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Apocalipse 1, 11: a redenção pelo teatro

A pocalipse 1,11:
a redenção pelo teatro

S ilvana Garcia

No dia 2 de outubro de 1992, no Pavilhão 9 em seu imaginário grotesco de monstrengos de


da Casa de Detenção de São Paulo, 111 pre- muitas cabeças e estrelas que despencam dos
sos foram assassinados pela Tropa de Cho- céus. Essas aberrações e catástrofes não nos as-
que da Polícia Militar que invadiu o local para sombram, pois vivemos em um mundo no qual
conter uma rebelião. O “Massacre do a ameaça de fim encontra-se neutralizada pela
Carandiru”, como ficou conhecido o episó- convivência diária com a violência, a degrada-
dio, teve repercussão mundial e até o presen- ção, a perda de referências. As visões do Apoca-
te não foi totalmente esclarecido. lipse não são mais feias do que a miséria que se
avoluma ao nosso lado. É, pois, no plano das
O que vês, escreve-o num livro e manda-o às abominações da realidade que somos atirados
sete Igrejas... (Apocalipse, 1, 11) pelo espetáculo. E o fazemos na condição de tes-
temunhas. Quem nos conduz em nosso trajeto
é João, o apóstolo, aqui destituído de sua fun-
O Brasil da Besta ção profética e convertido em migrante de apa-

A
rência nordestina, maleta de couro surrada na
pocalipse em grego significa revelação e é mão, olhar perdido, entre ingênuo e sofrido. Ele
com esse sentido que o vemos empregado vem em busca de Nova Jerusalém, a terra pro-
no Novo Testamento: revelação das verda- metida, e nós seguimos com ele.
des contidas no Evangelho e cuja realida- Nossa primeira parada coloca-nos diante
de última é a condição de Jesus Cristo de um singelo ritual. A vários metros do solo,
como juiz supremo da humanidade. Assim o pendurada sobre uma varanda, uma menina de
pretendeu a tradição cristã, e o apóstolo João ar distraído bucolicamente rega um vaso de flor.
afirmou-se como autor do mais importante es- Em seguida, sorriso congelado nos lábios, põe-
crito apocalíptico. Foi nele que finalmente foi lhe fogo. É um ritual que podemos entender
baseado o texto de Apocalipse 1,11, em formu- como um batismo de água e fogo, que nos reti-
lação final do escritor Fernando Bonassi. ra a inocência. Num primeiro momento não
Porém, o espetáculo do Teatro da Verti- percebemos essa destituição. Nem mesmo fi-
gem está longe de reproduzir o universo bíblico camos chocados, apenas um leve mal estar.

Silvana Garcia é professora da Escola de Arte Dramática da ECA-USP e dramaturga.

