer contato com
o irmão e garantir que eu e Elisabeth não seremos incomodados.
— E se eu me recusar?
— Então, ela morre agora mesmo. Talvez você não tenha medo de
morrer, Sullivan, mas não suportaria ficar com a morte de Elisabeth em sua
consciência. Afinal, você já carrega a culpa pela perda de seu parceiro. Tenho
razão ou não? — Adam sorriu da própria perspicácia.
— Falarei com Travis — Michael confirmou. O inimigo conhecia seus
pontos fracos.
Adam passou o telefone celular ao detetive.
— Diga ao agente Travis que, se alguém se aproximar de nós, Elisabeth
será baleada no mesmo instante.
— Está bem. — Michael digitou os números e falou com o irmão. Pouco
depois, devolveu o aparelho. — Feito. Agora, liberte Elisabeth, Adam.
— Como assim? Dando-me ordens?
— Apenas fazendo uma promessa. Se você tocar num fio de cabelo dela,
vou caçá-lo até acabar com sua raça.
— Sabe, Elisabeth? Parece que o gentil cavalheiro ama você — Adam
zombou.
— Eu realmente a amo, Lily. — Michael fixou os olhos nela, mas só viu
descrença e desesperança. Sentiu o coração terrivelmente oprimido.
Em tal circunstância, não percebeu que Adam desviava a arma de Lily e
mirava seu corpo.
— Adam, não! — Lily alarmou-se.
Ele disparou, atingindo Michael na perna. O grito de Lily foi seguido da
tentativa de desvencilhar-se de Adam, porém o marido a prendia com vigor.
— Você prometeu! — ela se debateu.
— E mantive a promessa. Não matei seu queridinho. Só precisava me
assegurar de que ele não teria condições de vir atrás de nós.
CAPÍTULO XVIII

Pelo amor de Cristo, Michael, vamos logo a um médico, ao hospital —


argumentou Travis enquanto segurava o irmão pelo ombro, dentro do elevador
do Hotel Regente.
— Estou bem — o outro alegou, ignorando a dor na perna por onde
escorria um filete de sangue.
— Como pode estar bem, se há uma bala alojada em sua tíbia direita? No
mínimo, precisamos trocar esse pano enrolado aí, do contrário você não vai
parar de sangrar. Também não deveria andar, claro.
— Tenho de impedir Adam Webster, mano. Assim que Lily lhe entregar o
disquete, ela será assassinada.
— Há uma equipe inteira atrás dele. Não escapará.
Saíram do hotel para a rua repleta de foliões do Mardi Gras. O fluxo da
multidão, tangida pelo desfile que já começara, parecia crescer a cada minuto.
Seria uma respeitável façanha alguém avançar em meio ao pova-réu e chegar
a algum lugar.
— Seus homens sabem manter-se discretos? Webster não pode
desconfiar que está sendo seguido.
— Está brincando, Michael? Em meio a essa multidão, Webster poderia
ter um batalhão atrás dele e não saberia de nada, já que todo mundo parece
festejar a Terça-feira Gorda.
O investigador ferido tentou encontrar conforto na explanação de Travis.
Ele tinha razão, concluiu. Os festejos eram tão ruidosos, tão maciços, que os
agentes da lei sairiam beneficiados. Mas, por outro lado, a confusão também
agia em favor de Adam Webster.
— Que direção eles tomaram? — Michael quis saber.
— Foram rumo ao Saint Charles, onde você se hospedou. Tem alguma
idéia de onde possa estar o tão desejado disquete?
— Não, mas acredito que o conteúdo revele algo sobre o caso daquele
agente federal assassinado na Flórida. Faz bastante sentido. Você disse que,
segundo Logan, a mulher que ligou para ele tinha informações a respeito do
possível culpado. Talvez exista no disquete algum detalhe que incrimine
Webster. Do contrário, por que ele faria o que fez? Deve temer por uma prova
que o coloque na cadeia por longo prazo.
— Poderia Lily ter escondido o disquete no hotel, sem você notar? —
Travis indagou.
Michael relembrou os movimentos dela no quarto, no banheiro e depois
na cama, fazendo amor. Tirando esses momentos, Lily havia se mostrado
aterrorizada demais para escolher um esconderijo.
— E possível, mas não creio.
— Nenhum palpite de onde ela escondeu o disquete? Enquanto
avançavam através da multidão, abrindo
caminho entre foliões simplesmente alegres e outros embriagados,
Michael e Travis recebiam chuvas de flores, confetes e serpentinas. Cruzaram
por um grupo fantasiado de monstros intergaláticos. Arrastando a perna ferida,
Michael pensou no carro que ficara abandonado numa garagem.
— Seu pessoal verificou o automóvel de Lily? — perguntou ao irmão,
lembrando-se de como ela se apressara em juntar malas e outros pertences
para viagem, no dia anterior.
Dia anterior? Parecia ter passado muito mais tempo desde que Michael
acudira Lily e ambos haviam escapado dos capangas de Adam Webster. O
repentino calor dentro do peito denunciou que ele a amava. Tinha a impressão
de conhecê-la por toda uma vida.
— Nada que pudéssemos encontrar — sentenciou Travis.
