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@hebecamargo

A retórica da fama e da celebridade na constituição do self e da noção de indivíduo no circuito


de webcelebridades brasileiras

Louise Scoz Pasteur de Faria1

Resumo: O presente texto busca iniciar uma reflexão a respeito dos modos de constituição de si e
da noção de indivíduo atrelado ao digital e ao virtual a partir da retórica da fama e da celebridade
apreendida na relação entre @hebecamargo, webcelebridade preponderante na paisagem das mídias
digitais brasileiras e seu criador, Victor Calazans.
Palavras-chave: Self, Indivíduo, Digital.

@hebecamargo, tida por muitos como uma das principais webcelebridades brasileiras, surge
na paisagem da ‘alta mídia social’ no início de 2010, termo comumente utilizado por atores
envolvidos na produção da esfera pública-virtual brasileira em uma alusão à existência de uma elite
composta por “pessoas influentes e cheias de seguidores”2. Sua trajetória inicia-se no Twitter,
passando posteriormente a construir sua presença digital nas plataformas sociais Facebook e
Instantgram e a notável visibilidade não demorou para atrair investimentos de patrocinadores e
interesse por parte de uma rede de profissionais ligados à comunicação e ao mercado digital,
tornando sua presença na internet uma profissão. Hoje ela possui 67.507 seguidores no Twitter e
12.178 curtidas3 no Facebook, canalizando investimentos publicitários mediante menção direta de
marcas nessas plataformas e participação em ações promocionais. Criada por Victor Calazans, ele
também experimenta os efeitos de sua fama. Por meio de @hebecamargo, passou a integrar a
equipe de uma agência de comunicação digital especializada em criar e gerenciar ações
promocionais e perfis corporativos em sites de redes sociais, além de ser tratado como “presença
VIP” e DJ em festas noturnas, principalmente na região Sudeste do país, além de palestrante sobre
temas relativos à internet, fama e ‘produção de conteúdo para mídias sociais’. Sua rotina como
profissional de comunicação digital se resume a abastecer os perfis sociais de seus clientes com
notícias, informações, relacionar-se com consumidores, coletar reclamações e elogios e emitir
relatórios de performance, compostos por índice de cliques obtidos com a publicação de links,
números da audiência, impacto de ações que visam ampliar ‘seguidores’ e ‘fãs’, obtidos a partir de
softwares de análise quantitativa de fluxos informacionais na internet. Na forma de @hebecamargo,
1
Mestranda em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail:
louisescoz@gmail.com
2
Retirado do texto “Quem quer ser da alta mídia social?”, publicado no site YouPix em 18 de julho de 2011.
http://youpix.com.br/fun/quem-quer-ser-da-alta-social-media, acesso em 20 de setembro de 2012.
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Aferição realizada em 8 de julho de 2013.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
Victor explora o humor através de piadas e gracejos em um jogo de inversões com a imagem
pública da apresentadora Hebe Camargo, a ‘madrinha da televisão brasileira’. Os eixos temáticos
preferenciais de seus chistes giram em torno da questão etária, da ‘vida de celebridade’, dinheiro, a
condição de saúde de Hebe Camargo e notícias cujo com teor ambíguo, um misto de seriedade e
humor, possam ser apropriadas nesse registro.
Dilma Bolada, PC Siqueira, Mussum Alive. Alguns nomes e faces que passaram a compor,
tal como @hebecamargo, essa nova dimensão de celebridade marcada pela exploração do humor,
do conflito e diversas apropriações de conteúdo midiático e cultural, em vistas de mobilizar as
emoções da ‘audiência’ construindo assim uma base de ‘fãs’. Parece difícil negar que a emergência
dessa entidade muito se deve à disseminação de aparatos informacionais e comunicacionais e suas
implicações no desencadeamento das múltiplas esferas que compõe mercados de produção e
consumo de mídias, entretenimento e campos artísticos. Autores situados no campo de Celebrity
Studies, assim como de Cibercultura tendem a compreender o fenômeno das webcelebridades como
uma manifestação da democratização do status de celebridade (JEFFREYS & EDWARDS, 2010), a
partir da fusão de instâncias produtoras e consumidoras que ocorre por meio do acesso à tecnologia
digital, uma “cultura participatória.” (JENKINS, 2006) Não pretendo, no entanto, iniciar uma
discussão a respeito do possível manejo teórico-metodológico da fama e da celebridade em uma
perspectiva antropológica, nem tomar a webcelebridade em sua modulação política-econômica
estrita. Apesar de representarem dimensões fenomenológicas que exigem devida perícia
compreensiva e crítica, volto minha atenção à poética de @hebecamargo e Victor Calazans.
Interessa particularmente a esse esforço reflexivo os modos como edificam uma retórica da fama,
celebridade, do indivíduo e do self, que precipita esse modo de ser e estar no mundo em uma íntima
relação com a tecnologia. Não pretendo esgotar aqui essa tarefa exigente. Tentarei lançar luz sobre
algumas questões as quais fui sensibilizada durante minha incursão empírica junto ao circuito de
webcelebridades brasileiras desde julho de 2012 e, especialmente, minha experiência junto a Victor.
Os dados tratados no presente texto dizem respeito à sua narrativa e história de vida, continuamente
coletadas desde o período supracitado como uma bricolagem de encontros de interação em
situações de entrevistas semi-estruturadas e informais.
Isso não implica um exercício necessariamente localizado, sem pretensões globais. Como
muito explorado por Eckert, (1993) as “narrativas biográficas são reveladoras das mais diversas
formas de ‘tensão entre individualização e a busca de sociabilidade e de aliança’, permitindo ao
pesquisador encontrar ‘os padrões universais de relações humanas e percepções individuais.”

