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textos

Negócios,
política
e sexo –
a revista
Playboy
do Brasil,
1975-80
Verónica Giordano
Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro
Divulgação

Capas das primeiras edições de Homem e da Playboy brasileira

150 REVISTA USP • São Paulo • n. 95 • p. 150-158 • SETEMBRO/OUTUBRO/NOVEMBRO 2012


E
m 2010, foi publicado mocrática. É que a Playboy do Brasil surgiu VERÓNICA
GIORDANO
Pornotopía. Arquitec- em 1975, no contexto do regime autoritário. é professora
tura y Sexualidad en Seu surgimento na cena midiática é parte adjunta da Oficina
de Pesquisa em
“Playboy”Durante la de um processo de modernização que remon- Sociologia Histórica
Guerra Fría, da filó- ta aos anos 50 (e atravessa os radicalizados da América Latina do
Curso de Sociologia
sofa espanhola Beatriz anos 60), tal como mostra Preciado em seu da Universidade
Preciado, um livro es- Pornotopía. Nesse sentido, a Playboy Brasil de Buenos Aires
(Argentina).
timulante que oferece uma leitura da “defi- fez questionamentos aos modelos de domes-
nição arquitetônico-midiática da pornogra- ticidade, mas isso não constituiu um fenôme-
fia, da domesticidade e do espaço público” no novo. O elemento novo, se se quiser, é que
condensada na marca Playboy. Nele, a autora introduziu visões do sexo e da sexualidade de
detecta a emergência de um novo discurso rupturas no âmbito de um regime autoritário
sobre o gênero (e o sexo e a sexualidade) no que se assentou sobre – e promoveu – visões
contexto da Guerra Fria e aponta, especial- conservadoras e que praticou o terrorismo
mente, a emergência de novos códigos de de Estado contra a “subversão” da ordem2.
representação da masculinidade: a Playboy Por último, cabe dizer que o presente
1 D
 iferentemente da
coloca em questão a ordem espacial, provo- artigo explora o caso da Playboy do Brasil, ver­s ão nor te-ame-
cando uma “revolução” do espaço doméstico, mas é parte de uma pesquisa sociológico-his- ricana da Playboy, a
brasileira foi muito
que aparece colonizado pelos homens através tórica de mais fôlego sobre a relação sexo(s), menos estudada. En-
do protótipo do playboy de roupão de seda política e ditadura no Brasil e na Argentina, tre os trabalhos que a