Bem, se Lily tivesse guardado o disquete em algum ponto do carro, não
concordaria em deixá-lo num estacionamento, sem insistir em voltar sob o
pretexto de apanhar roupas para ela ou Timmy.
— E quanto à casa que vocês vasculharam?
— Nada.
Com esforço, chegaram à esquina. Ali, num espaço menos
congestionado, Travis abriu o celular.
— E o agente Sullivan. Preciso de uma atualização. — Ouviu os dados
quieto, balançando a cabeça. Depois, dirigiu-se ao irmão: — Estão três
quarteirões adiante de nós. Passaram pelo Saint Charles e entraram na rua do
Canal.
Michael gemeu ante uma pontada na perna. A dor foi marcada por um
novo filete de sangue.
— Sua perna está sangrando de novo. Vou levá-lo ao hospital e meus
homens seguirão Adam e Lily. Eles não vão escapar.
— Não, de modo algum. Posso suportar a dor, por enquanto, e depois de
tudo terminado eu cuidarei do ferimento. Não quero me arriscar, Travis, e você
sabe por quê.
— Está bem, mas deixe-me abrir caminho, para variar. Pretendo acabar
logo com essa loucura.
Enquanto seguia Travis, Michael pensou em como era bom retomar
contato com sua família, após tanto tempo. Estava com o irmão, logo se
reencontraria com o pai. Queria oferecer o melhor de si para Lily. E Adam tinha
razão: se algo de ruim acontecesse a ela, sua consciência culpada não
resistiria a um novo inferno.
— Pare de mancar, Elisabeth — comandou Adam, puxando-a para que
ficasse ereta e continuasse a andar rápido. Cravou os dedos no braço da
esposa e empurrou-a rua acima.
— Espere, Adam. E o meu sapato — ela protestou.
— Depressa! — Ele apertou-lhe o músculo, enquanto Lily saltava,
procurando repor a sandália estilo egípcio num dos pés. — Vamos!
Ainda mancando, Lily acompanhou o ritmo do marido. Sentia as unhas
dele na carne e não atinava com o que fazer para escapar. Só sabia que não
lhe entregaria o disquete, nem permitiria que ele a matasse.
Tinha muita vida pela frente, ponderou. Com ou sem Michael. Seu
coração se apertou à lembrança das cenas de amor total com o detetive. Ele
havia jurado que a amava, e ela gostaria de poder dizer-lhe que o perdoava,
que compreendia por que omitira sua ligação inicial com Adam Webster. Se
Michael tinha desistido de sua missão, perdendo dinheiro e correndo perigo de
vida, era porque realmente a amava. No entanto, precisaria guardar tudo isso
para outra ocasião, pois naquele momento Adam a vigiava de perto e
ameaçava matá-la.
— Quanto falta? — ele questionou, quase sem fôlego na calçada.
— Mais seis quadras. — Felizmente, naquele trecho havia menos gente
concentrada.
— Para onde estamos indo?
— Se eu lhe disser, não terá mais motivo para poupar minha vida.
Adam exibiu um gesto de contrariedade na direção da esposa.
— Muito bem, vamos prosseguir neste jogo. Mas, estou avisando,
começo a me cansar disso tudo.
Ele a empurrou de novo e, dessa vez, Lily de fato tropeçou. Foi ao chão,
ralando o joelho no pavimento e manchando o vestido de Cleópatra que
Ricardo havia se orgulhado de ver nela.
— Levante-se — Adam disse, aborrecido. — Está jogando sujo.
— Claro — ela argumentou. — Sujei-me toda. — Tinha caído sobre uma
repulsiva mistura de comida, bebida e outros fluidos que os foliões do Mardi
Gras haviam descartado no passeio.
Em seguida, Adam viu-se diante de um mar de gente. Tudo estava
parado no quarteirão vizinho. O grupo que desfilava também havia parado, e
músicos, dançarinos e acrobatas marcavam tempo no chão. Lily chegou a ver
engolidores de fogo a apagar suas tochas. O povo se comprimia junto ao meio-
fio, pais e mães levantavam suas crianças sobre os ombros. Todas gritavam a
fim de receber presentes atirados pelos participantes do desfile.
— Por que tudo parou? — Adam perguntou para ninguém em particular.
— E a hora do brinde — explicou um folião anônimo. — O rei e a rainha
do Carnaval estão trocando brindes na sacada da Prefeitura. E a tradição. O
desfile tem de parar enquanto a cerimônia se desenvolve.
— E quanto tempo leva?
— Alguns minutos — o homem informou. — O senhor deveria levar sua
acompanhante para ganhar lindas flores.
— Não gosto disso — disse Adam assim que o folião se afastou.— Vamos
tentar prosseguir.
— Impossível, Adam. Você ouviu. Temos de esperar o fim dos brindes. —
Lily vislumbrou a possibilidade de fugir em meio ao caos, mas o marido ainda a
prendia dolorosamente pelo braço.
— Se eu ficar parado aqui, Sullivan e seu irmão vão me achar.
Não havia como, com tanta gente na rua. Lily duvidou da sanidade
mental de Adam, se é que lhe restava alguma.
— Mas não conseguiremos andar — contrapôs.
— Sim, conseguiremos. Vamos.
