Você está na página 1de 12

MAPAS, MAPEAMENTOS E A

CARTOGRAFIA DA REALIDADE

Jörn Seemann
Departamento de Geociências, Universidade Regional do Cariri (URCA).

INTRODUÇÃO Devido à grande quantidade de informações, estabele-


cemos relações visuais pouco significativas com as
Os meios de comunicação, a veiculação de infor- imagens (Buoro 2002, p. 34).
mações pela mídia e as tecnologias do entretenimento Há mais de vinte anos, o geógrafo humanístico Yi-
cada vez mais sofisticadas representam fábricas gera- Fu Tuan discutiu os benefícios e perigos de sermos
doras de imagens que estão transformando a nossa re- expostos à magia dos mundos virtuais, constatando que
alidade em uma seqüência rápida de imagens virtuais “a experiência visual pode dar prazer e conhecimento
as quais, muitas vezes, não conseguimos processar na bem como enfeitiçar, cativar, subjugar ou até escravi-
nossa mente. Computadores, “multimídia” e “infovias” zar” (Tuan, 1979, p. 413). Ao mesmo tempo, Tuan le-
estimulam a digitalização de textos, imagens, sons e vantou as seguintes questões: O que implica a nossa
mensagens, levando a sociedade a uma inteligência dependência na mídia para nossa compreensão do
coletiva no ambiente de um “ciberespaço” (Lévy, mundo? Será que estamos plenamente conscientes do
1998). Buoro (2002, p. 34) observa que as imagens viés e das limitações dos recursos visuais?
ocupam um espaço considerável no cotidiano das pes- Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) afir-
soas: “Livros, revistas, outdoors, internet, cinema, mam que a Geografia é uma ciência que procura ex-
vídeo, tevê, para citar apenas as fontes mais comuns, plicar e compreender o mundo por meio de uma leitu-
produzem imagens incessantemente, quase sempre à ra crítica a partir da paisagem e suas imagens. Desta
exaustão e diante de olhares de passagem”. Para a so- maneira, “ela poderá oferecer uma grande contribui-
ciedade pós-moderna está sendo declarada a “morte ção para decodificar as imagens manipuladoras que a
da imagem”, porque o indivíduo do terceiro milênio mídia constrói na consciência das pessoas, seja em re-
parece não mais acreditar o suficiente em suas ima- lação aos valores socioculturais ou a padrões de com-
gens para chegar a entendê-las (Debray, 1994, p. 13). portamentos políticos nacionais” (Brasil, 1998, p. 29).
GEOGRAFARES, Vitória, no 4, jun. 2003 49
JÖRN SEEMANN