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(ECKERT, 1993:35) Portanto, mais do que tratar a noção de indivíduo e self enredado por Victor
Calazans e @hebecamargo, me esforço para pensar nos modos através dos quais estamos nos
construindo e no que estamos nos tornando em meio à máquinas, redes e imagens. Encontro em
suas trajetórias de vida o ponto de inflexão dessa investida reflexiva, privilegiando modos
particulares de conhecimento e experiência. Ao inventar @hebecamargo, Victor inventa a si mesmo
e algo que transcende sua individualidade - um modo de existir atrelado ao virtual e ao digital e suas
diversas implicações - e transforma o próprio saber e fazer da antropologia. O desafio reside,
portanto, em refazer o caminho que culmina em sua produção, dando voz ao seu enredo poético,
produtivo, intelectual, tecnológico, social e político-econômico e, para tanto, tendo a me alinhar
próxima às preposições da dita Antropologia do Digital, subdisciplina que se afasta do estudos
pautados pela Ciência, Política e Tecnologia ao compreender os aparatos computacionais e digitais
como cultura material. Mais do que um substrato, “parte constitutiva do que nos faz humanos”,
(MILLER, 2012:4) oposição resoluta à abordagens que implicam que “tornar-se digital nos faz
menos humanos, menos autênticos ou mais mediados”. (2012:4)

Nasce uma estrela

A criação de @hebecamargo foi relatada, por Victor, como um rompante espontâneo


durante um final de semana ocioso no final de 2009. ‘Sem nada para fazer’, ele e um amigo, que
viria a se tornar @nairbello - um paralelo com a relação de amizade existente entre a apresentadora
e a humorista - na mesma ocasião, realizaram suas inscrições no Twitter e já começaram a postar e
divulgar para conhecidos e amigos. A escolha da face da apresentadora Hebe Camargo como sua
representação visual seria tanto reflexo de uma admiração por sua trajetória como a certeza de que
seria facilmente reconhecido por seus leitores. Entretanto, @hebecamargo não seria sua primeira
investida no mercado digital. Victor havia criado outros perfis de cunho humorístico, que não
atingiram a mesma repercussão. O sucesso, dessa vez, se deve em seus termos à uma manobra
calculada, evidência de um ‘talento’ e uma ‘competência’ em atrair e manobrar a atenção da
‘audiência’, afinada por essas experiências prévias e um interesse em estabelecer-se no panorama
profissional das ‘mídias sociais’. A criatividade, em sua fala, adquire papel preponderante. O
potencial de conceber algo proveniente de suas próprias concepções e inclinações estéticas em algo
que possui valor de mercado e que seja capaz de circular de modo amplo é visto, por Victor, como
uma habilidade a ser polida e trabalhada continuamente, que não se encerra em @hebecamargo. Por

