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06/04/2016 História e historiografia do futebol brasileiro: da crise da tradição às novas epistemes

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História e historiografia do futebol brasileiro:
da crise da tradição às novas epistemes
La historia y la historiografía del fútbol brasileño: de la crisis de la tradición a las nuevas epistemes
Professor do Departamento de História Dr. Luiz Carlos Ribeiro  
  da Universidade Federal do Paraná ribeiro@ufpr.br
Coordenador do Núcleo de Estudos Futebol e Sociedade (Brasil)
 
 
Resumo
          O presente artigo pretende discutir como a tradição historiográfica brasileira sobre o futebol encontra­se comprometida com uma ideia de nação. Assim, falar de
futebol tem sido, antes de tudo, construir um processo identitário. O período histórico recente inaugura dois movimentos convergentes: um, de caráter histórico, com
  o esgotamento da ideia de Estado­nação; outro, epistêmico, com o desengajamento da ciência em relação à legitimação identitária da nação. Logo, objetiva­se discutir  
a possibilidade de se estudar o futebol brasileiro para além da necessidade de explicar o Brasil.
          Unitermos: História do Brasil. Historiografia do futebol brasileiro. Teoria da História.
 
http://www.efdeportes.com/ EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 15, Nº 149, Octubre de 2010. http://www.efdeportes.com/

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Introdução

        A  produção  historiográfica  brasileira  sobre  os  esportes  vem  experimentando  um  crescimento  lento,  porém
qualitativamente denso nos últimos anos. Estimulado pela abertura da História a novos temas e novos objetos e, mais
especificamente pela chamada História Cultural, os estudos sobre os esportes gradativamente conquista o estatuto de
tema sério na pesquisa científica.

        Dada  a  amplitude  do  assunto,  procuraremos  nesse  artigo  centrar  a  análise  em  dois  lugares  especiais  dessa
produção científica: a História, enquanto área de conhecimento e o futebol, enquanto um subgrupo do tema esporte.
Mais especificamente, pretendo me debruçar sobre aspectos da relação entre futebol e a historiografia brasileira, na
sua perspectiva predominante de uma produção engajada com a ideia de “formação do Brasil”.

        No  campo  específico  do  futebol  não  poderei  fazê­lo  a  partir  de  uma  produção  exclusiva  de  historiadores,  mas
tomando  os  empréstimos  saudáveis  da  Antropologia,  da  Sociologia  e  de  outras  ciências  irmãs.  Este  é  um  problema
que – enquanto historiador de formação – não me incomoda. Pelo contrário, ajuda­me a dissolver as idiossincrasias
das ciências estanques.

    Também, não pretendo um balanço geral ou descritivo, mas partilhar algumas reflexões a partir das minhas leituras
sobre um recorte próprio do que tem sido a produção historiográfica sobre o futebol no Brasil. Mais especificamente,
desejo problematizar determinada tradição historiográfica de reduzir estudos específicos da cultura nacional à ideia­
força  da  “formação  do  Brasil”,  quando  muitas  vezes  esta  simplifica  a  riqueza  do  singular  e  do  plural  de  nossa
experiência histórica.

A “formação nacional” como categoria de análise

        Apesar  de  muito  discutida,  essa  categoria  permanece  ainda  com  alguma  solidez  no  meio  político  e  intelectual
brasileiro. A historiadora Maria Stella Bresciani vem perseguindo essa discussão já há algum tempo, criticando essa
recorrência à formação do Brasil como um “lugar­comum” da nossa cultura política. (Bresciani, 2005) No campo da
Crítica  Literária  merece  destaque  o  pequeno  mas  incisivo  ensaio  de  Luiz  Costa  Lima,  a  respeito  da  relação  entre

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História da literatura e a formação da sociedade brasileira. (Lima, 2005)

    A crítica apresentada é que o peso da tradição historiográfica de procurar entender a formação histórica do Brasil,
o “caráter nacional” brasileiro, enfim, a identidade nacional, quase sempre submete e padroniza lugares singulares de
nossa cultura à função social (ou missão) de construir/compreender a nossa formação social enquanto nação.

    Isso acontece, por exemplo, com a matriz teórica produzida por Antônio Candido que, a partir de conceitos como a
“formação da literatura brasileira” pensa a literatura nacional como um sistema coeso e tem como ideia­força atribuir
aos  nossos  literatos  a  função  social  de  produzir  uma  consciência  nacional.  Candido  fundamenta  a  existência  desse
sistema a partir das formulações literárias e ideológicas de setor da elite nacional, ora restrita ao círculo oligárquico e
patriarcal,  ora  engajada  num  processo  nacional­popular,  mas  sempre  com  o  compromisso  (ou  missão)  de  fundar  a
nação.(Candido, 1975)

    Suas análises sobre o que denominou “sistema literário” encontram­se de tal modo envolvidas com a compreensão
do  Brasil  que  levou  Luiz  Costa  Lima  a  alertar  sobre  os  perigos  da  sua  estabilidade  e  permanência.  Estabilidade
perigosa  pela  durabilidade  de  um  modelo  explicativo  que  subordina  a  análise  literária  à  funcionalidade  social  da
formação identitária nacional. (Lima, 2005)