Para a Geografia, essa transição para uma socieda- (carto)gráfica: uma forma de comunicação que deve
de imagética causa impactos mais profundos, porque fazer parte do nosso “pensar geográfico”. Vale salien-
a ciência geográfica é uma disciplina visual, isto é, tar que esse paradigma de comunicação na Cartogra-
como caso único entre as ciências humanas, a visão é fia não deve ser visto como mera comunicação de in-
quase indubitavelmente um pré-requisito para as suas formações do cartógrafo para o usuário dos mapas,
buscas. Recursos visuais caraterizam tanto as ativida- erroneamente declarada como objetiva e imparcial, mas
des na sala de aula e no gabinete quanto as aulas de como abordagem que leve em conta muitas outras
campo, nas quais a observação e o treinamento do olhar maneiras de fazer e usar mapas e a contribuição da
são essenciais. Pocock (1981, p. 385) afirma que por arte no processo cartográfico (Sluter Jr., 2001, p. 29).
esta razão os geógrafos são (ou devem ser) fortemente Sob essa perspectiva, o presente artigo objetiva
interessados na natureza da visão para descrever e com- propor algumas visões alternativas da Cartografia como
preender as relações entre o homem e o meio. linguagem, que não correspondem necessariamente ao
A visão é geradora de imagens e exerce um papel pensamento euclidiano do espaço geográfico e que
fundamental na apreensão do real, sobretudo no que visam a uma “Cartografia da Realidade” (Wood, 1978)
concerne ao ensino de Geografia. Devido a essas cir- e uma “Cartografia Social” (Paulston e Liebman, 1994)
cunstâncias, é preciso repensar as práticas do ensino na sociedade brasileira. Essa concepção da Cartogra-
de Geografia para uma sociedade imagética, utilizan- fia enfatiza menos o radical carto (isto é, mapa no sen-
do-se de novas tecnologias e (re)descobrindo diferen- tido técnico e “oficial” do termo) e mais o radical grafia
tes linguagens. Esse resgate visual se torna ainda mais (mapeamento e uso de uma linguagem gráfica), de
importante diante das influências pós-modernas no acordo com a definição do mapa como “representação
pensamento geográfico que dão preferência às metá- gráfica que facilita a compreensão espacial de coisas,
foras “auriculares” (diálogo, conversação, polifonia conceitos, condições ou acontecimentos no mundo
etc.), em detrimento do “discurso visual” através de humano” (Harley e Woodward, 1987). O espaço não
“espelhos”, “leituras” e “olhares” (Sui, 2000). seria expresso pela fria geometria das distâncias físi-
A Geografia sempre vem associada aos mapas. No cas estabelecidas pela escala de um mapa, mas confor-
discurso geral da disciplina, os mapas representam a me fatores como tempo, decisões, preferências e ou-
Geografia, e a Geografia continua sendo um sinônimo tras visões subjetivas.
de fazer mapas. A prática, portanto, mostra que o mapa,
muitas vezes, não passa de mera ilustração, isto é, ima- O PODER COMUNICATIVO
gem, emblema ou logomarca sem conteúdos espaci- DOS MAPAS
ais. Fonseca e Oliva (1999, p. 76), ao discutir a Carto-
grafia como linguagem geográfica, observam que a É comum tratar a Cartografia como linguagem de
Cartografia, em vez de se estruturar como linguagem comunicação que se fundamenta nas teorias lingüísti-
privilegiada, está se constituindo “como técnica repre- cas de Ferdinand de Saussure, responsável por uma
sentativa, derivada automaticamente das tecnologias geração inteira de estruturalistas, não apenas na sua
modernas – e por vezes também de imperativos peda- própria área, mas também na Antropologia (por exem-
gógicos, numa trajetória de desenvolvimento autôno- plo, Lévi-Strauss) e na Cartografia (Jacques Bertin).
mo, alheia às discussões internas e de renovação da Essa visão concebe a linguagem cartográfica como uma
Geografia”. A Cartografia parece ser o “carro-chefe” língua com seu próprio sistema de signos verbais (=
da Geografia, mas poucos geógrafos sabem dirigi-lo, vocabulário) e regras para o emprego desses signos (=
isto é, utilizá-lo! Esse problema se agrava com a apre- gramática) para efeito de comunicação. Existe, por-
sentação midiática das imagens. O mapa, já bastante tanto, uma diferença clara entre língua e linguagem.
menosprezado como documento de valor informativo, Conforme qualquer dicionário (por exemplo, Luft,
corre o risco de se perder no desfile de uma seqüência 1991, p. 390), linguagem é a faculdade humana de
contínua de imagens. comunicação, especialmente (mas não exclusivamen-
Para não perder o espaço na sua disciplina, os te!) verbal e abrange tudo que serve para exprimir
geógrafos precisam ver os mapas como linguagem idéias e sentimentos, isto é, não apenas as palavras,
50 GEOGRAFARES, Vitória, no 4, 2003
MAPAS, MAPEAMENTOS E A CARTOGRAFIA DA REALIDADE