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vezes enfatizava outros projetos, digitais ou não, em detrimento de seu “grande sucesso” e dividia
aspirações empreendedoras. Queria fazer a si mesmo pelas “próprias mãos”.
A fama e a celebridade, diz, vieram inesperadamente. Em oito de janeiro de 2010, foi
amplamente noticiada a internação da apresentadora Hebe Camargo no hospital Albert Einstein, em
São Paulo4. Especulações logo surgiram a respeito de sua condição de saúde, já que o boletim
médico emitido pela equipe envolvida em seu atendimento fazia referência apenas a um
procedimento cirúrgico. Victor enxergou uma oportunidade. Assim que as primeiras notícias
começaram a serem veiculadas em emissoras de televisão, rádio e portais jornalísticos na internet,
@hebecamargo passou a dividir com seus leitores suas aventuras na ala hospitalar, que envolviam
corridas disputadas com cadeiras de rodas com outros pacientes e soro intravenoso ‘batizado’ com
vodka. A repórter Izilda Alves, contratada pela rádio Jovem Pan, que naquele mesmo momento
procurava por novidades do caso através de sites de redes sociais notou a movimentação causada
por ela no Twitter e entendeu aquilo como um pronunciamento oficial da apresentadora. Redigiu
uma matéria logo divulgada em rádio no mesmo dia, distribuída também para outros veículos de
comunicação, relatando que Hebe Camargo passava tão bem que promovia corridas e festas nos
corredores do Albert Einstein. Vários jornalistas tentaram ainda entrar em contato com ela através
da internet e não tardou para constatarem que se tratava de um engano. Era tarde demais. Victor
situa esse como o instante em que o perfil de @hebecamargo ‘explodiu’: o número de seguidores
não parava de aumentar, atraídos pela confusão e pelos tweets cômicos e cada vez mais exagerados.
Isso não passou despercebido por atores já estabelecidos na paisagem das mídias digitais brasileira5:
o caso @hebecamargo foi absorvido como um exemplo do despreparo das “mídias tradicionais” em
lidar com a “cultura de internet”6, alçando Victor Calazans à categoria de “especialista” em “mídias
sociais” e @hebecamargo, a nova webcelebridade inserida nessa esfera.
A meta-linguagem seria um recursos constante em sua construção, tanto o uso de fatos que
adquiriram grande visibilidade midiática de maneira notadamente ambígua como da própria
@hebecamargo. Um amigo e colega de trabalho de Victor, durante entrevista, atribuiu o sucesso de

4
http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u676445.shtml;
http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/noticia/2010/01/hebe-camargo-e-internada-em-hospital-de-sao-paulo-2772164.html;
http://g1.globo.com/Noticias/PopArte/0,,MUL1440337-7084,00-
HEBE+CAMARGO+E+INTERNADA+EM+SAO+PAULO.html; http://entretenimento.r7.com/famosos-e-
tv/noticias/hospital-confirma-previsao-de-internacao-de-hebe-20100108.html
5
http://portal.comunique-se.com.br/index.php/editorias/3-imprensa-a-comunicacao-/66298-criadores-de-perfis-fakes-
no-twitter-contam-como-%E2%80%9Cenganaram%E2%80%9D-a-imprensa.html, Acesso em 8 de julho de 2013.
6
Me refiro à noções provenientes de atores envolvidos na constituição do mercado digital brasileiro. A cultura de
internet seria marcada pela produção de memes, virais e webcelebridades. que caracterizaria uma configuração peculiar,
que existe “apenas na internet”.