Adam forçou passagem atropelando as pessoas, arrastando Lily que,
atrás dele, murmurava desculpas inaudíveis por causa do ruído ambiente.
— Cruzaremos a avenida e tomaremos a rua de trás, onde não há
nenhum desfile.
Lily sabia que, fora do ponto de maior concentração, suas chances de
escapar seriam nulas. Teria de levar Adam à casa de Gertrudes, recuperar o
urso de pelúcia de Timmy e entregar o disquete que havia escondido dentro do
estofo do bichinho. Isso salvaria a pele de todos, inclusive de Gertrudes, caso
ela ainda estivesse em seu sobrado. Se fosse verdade, já seria muito, ela
pensou, sem a menor disposição de morrer.
No meio da avenida, um carro alegórico alto e com luzes piscantes
começou a mover-se, no reinicio da parada carnavalesca. Talvez fosse possível
escapar, correndo para o outro lado do veículo e deixando Adam bloqueado
pelos cordões de participantes.
O pensamento positivo de Lily foi quebrado pelo som de seu nome, que
ouviu nitidamente atrás de si. Olhou, mas nada viu de novo. Teria sido
Michael? Ele conseguira andar e segui-la mesmo com o ferimento a bala na
perna?
— Eu disse para corrermos — falou Adam, empurrando a esposa em meio
à aglomeração. Dessa vez, ouviram diversos xingamentos.
— Está bem, mas guarde a arma, Adam. — O revólver era mantido
coberto por um lenço grande.
Surpreendentemente, o empresário obedeceu, e nesse gesto soltou o
braço de Lily. Ela fingiu cair no chão, em meio ao fluxo de pessoas, perto do
carro alegórico que avançava lentamente. Adam praguejou e estendeu a mão a
fim de socorrer a mulher. Esta, porém, concentrou toda a sua energia num
puxão que derrubou o marido no solo.
Houve gritos da multidão, diante do perigo de um atropelamento. Mas
Lily não esperou para ver se Adam se safava. Correu, como havia planejado,
para o lado oposto do veículo enfeitado. Tinha escapado do marido. Faltava
agora sobreviver à onda humana que tudo arrastava pelo caminho.
Mais um coro de gritos, e Adam foi colhido pelas rodas do gigantesco
carro.
— Lily! Lily! — chamou Michael.
Perplexa, ela olhou na direção da voz. Vestido de gladiador, mas com
uma bandagem ensangüentada na perna e um filete vermelho na têmpora, o
investigador provocava espanto no povo horrorizado. Ele parecia ser o
sobrevivente de uma batalha no Coliseu.
Mas lá estava ele, trazendo Lily para seus braços, beijando-lhe a testa,
acariciando as costas da amada para confortá-la.
— Acabou, Lily. Acabou.
Subitamente, foram cercados por outras pessoas, fantasiadas de
policiais. Não. As roupas eram de verdade, bem como as armas, e um oficial
gritava instruções a fim de restabelecer a ordem e permitir o prosseguimento
normal do desfile de Mardi Gras. Lily ergueu o olhar para o investigador.
— Eu matei Adam, Michael, eu o matei!
— Nada disso. Webster matou-se sozinho. Ele estava muito doente, Lily.
Na sua obsessão, não hesitaria em dar cabo de você. Enfim, você apenas
salvou a própria pele.
— E Timmy? —- ela conseguiu perguntar.
— Está seguro. E Gertrudes passa bem, assim como meu pai. Tudo
voltará ao normal, Lily, graças a você. E uma heroína, sabia? Salvou a nós
todos.
Lily não discutiu. Não se incomodou em dizer que o amor é que lhe dera
forças. Ela decidira viver, não somente por Timmy, mas por si mesma.
Michael continuou estreitando a parceira, enquanto murmurava palavras
doces. Lily não soube definir quanto tempo ficara assim, colada ao homem
amado. Foram minutos. Poderiam ser horas.
Um agente de olhos azuis veio bater nas costas de Michael.
— Ela precisa ir à delegacia e depor, mano.
— Agora não.
— Está certo, eu vou — avisou Lily, livrando-se do abraço. — Você deve
ser Travis Sullivan.
— Sim, madame. Muito prazer. — O rosto se iluminou com o mesmo
sorriso charmoso que pertencia a Michael.
— O prazer é meu, mas me chame de Lily.
— Tenho a impressão de que vamos nos ver bastante daqui para a
frente, Lily.
Ela não almejava outra coisa, integrando-se à família de Michael. Travis,
no entanto, não exibia aquela sombra escura de auto-recriminação pela morte
de um parceiro. Teria de ajudar Michael a superar isso.
— Pode me acompanhar, então?
— Claro.
— Você vem, Michael?
— Não, vou cuidar desta perna, antes que se forme uma gangrena.
Dias depois, na delegacia central de Nova Orleans, sentado na sala
provisória cedida ao FBI, Michael ouviu Travis relatar em minúcias o
andamento do inquérito sobre Adam Webster, do qual tivera uma prévia no
hospital, após a cirurgia de emergência para a extração da bala na perna.
— Pelo conteúdo do disquete — o agente comunicou —, Webster
enfrentaria prisão perpétua, talvez mesmo a pena de morte.