mas também outros recursos como gráfica, gestos etc., constata que “desenhamos aquilo que vemos e, inver-
os quais não obedecem rigorosamente a regras grama- samente, ver é desenhar” (p. 56) e que “os espelhos,
ticais. os mapas e [...] os olhos também podem figurar ao lado
Os PCNs enfatizam a importância que as “lingua- da arte como formas de pinturas assim entendida” (p.
gens diferentes” (verbal, musical, matemática, gráfica, 84). Substituindo a palavra pintura pelo termo mapa,
plástica e corporal) podem ter no ensino de Geografia. podemos dizer que há dois modos diferentes de pintar
Entre os objetivos para o ensino fundamental consta que (mapear) o mundo: (1) a pintura (mapa) considerada
os alunos (e também os professores!) devem ser capa- como um objeto no mundo, uma janela emoldurada
zes de utilizar essas linguagens “como meio para pro- para a qual dirigimos os nossos olhos e (2) a pintura
duzir, expressar e comunicar suas idéias, interpretar e (mapa) tomando o lugar do olho, com o enquadramento
usufruir das produções culturais, em contextos públicos e a nossa localização assim deixada indefinida (p. 118).
e privados, atendendo a diferentes intenções e situações Falar de mapas sempre implica a bilateralidade da
de comunicação” (Brasil, 1998, p. 7-8). comunicação: sempre há leitores e fazedores. A con-
A Cartografia, sem dúvida, representa uma lingua- fecção de um mapa, entretanto, se limita quase exclu-
gem importante para a Geografia, mas não deve ser vis- sivamente ao ambiente acadêmico-científico-tecnoló-
ta com o rigor de uma gramática da língua portuguesa. gico, fazendo com que o cidadão comum não partici-
No sentido convencional da Cartografia, tratamos pe do processo de elaboração, que, aliás, nem sequer
os mapas como analogias, ou melhor, como meios de conhece. Como resultado, a Cartografia se torna um
explanação, enquanto o mapa, quando visto como recurso inacessível para os “mortais”. Cabe dizer que
metáfora, pode representar um meio de expressão saber fazer mapas não significa saber usá-los e vice-
(Downs, 1981), levando-se em conta que os mapas versa! Crampton (2002, p. 14) complementa essa ob-
diretamente servem para o desejo ou até a necessidade servação, afirmando que a maneira como usamos os
de visualizar processos do pensamento humano mapas provavelmente afeta a nossa compreensão de-
(Muehrcke, 1978, p.254). les: “Talvez se não soubermos como pôr os mapas em
Mapas, de certa forma, também são imagens, por- prática, ganharemos apenas uma compreensão limita-
que eles também recriam ou reproduzem fenômenos da deles!”
ou idéias e representam uma “maneira de ver” (Berger,
s/d, p. 9-10, Fremlin e Robinson, 1998). Como obser- INTRODUZINDO A CARTOGRAFIA
va Tuan (1979, p. 417), essas imagens são meros indi- DA REALIDADE
cadores de uma realidade subjacente que não é direta-
mente acessível ao olho. O espaço representado no mapa não corresponde
Diante do problema da leitura de mapas, precisa- às propriedades do espaço concebido pela mente hu-
se perguntar se qualquer imagem pode ser lida e se mana. Enquanto “o espaço convencionalmente repre-
podemos criar uma leitura para qualquer imagem. sentado no mapa é contínuo, isotrópico e bidimensio-
Buoro (2002) utiliza expressões como “olhar pensante” nal, o espaço humano é descontínuo, anisotrópico e
e “consciência visual”, afirmando que estamos perden- tridimensional e sofre mudanças em termos, principal-
do a capacidade de pensar por imagens, de produzir mente, de tempo e custo” (Oliveira, 1978, p. 25). Mui-
imagens ligadas ao contato direto com aquilo que é tas ciências, portanto, inclusive a Cartografia na sua
visto (p. 51). Por isso, é preciso saber observar, por- concepção como “ciência exata”, fundamentam-se nas
que “saber produzir imagens verbais e visuais plenas idéias do filósofo francês René Descartes, segundo o
de significação, descrições reveladoras de um envol- qual a matemática seria a linguagem essencial e a úni-
vimento direto e concreto com a realidade [são] rela- ca chave para desvendar a natureza, e o próprio espa-
tos que jamais poderiam ser produzidos por leitores de ço poderia ser expresso por meio de fórmulas algébri-
olhares rápidos e descompromissados” (p. 49). cas. A matemática seria considerada a ciência ideal e a
Neste sentido, mapas e imagens também podem ser geometria o espaço ideal (Santos, 2002).
vistos como pinturas. Alpers (1999), que analisou o Para introduzir uma visão não-cartesiana do espa-
impulso cartográfico na arte holandesa do século XVII, ço, Muehrcke (1978, p. 255) utiliza o termo mapea-
GEOGRAFARES, Vitória, no 4, 2003 51
JÖRN SEEMANN