    O mesmo ocorre – mais recente e ainda incipiente – com a produção de categorias de análise da música popular
brasileira,  em  especial  com  a  elaboração  de  duas  categorias  afirmadas  como  fundamentais  à  sua  compreensão
enquanto fenômeno sócio­cultural: a definição de MPB (o que é a MPB?) e de engajamento. Analisada a partir dessas
elaborações teóricas, a MPB, assim como o consolidado na literatura, passa a ser pensada como um sistema cultural
internamente lógico. Os estudos sobre a MPB nos falam de setor de uma classe média progressista que identicamente
pretende fundar  a  nação,  tendo  com  o  pressuposto  a  resistência  popular  e  democrática  ao  regime  militar  dos  anos
1960/70. (Napolitano, 1999; Ulhôa)

    Nesse sentido, o paradigma da formação seria a obsessão intelectual e política de explicar o Brasil, a partir de certa
homogeneização. É um fenômeno que se encontra presente em nossa produção intelectual desde a segunda metade
do  século  XIX  e  se  estende  ainda  hoje.  Produziu­se  nesse  longo  percurso  um  núcleo  teórico  homogeneizador  da
cultura  nacional  A  força  de  permanência  dessa  ideia  fez  com  que  ela  se  tornasse  paradigma  explicador  de  nossa
cultura. Submeteu ou silenciou nossas alteridades culturais à funcionalidade de fundar o nacional brasileiro.

    Para darmos outros exemplos dessa postura, basta lembrar alguns produtos de nossa historiografia. Assim foi com
dois clássicos dos anos 1930/40, Sérgio Buarque  de  Holanda  e  Caio  Prado  Júnior.  Ambos,  de  formas  diferenciadas,
encontravam­se  envolvidos  em  explicar  o  Brasil.  Explicar  o  nosso  atraso  estrutural  ou  a  nossa  anomia.  Explicar  a
dificuldade em nos tornar republicanos, efetivamente democráticos, desenvolvidos, enfim, civilizados.

        O  caráter  de  permanência  do  paradigma  da  formação  também  é  observável  quando  analisamos  produções
intelectuais temporalmente distantes,  como  é  os  escritos  de  Gilberto  Freyre,  nos  anos  1930,  e  Darci  Ribeiro,  já  nos
anos  1980.  Assim,  já  no  primeiro  prefácio  de  Casa  Grande  & Senzala,  em  1933,  Freyre  reclamava  para  si  a  tarefa
intransferível de pensar a unidade nacional: “Era como se tudo dependesse de mim e dos de minha geração; da nossa
maneira de resolver questões seculares”. (Freyre, 1969: XXXI)

    A mesma preocupação acontece com a publicação, em 1987, do livro de Darci Ribeiro, O povo brasileiro, quando o
antropólogo pretendia explicar “a formação e o sentido do Brasil”. (Ribeiro, 1987) São duas gerações que muito bem
sintetizam a força e a permanência da ideia de explicar o Brasil.

    Por esse enfoque os estudos específicos sobre o cotidiano cultural brasileiro – como a literatura, a música popular
brasileira ou o futebol – assumem a função de preencher o paradigma explicador da formação e do caráter nacional.
Assim, apenas os elementos que se enquadram no modelo são considerados. Qualquer outro registro não coincidente

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é silenciado.

    Com  essa  mesma  preocupação  de  engajamento  com  o  nacional  se  encontra  a  obra  de Mário Filho, O  Negro  no
futebol brasileiro. (Mario Filho, 2003) Antonio Jorge Soares já apontara os limites de tomarmos de forma acrítica Mario
Filho como documento histórico. (Soares, 2001) Do meu ponto de vista, O Negro no futebol brasileiro tem menor valor
para compreender a formação histórica do futebol no Brasil. Sua importância maior é enquanto documento de época.
Enquanto marco de legitimação de determinado visão de mundo, da sociedade e do futebol brasileiro, respectivamente
nos anos 40 (1947 – 1ª edição) e 60 (1964 – 2ª edição). Mario Filho, na esteira do pensamento de Freyre, encontrava­
se no mesmo campo comum de atribuir a si a tarefa de construir o “caráter nacional” brasileiro. Assim, a ascensão do
negro  na  sociedade  brasileira,  através  do  futebol,  reforça  a  tese  freyreana  da  harmonia  entre  a  casa  grande  e  a
senzala.  Constrói  para  estudo  do  futebol  uma  categoria  de  análise  que  dissolve  as  contradições  sociais,  fazendo  a
apologia da harmonia social e racial no país.

    Os paradigmas do nosso jeito mulato e malandro de ser e de jogar futebol, transformaram identicamente o futebol
em um sistema. Apesar de ideologicamente diverso da visão do pensamento crítico de um Sérgio Buarque de Holanda
ou Caio Prado, também o futebol aparece referido ao povo, ora como sua identidade positiva (o jeito mulato de jogar
e de ser brasileiro) ora como negativa (a ingenuidade desse povo e/ou sua incapacidade de consciência crítica).

        Com  um  viés  marcadamente  marxista,  essa  preocupação  permaneceu  com  a  geração  de  intelectuais  que  os
sucedeu,  como  foram  os  casos  de  Boris  Fausto  e  os  sociólogos­historiadores,  Octavio  Ianni  e  Francisco  Weffort.
Apesar  da  profundidade  de  seus  estudos,  era  implícita  nesses  autores  a  intenção  de  desvelar  o  Brasil,  centrando  o
debate sempre na ideia política de “revolução”.