e pantufas em seu quarto de solteiro. Assim, casos que se comparam a partir de alguns
estudam, destacam-
-se: O Leitor e a Banca
segundo afirma a autora, a “pornotopia” empreendimentos culturais dos anos 70. de Revista: o Caso da
emerge como uma contranarrativa do mo- Editora Abril, tese de

delo de família nuclear, unidade de produção NEGÓCIOS: doutorado de Maria


Celeste Mira (São Pau-
e consumo das sociedades modernas1. A MODERNIZAÇÃO lo, Unicamp, 1997),
publicada como livro
Este artigo se coloca em uma perspectiva COMO MATRIZ (Mira, 2001); e a tese de
similar à apontada acima, indagando, neste DE MUDANÇAS E O doutorado de Maria
da Conceição Fonseca
caso, sobre alguns dos temas que a revista
FENÔMENO PLAYBOY Silva, Os Discursos do
Playboy do Brasil pôs em circulação no pe- Cuidado de Si e da Se-
ríodo 1975-80. Em particular, mostra como A modernização é um processo que ocor- xualidade em Cláudia,
Nova e Playboy (São
a revista deu conta de temas de atualidade re no âmbito da modernidade. É um processo Paulo, Unicamp, 2003),
política nacional, levando-os ao plano das re- que resultou do segundo pós-guerra, quan- publicada como livro
(Silva, 2007).
lações entre homens e mulheres, em especial do se configurou um mundo bipolar e os
2  Essa tensão é pró-
com referência ao sexo. Assim, a revista une Estados Unidos emergiram como potência pria das ditaduras do
de maneira inovadora a domesticidade e o hegemônica sobre as sociedades ocidentais. Cone Sul e de seus
espaço público, colocando o sexo como elo A modernidade havia imposto uma severa pro­jetos de moderni-
zação conservadora.
vinculante. Ela não só coloca em discussão – moral sexual, ordenando e disciplinando as Isso se expressa em
e, por que não, em questão – o modelo de fa- condutas de homens e mulheres, e afirmando múltiplas dimensões.
Para uma interpreta-
mília nuclear, como também, colocando em como objetivo a reprodução antes do prazer e ção da ampliação dos
primeiro plano o doméstico (mas unido com do desejo. Com o advento da modernização direitos civis das mu-
lheres na Argentina e
o público), o apresenta como uma válvula de houve uma notável mudança de valores e sen- no Brasil nesta chave,
escape para o enclausuramento da política de- sos comuns e, com isso, o sexo e a sexuali- ver Giordano (2007).