Michael sorriu, orgulhoso da atuação de Lily em todo o caso, com
destaque para sua coragem em roubar o disquete do cofre do marido.
— Ela foi muito esperta — Travis elogiou. — E o esconderijo, então?
Dentro do ursinho de pelúcia do filhq. Como Adam detestava o garoto, jamais
pensaria em procurar ali.
— Lily é mais inteligente do que se imagina — observou Michael.
— E também corajosa. Pelo que me foi contado, aquele canalha a
controlava desde que era adolescente. Não deve ter sido fácil para Lily escapar
dessa influência, espionando o comportamento de Adam e subtraindo o
disquete comprometedor, ao risco da própria vida ou a do menino.
— Lily é mais forte do que se imagina — o investigador repetiu-se.
— Na verdade, com o disquete e com Adam fora do caminho, ela acabou
salvando a vida de muitos agentes federais. As informações obtidas nos
permitirão estourar uma porção de quadrilhas perigosas, ligadas à vida
noturna de Miami.
— Espero que você tenha agradecido a Lily.
— Claro — disse Travis, recostando-se na cadeira e batendo o pé em
cima da mesa. — É uma grande mulher, mano. E estou feliz por você.
— Ainda é cedo — Michael corrigiu, ciente de que Lily não lhe pertencia,
nem a ninguém.
— Engraçado. Tive a impressão de que ela fará tudo para ter você.
— Lily está melhor sem mim. — O tom de Michael foi triste e
conformado.
— Ela disse isso? — Travis tomou as dores do irmão.
— A decisão não cabe a ela — teimou o investigador.
— Nem a você, suponho.
— O que você está querendo dizer?
— Que você não pode decidir sozinho o que é melhor para os dois. Lily
deve ser ouvida. Você se fechou em copas depois da morte de Pete, julgando
que foi culpa sua. Agora, lá vem você recriminar-se por não ter confiado em
Lily e omitido que trabalhava para Adam Webster. Ora, se você trouxe Adam
até ela, também foi a pessoa que a ajudou a lutar e vencer.
— Não a ajudei, Travis. Quase causei a morte dela. Aquele monstro
também mataria Timmy sem piedade — Michael acrescentou.
— Mas isso não aconteceu. Ambos estão vivos e bem.
— Só que não foi graças a mim.
— Está bem. Você errou ao não contar a Lily que estava a serviço de
Adam. Mas você é humano, Michael. Nós, humanos, cometemos erros. O
segredo é superá-los e ir em frente.
— Não estou certo de que vou conseguir.
— Ao menos tente — Travis insistiu. — Porque se você se afastar de Lily,
aí sim, estará cometendo o maior erro de sua vida.

CAPÍTULO XIX

Timmy, você fica aqui e toma conta de Gertrudes, enquanto eu aten-


do à porta. Tudo bem?
— Bem.
A campainha soou novamente.
— Volto logo, Gertrudes — Lily avisou.
— Vá logo e atenda — disse a velha senhora. — Você não me dá sossego
desde que aqueles agentes bonitões me trouxeram para casa. Timmy ficará
quietinho comigo. Certo?
— Certo. — Sentado no quarto ao lado de Gertrudes, com uma enorme
tigela de pipoca, Timmy assistia a um novo filme em vídeo da Disney.
Aliviada por notar os dois tão relaxados, Lily correu à porta da sala e
abriu. Era Michael.
— Olá.
— Alô. — Gostou de ver o investigador, com uma tira de esparadrapo na
têmpora. — E como vai a perna?
— Posso entrar?
— Claro que pode. — Ela abriu totalmente a porta e deu passagem.
Michael usava bengala. O coração de Lily bateu mais apressado. — Quer
sentar-se?
— Obrigado. — O tom e os gestos revelavam uma polidez estranha para
quem havia partilhado uma cama quente e vivido uma noite de amor. — Acho
que deveria ter telefonado antes de aparecer.
Ela sorriu, condescendente.
— Não será o maior de seus erros — Lily provocou, arrependendo-se em
seguida do alcance da frase.
— Travis me garantiu que Timmy e Gertrudes passam bem, mas eu
decidi conferir pessoalmente.
— Lógico — ela murmurou, pouco à vontade. Toda sua expectativa de
que Michael viesse declarar-se havia se desvanecido junto com as nuvens
escuras da Quarta-feira de Cinzas.
— Foi Timmy quem eu escutei rindo?
— Sim, está vendo um filme no quarto, com Gertrudes. Seu irmão e
outros agentes a trouxeram para casa, depois que a pressão se estabilizou.
Parece bem, mas ainda não quero deixá-la sozinha em casa. Ela e Timmy
estão comendo pipoca, com pouco sal, naturalmente.
— Você não está estragando os dois?
— Depois do que passaram, acho que merecem ser mimados.
— Você também merece — comentou Michael.
— Minhas lembranças do tempo em que era mimada são trágicas — Lily
contrapôs. — Mesmo assim, não consigo esquecer de que sou responsável pela
morte de Adam.
— Não tem por que se sentir culpada. Aquele homem era um criminoso e
um louco. Provavelmente, mataria você e o menino.