    De forma humanista, foram muitas vezes críticos radicais da cultura e da política nacional, sempre na preocupação
com o “povo” e na construção da cidadania.

    Certa vez Antonio Candido, ao procurar sintetizar o pensamento de Sérgio Buarque de Holanda, falou um pouco de
si mesmo e de toda uma geração de pensadores políticos:

        Sérgio  Buarque  de  Holanda  foi  o  primeiro  historiador  que  aludiu  à  necessidade  de  despertar  a
iniciativa  das  massas,  manifestando  assim  um  radicalismo  democrático  raro  naquela  altura  fora  dos
pequenos agrupamentos de esquerda. (Candido, 1998: 86)

    Eram pensadores que tinham preocupações em comum, e que predominaram no Brasil até os anos 1980, que era a
de atribuir para a si a tarefa militante e cidadã de pensar soluções para a nação e para o homem brasileiros. Para
eles, pensar o passado histórico do país confundia­se com a missão de salvá­lo de si mesmo.

    Essa postura engajada obviamente produziu narrativas sobre a formação brasileira comprometidas com as visões
de mundo dos narradores.

    Nessa trajetória, outro marco são os escritos de Roberto DaMatta, já nos anos 1980, sobre o futebol. (DaMatta,
1982) Enquanto antropólogo DaMatta inaugura  a  percepção  de  valores  comuns  da  cultura  nacional,  como  o  futebol,
mas permanece na tradição freyreana de explicar o Brasil. A plasticidade do nosso futebol explicava o Brasil, escrevia
o antropólogo, assim como já o fizera Freyre.

    Essa forma macunaímica de ver a nossa cultura esportiva se repete em trabalhos recentes, como por exemplo, A
dança dos deuses (2007), de Hilário Franco Júnior e Veneno remédio (2008), de José Miguel Wisnick. São obras muito
bem escritas, absolutamente envolventes, mas que enredam a narração num círculo místico sobre o futebol e o Brasil.
Encontram­se na mesma linha da narrativa épica de O Negro no futebol brasileiro, de Mario Filho.

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        A  obra  de  DaMatta  reproduz,  de  algum  modo,  a  mesma  estética  narrativa.  Identifica  futebol  e  povo  brasileiros
como  lugares  despolitizados.  Lugares  de  pureza  e  ingenuidade.  O  jeito  brasileiro  de  jogar  como  síntese  da  alma
nacional. Raciocínio muito parecido encontrado no romance sociológico de Wisnik.

        Há,  assim,  a  identificação  de  um  lugar  comum  entre  esses  autores.  Qual  seja  o  de  despolitizar  o  futebol  e  a
sociedade.  Como  se  harmonia,  no  campo  de  futebol  ou  na  sociedade,  fosse  uma  condição  atávica  do  homem
brasileiro. Essa postura na obra de Mario Filho pode ser tomada como vontade efetiva de intervir. Em DaMatta uma
herança intelectual, mas já sem a força de uma política. Em Wisnik é um efeito midiático.

        Assim,  os  trabalhos  recentes  de  Franco  Júnior  e  Wisnik  são  evidências  da  força  de  permanência  da  ideia  de
formação.  A  impressão  que  fica  é  que,  com  o  esgotamento  do  binômio  formação/revolução,  pautados  no  mote  do
povo  como  fator  de  mudança,  o  que  permaneceu  na  leitura  sobre  o  futebol  foi  a  mitificação  da  índole  pacífica  e
harmônica do homem brasileiro.

A fragilização do paradigma

        Sem  dúvida,  os  acontecimentos  dos  anos  1970/80  contribuíram  para  fragilizar  a  ideia  de  formação  quando,  de
forma  geral,  viveu­se  um  clima  de  esgotamento  das  ideologias.  No  plano  interno  brasileiro  o  regime  de  ditadura
imposta a partir do final de sessenta serviu para calar muitas daquelas vozes que afirmavam a ideia de formação ou
revolução como vontade nacional e popular.

    Ao longo dos anos 1970/80 a inteligência brasileira, ao mesmo tempo em que experimentou  uma  modernização


conservadora no plano econômico, viveu os anos sombrios da ditadura.

    Já nos países capitalistas desenvolvidos o boom econômico trouxe para  o  mercado  e  para  o  debate  intelectual  e


político uma massa de novos agentes, representados pelos movimentos universitários e de rua, de jovens, negros  e
mulheres. Na mesma direção da modernização econômica e impulsionada pela guerra fria, verificou­se nesses países
a diminuição da classe operária e, ao mesmo tempo, uma forte inclusão social impulsionada pela política do Welfare
State.

    No plano da militância intelectual e política – em termos europeus, sobretudo – ficava difícil sustentar o discurso da
revolução, fosse ela de caráter marxista ou liberal reformista. Iniciava­se, portanto, uma crise ideológica no marxismo
e nas esquerdas em geral em relação às ideias de revolução e de construção da nação, como se pode observar nesse
trecho do manifesto de encerramento das atividades da revista marxista francesa Socialisme ou Barbarie, assinado por
Cornelius Castoriadis, em junho de 1967:

    Já constatamos desde 1959 e a evolução ocorrida tem demonstrado esse diagnóstico: nas sociedades
capitalistas a atividade política propriamente dita tende a desaparecer. (Castoriadis, 1979: 312)

    Atividade política leia­se aqui, é luta de classes que, na visão do autor, havia se esgotada como teorema explicador
das  mudanças  sociais.  As  teorias  seguras  do  materialismo  histórico  cada  vez  menos  davam  conta  de  explicar  o
processo.  O  movimento  social  negro  nos  EUA  ou  a  luta  das  mulheres  por  direitos  específicos  eram  muito  mais
complexos que o binômio capital versus trabalho, proposto pelo marxismo vulgarizado.