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dade adquiriram maior visibilidade na esfera da censura, o título original Playboy teve
do público: da ciência aos artefatos culturais. que ser omitido (Mira, 2001; Scalzo, 2003).
As teorias da modernização se concen- A Abril é uma empresa de sucesso, hoje
traram no estudo de três dimensões: desen- transformada em um poderoso grupo mul-
volvimento econômico; burocratização e timída. Foi fundada e, durante muitos anos,
democratização da vida política; e diferen- dirigida por Victor Civita (até sua morte,
ciação da estrutura social. Diferentemente em agosto de 2007). Civita nasceu em Nova
dessas teorias, que concebiam a mudança York, no seio de uma família judaico-italia-
como algo linear e acumulativo, eu propo- na, em 1907. Pouco tempo depois, sua famí-
nho aqui entender a modernização como lia retornou à Itália, mas, em 1939, com o
um processo de mudança social amplo, que início da Segunda Guerra Mundial, Victor se
comporta uma rede de muitos diversos pro- radicou nos Estados Unidos, onde residiu por
cessos de mudança de menor escala cujas dez anos. Em 1941, também emigrado por
conexões devem ser rastreadas nas experiên- causa da guerra, seu irmão César havia se
cias históricas concretas (Tilly, 1991). Natu- instalado na Argentina, onde fundou a Edi-
ralmente, essas mudanças operam tanto no tora Abril. Ali, adquiriu a representação dos
nível econômico, político e social como tam- direitos para a América Latina dos produtos
bém no nível dos valores e dos sentidos que da companhia de Walt Disney. Em 1947, Cé-
os sujeitos sociais assumem individual e co- sar criou a firma Editora Abril no Brasil. Mas
letivamente. Desse ponto de vista, a moder- essa nunca operou até que seu irmão Victor,
nização opera como matriz de mudanças, animado pelo próprio César, encarregou-se
e o fenômeno Playboy é uma experiência dela dois anos depois. Pouco depois, lançou
histórica que surge dessa matriz. a revista O Pato Donald, que provocou furor
A marca Playboy nasceu nos Estados nas vendas (Mira, 2001; Scarzanella, 2009).
Unidos em 1953. Em sua primeira capa, No âmbito da experiência desenvolvimen-
Marilyn Monroe apareceu retratada, sinal tista do governo de Juscelino Kubitschek (1956-
inequívoco do caráter que definiria a re- 61), a Abril cresceu e diversificou sua oferta.
vista nos anos seguintes: a confluência de Nos anos 60, lançou produtos que, com o tem-
sexo, política e jornalismo. Imediatamente, po, tornaram-se ícones da empresa: Cláudia,
transformou-se em um estrondoso sucesso, Quatro Rodas, Realidade, Veja. E, em 1973,
liderando o mercado de revistas mascu- Nova. Essas revistas satisfaziam os diferentes
linas. Nos anos 70, a incipiente tendência segmentos sociais das classes médias que ha-
à transnacionalização do capital animou a viam surgido da experiência populista-desen-
criação de revistas homônimas em outros volvimentista anterior: os homens consumi-
países: Alemanha (1972), Itália (1972), Fran- dores da indústria do automóvel e do turismo
ça (1973), México (1976) e Espanha (1978). de estrada, as mulheres, que, a partir de seu
No Brasil, uma versão da Playboy teve sua acesso ao voto, ingressavam na coisa pública
primeira aparição em agosto de 1975 por (e mais tarde nas lutas femininas e feministas)
iniciativa da Editora Abril. e os jovens universitários (e setores intelectuais
A Abril havia solicitado autorização para em geral) interessados na atualidade política.
publicar uma tradução da Playboy norte-
-americana no mercado local, mas não obte- POLÍTICA:
ve resposta. Em 1973, o governo da ditadura A DOUTRINA DE
proibiu a circulação dessa revista estran- SEGURANÇA NACIONAL E
geira. A Abril procurou ocupar esse vazio O FENÔMENO PLAYBOY
lançando A Revista do Homem, uma publi-
cação que combinava materiais de produção Como se disse, A Revista do Homem,
nacional com outros cujos direitos perten- versão brasileira da Playboy, apareceu em
ciam à empresa norte-americana. Por causa um momento no qual vigorava uma ferre-

