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Negócios,
política
e sexo –
a revista
Playboy
do Brasil,
1975-80
Verónica Giordano
Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro
Divulgação
dade adquiriram maior visibilidade na esfera da censura, o título original Playboy teve
do público: da ciência aos artefatos culturais. que ser omitido (Mira, 2001; Scalzo, 2003).
As teorias da modernização se concen- A Abril é uma empresa de sucesso, hoje
traram no estudo de três dimensões: desen- transformada em um poderoso grupo mul-
volvimento econômico; burocratização e timída. Foi fundada e, durante muitos anos,
democratização da vida política; e diferen- dirigida por Victor Civita (até sua morte,
ciação da estrutura social. Diferentemente em agosto de 2007). Civita nasceu em Nova
dessas teorias, que concebiam a mudança York, no seio de uma família judaico-italia-
como algo linear e acumulativo, eu propo- na, em 1907. Pouco tempo depois, sua famí-
nho aqui entender a modernização como lia retornou à Itália, mas, em 1939, com o
um processo de mudança social amplo, que início da Segunda Guerra Mundial, Victor se
comporta uma rede de muitos diversos pro- radicou nos Estados Unidos, onde residiu por
cessos de mudança de menor escala cujas dez anos. Em 1941, também emigrado por
conexões devem ser rastreadas nas experiên- causa da guerra, seu irmão César havia se
cias históricas concretas (Tilly, 1991). Natu- instalado na Argentina, onde fundou a Edi-
ralmente, essas mudanças operam tanto no tora Abril. Ali, adquiriu a representação dos
nível econômico, político e social como tam- direitos para a América Latina dos produtos
bém no nível dos valores e dos sentidos que da companhia de Walt Disney. Em 1947, Cé-
os sujeitos sociais assumem individual e co- sar criou a firma Editora Abril no Brasil. Mas
letivamente. Desse ponto de vista, a moder- essa nunca operou até que seu irmão Victor,
nização opera como matriz de mudanças, animado pelo próprio César, encarregou-se
e o fenômeno Playboy é uma experiência dela dois anos depois. Pouco depois, lançou
histórica que surge dessa matriz. a revista O Pato Donald, que provocou furor
A marca Playboy nasceu nos Estados nas vendas (Mira, 2001; Scarzanella, 2009).
Unidos em 1953. Em sua primeira capa, No âmbito da experiência desenvolvimen-
Marilyn Monroe apareceu retratada, sinal tista do governo de Juscelino Kubitschek (1956-
inequívoco do caráter que definiria a re- 61), a Abril cresceu e diversificou sua oferta.
vista nos anos seguintes: a confluência de Nos anos 60, lançou produtos que, com o tem-
sexo, política e jornalismo. Imediatamente, po, tornaram-se ícones da empresa: Cláudia,
transformou-se em um estrondoso sucesso, Quatro Rodas, Realidade, Veja. E, em 1973,
liderando o mercado de revistas mascu- Nova. Essas revistas satisfaziam os diferentes
linas. Nos anos 70, a incipiente tendência segmentos sociais das classes médias que ha-
à transnacionalização do capital animou a viam surgido da experiência populista-desen-
criação de revistas homônimas em outros volvimentista anterior: os homens consumi-
países: Alemanha (1972), Itália (1972), Fran- dores da indústria do automóvel e do turismo
ça (1973), México (1976) e Espanha (1978). de estrada, as mulheres, que, a partir de seu
No Brasil, uma versão da Playboy teve sua acesso ao voto, ingressavam na coisa pública
primeira aparição em agosto de 1975 por (e mais tarde nas lutas femininas e feministas)
iniciativa da Editora Abril. e os jovens universitários (e setores intelectuais
A Abril havia solicitado autorização para em geral) interessados na atualidade política.
publicar uma tradução da Playboy norte-
-americana no mercado local, mas não obte- POLÍTICA:
ve resposta. Em 1973, o governo da ditadura A DOUTRINA DE
proibiu a circulação dessa revista estran- SEGURANÇA NACIONAL E
geira. A Abril procurou ocupar esse vazio O FENÔMENO PLAYBOY
lançando A Revista do Homem, uma publi-
cação que combinava materiais de produção Como se disse, A Revista do Homem,
nacional com outros cujos direitos perten- versão brasileira da Playboy, apareceu em
ciam à empresa norte-americana. Por causa um momento no qual vigorava uma ferre-
pansão (havia passado de editar sete títulos, normas relativas à censura impediam mostrar
entre 1950 e 1959, a 27, entre 1960 e 1969, os dois seios ou as duas nádegas de frente,
chegando a 121 entre 1970 e 1979). Com uma obrigando as empresas editoriais a recorrer
tiragem de 135 mil exemplares, o primeiro a truques e técnicas de desenho para dei-
número de Homem esgotou em poucos dias xar somente uma das partes a descoberto4.