mento funcional quando chega à conclusão de que o (2) o mundo real é apenas acessível para cada um de
mapeamento planimétrico é alheio à nossa concepção nós pessoalmente (todos nós temos a nossa própria
cotidiana do ambiente: nós podemos saber a distância autobiografia) e
física entre dois pontos, mas essa informação fornece (3) a estrutura do mundo real deve ser uma “geome-
poucos indícios sobre a distância funcional que depen- tria natural” que se baseia na experiência humana in-
de de fatores como trânsito, condições das estradas ou dividual.
meio de viagem. As subjetividades humanas, portan- Wood salienta que a “Cartografia da Realidade” não
to, se escondem atrás da “aparência bem ajustada e pretende questionar a Cartografia científica, porque ela
definida que um mapa bem desenhado apresenta, em- deve ser considerada mais um método do que um gera-
prestando-lhe um ar de autenticidade científica que dor de produtos como mapas. Para ilustrar melhor estas
pode ter merecimento ou não” (Wright, 1942, p. 527). idéias, seguem alguns exemplos tirados do mundo real.
Downs (1981, p. 291) afirma que existe uma dife-
rença entre o que a mente mapeia e o que o mapa, de Exemplo 1: O tapete de lã
fato, representa, e levanta três questionamentos (que O primeiro exemplo diz respeito à noção de escala que
ele mesmo responde logo em seguida): as pessoas têm. Wood (1978), de uma maneira não
(1) A representação espacial da mente precisa ser se- muito convencional, narra a história de um casal que
melhante ao mapa cartográfico? Não necessariamente. decide comprar um tapete de lã e cuja noção da gran-
(2) Seria o mapa cartográfico a base apropriada para deza do produto varia conforme as circunstâncias. A
avaliar as propriedades das representações espaciais figura 1 mostra como o tamanho real aumenta e enco-
da mente? Possivelmente. lhe na percepção das pessoas. O tapete aparentemente
(3) Existe um mapa cartográfico padrão que serve grande, pelo menos a julgar pelo preço, pela propa-
como medida para a comparação? Muito seguramente ganda da loja e pela forma facilitada do pagamento,
não! encolhe dramaticamente na sala de estar do casal. Mas
Como já discutido em outro lugar (Seemann, 2003), quando a jovem mulher, numa mistura de raiva e de-
a própria cultura ocidental, muitas vezes, concebe como cepção, começa a chorar e, para o desespero do casal,
objeto o que de fato é um processo. Mapas, por exem- sua lente de contato cai em cima da mercadoria, o
plo, não são meros produtos finais, mas uma seqüên- “minúsculo tapete milagrosamente assumiu proporções
cia de ações, tanto para sua confecção quanto para sua do deserto do Saara” (Wood, 1978, p. 209).
leitura. Essa observação é de suma importância na hora
de mapear o espaço vivo e dinâmico cuja descrição e Exemplo 2: O caminho do trabalho para casa
explicação vem se tornando um desafio para a Geo- As figuras 2, 3 e 4 mostram um exemplo de um ma-
grafia e para a Cartografia (Oliveira, 1978, p. 25). No peamento funcional do percurso da minha casa em
dia-a-dia, as pessoas não agem com base nos mapas Fortaleza para o Campus da Universidade Estadual do
oficiais com suas distâncias em quilômetros, mas se- Ceará, onde ensinei por quatro anos e meio. A figura
gundo critérios como tempo, conveniência ou esfor- 2A mostra a distância em linha reta entre os dois luga-
ço, resultando nem sempre na escolha do caminho mais res (como costuma-se medir nos exercícios de cálculo
curto. de escala), enquanto a figura 2B representa o percurso
Wood (1978) introduz o termo “Cartografia da de ônibus seguindo a rede viária da cidade de Fortale-
Realidade”, enfatizando a disjunção entre a percepção za. A distância real chega a mais de 18 quilômetros,
cotidiana de distâncias e do espaço que conhecemos mas pode parecer muito maior após um longo dia de
muito bem através das nossas experiências e o padrão trabalho ou no horário de pico no trânsito fortalezense,
cartográfico para representá-la (Wood, 1978, p. 207). quando há congestionamentos em quase todos os cru-
Como poderia ser feita esta “tradução”? Segundo Wood zamentos e quando os semáforos sempre fecham quan-
(idem, ibidem), os três princípios seguintes devem ser do os carros começam a arrancar. As figuras 3A e 3B
levados em consideração: são desenhos que não apontam a distância, mas o tem-
(1) a experiência individual é a única medição válida po de viagem num dia tranqüilo e sob condições
do mundo real, “estressantes” (muito trânsito, chuva, acidente etc.),
52 GEOGRAFARES, Vitória, no 4, 2003
MAPAS, MAPEAMENTOS E A CARTOGRAFIA DA REALIDADE

respectivamente. Conforme o meio de transporte (a pé, linguagem compreensível e de alto potencial comuni-
de ônibus), o tempo de espera nas paradas e no termi- cativo, que permite escolher as melhores rotas e indi-
nal e o fluxo do trânsito, o percurso casa–trabalho pode car os trechos e horários a ser evitados. Langlois e
parecer mais curto ou mais longo. Denain (1996) observam que a Cartografia como
Em vez de usar um gráfico do tempo, também é anamorfose tem como objetivo adaptar o mapa não à
possível traduzir essas informações de uma maneira realidade física, mas à realidade percebida. Em vez de
diferente. Ao “esticar” ou “encolher” os trechos con- ser considerado um modelo da realidade geográfica, o
forme a sua demora e o seu tempo de viagem, pode ser mapa se torna um documento de comunicação!
confeccionada uma anamorfose do tema, representada
na figura 4 ao lado dos mapas com a distância real do Exemplo 3: Mapeamento sensorial
percurso e do tempo de viagem. Nesse exemplo, a A visão é inquestionavelmente o sentido mais podero-
anamorfose liga o espaço ao tempo, tornando-se uma so para a geografia. Como conseqüência, deixamos de
GEOGRAFARES, Vitória, no 4, 2003 53
JÖRN SEEMANN