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nha ditadura (1964-85) que, diferentemente econômico que teve, durante o governo Mé-
de outras similares do Cone Sul, inspirou-se dici, um ponto culminante: “o milagre bra-
em uma doutrina de segurança nacional e de- sileiro”. Um traço distintivo da ditadura do
senvolvimento – sendo este último conceito, Brasil foi a aliança que sustentou o regime
de algum modo, uma pauta de continuidade durante longos anos: a aliança tecnoburocrá-
com o desenvolvimentismo anterior. tica militar com as burguesias nacionais e o
Como também se disse, a revista ofereceu capital transnacional.
um espaço de sociabilidade de características Nesse âmbito, a estratégia empresarial
contrastantes com a ordem conservadora pro- da Abril esteve alinhada com os objetivos
movida pela ditadura, que celebrava a família geopolíticos da ditadura. A integração nacio-
e a maternidade e censurava o desfrute sexu- nal através da ampliação do mercado interno
al e o erotismo, acusando-os de subversivos. tanto como a integração do Brasil com o sis-
No plano político, o presidente Artur da tema internacional (ao lado dos países mais
Costa e Silva (1967-69) iniciou uma fase de desenvolvidos, daí a consignação “Brasil, po-
endurecimento do regime quando decretou tência”) eram objetivos comuns do Estado e
o Ato Institucional no 5(AI-5) em dezembro da editora. Essa coincidência pode explicar
de 1968, que suspendeu a garantia de habeas a licença que a Abril obteve para fazer pu-
corpus e deu mais amplos poderes ao Poder blicações contrárias à “moral da sociedade
Executivo. Em 1967, aprovou-se uma nova brasileira” e a condescendência com que tra-
constituição e uma nova Lei de Imprensa tou problemas de fundo da política nacional.
(no 5.250 de 9 de fevereiro). Em 1969, promul- Em 1974, assumiu a presidência o general
gou-se a Lei de Segurança Nacional (Decreto- Ernesto Geisel, que iniciou um processo de
-lei no 898, de 29 de setembro). Essas foram “distensão”, em seus próprios termos, con-
engrenagens-chave da rede institucional que a cebida como “lenta, gradual e segura”. Esse
“revolução” (assim se autoproclamou a ditadu- processo foi muito limitado, o que se eviden-
ra) montou para a consecução de seu projeto cia no fato de que a revogação do AI-5 ocor-
constitutivo de “segurança e desenvolvimento”. reu apenas em 1979, no final do seu mandato.
Em 1970, as limitações às liberdades de O lançamento de A Revista do Homem,
expressão e de imprensa foram ainda mais em agosto de 1975, é um fenômeno que se in-
longe quando o presidente Emílio Garrasta- sere nessa complexa trama de modernização
zu Médici (1969-74) decretou a censura pré- no Brasil, uma modernização que, como se
via (Decreto-lei no 1.077, de 26 de janeiro). disse, teve um caráter conservador (Moore,
A Divisão de Censura do Departamento de 1973). Homem não foi a primeira publicação
Polícia Federal, situada em Brasília, vigia- brasileira que incursionou no espaço de revis-
va o que podia ser publicado e o que não. tas masculinas. Em novembro de 1966 havia
Entre outras coisas, o texto da lei sustenta- aparecido a revista Fairplay: a Revista do Ho-
va que “algumas revistas” faziam “publica- mem, da Editora Efecê do Rio de Janeiro (até
ções obscenas” e insinuavam o “amor livre”, agosto de 1971, pois foi gravemente afetada
amea­çando “destruir os valores morais da pelo clima de censura e repressão). A Fairplay
sociedade brasileira”, obedecendo a “um publicava fotos de mulheres seminuas. Mais
plano subversivo” que punha “em risco a se- tarde, em maio de 1969, apareceu a revista Ele
gurança nacional”. Essa norma atingia não só Ela, da empresa Bloch Editores, cujo slogan
a pornografia como também as expressões de era “uma revista para ler a dois”. Em 1974
erotismo em geral (Costa, 2007). apareceu Status, da Editora Três, que chegou a
No plano econômico, o governo Costa ter uma tiragem de 700 mil exemplares, com-
e Silva, de orientação nacionalista, assumiu petindo com Homem até 1987, quando deixou
posições orientadas a proteger os interesses de ser editada (Mira, 2001; Scalzo, 2003).
dos empresários industriais nacionais. Assim Quando a editora Abril lançou Homem, a
se iniciou uma fase de rápido crescimento empresa estava em um momento de forte ex-