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Victor à sua capacidade de “lidar bem e fluir tranquilamente entre as personas”, e conceber perfis
“bem humorados e tem identidade própria”, com “um humor leve, compartilhável”. @hebecamargo
seria apontada como uma webcelebridade fake: um célebre digital que assume ao nome e face de
outro, geralmente proveniente da televisão ou cinema, em um jogo de inversões com sua imagem
pública. Victor relutava a aderir @hebecamargo a esse termo, especialmente durante o período que
ainda era viva. O fato de aceitar patrocínio o colocava em uma posição frágil perante a atual
legislação brasileira, já que interpretava a questão sob a ótica da falsidade ideológica. Se antes
reforçava um caráter de paródia, uma homenagem homorística à Hebe Camargo, após sua morte
assumiu-se como fake e orgulhava-se de “manter a Hebe viva”.
Nessa e em muitas outras ocasiões, apesar de sua fala enfatizar certa racionalidade e
pragmatismo isso é matizado por manifestações emotivas. Victor se declara “fã da véia”, relata que
acompanhava seu programa televisivo desde que a infância e por vezes ainda oscila entre o papel de
“ídolo” e “fã”. Enquanto ídolo, põe em evidência o caráter autoral da criação de @hebecamargo,
fruto de uma aptidão particular, um movimento positivo que impregna o mundo exterior de sua
potência interior. Assumir-se como fã é assumir um encantamento provocado, em si, pela
apresentadora. Talvez ocupar um espaço da passividade, tão marcado por produções discursivas
moralizantes que dão conta da fama e da celebridade, como muito bem aponta Coelho, (1999)
explorado posteriormente no presente texto: o espectador, aquele que observa mas não sobe ao
palco, que ambiciona a fama e cujo amor não correspondido pode conduzí-lo à loucura. De forma
semelhante, Victor sempre faz questão de dissociar seu “Eu” da de @hebecamargo, em um
movimento de dissociação. @hebecamargo possui uma personalidade, um modo de viver,
interpretar e responder aos estímulos, que faz questão de ressaltar em negociações com diferentes
atores. Ele possui outro. Entretanto, para Victor parece claro o caráter relacional de @hebecamargo:
ela é tanto produto dos espaços virtuais que ocupa, das interações com diferentes leitores em cada
um desses espaços, com o contato com outras webcelebridades, patrocinadores e blogueiros como é
de suas pretensões interiores e ambições pragmáticas. Ela, por vezes, parece exercer uma força
misteriosa sobre ele próprio. Me contou, certa vez, que o responsável pela criação do Mussum Alive
ficou “viciado no Mussum” e precisou criar outro perfil para direcionar sua potência criativa e,
assim, não depender tanto dele. Ele demonstra uma preocupação semelhante, muito atrelada ao
processo de adoecimento e morte da apresentadora Hebe Camargo. Ao mesmo tempo em que temia
em ser visto como “farsante” enquanto estava viva, após sua morte estava aflito com a possibilidade
de ter que matar @hebecamargo também. Seu medo parecia ser mais de deixar de ser interessante

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para “sua platéia”. Preocupava-se continuamente a “permanecer relevante” e o monitoramento
constante de suas estatísticas pode ser tanto motivo para festividades como para questionamentos
profundos. Ameaçou matar @hebecamargo por diversas vezes, nenhuma levada à cabo. Nesse
ponto, acredito ser fortuito delinear um breve entendimento da fama e da celebridade, bem como
sua relação com a noção de indivíduo e self.

Fama e Self

Diferente da honra, da glória e da reputação, que tanto pautaram a discussão a respeito de