— Sei disso, mas a culpa ainda é grande. Lamento ter fugido de casa,
sete meses atrás. Foi um erro. E pelo resto da vida terei de conviver com a
sensação de que, se eu fosse mais forte e corajosa para enfrentar Adam, ele
estaria vivo.
Lily engoliu em seco, à procura de novas palavras para explicar a Michael
a conclusão a que havia chegado durante as noites anteriores.
— O problema vai ser encarar Timmy, um dia, e contar-lhe como o pai
morreu. Ele já começou a fazer perguntas.
— Com certeza você encontrará um meio. — Sim, também acho, mas...
Michael exibiu um sorriso amplo e sincero.
— Parece confiante, Lily. Isso é ótimo.
— Estou confiante porque aprendi, nestes poucos dias, a não ser fraca,
nem idiota, nem indecisa.
— Você nunca foi nada disso.
— Talvez apenas não sabia. Julguei que precisava de um bando de heróis
para me resgatar e salvar Timmy de Adam.
— Você se salvou sozinha.
— E o que os agentes federais vêm dizendo. De qualquer modo, tudo o
que aconteceu serviu de lição para o futuro.
— Você merece ser feliz, Lily. Espero que seja.
— Curioso. Desde que você entrou, suas palavras soam como despedida.
E isso mesmo ou só impressão? — Ela sentiu o coração pesado.
— Tem razão. Vim dizer adeus a você e a Timmy. E entregar-lhe isto. —
Ele tocou no bolso do casaco e passou uma fotografia a Lily.
— Do que se trata?
Ela examinou a imagem dela e de Timmy.
— Margie Schubert me pediu que lhe desse a foto.
— Como assim? — Lily condoeu-se, mas também teve raiva daquela
prova da traição de Michael.
— Sinto muito. Na hora em que percebi as más intenções de Adam e seu
passado de crimes, deveria ter-lhe contado que havia desistido de servi-lo e
passaria a ajudar você.
— Sim, deveria.
— Não imagina como lamento minha atitude — ele confessou, deslizando
os dedos pelos cabelos revoltos. Cabisbaixo, Michael parecia alguém que tinha
perdido a alma para o diabo. — Tomara que acredite. Jamais eu iria ferir você
ou o menino.
— Acredito, Michael, mas sua mentira ainda dói. Podia ter-me contado.
— Agora percebo o equívoco. Na hora, pensei que fazia a coisa certa.
— Foi falta de confiança de sua parte. Eu teria compreendido.
No entanto, ela também não era culpada por mentir? Lily arrependia-se
de não ter confiado em Michael a ponto de lhe ocultar a existência do disquete.
— Bem, acho que nós dois tivemos receio de confiar um no outro. No
meu caso, porém, apesar que querer proteger você, eu quase causei sua
morte.
— Já disse, Michael. Não aconteceu. Estou viva e bem. Melhor do que
antes, pois agora não tenho medo do futuro.
— Que bom! — Ele se animou e recolheu a bengala.
— Fico feliz por você. Se algum dia me perdoar... Gostaria de me
despedir de Timmy.
— Claro. Vou chamá-lo.
Enquanto observava como a simpatia de Michael preenchia os corações
de Timmy e Gertrudes, Lily sentiu a dor da frustração no fundo de seu ser.
Amava aquele homem, sabia que ele a queria também, mas era teimoso
demais para reconhecê-lo. A raiva se infiltrou no íntimo de Lily quando
concluiu que os dois só não ficavam juntos por estarem soterrados sob uma
montanha de culpa.
Apoiado na bengala, Michael encerrou as despedidas e dirigiu-se à porta
para partir. Foi um momento crítico. Ele estava prestes a sair daquela casa e
da vida de Lily. Por ter cometido tantos equívocos em sua existência, ela temia
o futuro, ao contrário do que apregoava. A idéia de ver-se sozinha no mundo
era insuportável. Se não quisesse amargar mais um erro, procuraria reter
Michael, confessando que o amava. Caso ele a rejeitasse, tudo bem.
Desfrutaria ao menos a satisfação de ter tentado.
Lily suspirou fundo, disposta a correr o risco de ser feliz.
— Gertrudes, pode levar Timmy de volta ao quarto? Preciso de um
momento a sós com Michael, antes que ele se vá.
A velha amiga percebeu tudo e acatou o pedido.
— Michael, diga-me uma coisa. Quando falou que me amava, era
verdade? A noite que passamos juntos marcou você como a mim? Porque eu o
amo para valer, seu tolo.
Com os lábios trêmulos, Michael articulou a resposta.
— Eu nunca contei a Adam onde você estava. Ele deduziu.
— Não respondeu as minhas perguntas. A parte referente a amor entre
nós dois era mentira?
— Não, eu amo você de verdade. Muito. Completamente. Vou me sentir
perdido sem você.
Essas palavras foram um bálsamo para a alma estremecida de Lily.
— Então, por que está me deixando?
— Jesus! Como pode me perguntar isso? — Ele bateu nervosamente a
bengala no chão. — Veja o que eu fiz. Um homem supostamente protege
aqueles que ama. Em vez disso, quase causei sua morte e a de Timmy.