    Nos anos 1980 a crise econômica mundial acelerou tanto o desmonte do império soviético, quanto o regime militar
no  Brasil.  É  verdade  que  a  experiência  da  redemocratização  no  Brasil  abriu  espaços  para  o  que  era  até  então
impossível no país: discutir as potencialidades e os limites de qualquer teoria crítica, em especial a marxista. Porém,
nesse  momento  grande  parte  da  inteligência  nacional  já  se  encontrava  despojada  das  explicações  seguras  do
marxismo e acabou momentaneamente num certo imobilismo. As várias ideias de revolução – que se discutira desde
os anos 1930 – quase todas centradas no princípio da autonomia nacional, haviam se esvaziadas com o golpe militar,

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com a estratégia capitalista europeia do “bem­estar” e, agora, com a crise das ideologias..

        A  retomada  da  expansão  capitalista  a  partir  dos  anos  1990,  caracterizada  pela  reestruturação  produtiva  e  pela
desregulamentação  dos  mercados,  acelerou  mais  ainda  o  processo  de  fragilização  dos  paradigmas  da  formação.
Impotentes para reafirmar os paradigmas totalizantes, tais como revolução e autonomia nacional, os cientistas sociais
perderam a força das explicações até então fundadas em teorias seguras. Da totalidade a História passou agora a se
fazer em migalhas, para usarmos a expressão do historiador francês François Dosse. (Dosse, 1992)

    É nesse quadro de uma História plural que os historiadores – no Brasil e no mundo – se abriram para novos temas,
como por exemplo, a História de gênero, da música popular, etc. Enfim uma história plural e voltada não apenas para
os tradicionais lugares seguros da política e da economia, mas também para os mais inusitados, como o cotidiano dos
homens comuns.

    E, ao realizar essa abertura a História demonstrou não ser possível fazê­la sozinha. Rompeu fronteiras e associou­
se a outras disciplinas, como a Sociologia, a Antropologia, a Psicologia, e Economia, o Direito e outras supostamente
mais  distantes,  como  as  áreas  da  saúde  e  do  corpo  humano.  Para  ser  plural  a  História  precisou  fazer­se  inter  e
transdisciplinar.

        O  Brasil  dos  anos  1990/2000  respirava  a  redemocratização  e  trazia  no  seu  rastro  a  pluralidade  política  como
alavanca à superação do imobilismo intelectual.

    Paradoxalmente era uma abertura que dissolvia grande parte das nossas certezas intelectuais, tais como a vontade
de revolução e os significados de nação e povo brasileiros. Uma abertura que ao mesmo tempo em que era imposta
pelas  reestruturações  do  mundo  globalizado,  era  desejada,  no  sentido  de  romper  tanto  os  ranços  do  regime
autoritário quanto os supostos atrasos econômicos.

    Aquele sentido da nossa atribuída “consciência nacional”, muito bem expresso na definição de Antonio Cândido a
respeito de Sérgio Buarque de Holanda (e de si mesmo), se desfazia nessa pluralidade.

    A impressão que fica é que, ao perdermos a ingenuidade da certeza da nossa consciência nacional, nos tornamos
distanciados dela. Perdemos o compromisso de falar dela e, sobretudo, da missão de salvá­la.

Novas epistemes

    De forma positiva, a crise dos modelos autoexplicados exigiu dos novos pesquisadores um envolvimento mais forte
com a pesquisa empírica. Pela exploração das experiências cotidianas e singulares procurou romper com aquela visão
de  totalidade,  fundada  em  pressupostos  cognitivos  anteriores,  o  que  implicou  numa  concepção  fragmentária  e  não
evolucionista ou teleológica da história. Buscou­se, enfim, eliminar os silêncios e as homogeneizações impostos pelas
grandes  explicações.  Não  se  trata,  noutra  perspectiva,  de  simplesmente  negar  os  modelos,  mas  de  submetê­los  à
experiência histórica e, desse modo, desautomatiza­los de explicações a priori. (Thompson, 1981; Castoriadis, 1992)

    No Brasil essa postura epistemológica encontrou condições de desenvolvimento com a ampliação dos programas de
pós­graduação. Junto com eles consolidam­se grupos ou núcleos de pesquisa como, por exemplo, o Núcleo de Estudos
Futebol e Sociedade, da UFPR, o GIEF (Grupo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol), da USP ou o GEFuT (Grupo
de Estudos sobre Futebol e Torcidas), da UFMG, e que recentemente lançou em parceria o Ministério dos Esportes um
levantamento da produção sobre o futebol na Ciências Sociais (Silva, 2009).