(Villalta, 2002).
Os temas relativos à vida erótica e sexual SEXO:
das pessoas não foram privativos das revis- A VISÃO DE A REVISTA
tas masculinas. Também algumas revistas de DO HOMEM
atualidade, dirigidas ao público em geral, pu-
seram em discussão temas relativos ao sexo. Uma característica de A Revista do Ho-
Em janeiro de 1967, o número 10 da re- mem (e depois da Playboy) é que reuniu, em
vista Realidade, produto da Editora Abril, suas páginas, temas públicos e privados. Nes-
apresentou uma edição especial intitulada te trabalho, mostra-se o modo como a revista
“A Mulher Brasileira Hoje”. Na capa, liam- apresentou temas de atualidade nacional re-
-se frases tais como “Pesquisa: o que elas correndo ao tratamento dos mesmos no plano
pensam e querem”, “Confissões de uma moça das relações entre homens e mulheres, em
livre”, “Ciência: o corpo feminino”, “Eu me especial com referência ao sexo.
orgulho de ser mãe solteira”, “Por que a mu- A Playboy está dirigida a um público
lher é superior” e “Assista a um parto até o leitor masculino muito particular: o homem
fim”. O exemplar nunca chegou ao público. heterossexual, branco, urbano, moderno, de
No dia 30 de dezembro de 1966, o número classe média/alta, sem estado civil explicita-
foi confiscado por ordem da justiça, que a do ou preferencial (casado ou solteiro, tanto
censurou por considerá-la obscena e atenta- faz). A revista eleva o prazer, o humor, o cui-
tória contra a honra da mulher3. dado do corpo, o gosto refinado nos consu-
No dia 13 de agosto de 1975, simultanea mos (carros, bebidas, viagens, música, etc.)
mente ao lançamento de Homem, a revista como símbolos distintivos do homem mo-
Veja (também produto da Editora Abril) derno (e da mulher que este devia procurar).
abordou o tema do sexo de um ponto de vista Uma das características da Playboy é o
3 Ver: Veja Mulher, de científico, com o seguinte título de capa: “A fato de que as fotos eram consideradas pe-
maio de 2010. Na Inter-
net: http://veja.abril.
ciência do sexo”. É possível que o tratamento ças de arte e apareciam assinadas, graças à
com.br/especiais/mu- científico do assunto procurasse dar, ao deba- profissionalização do campo do fotojornalis-
lher/revista-censura- te sobre sexo e ao novo produto da empresa, mo que a modernização do país havia trazi-
da-p-012.html.
um marco de legitimidade. do consigo5. Do mesmo modo, as mulheres
4 Nesse mês, a Status
publicou seu número A Revista do Homem rapidamente virou retratadas eram mulheres famosas, contra-
69. Em alusão à posi- Playboy. Em abril de 1977, estampou em sua tadas pela empresa editorial para sua apa-
ção sexual, a capa da
revista proclamava:
capa a frase “Com o melhor da Playboy” rição como modelo de capa. Não se tratava
“Grátis um baralho (com uma tipografia menor, antecedendo o de apresentar mulheres simplesmente como
para você comemorar nome Homem) e estampou também o coe- corpos bonitos, e sim de apresentar mulheres
com a Status o número
69”. Também a revista lhinho que tornara famosa a marca norte- profissionais e de sucesso: atrizes, bailarinas,
Ele Ela, em seu número -americana. Em julho de 1978, finalmente modelos, etc.
133 do mês de maio,
anunciava em sua adotou o nome Playboy, seguido da frase “A As matérias publicadas na revista co-
capa: “Sem censura” revista do homem” em tipografia menor. Vá- briam áreas tais como: política, negócios, es-
(Costa, 2007).
rios autores coincidem em apontar que nesse porte, ciência, arte, moda, cinema, literatura.