explorar o potencial dos outros sentidos como o olfa- nado permitiu detectar informações que normalmente
to, a audição, o paladar e o tato. A figura 5 foi tirada de não são visíveis. As alunas registraram fedores de fu-
outro trabalho da minha autoria (Seemann, no prelo) maça, óleo saturado, gasolina e urina e simbolicamen-
sobre questões da percepção ambiental e mostra um te transferiram essas informações para um croqui.
mapeamento da Praça da Sé da cidade de Crato (Cea- Outros mapeamentos sensoriais através da audição e
rá) realizado por estudantes da Universidade Regional do ponto de vista de deficientes físicos (cadeira de roda)
do Cariri (URCA). A tarefa deles era um mapeamento e visuais resultaram em mapas que tinham em comum
da Praça da Sé pelo olfato. Esse levantamento direcio- o mapeamento de informações invisíveis. O olhar, de
54 GEOGRAFARES, Vitória, no 4, 2003
MAPAS, MAPEAMENTOS E A CARTOGRAFIA DA REALIDADE

certa forma, favorece a observação, mas observação Exemplo 4: Cartografia e educação e arte
não é necessariamente ação, como o filósofo francês Conforme as definições muito simples nos dicio-
Rousseau já tinha afirmado no século XVIII: “Viver nários comuns, a Cartografia continua sendo a arte e
não é respirar, mas agir – é fazer uso dos nossos ór- ciência de fazer mapas, sem levar em conta que a ciên-
gãos, de nossos sentidos, de nossas faculdades, de to- cia é objetiva e analítica, uma reflexão da realidade,
das as partes de nós mesmos que nos dão o sentimento enquanto a arte é subjetiva e intuitiva como resultado
da nossa existência. O homem que mais viveu não é o de uma indulgência subjetiva (Krygier, 1995). O “lado
que contou maior número de anos, mas aquele que mais científico” costuma ser destacado, como mostra Bakker
sentiu a vida” (Rousseau, 1995, p. 15). (1968, p. 92) quando constata que a Cartografia “é ci-

GEOGRAFARES, Vitória, no 4, 2003 55


JÖRN SEEMANN

ência porque procura o apoio científico para alcançar professoras do magistério em Caucaia/Ceará. As pro-
exatidão satisfatória, e arte, porque se subordina às leis fessoras autoras foram capazes de traçar o contorno
(sic!) estéticas da simplicidade, clareza e harmonia, do Estado, mas não conseguiram preencher o espaço
procurando atingir o ideal artístico da beleza”. com informações espaciais, de modo que o desenho
Pela história da Cartografia podem ser encontra- servia apenas como receptáculo de aspectos temáticos
das muitas ligações entre a arte e a Cartografia (Rees, como índios, casas, coqueiros e lagoas e palavras-cha-
1980; Alpers, 1999), mas a sua exploração nos tempos ve como “cultura”, “praias” (no meio do sertão!), rios
atuais e em relação a uma parceria com a educação e a ou indústrias. Neste caso, os mapas mentais produzi-
arte ainda aguarda a sua vez. dos não mostraram informações espaciais, mas lacu-
A figura 6 é outro exemplo já discutido em outra nas de conhecimento!
ocasião (Seemann, no prelo) e mostra dois mapas men- A figura 7, por sua vez, mostra um par de mapas
tais do Estado do Ceará que foram elaborados durante mentais do Ceará ao lado de um mapa oficial. O autor
as aulas da disciplina “Geografia do Ceará” junto a destes desenhos, um professor do município de Itarema/

56 GEOGRAFARES, Vitória, no 4, 2003


MAPAS, MAPEAMENTOS E A CARTOGRAFIA DA REALIDADE

Ceará, utilizou o desenho para transmitir imagens sim- dos de 18 escolas participantes. Os mapas foram jul-
bólicas da realidade cearense: o Ceará “alto astral” do gados pelos critérios de ter uma mensagem reconhecí-
turista bem alimentado e acompanhado pela alegria do vel do tema, ter um conteúdo cartográfico (a relativa
sol com caipirinha na mão (devidamente assinado) e o localização dos continentes e dos oceanos e a propor-
Ceará emagrecido e analfabeto (assinatura com o po- ção entre águas e a massa terrestre) e mostrar qualida-
legar direito), flagelado pela miséria e pela crueldade de na sua execução (clareza e legibilidade dos elemen-
da força solar. tos cartográficos utilizados em coerência com o tema).
Os mapas obtidos no concurso não retratam apenas a
Exemplo 5: Mapas como visão do mundo visão do mundo que as crianças têm, mas também re-
Desde 1993, a cada dois anos, a Associação Interna- velam suas preocupações, angústias e alegrias, contri-
cional de Cartografia (ICA) realiza, em homenagem buindo à investigação sobre relações (inter)nacionais,
póstuma a sua ex-vice-presidente Barbara Petchenik, estereótipos geográficos, preconceitos e visões
um concurso internacional para crianças e adolescen- etnocêntricas do mundo (Pinheiro, 1998), estimulan-
tes. O tema do concurso para o ano 2003 foi “Salve a do, ao mesmo tempo, a criatividade e a expressão ar-
Terra”, tendo como objetivo a promoção da represen- tística nos alunos. A figura 8 apenas usa forma do glo-
tação criativa do mundo pelas crianças para melhorar bo para retratar os problemas da humanidade, enquan-
seu conhecimento cartográfico e sua consciência so- to na figura 9 a solução sombria parece ser o suicídio.
bre o próprio ambiente. O concurso regional no Cariri Através desta linguagem (carto)gráfica, as crian-
(Ceará) para a seleção nacional juntou 199 mapas, vin- ças manifestaram a sua visão do mundo (muitas vezes,