sistemas de prestígio, riqueza e poder dentro do âmbito da antropologia e da sociologia, a fama
parece ainda representar uma presença misteriosa e ao mesmo tempo maldita. Muito da
compreensão social da fama advém de uma matriz crítica, circunscrevendo-a como um fenômeno
correlato à uma tentativa de singularização coerente com o novo estatuto do ‘moderno’, uma versão
vulgar e “pálida imitação das honras e glórias de outros tempos e locais” e sua compreensão seria
“abrir caminho para examinar os contornos que esta problemática individual de construção da
identidade pela via relacional do olhar do outro ganha no mundo da moderna sociedade de massas”.
(COELHO, 1999:30) Gostaria aqui de situar o distanciamento do que comumente se tem por fama
de uma possível meta-narrativa da modernidade. Especialmente explorada por Munn (1986) em seu
estudo entre os Gawa, a fama se colocaria como um operador fundamental nas relações ultramar
engrenadas pelo kula em uma distinção entre o conhecimento do nome do conhecimento da face.
Quando um indivíduo é amplamente conhecido, podem haver lugares nos quais pessoas poderiam
dizer que nunca haviam visto seu rosto, no entanto sabiam e usavam seu nome.
É dito que o nome viaja com as conchas: as pessoas escutam sobre determinado indivíduo e
mencionam seu nome para realizar transações bem sucedidas. Esse conhecimento prévio é requisito
para engajar-se em trocas. Somente entram nessas negociações aqueles que incluírem nomes de
indivíduos já conhecidos, uma vez que as conchas são rastreadas mediante o sequenciamento de
nomes que representam as mãos das pessoas nas quais circularam em um ou mais do que um ciclo
transacional. O valor das conchas aumentariam à medida em que circulam, adquirindo, ao mesmo
tempo, um nome mais específico e pessoal. Quanto mais o indivíduo torna-se virtual, ou seja, uma
entidade à parte de seu substrato biológico e contato imediato, mais ele amplia o escopo de sua
relações e adquire a marca elevada de unicidade, pessoalidade e valoração. O nome e a face
comporiam dimensões distintas da pessoa, esferas não-humanas intercambiáveis por moeda, ou

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seja, a fama seria produzida nesses contatos e objetificada como aspectos identitários da pessoa,
produzindo agentes e relações associadas a diferentes valores sociais. Acredito que importante para
uma compreensão da fama, nos temos de Munn (1986) seja a constatação de sua volatilidade, assim
como a relação com distâncias simbólicas, níveis de expansão corporal e controle espaço-temporal
que culminam na edificação de uma esfera que transcende a materialidade imediata. Isso nos lembra
que, apesar do apelo em pensarmos imbricações humano-máquina como produtor de entidades
híbridas, o que temos por pessoa nunca teria sido simplesmente humano, auto-contido e singular.
Ao invés disso, em diversos locais e temporalidades teria sido composto por partes divinas, animais,
coisas e máquinas. Se as formas modernas de conhecimento, epitomizadas pela ciência e pela
tecnologia, foram capazes de produzir um contexto no qual relações face a face não mais se
colocam como substrato a partir do qual torna possível a sociedade e as fronteiras do self são
expandidas, muitas vezes rompidas e difusas, o que parece ter sido impactado no processo seriam
tanto as escalas nas quais as relações sociais operam como o descentramento do sujeito Cartesiano e
a concepção de indivíduo em seu modo ideológico. Como já muito dito, foi inclusive refletido na
própria linguagem da antropologia. Não estaríamos mais olhando para categorias ontológicas, mas
padrões entrelaçados. O que uma vez era sistêmico, agora é móvel; sociabilidade dá lugar à
socialidade. Como bem nota Moore, (1996) seríamos entidades tecnologizadas em um sentido
peculiar: a compreensão de nós mesmos e da corporeidade se daria por meio de aparatos técnicos e
até mesmos observadores cotidianos poderiam refletir sobre nossos artifícios. A celebridade
enquanto entidade só poderia emergir nesse ambiente tecnologizado: a celebridade existe porque ela
é vista por meio do instrumental comunicacional moderno.
Nisso temos a preocupação de re-colocar o self em questão não como um objeto
naturalizado, nem ao menos tomado como um produto de sua própria manufatura, mas constituído
como coisa na multiplicidade de auto-objetificações e imagens de si. O self poderia ser tomado, nos
termos de Battaglia (1995) tal como uma economia representacional, produto de estados de
conhecimento, prática e experiência, uma “retificação continuamente deferida por engajamentos
mutáveis com a história de outros sujeitos, experiências, auto-representações, com textos, condutas,
gestos, objetificações, com um ‘argumento de imagens’ e assim por diante.” (1995:2) A noção de si
seria uma figuração instável e situacional, que responde ao imaginário, à um projeto individual e
concebido no curso de interações que seguem algum tipo de padrão simbólico e prático.
Mecanismos de deslocamento, diferimento, extensão ou introjeção, através dos quais a formação da
noção de self opera poderia lançar luz a qualquer atribuição ou valoração de tais objetos e, de modo