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Até porque, logo em seguida, nossa atenção é escorrem pelo espaço. O ambiente remete-nos
capturada pela aparição, num plano ainda mais aos “inferninhos” kitsches de beira de estrada em
alto, da figura de um Carteiro. Ele nos lê, en- cidadezinhas perdidas no Nordeste brasileiro.
tão, a Carta ao Anjo da Igreja em Éfeso. Porém, Somos dispostos em torno de uma passarela,
seu conteúdo não é o original bíblico, mas um lugar privilegiado do qual assistiremos ao gran-
bem humorado edito, determinando leis apa- de show da noite. Quem o apresenta é a Besta, o
rentemente absurdas como a concessão de di- anti-Cristo em pessoa, um exuberante travesti
reito a cirurgia plástica para mulheres idosas e a barbado, obsceno e provocador. Como coadju-
obrigatoriedade de pagamento de impostos para vante, a atrevida Babilônia, que, nos intervalos
traficantes. Adivinhamos, então, que essa mis- das atrações e das cheiradas de cocaína, exibe
tura de humor e cinismo, poesia e crueldade, despudoradamente o sexo, gabando seu talento
estará entre os ingredientes privilegiados do es- de prostituta. Na platéia, ao nosso lado, assimi-
petáculo. Com esse espírito, seguimos adiante. lando-nos, os Adoradores da Besta, beatos devo-
Penetramos, então, na privacidade de João, tos que assistem ao show como se a um culto
acompanhando-o até seu quarto, um cubículo religioso, dando aleluias e agitando nas mãos
miserável como os que podemos encontrar nas suas bíblias encardidas.
pensões vagabundas que se espalham pelos su- Aqui se concretiza a metáfora do apoca-
búrbios das grandes cidades. Deslocados de tes- lipse here and now, do apocalipse brasileiro. Nas
temunhas a voyeurs, espreitamos sua intimida- atrações que se sucedem, vamos reconhecendo,
de através de vãos de janelas e portas, obrigados nas personagens e nas citações, aspectos conhe-
pela arquitetura da sala a uma visão parcial. Às cidos do Brasil da violência, do preconceito, da
vezes, temos de contentar-nos em apenas ouvir corrupção, expostos de modo inclemente. Não
a cena que agora se desenrola entre João e a Noi- há sutilezas, as referências revelam-se inequívo-
va, uma jovem de aparência virginal, flagrada cas. Assistimos, por exemplo, à cena da “Humi-
por ele em seu quarto. Ela se oferece a ele, dis- lhação do Negro”, no qual, introduzido como
posta a submeter-se, mas João a despreza, obce- um produto nacional autêntico, alardeado em
cado pela idéia de Nova Jerusalém. Tão logo ela sua potência e sensualidade, um jovem negro é,
se retira, nua e desesperada, João descobre sob em seguida, acusado de roubo e sobre ele reca-
sua cama um outro intruso, o Senhor Morto. Sua em todos os clichês racistas que fazem parte da
figura é a do Cristo coroado de espinhos, decal- cultura classe média brasileira. Há também um
cado na iconografia religiosa tradicional. Tam- número de sexo explícito, executado apatica-
pouco ele oferece a João qualquer resposta, qual- mente por um casal em trajes indígenas, reme-
quer alternativa, e também é rejeitado. Por fim, tendo-nos inevitavelmente ao longo processo de
a terceira visita: o Anjo Poderoso, acompanhado degradação a que nossos índios encontram-se
por sua pequena tropa de Anjos Rebeldes. João é submetidos. (Os protagonistas desta cena são,
torturado, drogado e, por fim, recebe do Anjo a de fato, profissionais de shows pornôs e a exibi-
missão de sair e dar testemunho da proximida- ção efetivamente realiza-se no palco, sendo esta
de do fim dos tempos. uma das situações que têm provocado protestos
Com ele seguimos em peregrinação. Su- indignados de espectadores tradicionalistas).
bimos por escadas escuras e tortuosas, nossos Há ainda a exibição da Talidomida do Bra-
ouvidos bombardeados pelo som mix de músi- sil, uma corpulenta adolescente, retardada e pa-
ca techno e hinos religiosos, guiados por dese- ralítica, presa a uma cadeira de rodas, que, com
nhos toscos de mulheres despidas, fosforescen- esforço, recita as primeiras linhas da Constitui-
tes sob a luz negra, que nos conduzem à “Boate ção Brasileira. Em seguida, ela é estuprada pela
Nova Jerusalém”. Entramos em um salão em Besta e a cena se completa com a entrada festiva
penumbra, chuviscado por luzes coloridas que de um bolo, oferecido em comemoração aos