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pansão (havia passado de editar sete títulos, normas relativas à censura impediam mostrar
entre 1950 e 1959, a 27, entre 1960 e 1969, os dois seios ou as duas nádegas de frente,
chegando a 121 entre 1970 e 1979). Com uma obrigando as empresas editoriais a recorrer
tiragem de 135 mil exemplares, o primeiro a truques e técnicas de desenho para dei-
número de Homem esgotou em poucos dias xar somente uma das partes a descoberto4.
(Villalta, 2002).
Os temas relativos à vida erótica e sexual SEXO:
das pessoas não foram privativos das revis- A VISÃO DE A REVISTA
tas masculinas. Também algumas revistas de DO HOMEM
atualidade, dirigidas ao público em geral, pu-
seram em discussão temas relativos ao sexo. Uma característica de A Revista do Ho-
Em janeiro de 1967, o número 10 da re- mem (e depois da Playboy) é que reuniu, em
vista Realidade, produto da Editora Abril, suas páginas, temas públicos e privados. Nes-
apresentou uma edição especial intitulada te trabalho, mostra-se o modo como a revista
“A Mulher Brasileira Hoje”. Na capa, liam- apresentou temas de atualidade nacional re-
-se frases tais como “Pesquisa: o que elas correndo ao tratamento dos mesmos no plano
pensam e querem”, “Confissões de uma moça das relações entre homens e mulheres, em
livre”, “Ciência: o corpo feminino”, “Eu me especial com referência ao sexo.
orgulho de ser mãe solteira”, “Por que a mu- A Playboy está dirigida a um público
lher é superior” e “Assista a um parto até o leitor masculino muito particular: o homem
fim”. O exemplar nunca chegou ao público. heterossexual, branco, urbano, moderno, de
No dia 30 de dezembro de 1966, o número classe média/alta, sem estado civil explicita-
foi confiscado por ordem da justiça, que a do ou preferencial (casado ou solteiro, tanto
censurou por considerá-la obscena e atenta- faz). A revista eleva o prazer, o humor, o cui-
tória contra a honra da mulher3. dado do corpo, o gosto refinado nos consu-
No dia 13 de agosto de 1975, simultanea­ mos (carros, bebidas, viagens, música, etc.)
mente ao lançamento de Homem, a revista como símbolos distintivos do homem mo-
Veja (também produto da Editora Abril) derno (e da mulher que este devia procurar).
abordou o tema do sexo de um ponto de vista Uma das características da Playboy é o
3 Ver: Veja Mulher, de científico, com o seguinte título de capa: “A fato de que as fotos eram consideradas pe-
maio de 2010. Na Inter-
net: http://veja.abril.
ciência do sexo”. É possível que o tratamento ças de arte e apareciam assinadas, graças à
com.br/especiais/mu- científico do assunto procurasse dar, ao deba- profissionalização do campo do fotojornalis-
lher/revista-censura- te sobre sexo e ao novo produto da empresa, mo que a modernização do país havia trazi-
da-p-012.html.
um marco de legitimidade. do consigo5. Do mesmo modo, as mulheres
4  Nesse mês, a Status
publicou seu número A Revista do Homem rapidamente virou retratadas eram mulheres famosas, contra-
69. Em alusão à posi- Playboy. Em abril de 1977, estampou em sua tadas pela empresa editorial para sua apa-
ção sexual, a capa da
revista proclamava:
capa a frase “Com o melhor da Playboy” rição como modelo de capa. Não se tratava
“Grátis um baralho (com uma tipografia menor, antecedendo o de apresentar mulheres simplesmente como
para você comemorar nome Homem) e estampou também o coe- corpos bonitos, e sim de apresentar mulheres
com a Status o número
69”. Também a revista lhinho que tornara famosa a marca norte- profissionais e de sucesso: atrizes, bailarinas,
Ele Ela, em seu número -americana. Em julho de 1978, finalmente modelos, etc.
133 do mês de maio,
anunciava em sua adotou o nome Playboy, seguido da frase “A As matérias publicadas na revista co-
capa: “Sem censura” revista do homem” em tipografia menor. Vá- briam áreas tais como: política, negócios, es-
(Costa, 2007).
rios autores coincidem em apontar que nesse porte, ciência, arte, moda, cinema, literatura.
5  B aitz (2003) ofere - ano a justiça decidiu a favor da Editora Três, Também havia páginas de humor, uma seção
ce uma interessante
visão da relação do que reclamava o direito exclusivo do nome denominada “Assessoria”, dedicada às cartas
fotojornalismo e do Homem por tê-lo registrado antes. dos leitores, e uma outra chamada “Pontos de
processo de moderni-
zação no que se refere Em abril de 1980, o governo permitiu Vista”, na qual se convidavam os leitores a
ao mundo das revistas. mostrar nus frontais. Até esse momento, as debater temas diversos. Outro aspecto inte-