    Além, é claro, de outros que tratam dos esportes em geral, como o Laboratório de História do Esporte e do Lazer,
da  UFRJ.  Como  resultado  verifica­se  o  crescimento  da  pesquisa  regional  e  local.  No  caso  do  futebol,  por  exemplo,
registra­se  a  percepção  da  complexidade  da  prática  esportiva  no  país,  antes  reduzida  ao  eixo  Rio  de  Janeiro  e  São

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Paulo.  Hoje  encontramos  uma  diversidade  de  dissertações  e  teses  sobre  o  futebol  no  Paraná,  na  Bahia,  em
Pernambuco,  no  Rio  Grande  do  Sul  ou  em  Minas  Gerais.  Ou,  de  outro  modo,  estudos  com  recortes  temáticos  que
permitem estabelecer análises comparativas, não apenas entre as regiões brasileiras, mas com outros países. Apenas
à  quisa  de  exemplo,  cito  a  pesquisa  de  Victor  Melo  sobre  esportes  coloniais  e  pós­coloniais  em  países  africanos  de
língua portuguesa e mesmo a minha pesquisa atual, quando procuro analisar as relações econômicas e políticas entre
o  futebol  brasileiro  e  o  europeu.  (Ribeiro,  2007)  A  diversidade  também  se  manifesta,  por  exemplo,  na  análise
econômica, como os estudos de Marcelo W. Proni (Proni, 2000) ou de Anderson Gurgel (Gurgel, 2006) sobre mídia e
economia  do  futebol.  Na  área  do  Direito,  registro  o  trabalho  recente  de  Felipe  Ferreira  Silva,  sobre  o  sistema  de
tributação no futebol (Silva, 2009).

        O  apoio  que  as  instituições  públicas  de  fomento  vêm  dando  à  pesquisa  se  manifesta  também  na  realização  de
eventos,  permitindo  assim  a  divulgação  e  a  articulação  da  pesquisa.  Pela  minha  experiência  no  campo  da  História
destaco dois eventos: o grupo temático sobre esporte que se realiza desde 2003 no interior do simpósio nacional da
ANPUH, e o Congresso Nacional de História do Esporte, Educação Física, Lazer e Dança que caminha para a sua 12ª
edição.  Esses  são  apenas  alguns  exemplos  da  atual  produção  acadêmica  sobre  futebol  (e  esportes)  e  que  tem  se
pautado por um novo enfoque historiográfico de descolamento, mas não desconhecimento, da tradição missionária de
formar o Brasil.

    De todo modo, é preciso destacar que a maior parte dessa produção não ocorre na História, mas na Antropologia e
na  Sociologia  e,  sobretudo  entre  os  pesquisadores  da  área  da  Educação  Física.  Isso  revela  que  a  preocupação  em
compreender  o  futebol  (e  os  esportes  em  geral)  como  um  fenômeno  social  tem  sido  provocado  por  uma  exigência
profissional  da  Educação  Física,  na  medida  em  que  os  esportes  são  seus  objetos  centrais.  A  necessidade  de
compreender  os  esportes  para  além  dos  aspectos  técnicos  ou  fisiológicos  demandou  o  debate  histórico  e  social,
provocando o debate com as ciências humanas.

    Dessas, a área de História foi a que respondeu de forma lenta e a que mais resistiu (e ainda resiste) em assumir o
estudo  do  futebol  e  dos  esportes  como  um  tema  sério.  A  evidência  disso  é  de  que,  apesar  de  haver  excelentes
dissertações e teses sobre futebol e esportes sendo apresentadas nos programas de pós­graduação em História, elas
são acontecimentos isolados e não resultado da existência de linhas ou grupos de pesquisas consolidados.

    Considerando­se que um dos critérios da CAPES na avaliação dos programas de pós­graduação é a coerência das
dissertações e teses com relação a produção científica da linha de pesquisa e do orientador a que estejam vinculadas
–  o  que  entendo  como  uma  postura  correta  –  há  ainda  hoje  uma  enorme  dificuldade  em  se  encontrar  orientadores
interessados no tema. Salvo melhor juízo, existem atualmente apenas três programas de pós­graduação em História
no  Brasil  que  estejam  desenvolvendo  pesquisas  sobre  futebol  não  de  forma  isolada  ou  eventual,  mas  vinculados  a
núcleos de pesquisa. São os programas de Pós­Graduação em História Comparada, da IFCS/UFRF, sob a orientação
do Victor Andrade Melo, a Pós­Graduação em História Social, da USP, coordenado pelos professores Flávio de Campos
e  Hilário  Franco  Júnior  (curiosamente  dois  medievalistas)  e  o  pós  em  História  da  Universidade  Federal  do  Paraná,
coordenado  por  mim.  Pelo  menos  são  esses  programas  da  História  que  têm,  nos  últimos  anos,  marcado  presença
institucional  nos  eventos  em  que  se  discute  o  futebol.  Evidentemente,  faço  essa  afirmação  baseada  em  contatos
pessoais,  pois  certamente  devem  existir  grupos  em  formação,  os  quais  convido  a  ingressar  em  nossa  rede  de
contatos.

    O mesmo problema de reconhecimento ocorre em relação a aprovação de projetos de pesquisa junto a CAPES ou
CNPq, dada a dificuldade de encontrar pareceristas de História em condições de aceitar a legitimidade de se financiar
pesquisas históricas relacionadas ao futebol ou aos esportes.