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500 anos do Descobrimento do Brasil, ao som pólos em tensão. Os Anjos são portadores da
de um alegre e comovente Parabéns a você can- palavra do Evangelho, mas vestem-se e compor-
tado por Babilônia. tam-se como policiais ferozes, lembrando as tro-
A estas cenas sucedem-se outras, de teor pas de choque nazistas. Suas preces combinam
semelhante, fazendo desfilar na passarela situa- versos de salmos com obscenidades. Por suas
ções e personagens que evocam o lado podre do bocas, também, ouvimos os slogans pelos quais
país. O tom é paródico, debochado, mas a lin- se expressa o segmento mais reacionário da po-
guagem é crua, obscena, blasfema. O jogo de pulação, como a reivindicação da pena de mor-
tensões, o confronto entre elementos contradi- te ou a condenação indistinta de nordestinos e
tórios, que constitui uma das fontes do grotes- homossexuais. É sempre no interior desse jogo
co da peça, sustentado pela alta teatralidade dos de afirmação/negação entre elementos opósitos
elementos em cena, retém os espectadores em que se constituem os sentidos das cenas.
uma desconfortável zona limítrofe entre o riso No âmbito do conjunto, é também um
e o choque. Na média, nossa disposição interi- jogo de contrapontos que lhe determina o rit-
or manifesta-se por meios-sorrisos. Não pode- mo e o encadeamento. Se a natureza épica do
mos confiar plenamente naquelas personagens espetáculo não comporta um evolver dramáti-
que, mesmo sob uma aparência infantil, podem co, a tensão se faz artificialmente pela teatrali-
subitamente perder o controle e praticarem atos dade e pela aceleração/desaceleração do pulsar
da mais torpe violência. Este é o caso, por exem- rítmico. Para tanto contribuem a sonoplastia e
plo, dos dois palhacinhos que oferecem calças os procedimentos de montagem, com cortes e
jeans, uma dupla clonada de Vladimir e Estragon intromissões súbitas de elementos inesperados.
cujo ponto de saturação já foi há muito ultra- O desfecho do ato na boate Nova Jerusalém
passado, que já perderam a paciência e combi- ilustra essa dinâmica.
nam ao seu pregão de vendedores os queixumes
dos pessimistas e as vociferações dos revoltados.
O Juízo Final
E que, em contraste com suas ternas figuras de
enfeite de bolo de aniversário, espancam impie- Atenção capturada pelo ritmo frenético do show,
dosamente um ator vestido de coelhinho de demoramos a perceber, num canto da passare-
pelúcia. la, a figura apalermada de João, olhar entorpeci-
A combinação de elementos discrepantes do pela ação do crack. Assistimos a tudo como
estende-se a todos os componentes da armação ele, com a mesma passividade bovina, e somos,
dramatúrgica. Domina as falas das personagens, como ele, surpreendidos pela entrada abrupta
em geral pela justaposição da linguagem para- do Anjo poderoso e seus cães, em clima de vio-
bólica do Evangelho com palavrões e expressões lenta blitz policial, ameaçando as personagens
da pior estirpe. Manifesta-se também na mistu- que agora jazem desnudas, mãos à nuca, sobre a
ra do divino com o baixo material. A Besta, de- passarela.
dicando o show da noite a Jesus, refere-se a ele Daí em diante somos carregados para um
como “meu marido”, como “homem da minha espaço de pesadelo que inevitavelmente nos re-
vida”, fazendo chocantes alusões a seu desem- mete aos porões da ditadura militar durante os
penho sexual. piores anos da repressão. Quase no escuro, ator-
A ambigüidade manifesta-se já, em pri- mentados por uma sonoplastia que mistura vo-
meira instância, na construção das próprias per- zes e gritos a estampidos de armas de fogo, so-
sonagens, pois todas elas são referências míticas mos introduzidos em um longo corredor e
deformadas em seus traços arquetípicos pelas dispostos pelas paredes, ombro a ombro, for-
contaminações que recebem da atualidade. São, mando uma espécie de “corredor polonês”. Pres-
portanto, seres híbridos; contêm sempre dois sentimos, mais do que vemos, os corpos nus que