— Mas não causou, percebe? — Lily teve de elevar o tom na busca de
convencer Michael que ele não era culpado de nada. — Estamos bem, eu e
meu filho. E adoramos você.
Ele manteve o olhar estupefato no rosto suave de Lily.
— Não mereço esse amor. Você ficará melhor sem mim.
— E você? Ficará melhor sem nós?
— Não importa. Desejo o melhor para você e Timmy. Confie em mim.
Deixe-me ir e darei um jeito em minha vida.
A teimosia de Michael estava tirando Lily do sério.
— Quem lhe deu o direito de decidir o que é melhor para mim? Passei
sete anos com um tirano que resolvia tudo por mim, até mesmo a roupa com
que deveria me vestir. Praticamente parei de pensar. Agora é diferente, graças
a você, Michael.
O investigador apenas estreitou o olhar e balançou a cabeça.
— Não preciso de um protetor. Já sei me cuidar, de mim e de Timmy. —
Lily suspirou em tom alto, revelando inconformismo. — Preciso de um parceiro,
de um homem com quem possa dividir tudo. De um companheiro que me ame
e que saiba perdoar meus erros. Do mesmo modo que eu o amarei e
perdoarei. Quero você, Michael, ou necessito gritar isso no meio da rua?
— Você merece coisa melhor, Lily. Cometi erros demais e, se ficarmos
juntos, vou arruinar sua vida.
Chegara o momento de Lily admitir que havia perdido a batalha. Por
teimosia, sentimento de culpa ou qualquer outro motivo, Michael parecia
inclinado a arruinar a própria existência, sozinho. Seria masoquismo ela
insistir.
— Pretendo levar minha vida adiante, retomar a rotina de detetive
particular ou talvez pleitear um cargo no FBI. Por favor, diga-me que você
também irá em frente e ficará bem. De outro modo, não me perdoarei nunca.
— Você mente a si mesmo, Michael. — Ela apertou o punho sobre a área
do coração, que doía. — Está fugindo de novo, exatamente como fugiu de sua
carreira de policial e de sua família. Quando vai parar de se punir e superar
essa auto-imagem de herói infalível?
— Adeus, Lily — ele murmurou enquanto abria a porta.
Ela o seguiu até a varanda e conteve as lágrimas. Chorar na frente dele
seria piorar a situação.
— Não escutou nada do que eu falei, certo?
— Ouvi tudo, cada palavra.
— E ainda assim está decidido a partir?
— E o melhor a fazer. — Beijou-a rapidamente nos lábios e afastou-se.
— Vá em frente, então. Suma! — Lily não conseguiu mais reprimir o
choro. — Michael?
— Sim? — Ele voltou-se, já a meio caminho da rua.
— Você nunca conseguirá fugir de si mesmo!
Em seu quarto, na casa dos pais, Michael releu o início da carta que
pretendia escrever para Timmy. Era a melhor coisa que poderia fazer em seu
sofrido retiro.
"Olá, caubói! Como vai essa força?", recitou em voz alta, mas o resto da
folha permaneceu em branco. Suspirando, ele foi à janela e contemplou a
paisagem familiar, na qual tinha crescido. Ainda não estava convencido de que
tinha sido a melhor opção, mudar-se da Flórida para o Texas depois de
abandonar Lily e Timmy em Nova Orleans. Sabia apenas que não conseguira
tirar da mente as acusações que ele próprio se fazia. De qualquer modo, rever
os pais e a velha casa da infância parecia um bom caminho para curar suas
feridas e contentar os pais que também havia deixado, cinco anos antes.
Por que, então, sentia-se tão infeliz?
Por causa de Lily, Michael admitiu. Impossível apagá-la da memória.
Impossível, igualmente, não sentir um arrepio quando se lembrava do contato
íntimo com a pele dela.
No jardim cuidado por sua mãe, os arbustos já se mostravam verdes e os
passarinhos reconstruíam seus ninhos de verão no imponente carvalho. A
primavera anunciava por meio da explosão das flores. Então, Michael lembrou-
se de que, na primeira visita feita à casa de Lily, vira mãe e filho entretidos
com o plantio dos canteiros.
Teriam aquelas flores vicejado? A saudade que sentia de Lily e Timmy o
estava deixando louco. Por que esperar mais, então? Por que não entrar em
contato e voltar?
— Ei, Michael! — Travis também passava alguns dias de folga na casa
paterna.
— Como vão as coisas? — Michael ficou grato pela interrupção que o
distraiu de sua miséria.
— Preparando uma carta? — O irmão notou, ao aproximar-se da mesa.
— Só uma tentativa. Não consigo me concentrar.
— Por acaso está escrevendo para Lily? — indagou Travis como quem
não queria nada.
— Para Timmy. Prometi a ele que daria notícias.
— Criança maravilhosa. E a mãe dele não é menos especial.
— Aonde pretende chegar, Travis?
— Apenas jogar conversa fora. Mamãe mandou avisar que o jantar está
servido. — O agente federal voltou-se para sair. — Caso esteja interessado, vi
Lily nesta semana, quando fui a Nova Orleans fazer o acompanhamento do
caso Webster.
— Como ela está? — Michael questionou quase automaticamente,
provocando um leve sorriso no irmão.