GEOGRAFARES, Vitória, no 4, 2003 57


JÖRN SEEMANN

dominada pelo pessimismo e pela violência cotidia- presenta uma mera forma de comunicação não-verbal,
na), tornando os desenhos testemunhos de uma lingua- um ato individual irracional ou um passatempo men-
gem perfeitamente compreensível para expressar tal, mas exerce um papel fundamental na formação de
idéias, preocupações e soluções. cidadãos e leitores críticos do espaço e das suas repre-
sentações, levando-se em conta, como afirma Passini
RUMO A UMA (1994), que essas leituras permitem “aprender os pro-
CARTOGRAFIA SOCIAL blemas do espaço e ao mesmo tempo conseguir pensar
as transformações possíveis para aquele espaço”.
O objetivo deste artigo era apresentar algumas re- Atualmente, as ciências sociais estão “redescobrin-
presentações e métodos “alternativos” para do” o significado e a importância do espaço diante de
cartografar a realidade e fazer do mapeamento uma questões territoriais (movimentos sociais como os sem-
prática integrada nas nossas ações cotidianas, inter- terra e os sem-teto) e em face da (re)construção de iden-
pretando o mapeamento como traço cultural com va- tidades culturais. Enquanto muitos autores utilizam o
lidade universal, uma forma especializada de expres- poder da Cartografia e dos mapas como metáforas para
são, desenvolvida para tratar dos complexos proble- criar “Cartografias do desejo” (Guattari e Rolnik,
mas distintivos e imensamente importantes do com- 1999), inventar “Cartografias do trabalho docente”
portamento macroambiental (Blaut, 1991, p. 64). Tra- (Geraldi, Fiorentini e Pereira, 1998) ou propor uma
balhar com mapas desse gênero não significa a subs- “Cartografia simbólica” para sistemas jurídicos (San-
tituição dos mapas convencionais. Os “mapas funci- tos, 2000) ou para as políticas educacionais no Brasil
onais” apenas oferecem uma maneira diferente de ver (Seemann, 2001), há também uma preocupação com a
o mundo, e para ser mais úteis funcionalmente os Cartografia Social do espaço real que concretamente
mapas precisam refletir mais atentamente nossa ima- emprega mapas, consistindo “en utilizar la elaboración
gem do ambiente, fazendo com que a discrepância colectiva de mapas para poder comprender lo que há
entre o mapa e o processo da cognição humana possa ocurrido y ocurre en un territorio determinado, como
ser reduzida (Muehrcke, 1978, p. 256). una manera de alejarse de sí mismo para poder mirarse
Deve-se frisar que a utilização dessa linguagem e comenzar procesos de cambio” (Andrade e
cartográfica e da “Cartografia da Realidade” não re- Santamaría, s/d). Em vez de se restringir aos mapas
58 GEOGRAFARES, Vitória, no 4, 2003
MAPAS, MAPEAMENTOS E A CARTOGRAFIA DA REALIDADE

“técnicos” e ao apoio dos “tecnocratas”, a abordagem ANDRADE, Helena; SANTAMARÌA, Guillermo.