    Faço essas observações relacionadas exclusivamente à área de História, pois sei que a realidade é diferente em
outras disciplinas. Mas, de todo modo, é instigante o fato de pesquisadores das áreas da Antropologia e de Sociologia

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não  ter  conseguido  realizar  em  seus  congressos  nacionais  –  respectivamente  a  ABA­Associação  Brasileira  de
Antropologia e a ANPOCS­Associação  Nacional  de  Ciências  Sociais  –  reuniões  temáticas  sobre  os  esportes  em  seus
últimos eventos.

        Também  não  escrevo  sobre  os  problemas  existentes  na  História  quanto  ao  desenvolvimento  dos  estudos  sobre
futebol, por que acredito que essa seja uma tarefa exclusiva  dessa  disciplina.  Como  coloquei  no  início  desse  artigo,
vejo a divisão da ciência em gavetas estanques um mal estar para o conhecimento científico. Sem dúvida são barreiras
que teremos de derrubar desde baixo se quisermos compreender as alteridades do fazer histórico.

        E  isso  tem  significado  a  historiadores  e  cientistas  sociais  um  esforço  em  construir  novas  referências  teóricas  e
metodológicas,  bem  como  um  banco  mínimo  e  original  de  fontes  históricas  sobre  o  futebol.  Uma  tarefa  que  tem
permitido  uma  constante  atualização  dos  modelos  de  interpretação  do  futebol  no  Brasil  e  no  mundo.  É  uma
preocupação com o rigor científico que, ao mesmo tempo, não dispensa o cientista social de compreender o aspecto
lúdico,  passional  e  mesmo  mítico  do  futebol,  o  que  é  um  grande  desafio.  Ou  seja,  as  novas  epistemologias  não
desaparecem  com  a  mística  de  explicar  o  futebol  pela  lógica  homogeneizadora  da  formação  (o  futebol  explica  o
Brasil),  mas  aplica  sobre  ela  um  esforço  de  desnaturalizá­la.  Afinal,  é  ingênuo  imaginar  que  a  mística  do  Brasil
mestiço possa se desfazer apenas pela crítica científica. Se não existe mais hoje a convicção na missão freyreana de
explicar o Brasil, a mídia globalizada refaz o tempo todo o “mulatismo flamboyant” através das embaixadas dos nossos
Ronaldinhos. Sem falar na simbologia universal de que todo jogador brasileiro é naturalmente bom de bola: “Em um
raciocínio de magia por similitude, ser brasileiro e jogador futebol é ser um bom jogador de futebol” (Rial, 2008).

    Se a produção científica sobre os esportes – como sobre a sociedade em geral – não guarda mais aquele caráter
missionário  de  salvar  o  país,  ainda  permanecem  resquícios  do  reducionismo  de  “o  futebol  explica  o  Brasil”.  Mas
começa­se a romper com aquela tradição narrativa e a construir novas categorias de análises minimamente seguras
para o campo.

    Para isso, é fundamental a exploração de novos referenciais teóricos, como por exemplo vem acontecendo com a
utilização  das  teorias  configuracional  (Elias)  e  de  campo  (Bourdieu).  Porém  o  uso  dessas  ferramentas  teóricas  não
pode  funcionar  como  mera  colagem,  como  se  os  modelos  fossem  autoexplicativos.  É  preciso  problematizá­los  e
atualizá­los à luz das experiências históricas diferenciadas. Evitar falar de “campo” ou “configuração” como a priori ou
figura  abstrata.  Elas  só  tem  significado  se  aplicados  historicamente.  O  campo  ou  a  configuração  são  o  que  são
historicamente. Se não conseguirmos falar deles de um ponto de vista social concreto, passam a ter pouco significado
para a compreensão histórica. Também esses modelos (ou categorias) vão se tornar automatizados, autorreferidos.

        Do  mesmo  modo  que  devemos  fazer  uma  crítica  fundamentada  aos  modelos  explicadores  do  Brasil  –  como  o
paradigma da formação – não podemos tomar de forma ingênua qualquer outro referencial teórico.

    Nesse sentido é preciso um alerta ao uso indiscriminado do conceito eliseano de “processo civilizador”, que algumas
vezes aparece nos escritos sobre futebol (e esporte em geral) como autoexplicado. É bastante conhecida a crítica do
significado de “sentido” e de “lei geral” que é dado ao conceito de processo em Elias, como por exemplo o comentário
feito por Renato Janine Ribeiro à edição brasileira de O processo civilizador:

        Tem  cabimento  apontar  um  sentido  na  história,  como  faz  Elias?  Pois,  ainda  que  o  sentido  seja
precário  em  seus  começos,  ele  termina  por  apoderar­se  do  ritmo  histórico,  ou  melhor  dizendo,  da
consciência e da fé do historiador, e este não mais se liberta do sentido que antes, apontou. (Ribeiro,
1994: 12)

    Sem poder aprofundar nesse artigo essa questão, em si muito complexa, faço o alerta apenas no sentido de não
imobilizarmos a riqueza teórica de Norbert Elias. Fazer a crítica aos modelos, tomando como referência a experiência

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histórica,  só  os  atualiza  e  enriquece.  Assim,  tão  importante  quanto  as  tendências  ao  monopólio  e  à  introjeção  do
autocontrole  da  violência,  como  nos  ensino  Elias,  estão  as  indeterminações  configuracionais.  Portanto,  explicar,  por
exemplo,  a  introdução  do  futebol  no  Brasil  no  final  do  século  XIX  e  início  do  XX  como  “resultado”  do  processo
civilizacional é ignorar toda a teoria configuracional das potencialidades e indeterminações e, por conseguinte, esvaziar
a teoria de valor e fazer uma história linear e teleológica. Ou seja, atribuir à teoria eliseana um significado de lei geral
da história.