Continuava julgando correta a atitude de afastar-se de Lily, mas a figura
dela, cada palavra que havia pronunciado, ressoavam na mente e no coração
do investigador. Ele tinha saudade, queria aquela mulher.
— Pareceu-me bem. Voltou a trabalhar na lanchonete, por enquanto.
— Como assim "por enquanto"?
— Tive a impressão de que ela vai mudar-se em breve. Mencionou
alguma coisa sobre o sudoeste, talvez o Texas.
— Pare com isso, Travis. Você é um mau casamenteiro — Michael
protestou.
— O Texas é grande, mano. Lily não precisaria vir para Houston. Para
agradar ao filho, iria para o campo, perto das fazendas e dos vaqueiros.
Michael pensou no fascínio de Timmy pelos caubóis, que só tendia a
crescer.
— Eu disse a ela que podia contar com algumas indicações — prosseguiu
Travis. — Acho que, caso se instale no interior, Lily logo encontrará um bom
partido para casar-se. Um homem menos teimoso do que meu irmão.
Michael lançou contra Travis o que se achava ao seu alcance: uma caneta
esferográfica. O agente a apanhou facilmente, ainda no ar.
— Por que acha que ela, encantadora como é, ficaria presa a um sujeito
turrão como você? Deve estar pensando em definir, em recomeçar a vida. Não
ficará na eterna espera de Michael Sullivan.
— Nem quero que me espere. Deixei-a exatamente para lhe permitir que
retomasse a vida sem problemas.
— E você, mano? Quando vai retomar a vida? Quando vai parar de se
punir por um eventual erro do passado? Você espanta todas as pessoas que o
amam, por medo de magoá-las. O resultado é que está sozinho e assim
continuará.
— Tomarei providências na hora certa, Travis.
— Mesmo? Desde criança, você parece que gosta de resolver as coisas
pelos outros. Agiu assim comigo. Certamente, o mesmo ocorreu com Pete
Crenshaw, por quem se castiga devido a erros que ele cometeu, não você. Vi
você culpar-se pela morte dele, assumir as falhas de seu parceiro. Na verdade,
ele é que se envolveu com traficantes e com uma pistoleira que o corrompeu.
Diga-me: onde está sua culpa? Por que cortou todos de sua vida?
— Não cortei.
— Sim, você fez isso. Comigo, com nossos pais, com o emprego que você
adorava. Abriu mão até da possibilidade de ingressar no Bureau.
— Eu tinha de tomar conta de Jane e dos filhos de Pete — ele defendeu-
se.
— Não sou psicólogo, Michael, mas é evidente que sente culpa apenas
por não conseguir salvar Pete de si mesmo. Ajudou Jane e depois Lily, eu sei,
porém elas sobreviveram sozinhas a um novo desafio. Seu afastamento de Lily
é não apenas uma punição para você. Também representa muita mágoa para
ela. E se há uma mulher que não merece ser magoada...
Teria feito isso?, Michael ponderou. Estaria magoando pessoas que
amava, simplesmente para justificar suas falhas humanas e castigar-se?
— Melhor irmos — propôs Travis, cruzando a porta. — O jantar deve
estar esfriando.
Michael não o seguiu de imediato. Meditativo, contemplou longamente a
carta que iniciara para Timmy. Sem hesitar, tomou uma decisão. Amassou a
folha e jogou-a no cesto de lixo.
— Michael, você vem ou não? — O brado do pai o fez apressar-se até a
cozinha, onde pediu desculpas pelo atraso.
A mãe, Katherine Sullivan, que já tinha desculpado totalmente o filho,
tinha no rosto uma expressão enternecida.
— Vocês nem imaginam como é bom ver minhas crianças sentadas
juntas de novo, depois de tanto tempo.
— Não são crianças, Kate, e sim homens-feitos — pontificou o velho
Sullivan.
— Para mim, sempre serão meus bebês adorados. Michael sorriu, tocado
por aquela manifestação de
carinho, e partiu um pedaço de pão caseiro de milho.
— Um amigo me contou que você, Michael, esteve visitando o
Departamento de Polícia de Houston.
— Você ainda tem seus espiões por lá? — ele brincou.
— Patrick Sullivan — chamou Kate —, andou espionando seu próprio
filho?
— Não, Kate. Foi coincidência eu me encontrar com Finney no café esta
manhã. Ele viu Michael na sala do chefe de polícia. — Fixou o olhar no
investigador. — Ei, também quero um bocado de pão de milho.
Michael não tinha confidenciado à família que sondava um posto na
polícia local. Preparava uma espécie de volta triunfal, capaz de afastar todos os
fantasmas que pairavam sobre sua temporada no departamento.
— Está pensando em retomar a carreira policial? —
O velho Sullivan disfarçou a tensão passando casualmente manteiga no
pão.
Travis inalou o ar com força e inconformismo.
— Não conte com isso, papai. Michael também renovou o currículo dele
junto ao FBI.
— Verdade? — O pai ficou admirado e, de certo modo, orgulhoso.
— Ainda estou pesando minhas opções — Michael informou secamente.
— Bem, suponho que tudo depende do que Lily disser — desafiou Travis,
desviando-se do pontapé que o irmão ensaiou lhe dar debaixo da mesa.