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análogo, qualquer afirmação de centramento de si ou da existência de uma identidade singular seria
indesejável, por essa perspectiva. Sujeitos podem preocupar-se, ao invés disso, com as
possibilidades sociais de atrelamento e afastamento de auto-objetificações, em manter uma
multiplicidade de fontes de auto-influência em termos concretos. A “habitação dispersa do self em
várias formas e os efeitos que isso provoca ramifica ou prescreve locais de encontro com si.”
(1995:3) Concernente à compreensão de processos de construção de si, isso nos deixa com questões
relativas à localização de agência, à retórica que ora enfatiza o individual, ora o relacional e suas
implicações no estabelecimento de relações assimétricas.
Em sua relação com @hebecamargo - a meta-Hebe, Victor mobiliza a si mesmo em
diferentes movimentos de fusão e dissociação. No momento de criação, coloca-se formando um só,
entrelaçados. Ao assumir autoria, desloca @hebecamargo para um espaço de passividade, de
criatura, assumindo, para si, domínio sobre sua criação. Por vezes @hebecamargo passa de criatura
à criadora: por meio dela que Victor inseriu-se em uma outro universo simbólico e concreto,
também manifesto no poder que, de forma intrigante, exerce sobre ele. Por momentos Victor coloca
a si mesmo na dimensão do individual e @hebecamargo em uma instância relacional, o contrário
também parece coerente. @hebecamargo possuiria uma “personalidade”, uma “identidade”,
enquanto ele passaria a experimentar angústias e reflexões que provém da idéia de sua finitude. Da
mesma forma, @hebecamargo não seria apenas a realização de um desejo de aproximar-se do
“ídolo”, mesmo que simbolicamente, mas compõe um projeto individual interessado e materializa
um dado estado de conhecimento, saberes e práticas. A imbricação com a máquina, aqui, aparece
como vetor importante nesse processo. @hebecamargo não foi sua primeira experiência rumo à
fama e à celebridade. Ele adquire, no processo, tanto habilidades cognitivas atreladas à leitura de
dados informacionais da audiência e manejo hipertextual quanto sensoriais e reflexivas e constrói
um saber e um fazer ligados à mobilização emotiva de seus leitores por meio de aparatos digitais e
plataformas virtuais, que por si só possuem modos específicos de governança que impactam na
concepção de diferentes gêneros literários, tocando em questões que provocam riso, euforia e
excitação. Talvez isso muito se deva aos modos peculiares como a figura da celebridade foi
constituída no panorama dito Ocidental, bem como a estruturação dos mercados de entretenimento,
mídia e campos artísticos e para isso me volto até o final do presente texto.

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Celebridade e indivíduo

O crescente valor posto sobre o individualismo, a emergência do espaço público e mídias


que o compõe, a democratização, crescente diferenciação e densidade social seriam, para Krieken
(2012) o ponto de partida para pensar em um núcleo da racionalidade da celebridade. A constatação
da diferente visibilidade de grupos e indivíduos a partir da presença de poder, status e riqueza
distribuídas de modo assimétrico não seria suficiente para explicar o fenômeno. A celebridade
comporia uma paisagem do renome peculiar, produto da intersecção de diversos desenvolvimentos
históricos, configurações mutáveis e transformações distintas. Nisso, delineia três vetores de sua
constituição dessa entidade: a formação das sociedades de corte; a mudança social e política de
pessoas em indivíduos com direitos, possibilidades e oportunidades particulares; a constituição do
espaço público mediante urbanização, expansão capitalista e desenvolvimento de tecnologias da
comunicação iniciado com a imprensa nos séculos XV e XVI e sua amplificação e industrialização
até o século XIX, seguida pela fotografia, rádio, cinema, televisão e internet nos séculos XX e XXI.
As sociedades de corte instauraram uma vivência altamente representacional, na qual a existência
individual e a concepção de identidade eram construídas conforme a capacidade do indivíduo exibir
e performatizar sua posição hierárquica dentro de um ambiente altamente competitivo e flutuante,
que serviam como modo através do qual poderiam negociar e manobrar essa posição. O manejo das
emoções era crucial para tais estratégias. Quanto mais apurada fosse de modo a aferição a situação
do indivíduo, avaliação seus riscos e ameaças, mais eficaz seria o planejamento de futuras alianças
e estratégias. Nos termos de Elias (2006), os mecanismos das sociedades de corte eram como uma
máquina em permanente movimento, “alimentada pela necessidade de prestígio e pelas tensões que,
por sua vez, renovavam o processo competitivo.” (ELIAS, 2006:97) Essa racionalidade e sua
combatividade poderiam chegar a beirar a paranóia, invadir e dominar momentos privados quase
não performatizados. O self era objeto de intensa competição, cujos parâmetros eram sempre
mutáveis, conduzindo ao esboçamento dos limites entre o que era tido como público e privado, a
produção de aliados e inimigos, na mudança constante de “favoritos” da corte e de sua rede de
patronagem.
O processo a partir do qual emerge uma sociedade de indivíduos e a lógica da corte desloca-
se para certas regiões da vida social é vista por Inglis (2010) como uma “invenção” em três partes,
iniciada em Londres entre 1760 e 1820, passando para seu estabelecimento em Paris em meados do
século XIX e chegando à Nova York e Chicago no início do século XX, onde encontra sua