    A mesma preocupação vale para com o conceito de campo de Pierre Bourdieu. Não temos espaço para abrir uma
discussão mais teórica sobre, mas desejo apenas registrar minha inquietação com relação a algum uso inadvertido do
conceito.

    Campo, na teoria proposta por Bourdieu representa um espaço simbólico, no qual a lutas dos agentes determinam,
validam,  legitimam  representações.  Nele  se  estabelece  uma  classificação  dos  signos,  do  que  é  adequado,  do  que
pertence ou não a um código de valores. A autonomia do campo é instituída por uma rede de poderes simbólicos que,
ao mesmo que o define, não se restringe ao sistema interno.

    O conhecimento das especificidades desse campo tem como ponto de partida a circunscrição mínima dos agentes e,
a  partir  daí,  elaborar  uma  descrição  densa  de  seus  habitus,  permitindo  assim  alguma  compreensão  da  rede  dos
poderes simbólicos.

    Se a História – assim como boa parte das ciências sociais – vem problematizando os paradigmas autoexplicadores
(aí  incluso  a  tradição  intelectual  de  reduzir  a  narrativa  histórica  ao  compromisso  de  salvação  nacional),  ela  se
compromete também em atualizar os modelos e as categorias análise, como os apresentados por Elias e Bourdieu.

        Como  então  enfrentar  o  problema  das  imposições  da  formação  que  sufocam  as  singularidades  do  campo?  A
resposta  será  dada  pelo  aprofundamento  da  pesquisa  sobre  as  especificidades  do  campo  esportivo  do  futebol.
Conhecer de forma mais contundente como se dá o funcionamento de seus mecanismos internos, sem perder de vista
as interações com a sociedade em geral.

    O sistema futebolístico, como qualquer campo social, tem as suas especificidades e a sua autonomia, entendendo
estas como práticas que são próprias do campo, mas que são socialmente constituídas.

    Isso exige minimamente mapear o campo, indicando os agentes que atuam internamente no sistema. Apenas para
ficar restrito ao futebol contemporâneo, podemos citar alguns temas ou agentes que necessitam ter seu conhecimento
minuciosamente tratado.

    Assim, por exemplo, precisamos conhecer mais e melhor o sistema administrativo do futebol mundial, nacional e
local,  que  vai  desde  a  FIFA  até  o  clube,  passando  pelas  ligas  continentais,  nacionais  e  regionais  (estaduais).
Compreender como e por que historicamente houve mudanças nesse sistema esportivo. Nesse caso, não se restringir
apenas  a  descrição  da  estrutura  governativa,  mas  problematizá­las  do  ponto  de  vista  de  suas  forças  econômicas  e
política. Perceber que atualmente a UEFA­Union of European Football Association, impulsionada pela força econômica
dos clubes europeus no mercado mundial iguala­se em termos de força política com a FIFA (órgão máximo do futebol)
e  praticamente  anula  a  função  das  federações  nacionais  europeias.  Fenômeno  oposto  com  que  ocorre  na  América
Latina, onde as federações nacionais – CBF (Brasil) e a AFA (Argentina) – têm mais força que a continental Conmebol.

        O  mesmo  estudo  necessita  ser  aprofundado  no  que  diz  respeito  à  carreira  dos  atletas  –  suas  origens,  seus
processos de formação, etc. – tema, aliás, que já vem sendo desenvolvido por uma excelente pesquisa antropológica
(Damo, 2007).

    As mudanças estruturais do futebol mundial vêm transformando o esporte numa atividade  relevante  na  vida  das

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pessoas e das sociedades. Por conseguinte o futebol vem se constituindo numa preocupação dos poderes públicos, em
especial  no  que  refere  à  sua  regulamentação  legal  e  jurídica.  Assim,  a  relação  entre  o  direito  esportivo  e  o  direito
comum ainda é pouco conhecida, apesar de reconhecer­se que cada vez mais o sistema futebolístico vem se pautando
por regras formais e legais. Por ser um tema ainda novo no sistema esportivo e mesmo nas ciências jurídicas, poucos
têm sido os estudos dedicados ao tema (Silva, 2009).

        A  complexa  rede  dos  meios  de  comunicação  (jornal,  rádio,  televisão,  revista,  telefonia  celular,  redes  de  banda
larga,  etc.)  tem  papel  decisivo  na  transformação  do  futebol  em  uma  das  mais  atrativas  (e  lucrativas)  indústrias  do
entretenimento.  É  impossível  falar  de  futebol  sem,  de  algum  modo,  tratar  dessas  mídias,  em  geral  e  nas  suas
especificidades. Mas, assim como  outros  exemplos  citados,  esses  agentes  não  podem  ser  compreendidos  de  forma
restrita ao meio esportivo. Eles têm seus campos próprios, com suas representações e linguagens específicas.