considera o planejamento participativo um princípio Cartografía Social, el mapa como instrumento y
fundamental para a ação: os mapas servem como ins- metodologia de la planeación participativa. Dispo-
trumento para aprender a ler e decifrar o território. Para nível em <http://azimuth.univalle.edu.co/
a elaboração coletiva dos mapas, os participantes da carsoc.htm>. Acesso em 27 de agosto de 2003.
comunidade recebem material cartográfico (plantas), BAKKER, Múcio Piragibe Ribeiro de. Introdução ao Es-
instruções do seu uso e uma lista de perguntas ou te- tudo de Cartografia. Boletim Geográfico, v. 27, n.
mas que precisam ser trabalhados. Paulston e Liebman 205, p. 92-105, 1968.
(1994) consideram esses mapas um “diálogo visual”, BERGER, John. Ways of Seeing. Harmondsworth: Penguin, s/d.
uma forma de comunicar como vemos mudanças so- BLAUT, James M. Natural mapping.
ciais que se realizam no espaço que nos cerca. Nesse Trans.Inst.Brit.Geogr. NS, v. 16, n. 1, p. 55-74, 1991.
sentido, mapear o espaço social é tanto mapeamento BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental.
cognitivo quanto cartografia geográfica (idem, ibidem), Parâmetros curriculares nacionais: geografia.
e os mapas gerados desta maneira sempre contêm uma Brasília: MEC/ SEF, 1998.
parte do conhecimento e da compreensão que as pes- BUORO, Anamélia Bueno. Olhos que pintam. A leitura
soas têm sobre o sistema social. Conforme os mesmos da imagem e o ensino da arte. São Paulo: EDUC/
autores, a Cartografia Social não seria uma síntese, mas FAPESP/Cortez, 2002.
um diálogo entre diferentes atores sociais (indivíduos, CRAMPTON, Jeremy. Thinking philosophically in
grupos culturais etc.), tendo “potencial para se con- Cartography: Toward a Critical Politics of Mapping.
verter num estilo discursivo útil para demonstrar os Cartographic Perspectives, n. 42, p. 12-31, 2002.
atributos e capacidades, assim como o desenvolvimento DEBRAY, Régis. Vida e morte da imagem. Uma história
e as percepções das pessoas e culturas que operam den- do olhar no Ocidente. Petrópolis: Vozes, [19—].
tro do meio social” (idem, ibidem). DOWNS. Maps and metaphors. The Professional
Pensar a Cartografia de uma maneira menos Geographer, v. 33, n. 3, p. 287-293, 1981.
dogmática (e, quem sabe, menos cartográfica e mais FONSECA, Fernanda Padovesi; OLIVA, Jaime Tadeu. A
cartográfica) exige mais consciência, criatividade, ou- Geografia e suas linguagens: o caso da Cartografia.
sadia, coragem e, sobretudo, uma postura mais humana In: CARLOS, Ana Fani A. (org.). A geografia em
ou até humanística, porque “uma concepção imaginati- sala de aula. São Paulo: Contexto, 1999, p. 62-78.
va é essencialmente uma visão nova, uma criação nova, FREMLIN, Gerald; ROBINSON, Arthur H. Maps as
e conseqüentemente, quanto menos imaginativos somos, mediated seeing. Cartographica, v.35, n.1/2, 1998.
menos refrescantes e originais serão nossos textos e GERALDI, Corinta Maria Crisolia; FIORENTINI, Dario;
nosso ensino e menos eficazes serão para estimular a PEREIRA, Elisabete Monteiro de. Cartografias do
imaginação de outros” (Wright, 1947, p. 5). trabalho docente. Professor(a) – pesquisador(a).
Longe de ver mapas como um “mal necessário” Campinas: Mercado de Letras, 1998.
para pesquisadores acadêmicos, como instrumentos de GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica. Car-
tortura para estudantes ou como um conjunto de ilus- tografias do desejo. 5a ed. Petrópolis: Vozes, 1999.
trações sem sentido para os cidadãos comuns, precisa- HARLEY, J. B.; WOODWARD, D. (ED.). The History of
mos concebê-los como uma parte indissociável da nos- Cartography. Volume 1: Cartography in Prehistoric,
sa prática social e uma forma prazerosa de encontrar ancient, and Medieval Europe and the
nosso lugar no mundo (Crampton, 2002, p. 15). Mas, Mediterranean. Chicago: The University of Chica-
infelizmente, ainda sabemos muito pouco sobre o pra- go Press, 1987.
zer de mapear. KRYGIER, J. Cartography as an Art and a Science?
Cartographic Journal, v. 32, n. 6, p. 3-10, 1995.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS LANGLOIS, Patrice; DENAIN, Jean-Charles. Cartographie
en Anamorphose. Cybergeo, n. 1, 14 de abril de 1996.
ALPERS, Svetlana. A arte de descrever. A arte holandesa LÉVY, Pierre. A inteligência coletiva. Por uma antropo-
no século XVII. São Paulo: Edusp, 1999. logia do ciberespaço. São Paulo: Loyola, 1998.
GEOGRAFARES, Vitória, no 4, 2003 59
JÖRN SEEMANN