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manifestação mais aguda. Com deslocamento da centralidade social do monarca e emergência das
cidades, Londres seria a primeira a constituir-se a partir de contornos modernos, no qual um
mercado abundante baseado em empreendimentos imperiais, bem sucedidas guerras, novas
tecnologias e em uma vocação industrial. Juntamente com antigos nobres e novos burgueses,
compunham uma formação de poder. Não poderiam, no entanto, deixar de reconhecer o ganho de
liberdades e direitos individuais, assim como o crescente potencial de consumo e anseio por
divertimentos. A industrialização do lazer exigia a criação de novas rotinas diárias e espaços onde
tais atividades deveriam acontecer. Teatros, salas de concerto, plesure gardens e publicações
diversas não poderiam surgir nem esperar prosperar sem o endosso e o dinheiro dos poderosos.
Esperavam, com isso, portarem-se como aristocratas. Imitar os trajes, modos, sua prodigialidade e
apetite dirigido às artes em um novo registro mais condizente com os novos tempos para, assim,
suplantar seu modo de ser celebrado. Não era preciso apenas um mercado financeiro animado e
repleto de mudanças sutis. A expressão retórica de sua grandeza também exigia um novo
contingente de promotores. Arquitetos, escritores, pintores, paisagistas, decoradores de interiores,
atores, cantores, musicistas: enquanto na corte eram inteiramente subordinados às ordens dos nobres
e do rei, no mercado mais aberto criado pelas novas cidades encontravam clientes em abundância e
desfrutavam de uma independência menos custosa.
Nesse universo, a notoriedade permanecia como um patrinônio adquirido à duras penas, no
entanto a fama era uma conquista mais rápida. O artista ambicioso, cujo sucesso dependia de um
número suficiente de patronos, fazia seu nome com base em um estilo de vida. Precisava tornar-se
conhecido. Esculpir um caráter, uma “personalidade individual” baseada na “originalidade”,
assentar-se sobre uma moral, uma posição política e um senso estético. O que estava em jogo era o
modo como manejava sua vida pessoal para gerar uma espécie de familiaridade, provocar um senso
de intimidade em meio a estranhos. O que temos por celebridade, portanto, é uma nebulosa
composta por diferentes atores, técnicas e saberes, uma combinação de “postura e posição de poder”
(INGLIS, 2010:56). Donos de terras, milionários, burgueses, proprietários rurais só se destacavam
dos demais na medida em que podiam ostentar, em diferentes graus, riqueza manifesta em dinheiro,
bens, propriedades e gosto. Para tanto, como dependiam dos artesãos que produziam os símbolos da
riqueza, do requinte e da autenticidade, cediam a eles parte de seu status. “Celebridade era o brilho
que respingava dos grandes sobre seus divulgadores” (INGLIS, 2010:56)
O último teste de legitimação da celebridade encontraria forma do teste do escândalo ao qual
todas as celebridades deveriam se submeter para legitimarem-se como tais. Era preciso demonstrar