        Com  objetivo  de  dar  um  exemplo  de  como  a  conjuntura  contemporânea  do  sistema  futebolístico  encontra­se
desautomatizada da tradicional ideia­força da formação da nação brasileira, cito trecho de artigo publicado no jornal A
Gazeta Mercantil, de fevereiro de 2002, a respeito do interesse do meio econômico com relação à Copa do Mundo de
futebol que se realizava naquele ano:

        Único  país  a  participar  de  todas  as  Copas  do  Mundo  (...)  o  Brasil  naturalmente  ocupará  grande
espaço  na  mídia  (...).  Não  se  trata  de  promover  o  futebol,  mas  de  aproveitar  a  oportunidade  de
promoção comercial do Brasil, que é relativamente pouco conhecido na Ásia como um grande produtor e
exportador de alimentos. (Gurgel, 2006: 101)

    É improvável que encontremos na imprensa brasileira dos anos anteriores um artigo com essa visão sobre o Brasil
e  sobre  o  futebol.  Na  perspectiva  desse  jornal,  fica  claro  que  o  interesse  naquela  Copa  não  estava  relacionado  ao
futebol, nem mesmo à construção de uma ideia de nação. O objetivo era muito próprio, em que pouco interessava a
nação,  ou  se  o  time  nacional  iria  ganhar  ou  não  a  Copa.  O  interesse  era  fazer  do  evento  uma  oportunidade  para
colocar naquele mercado um produto. Fazer negocio, em síntese, sem nenhuma paixão nacional ou de torcedor.

    Cabe perguntar se, no limite, o futebol contemporâneo não compartilha com essa mesma ideia de negocio, apenas
com a diferença de que o envolvimento e a paixão são seus ingredientes cruciais.

Conclusão

    A historiografia sobre o futebol no Brasil tem uma história que se confunde com os projetos políticos e ideológicos
de criar um povo e fundar uma nação. Futebol e Brasil se confundem como um projeto político único. Explicar  essa
tese  foi  a  primeira  preocupação  desse  artigo.  É  uma  produção  intelectual  em  que  vontade  política  e  narrativa  se
confundem,  de  forma  consciente  ou  não,  dissolvendo  no  interior  dessa  vontade  –  que  pode  podemos  chamar  de
ideologia  –  as  especificidades  de  campos  singulares,  como  é  do  futebol,  assim  como  da  literatura  ou  da  música
popular.

        O  regime  autoritário  dos  anos  1970  e  a  reestruturação  capitalista  dos  anos  1990,  associados  à  crise  dos
paradigmas ideológicos e científicos arrefeceram a força de permanência dos grandes modelos explicadores, como a
cultura política da formação e da revolução, enquanto tarefa política da intelligentsia nacional.

        A  partir  dos  anos  90,  diminuiu  de  forma  significativa  a  necessidade  de  “formar”  a  nação.  O  processo  de
potencialização  da  inserção  da  economia  nacional  no  mercado  internacional  –  também  chamado  de  globalização  –
associado  à  crise  das  ideologias  parecem  ter  colocado  no  ostracismo  o  recalque  macunaímico  da  “superação  do
atraso”,  da  necessidade  de  construir  um  “homem  novo”  (expressão  cara  no  Estado  Novo)  ou  a  tarefa  de  “fazer  a
revolução”, que tanto incomodou a inteligência liberal e de esquerda dos anos 1930­70.

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    A globalização, a crise dos paradigmas nas ciências sociais e nas ideologias políticas parecem ter desenraizado de
nossa cultura política a missão de construir o homem e a nação brasileiros.

    Arriscaríamos dizer que a internacionalização do mercado realizou, pelo alto e de forma conservadora, algum tipo
de revolução burguesa no Brasil.

    Na globalizada sociedade do espetáculo e da mercatilização, a “paixão nacional” tornou­se apelo de marketing de
produtos. Perder a Copa do Mundo não é mais desonra nacional, sentir­se um vira­lata entre as nações. O futebol não
é  mais  um  dilema  nacional.  Ele  não  é  mais “um  drama  da  vida  social”  brasileira,  como  afirmava  DaMatta.  Mas,  de
algum modo, sobrevive, pois é uma ideia que sulcou nossa cultura por mais de um século.

    Desse modo, paradoxalmente cresceu a importância do futebol no mercado do entretenimento, mas arrefeceu o
envolvimento nacional ou mesmo clubístico. Na sua grande maioria, os sujeitos envolvidos nas torcidas pela seleção
nacional ou por um clube são cada vez menos um torcedores passionais e cada vez mais um consumidores. Ganhar ou
perder não tem mais a mesma importância que tinha até os anos 1970/80. Perder não causa mais comoção nacional,
como foi o maracanazo em 1950.

        A  ausência  dessa  tradição  e  desse  lugar  seguro  do  pensar  o  futebol  vem  impondo  às  novas  gerações  de
pesquisadores a tarefa de problematizar e atualizar  os  modelos  explicadores.  O  trabalho  vem  sendo  realizado,  mas
tem exige  múltiplos  esforços.  Primeiro  por  que  não  se  trata  de  querer  ignorar  ou  anular,  simplesmente,  a  tradição
explicadora.  Ela,  mesmo  moribunda,  sobrevive,  animada  por  releituras  midiáticas  das  nossas  paixões  nacionais.
Segundo por que as novas categorias precisam de solidez teórica, tanto para criticar/romper com a tradição, quanto
para ocupar espaço como conhecimento sério.

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