Você está na página 1de 2

Food for thought: Visibilizemos!

Dayse Paulino de Ataide

Turistar, uma das minhas ações favoritas, verbo no qual habita tantos sonhos,
vontades, saudades e nostalgias, faz também refletir sobre as minhas escolhas e os
registros delas, na memória ou nas imagens filtradas pela câmera do celular. No entanto,
durante esses longos meses de quarentena, em que as minhas viagens se limitaram às
aventuras literárias, lembranças e fotos, comecei a pensar naquilo que eu e certamente
muitas pessoas deixamos de ver nas nossas imersões turísticas. Realmente, é impossível
enxergarmos tudo, afinal, há uma vastidão de lugares diante dos nossos olhos, mas preciso
compartilhar essa reflexão acerca das invisibilidades presentes no cotidiano.
Há alguns dias, ao reler fragmentos de textos que marcaram meu percurso
universitário e literário, parei novamente em “The Tempest”. Não sou uma grande entusiasta
da literatura shakespeareana, mas há nessa obra vários pontos que me fazem perceber
que, em vários sentidos, não estamos tão distantes da ilha e do mar tumultuado que serve
de panorama para esse enredo, como pode ser observado na fala abaixo:

Trínculo: [...] Estivesse eu agora na Inglaterra (como já estive uma vez), e este (referindo-se
ao Caliban) seria um peixe pintado em um belo cartaz de rua; e os bobalhões em passeio
de férias pagariam para vê-lo. Lá na Inglaterra, este monstro passava por humano, e seria
mais uma fera estrangeira fazendo a fortuna de um homem. [...].” (Shakespeare, p.33, Ato
II, Cena II).

Trinculo: [...] Were I in England now (as once I was), and had but this fish painted, not a
holiday fool​1 ​there but would give a ​piece of silver​2​. There would this monster make a
man. Any strange beast there ​makes a man​3​. [...]. (Shakespeare, p.65, Act II, Scene II).

1. holiday fool: a fool on holiday


2. piece of silver: silver coin
3. make a man: make a fortune for a man

Em linhas bem gerais, no trecho, Trínculo refere-se ao filho de uma bruxa, Caliban,
um selvagem deformado que fora escravizado na ilha, um corpo que não compartilha a
língua do colonizador, preso numa estrutura cuja utilidade do escravo é apenas servir
aqueles que o acorrentaram.
Conforme afirmei anteriormente, essas linhas permitem uma série de metáforas e
analogias, tal como aquela relatarei agora, em uma viagem feita no ano passado para os
Estados Unidos. Assim como milhares de tursistas que visitam New York, não via a hora de
conhecer o Central Park e não tenho como negar a sensação enorme de paz e satisfação
me preencheu naquele dia, até mesmo quando minha amiga e eu (péssimas em
coordenadas geográficas) nos perdemos naquele lugar de sonhos, dignos das milhares de
fotos espalhadas em nossas redes sociais. Entretanto, nosso passeio foi também marcado
por uma atração turística que eu defino como agonizante: uma volta no parque numa
carroça toda ornamentada, puxada por cavalos igualmente enfeitados. Passado mais de um
ano, ainda me questiono o porquê do homem se sentir com esse poder de explorar esses
animais, visivelmente sofridos, da forma como lhes fosse mais conveniente.
Não ignoro que os colonizadores também são corpos colonizados, muitos são,
inclusive, estrangeiros que buscam em países como os Estados Unidos uma forma de
vencer a pobreza e ter uma vida mais digna daquela que eles tinham no seu país de
origem, que os conduzem a essas práticas de dor e sofrimento, um traço marcante do
sistema capitalista e patriarcal, que ferem até sob o discurso de desenvolvimento e
entretenimento.
Então, deixo como “food for thought” algumas perguntas: Quais narrativas se
escondem sob as belas imagens, esculturas e atrações que tanto nos encantam? Quais são
as feras escravizadas que encontramos em nossos passeios?
Não espero que você entenda esse texto como um toque moralizante sobre o modo
que você turista, mas um convite à reflexão sobre aquilo que invisibilamos, bem como ao
estranhamento de práticas doloridas, mas cada vez mais naturalizadas.
Até a próxima!

Você também pode gostar