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força e domínio. Seu título, entretanto, não era vitalício. Está implícita sua revogação, conforme
aumenta o desapontamento e o tédio do público. A celebridade possuiria, desde seu início, uma
temporalidade própria edificada sobre o caráter móvel e revogável de seu status, dependente do
ciclo de excitação peculiar que provoca nos demais. Quando não mais é capaz de provocar frisson,
deixa de ser celebridade para voltar a ser “simplesmente” famosa, até mesmo esquecida. Ao longo
do século XVIII, entrando nos séculos XIX, XX e XXI, espaços como teatros, salas de concerto,
cinemas, shows, eventos de entretenimento e até mesmo espaços ditos privados mediados pela
televisão e assim por diante irão firmarem-se como campos privilegiado de celebração. A dimensão
da incorporação de convenções urbanas e “bem-educadas”, assim como a sofisticação da linguagem
da autorreflexão, necessária ao usufruto das experiências afetivas e sensoriais e definição de
aspectos do “Eu interior”. O circuito das artes, dos lazeres, o manejo do tempo, do trabalho e do
dinheiro, o disciplina dos corpos e dos afetos: essa ênfase à vida psicológica individual adquire
forma no cenário da metrópole contemporânea, que ofereceria a esse novo indivíduo uma
experiência de heterogeneidade e variedade de costumes, contribuindo para a extrema fragmentação
e diferenciação de papéis e domínios, preposição proficuamente sustentada por Elias (1994) que
daria corpo à essa modulação moderna da fama seria tal como uma representação do dilema do que
se tem por indivíduo moderno-contemporâneo, dividido entre delírios de ambição, importância e o
cultivo das virtudes interiores e da dignidade pessoal, explorada em enredos da “cultura de
celebridade”. (KRIEKEN, 2012) O indivíduo moderno veicularia uma expressão singular da
conformação histórica, uma forma de convívio muito específica que gera uma internalização de
técnicas de modelamento de si e autoconsciência que as pessoas foram conduzidas a adotar em um
grau muito elevado de refreamento e controle afetivo, renúncia e transformação dos impulsos
primevos e que devem manter seus desejos longe do olhar do mundo exterior protegidos pelo sigilo
ou até “nos porões do psiquismo.” (ELIAS, 1994:32) Podemos então vislumbrar, na emergência de
celebridades, as faces e os nomes que dão rosto à formação de redes de poder, riqueza e acesso às
tecnologias da comunicação e informação autorizadas por uma multiplicidade de agentes e
agências. As celebridades são tanto sujeitos como objetos formados nessa nebulosa que conforma
diversos saberes e práticas. A performatividade e a visualidade adquirem importância nesse
enquadramento. A própria emergência da categoria webcelebridade não poderia ser vista de modo
ingênuo. Por mais que, a grosso modo, autores preocupados em pensar o digital e o virtual
enfatizem temáticas relativas ao ciberativismo e aos usos politizados de plataformas de redes
sociais, não devemos obscurecer a formação de novas redes de poder atreladas à essa dimensão. No

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entanto, não poderíamos reduzir questões de poder à política. Victor concebe @hebecamargo
imerso em imagens e mídias. O usufruto da celebridade exige do indivíduo certa pedagogia dos
sentidos e das emoções, afinada com determinada temporalidade, níveis diferentes de excitação e
consciência de si e do outro. No caso de Victor, não deveríamos tomar sua fama como mero
acidente espontâneo, como ele ressalta exatamente para legitimar seu status célebre. Ela foi fruto de
competências atreladas ao manejar a excitação dos outros que, no âmbito da performance digital,
implica em apresentar-se em texto e imagem, bem como conceber uma noção de alteridade e
exercitar uma capacidade de estranhamento exigido pelo humor e alimentado por sua relação com
@hebecamargo. Espaços virtuais, que muitos acreditavam representar uma atomização radical do
indivíduo, se apresentam, ao menos para Victor, @hebecamargo e sua audiência, como dimensões
de usufruto e educação dos sentidos, das emoções e produção do self.

Referências bibliográficas

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