5 B aitz (2003) ofere - ano a justiça decidiu a favor da Editora Três, Também havia páginas de humor, uma seção
ce uma interessante
visão da relação do que reclamava o direito exclusivo do nome denominada “Assessoria”, dedicada às cartas
fotojornalismo e do Homem por tê-lo registrado antes. dos leitores, e uma outra chamada “Pontos de
processo de moderni-
zação no que se refere Em abril de 1980, o governo permitiu Vista”, na qual se convidavam os leitores a
ao mundo das revistas. mostrar nus frontais. Até esse momento, as debater temas diversos. Outro aspecto inte-
Capas de Homem
e da versão brasileira
da Playboy das
décadas de 70 e 80
ressante da revista, muitas vezes inadverti- dade nacional eram um componente substan-
do, são as propagandas, que mostram aquilo tivo da revista (além, claro, das mulheres6).
que Preciado (2010) define como uma das Mais ainda, o entendimento do mundo era
características distintivas da marca Playboy: condição para o desfrute do belo – e a beleza
“o desdobramento do privado através dos era qualidade das mulheres, mas também de
meios de comunicação”. Assim, promovem- outros objetos de consumo (roupas, carros,
-se cigarros, joias, perfumes, roupas, carros, cigarros, etc.).
linhas aéreas (para alcançar os destinos de Vejamos um exemplo de como a revista
lazer e turismo), bancos e instituições finan- deu conta de temas de atualidade política na-
ceiras (para administrar o dinheiro), etc. cional, levando-os ao plano das relações en-
No seu primeiro número, Homem se tre homens e mulheres com relação ao sexo.
apresentou em uma nota editorial assinada No número de junho de 1976, Homem
pelo próprio Victor Civita, intitulada “De discutiu as posições da Igreja Católica sobre
Homem para Homem”, uma seção que, jun- moral sexual, depois que o papa publicou a
to com as apontadas acima, seria típica da Declaração sobre Alguns Pontos de Ética
revista. Sexual (1975). Para isso, reuniu o cardeal
Debaixo daquele título, em seguida se lê: Paulo Evaristo Arns, o médico psicanalista
“Uma nova revista”; “Um país novo”; “Um Hélio Pellegrino, o deputado federal (MDB-
novo homem”. Como já se disse, Homem/ -SP) Freitas Nobre, Sarah de Castro Barbosa,
Playboy surgiu de um processo de moder- a quem apresentam como professora de física
nização mais amplo que, entre outras coisas, na PUC-RJ e “mãe”, e Zélio e Ciça, humoris-
trouxe consigo a “revolução sexual”. No en- tas “vivendo a prática do casamento cristão”.
tanto, essas declarações de Homem, antes de Segundo Homem, do debate
se inscreverem na onda de minissaias e pílu-
las anticoncepcionais, acoplavam-se ao ideal “Não surgiu uma fórmula mágica de com-
de “revolução” da ditadura, cujo propósito portamento, nem esse era o objetivo: quere-
era modernizar o país – o regime, a rigor, mos – será muito? – que, dos diferentes ca-
propôs-se a “reconstrução econômica, finan- minhos abertos por diversas formas de ver
ceira, política e moral do Brasil” (Preâmbulo a Igreja, o sexo e o mundo, cada leitor trace
do AI-1). Isso nos dá uma primeira impres- seu próprio. O que não é tão difícil como
são sobre o posicionamento de Homem. Uma parece, em nenhuma área, embora sempre
revista nova, mas nem tanto. implique riscos”.
A nota editorial continua assim:
Essas linhas oferecem uma cabal medida
“Homem exigente num país que se trans- do tom “liberal” com que a revista (e a em-
forma dia a dia. Nunca, como agora, exis- presa Abril) se apresentou. Não obstante, foi
tiram maiores oportunidades para o homem um liberalismo atento às constrições políti-
conhecer-se melhor e entender o mundo que cas: “será muito?”, “riscos”.
o cerca. […] Entendendo seu mundo torna- Isso também se observa na composição
-se exigente, na medida em que vê as coisas do grupo convocado para o debate: a psica-
com lucidez e ideias arejadas, podendo amar nálise era uma disciplina científica, mas das
6 A nota continua: “Tudo e usufruir o que é bom, sofisticado e belo. mais controvertidas; Arns ocupava um alto
isso sem desprezar as
[…] Revista que interessa ao homem no seu posto na Igreja, mas também se destacava
boas coisas da vida:
uma bela viagem, o lazer, no seu prazer intelectual e também pela luta pelos direitos humanos; Zélio, um
melhor som, boas profissionalmente”. dos fundadores de O Pasquim, jornal que,
bebidas, roupa ele-
gante, um belo iate. através do humor, enfrentou a ditadura, e
E, naturalmente, nas Assim, nesse primeiro número, Homem sua esposa Ciça (ambos censurados) foram
doses certas, um outro
assunto de grande definia claramente o perfil de seus leitores. apresentados como humoristas mas também
interesse: a mulher”. Em função desse perfil, os temas de atuali- como casal exemplar; o deputado Freitas
B I B LI O G R AFIA