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passam carregados agressivamente pelos anjos- uma camisa de força, é humilhada pelo Juiz, que
policiais. Estremecemos ao ruído de portas de urina sobre ela, e termina estrangulada pela Besta.
aço que se fecham com estrondos, sem que si- Esta por pouco não logra seduzir o Juiz, mas
tuemos as fontes dos impactos. Como na His- acaba sendo torturada, castrada e queimada na
tória, testemunhamos, protegidos pela penum- cruz pelos Anjos. Ao final de um debate no qual
bra, assustados mas seguros, o martírio dos que se desafiam mutuamente com citações bíblicas,
são arbitrariamente submetidos à mais abomi- o Anjo Poderoso foge e o Juiz enforca-se, premi-
nável violência. do pela consciência de que não há salvação.
Aqui o espaço do cárcere começa a ganhar O epílogo restaura a harmonia. João, por
sua plena significação. Este é o lugar que a soci- fim liberado de sua obsessão, redimido, perde o
edade escolheu para o confinamento daqueles medo e, depois de partilhar um cigarro com o
que representam o desvio da norma, os trans- Senhor Morto, sentados ambos displicentemen-
gressores, as anomalias sociais. É o lugar da ex- te no chão do pátio, desfaz-se de seus pertences,
clusão, a caverna profunda que não se comuni- abre a pesada porta de ferro e sai. Pela última
ca com o exterior e que veda ao exterior a visão vez o seguimos; finalmente estamos todos livres.
dos rejeitados. É o lugar da punição, da perda Se saímos aliviados, no entanto, carrega-
da liberdade, da submissão humilhante, da mos na memória uma carga de impressões, sen-
prevalência da força sobre a vontade. Passamos timentos, percepções, entendimentos, tudo em
a perceber melhor a concretude material das ebulição, em choque, fazendo-nos ansiar por
paredes úmidas, o cheiro de pólvora que conta- um momento a sós. Para refletir. Ou simples-
mina levemente o ar, a topografia labiríntica de mente respirar.
escadas e corredores que desembocam no im- Se o que se instala em nosso espírito, a
ponente e tenebroso espaço do último ato. seguir, é um sentimento de indignação ou de
Estamos agora em um pátio interno de pé di- regozijo – seja referido ao espetáculo ou à reali-
reito alto, cercado por dois andares de celas, as dade que ele evoca –, no que aqui nos concerne
do segundo plano alinhadas junto a um corre- não importa muito. Que cada um faça suas es-
dor suspenso. Em um dos extremos, uma porta colhas e construa seu entendimento. O que tal-
de ferro gigantesca; no outro, uma escada tam- vez seja mais interessante ressaltar é que, para
bém de ferro, unindo os dois pavimentos. Aqui alguns de nós, este espetáculo, como os anteri-
transcorrerá o Julgamento Final. ores da companhia, instigam-nos a pensar so-
Um a um, retirados de suas celas, desfi- bre o lugar do Teatro, sua inserção na topografia
lam diante do juiz os protagonistas da devassa – real e simbólica – da cidade, e no lugar que
Nova Jerusalém. Por um breve momento, úni- nós ocupamos nele. Porque é inevitável não ler
co no espetáculo, somos incitados a participar. no mandamento do capítulo 1, parágrafo 11 do
Para o julgamento da Talidomida do Brasil, al- Apocalipse um comando que, metaforicamente,
guns ovos são distribuídos para que os especta- define o papel do artista e constitui, ao mesmo
dores, seguindo o exemplo do Juiz, atirem na tempo, uma declaração de fé no poder da arte.
personagem que, acuada e descaída, balbucia No final, pela mágica metamorfose ope-
ainda a Constituição Brasileira. rada por este espetáculo, deixamos de ser teste-
A cada réu compete uma sentença e elas munhas para nos tornarmos profetas. Como
são executadas prontamente, sem recursos. A João. Os portadores da revelação. Neste lugar
Noiva tem o fim das mártires virgens: a foguei- que é o lugar da revelação, o Teatro. Que pode
ra que a redime e a eleva ao Céus. Babilônia, ser terrível e cruel, como o queria Artaud. Co-
delirante sob o efeito da cocaína, sujeita por mo este Apocalipse.

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