— Lily? — Kate arregalou os olhos. — Não é a mulher com uma criança,
que seu pai e seu irmão ajudaram em Nova Orleans?
Travis desistiu de abrir a boca, sob o olhar recriminador de Michael.
— Sim — ele próprio confirmou.
— Então, é por causa dela que você veio para casa, pensar na vida.
— Não vim para casa refletir nesse assunto — ele mentiu.
— Acho que sim, filho. — O pai bateu-lhe amistosamente na mão. —
Nada de errado com isso. Apenas me conte um pouco mais sobre ela.
Como se ansiasse por essa oportunidade, Michael discorreu a respeito de
Lily e Timmy. Quando terminou, seus pais estavam embevecidos.
— Ele parece ser uma pessoa maravilhosa — Kate definiu.
— E é — Travis apoiou. — Aguarde até vê-la. E linda também.
— Quando vai ser isso? — o velho Sullivan animou-se.
— Logo que eu puder convencê-la a se casar comigo. Travis quase
engasgou com a comida, mas foi por pura emoção.
— Lily! — chamou Gina, introduzindo a cabeça pela porta da cozinha da
Lanchonete River Bend. — Você tem um cliente.
Ela resmungou. Os pés doíam, após um dia de intenso movimento.
Ansiava por voltar para casa, tomar um banho relaxante e descansar.
— Seria pedir muito que você atendesse, Gina?
— Querida, esse é um freguês particular seu. Você mesma precisa ir.
Lily examinou a colega de trabalho. Havia algo estranho no tom de voz e
no olhar de Gina. Devia tratar-se de um trote ou de mais uma iniciativa dela e
de Nancy Lee para que conhecesse algum pretendente novo, que substituísse
Michael Sullivan em seu coração e lhe trouxesse um pouco de alegria. Claro
que a última coisa em que ela pensava era em um novo romance. Mas não
adiantava. As amigas insistiam para que namorasse alguém.
— Está bem. Quem é, desta vez?
— Como assim, quem é? — Gina desafiou, fingindo inocência.
— Quero dizer, se for outro caminhoneiro ou trabalhador da refinaria...
Esta semana, você não me apresentou nenhum gerente financeiro. — Lily
suspirou. — Agradeço muito, Gina, mas seja quem for não estou interessada.
— Só posso afirmar que você não devia fazer esse cliente esperar. Nancy
Lee vai repreendê-la, se fizer isso. — Gina deu de ombros. — Mas você é quem
sabe. Vou dizer-lhe para voltar amanhã.
— Calma, já vou atender — declarou Lily, arrastando os pés cansados até
a mesa junto à janela. Então, hesitou. Nancy Lee estava de pé diante do
cliente, cobrindo a visão da garçonete.
Lily imaginou que o freguês se queixava à proprietária da lentidão do
serviço. Por isso, correu à mesa com o cardápio e o bloco de pedidos em
punho. Mais perto, notou que o homem calçava botas de vaqueiro. Outro olhar
de relance revelou que ele também usava chapéu de aba larga.
— Foi bom ver você — disse Nancy Lee audivelmente, ao se despedir e
afastar.
Esse movimento descortinou para Lily uma imagem totalmente
inesperada. Michael estava à mesa, com uma revista de palavras cruzadas
aberta e caneta na mão. Como se sentisse a aproximação da garçonete, ele er-
gueu o olhar e exibiu um sorriso francamente sedutor.
Lily apertou o cardápio no peito e se acercou, entre pasma e cautelosa.
— Vai querer o prato especial do dia? — perguntou em tom forçadamente
neutro, como se lidasse com um cliente normal.
— Sim, com certeza — disse Michael, recebendo o cardápio. Em vez de
abri-lo, porém, ele apontou para a revistinha. — Você pode me ajudar? E boa
com palavras cruzadas?
— Mais ou menos.
— Esse teste não é difícil. Que tal tentar?
— Está bem — ela concordou.
— Certo, vou lhe passar as chaves. Duas partes. A primeira é um nome
de homem. Ele é teimoso, cabeçadura, cometeu uma porção de erros e
provavelmente vai errar mais, no futuro. O maior equívoco, porém, consistiu
em afastar-se da mulher que ama, julgando que não a merecia. A verdade é
que esse homem a amava tanto, que não conseguiu enxergar as coisas direito,
nem admitir que queria passar o resto da vida com ela. Deseja ser seu novo
marido e companheiro. Quer tornar-se um pai para o filho dela. Além de ter
outros, claro.
— Mas qual é a chave? — Lily questionou, deliciada com o jogo.
— Sim, vou lhe dar a primeira. Nome próprio, masculino.
— Quantas letras?
— Sete.
— É Michael.
— Certa a resposta. Agora, vem a segunda parte, a mais difícil. Você
aceita casar-se comigo?
— Quantas letras?
—Só podem ser três. Do contrário, nossa vida inteira estará
comprometida.
— A resposta é sim. Acertei?
— Perfeito — disse Michael calmamente.
Em seguida, sem se importar com os olhares circunstantes, ele trouxe
Lily para si, sentou-a sobre suas pernas e beijou-a com vibrante, inextinguível
paixão.

Fim

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