LUFT, Pedro Celso. Mini-dicionário Luft. São Paulo: SEEMANN, Jörn. Mapeando culturas e espaços: uma re-
Ática/Scipione, 1991. visão para a Geografia Cultural no Brasil. In: AL-
MUEHRCKE, Phillip. Functional map use. Journal of MEIDA, Maria Geralda de; RATTS, Alecsandro J.
Geography, v. 77, p. 254-262, 1978. P. (orgs.). Geografia: leituras culturais. Goiânia: Al-
OLIVEIRA, Lívia de. Estudo metodológico e cognitivo ternativa, 2003, p. 261-284.
do mapa. São Paulo: USP-IGEOG, 1978. SEEMANN, Jörn. Escalas, projeções e símbolos como fer-
PASSINI, Elza Yasuko. Alfabetização cartográfica e o li- ramentas de análise da política educacional: ensaios
vro didático: uma análise crítica. Belo Horizonte: cartográficos sobre os Parâmetros Curriculares Na-
Lê, 1994 cionais. Educação, Santa Maria, v. 26, n. 2, p. 35-
PAULSTON, Rolland, LIEBMAN, Martin. The Promise 46, 2001.
of Critical Social Cartography. La Educación (Wa- SEEMANN, Jörn. Mapas e percepção ambiental: do mental
shington, DC) n. 119. Disponível em <http:// ao material e vice-versa. Revista OLAM. (No prelo)
www.iacd.oas.org/La%20Educa%20119/pauls.htm>. SLUTER Jr., Robert S. New theoretical research trends
Acesso em 27 de agosto de 2003. in Cartography. Revista Brasileira de Cartografia,
PINHEIRO, José Q. Determinants of cognitive maps n. 53, p. 29-37, dez. 2001.
of the world as expressed in sketch maps. Journal SUI, Daniel Z. Visuality, aurality, and shifting metaphors
of Environmental Psychology , n. 18, p. 321-339, of geographical thought in the late twentieth century.
1998. Annals of the Association of American Geographers,
POCOCK, D.C.D. Sight and knowledge. Trans. Inst. Br. v. 90, n. 2, p. 322-343, 2000.
Geogr. N.S. v. 6, p. 385-393, 1981. TUAN, Yi-Fu. Sight and pictures. Geographical Review,
REES, Ronald. Historical links between Cartography and v. 69, p. 413-422, 1979.
Art. Geographical Review, v. 70, p. 60-78, 1980. WOOD, Denis. Introducing the Cartography of Reality.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou Da educação. São In: LEY, David; SAMUELS, Marwyn S. (org.).
Paulo: Martins Fontes, 1995. Humanistic Geography. Prospects and Problems.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indo- Chicago: Maaroufa Press, 1978, p. 207-219.
lente. Contra o desperdício da experiência. São Pau- WRIGHT, John K. Map-makers are human. Geographical
lo: Cortez, 2000. Review, v. 32, n. 4, p. 527-544, 1942.
SANTOS, Douglas. A reinvenção do espaço; diálogos em WRIGHT, John K. Terrae Incognitae: The place of the
torno da construção do significado de uma catego- imagination in Geography. Annals of the Association
ria. São Paulo: Editora da Unesp, 2002. of American Geographers, v. 37, n. 1, p. 1-15, 1947.

Texto apresentado na mesa redonda Práticas de ensino para uma sociedade imagética: diferentes linguagens e
novas tecnologias, no 7º Encontro Nacional de Prática de Ensino de Geografia (Vitória, setembro de 2003).

Resumo Abstract
Embora a Geografia seja uma disciplina predominantemente Although Geography is a predominantly visual discipline that
visual que tem no mapa um dos seus recursos mais poderosos, claims the map as one of its most powerful tools, spatial
as representações do espaço estão ameaçadas de perder seu representations are threatened to lose their meaning in our
significado numa sociedade sobrecarregada de imagens. Por image-laden society. For this reason, Cartography must be
esta razão, a Cartografia deve ser valorizada como uma lin- appraised as a communication language by excellence in order
guagem de comunicação por excelência para exprimir idéias e to express ideas and emotions about the world that is directly
sentimentos sobre o mundo direta ou indiretamente experi- or indirectly experienced. It is suggested a complementary
mentado. Sugere-se uma abordagem complementar à Carto- approach to scientific Cartography, laying emphasis on
grafia científica, enfatizando os mapeamentos funcionais e a functional mapping and everyone’s spatial creativity and
criatividade e a imaginação espacial de cada pessoa, o que imagination, which will be illustrated by several concrete
será ilustrado através de diversos exemplos concretos. examples.

Palavras-chave Keywords
Linguagem cartográfica – Mapeamento funcional – Cartogra- Cartographic language – Functional mapping – Social
fia Social. Cartography.

60 GEOGRAFARES, Vitória, no 4, 2003

Você também pode gostar