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Capas de Homem
e da versão brasileira
da Playboy das
décadas de 70 e 80

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ressante da revista, muitas vezes inadverti- dade nacional eram um componente substan-
do, são as propagandas, que mostram aquilo tivo da revista (além, claro, das mulheres6).
que Preciado (2010) define como uma das Mais ainda, o entendimento do mundo era
características distintivas da marca Playboy: condição para o desfrute do belo – e a beleza
“o desdobramento do privado através dos era qualidade das mulheres, mas também de
meios de comunicação”. Assim, promovem- outros objetos de consumo (roupas, carros,
-se cigarros, joias, perfumes, roupas, carros, cigarros, etc.).
linhas aéreas (para alcançar os destinos de Vejamos um exemplo de como a revista
lazer e turismo), bancos e instituições finan- deu conta de temas de atualidade política na-
ceiras (para administrar o dinheiro), etc. cional, levando-os ao plano das relações en-
No seu primeiro número, Homem se tre homens e mulheres com relação ao sexo.
apresentou em uma nota editorial assinada No número de junho de 1976, Homem
pelo próprio Victor Civita, intitulada “De discutiu as posições da Igreja Católica sobre
Homem para Homem”, uma seção que, jun- moral sexual, depois que o papa publicou a
to com as apontadas acima, seria típica da Declaração sobre Alguns Pontos de Ética
revista. Sexual (1975). Para isso, reuniu o cardeal
Debaixo daquele título, em seguida se lê: Paulo Evaristo Arns, o médico psicanalista
“Uma nova revista”; “Um país novo”; “Um Hélio Pellegrino, o deputado federal (MDB-
novo homem”. Como já se disse, Homem/ -SP) Freitas Nobre, Sarah de Castro Barbosa,
Playboy surgiu de um processo de moder- a quem apresentam como professora de física
nização mais amplo que, entre outras coisas, na PUC-RJ e “mãe”, e Zélio e Ciça, humoris-
trouxe consigo a “revolução sexual”. No en- tas “vivendo a prática do casamento cristão”.
tanto, essas declarações de Homem, antes de Segundo Homem, do debate
se inscreverem na onda de minissaias e pílu-
las anticoncepcionais, acoplavam-se ao ideal “Não surgiu uma fórmula mágica de com-
de “revolução” da ditadura, cujo propósito portamento, nem esse era o objetivo: quere-
era modernizar o país – o regime, a rigor, mos – será muito? – que, dos diferentes ca-
propôs-se a “reconstrução econômica, finan- minhos abertos por diversas formas de ver
ceira, política e moral do Brasil” (Preâmbulo a Igreja, o sexo e o mundo, cada leitor trace
do AI-1). Isso nos dá uma primeira impres- seu próprio. O que não é tão difícil como
são sobre o posicionamento de Homem. Uma parece, em nenhuma área, embora sempre
revista nova, mas nem tanto. implique riscos”.
A nota editorial continua assim:
Essas linhas oferecem uma cabal medida
“Homem exigente num país que se trans- do tom “liberal” com que a revista (e a em-
forma dia a dia. Nunca, como agora, exis- presa Abril) se apresentou. Não obstante, foi
tiram maiores oportunidades para o homem um liberalismo atento às constrições políti-
conhecer-se melhor e entender o mundo que cas: “será muito?”, “riscos”.
o cerca. […] Entendendo seu mundo torna- Isso também se observa na composição
-se exigente, na medida em que vê as coisas do grupo convocado para o debate: a psica-
com lucidez e ideias arejadas, podendo amar nálise era uma disciplina científica, mas das
6 A nota continua: “Tudo e usufruir o que é bom, sofisticado e belo. mais controvertidas; Arns ocupava um alto
isso sem desprezar as
[…] Revista que interessa ao homem no seu posto na Igreja, mas também se destacava
boas coisas da vida:
uma bela viagem, o lazer, no seu prazer intelectual e também pela luta pelos direitos humanos; Zélio, um
melhor som, boas profissionalmente”. dos fundadores de O Pasquim, jornal que,
bebidas, roupa ele-
gante, um belo iate. através do humor, enfrentou a ditadura, e
E, naturalmente, nas Assim, nesse primeiro número, Homem sua esposa Ciça (ambos censurados) foram
doses certas, um outro
assunto de grande definia claramente o perfil de seus leitores. apresentados como humoristas mas também
interesse: a mulher”. Em função desse perfil, os temas de atuali- como casal exemplar; o deputado Freitas

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Nobre representava o partido da oposição (o À MANEIRA
oficialista era a Arena); e a professora de fí-
DE CONCLUSÃO
sica Castro Barbosa era uma mulher inserida
no mercado de trabalho, com uma profissão Posto que este trabalho oferece resulta-
relativa às ciências exatas, mas também mãe. dos preliminares de uma pesquisa que está
Quanto às opiniões vertidas, a tensão é apenas começando, ainda não é possível esta-
a mesma. O cardeal criticou que não se ti- belecer ideias concludentes. De modo provi-
vesse consultado os bispos e celebrou que, sório, pode-se dizer que a Playboy expressa
embora de um modo “clássico”, se falasse uma articulação entre negócios, política e
seriamente de questões como a masturbação. sexo que questiona os modelos de domesti-
Chamou a que, sem exaltar a homossexuali- cidade que funcionam como marcos sociais
dade (considerada um desvio), se valorizasse para o comportamento social considerado
o ser humano. Com relação ao matrimônio, correto no período estudado.
foi taxativo: monogamia e não às relações Goran Therborn (2004) distingue três bre-
sexuais pré-matrimoniais. O médico, que se ves períodos de concatenação internacional
autodefiniu como um mineiro profundamen- social e política: os anos da Primeira Guerra
te religioso, sustentou a posição mais críti- Mundial, os anos que se seguiram à Segunda
ca: que o pecado não era a masturbação, a Guerra Mundial, e depois de “1968”. A moder-
homossexualidade ou a heterossexualidade nização é um processo que se inicia a partir do
genital pré-conjugal e sim a “injustiça so- segundo desses momentos. A Playboy surgiu
cial”. E acrescentou que o documento era nos Estados Unidos em 1953, durante a pri-
infeliz porque favorecia a direita da Igreja meira conjuntura. A Playboy do Brasil surgiu
e a direita do mundo em geral. Freitas (“vi- em 1975, durante a terceira dessas conjunturas.
vemos numa sociedade criminogenética”) e A combinação do “inusual” com formas
Zélio (“no seu contra o relacionamento pré- “conservadoras” é uma marca de origem
-matrimonial”) também expressaram visões já na Playboy norte-americana (Conekin,
críticas. Ciça disse pouco (duas brevíssimas 2000). O caráter singular de Homem é a or-
intervenções), mas incisivamente colocou dem autoritária na qual se enquadrou. Nesse
o problema da desigualdade das mulheres âmbito, Homem não foi uma revista porno-
frente aos homens: “Eu acho o documento gráfica, nem meramente erótica. Ela serviu
falho na medida em que ele esqueceu de um de veículo para a discussão de temas de atua-
problema grave, a exploração da mulher”. A lidade política que levou ao plano da domes-
outra mulher, Sarah, também falou pouco, ticidade e das relações entre homens e mu-
e a única intervenção de conteúdo foi já no lheres, em especial com referência ao sexo.
final: “Posso dar o meu depoimento de mãe Embora sem um propósito militante, a
com relação ao assunto”. E falou da culpa Playboy colocou o sexo como elo vinculante
pela busca de prazer que observava em sua entre a esfera doméstica e a esfera pública.
filha de 11 anos. Disse ter tido uma conver- Isso teve uma dupla função: questionar o mo-
sa sobre masturbação com um pediatra, e delo de família nuclear moderno e abrir um
sustentou: “Não estimulei, mas também não espaço para a discussão de temas públicos
reprimi”. E continuou: “Parece que há um em circunstâncias da política democrática.
conceito de que a masturbação é prejudicial A Abril teve licença para tornar públicas
à saúde. Isso aí não está provado. Nenhum questões contrárias à “moral da sociedade bra-
pediatra me disse que era verdadeiro”. A sileira” em boa medida graças à coincidência
nota terminou com essas declarações. Em de interesses econômicos entre o regime e os
seguida, Homem publicou uma nota da empresários nacionais. Nesse cenário, a revis-
redação: “Esta não foi, de forma alguma, ta oscilou entre críticas à ordem e impressões
a última palavra. O debate continuou. E sensacionalistas com um objetivo econômico
continua: com a palavra, agora, o leitor”. e comercial que lhe deu ótimos resultados.

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B I B LI O G R AFIA

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158 REVISTA USP • São Paulo • n. 95 • p. 150-158 • SETEMBRO/OUTUBRO/NOVEMBRO 2012


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