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O DIREITO PÚBLICO À EDUCAÇÃO ESPECIAL 15

O DIREITO PÚBLICO À
EDUCAÇÃO ESPECIAL1

THE PUBLIC RIGHT TO


SPECIAL EDUCATION

Gilberta Sampaio De Martino JANNUZZI2

RESUMO

O texto, procurando explicitar a educação especial no conjunto


dos condicionantes históricos atuais, reflete sobre o
significado dos termos: direito público, educação e educação
especial. Enfatiza a necessidade da luta conjunta dos
diversos grupos de excluídos em torno dos direitos
fundamentais à condição de vida humana digna.
Palavras-chave: Educação Especial; Direito à Educação;
História da Educação.

ABSTRACT

The text discusses special education within the context of


current historical conditioning factors and offers insights on
concepts of related terms: rights, public interest initiatives,
education and special education. It emphasizes the much
needed struggle of marginal social groups for the fulfillment
of their basic rights and proper standards of living conditions.
Key words: Special Education; Right to Education; History of
Education.

Este foi o tema que nos foi proposto ao debate. Procuraremos


levantar questões acerca de quatro pontos a ele relacionados: o
direito, o público, a educação e a educação especial.

(1)
Texto apresentado na PUC-Campinas em 24/04/2001.
(2)
Livre Docente da Faculdade de Educação da UNICAMP.

Revista de Educação PUC-Campinas, Campinas, n. 11, p. 15-23, novembro 2001


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DIREITO: dentre os seus vários significados como Estados Unidos, Suécia, Canadá.
pode-se entender o termo como: ”prerrogativa Atualmente, dados recentes do IBGE, do ano
que alguém possui de exigir de outrem a prática 2000, embora atestem a melhoria de alguns
ou abstenção de certos atos, ou o respeito à indicadores sociais ainda mostram que ocupamos
situação que lhe aproveitam...” (Dicionário Aurélio). lugar bem abaixo do desejado. Embora existam
Isso implica, no mínimo, na possibilidade de possibilidades de contestação desses
cada um de nós exigir de todos o que se refere à indicadores, sabemos pela experiência vivida,
dignidade de Pessoa Humana, tal como o direito pela observação das nossas cidades, pelos meios
à vida, à segurança, ou como já foi defendido há de comunicação de massa que temos poucos
muitos séculos, desde a Revolução Francesa, grupos sociais entre nós que gozam dos direitos
século XVIII, o direito à liberdade, à igualdade, à fundamentais à existência humana digna, apesar
fraternidade. de dois séculos de proclamação da igualdade de
Modernamente, a partir de 1950, os todos os cidadãos nas Constituições Brasileiras.
Organismos Internacionais selecionaram o Na prática efetiva isto se coloca como um anseio,
Produto Interno Bruto (PIB) de um país como um um desejo, um horizonte a ser atingido,
meio de expressar a sua posição dentre os demonstrando que direito é algo a ser conquistado
demais países, em relação a uma face de direitos em organizações sociais como as nossas. As
básicos. Posteriormente, em 1990, foi criado o lutas sociais passadas e as atuais, desenvolvidas
Indicador de Desenvolvimento Humano (IDH), por certos setores que vão se organizando,
convencionando-se para isso outros indicadores comprovam isto, como por exemplo: a luta das
sociais baseados na EDUCAÇÃO - taxa de mulheres, que entre nós só adquiriram o direito
analfabetismo e escolaridade; SAÚDE - baseada de votar a partir da Constituição de 1934; os
no cálculo de esperança de vida ou seja na negros; os homossexuais; os diferentes de físico
síntese das condições de saúde e riscos à e de intelecto, que ainda não participam de
morbi-mortalidade; e PADRÃO DE VIDA espaços comuns a todos como a freqüência às
ADEQUADO - o cálculo do PIB per capita segundo ruas, ainda sem adaptações que lhes permitam
técnica específica para refletir melhor a o fácil acesso. É fato que se conquistou direitos
necessidade de recursos monetários para compra nas diversas legislações, o que já reflete parte
de bens e serviços indispensáveis à dessa luta, importante sem dúvida, pois serve de
sobrevivência do indivíduo num dado país base a reivindicações, mas insuficiente para
(Jannuzzi, 2001:119-121). A esse IDH desde garantir espaços efetivos, nas escolas, no
1997 vem sendo acrescentado o Índice de Pobreza trabalho, enfim na participação comunitária. E
Humana, IPH, que expressa, até certo ponto, a hoje, alguns grupos partiram até para ocupação
de lugares físicos, concretos, como os sem
pobreza e a exclusão social. Nos países em
terra, os sem teto; e vão sendo ocupados espaços
desenvolvimento esse IPH é calculado pela
para distribuir alimentação aos “moradores de
LONGEVIDADE - porcentagem de pessoas que
rua”; o calendário nacional reserva comemorações
não devem sobreviver após 40 anos, - EDUCAÇÃO
em lugares públicos celebrando datas
E CULTURA - taxa de analfabetismo funcional de
significativas para grupos de excluídos. Assim
pessoas depois dos 15 anos de idade - e há o dia do deficiente, do analfabeto, dos
RECURSOS DE SOBREVIVÊNCIA - percentual colhedores de papel, o Dia de Luta do Povo de
de pessoas sem acesso à água potável, serviços Rua; surgem jornais para comunicação entre
de saúde e de peso insuficiente até os 5 anos de elementos filiados e voluntários das diversas
idade (obra citada). Com base nesses camadas sociais são arregimentados para os
indicadores, o Brasil desde 1999 tem sido trabalhos com esses grupos específicos. Alguém
classificado com valores baixos, próximos à já salientou que hoje vivemos no sistema de
Colômbia, Peru, Paraguai, bem distante de países tribos, de grupos particulares que se engajam em

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lutas de defesa de alguns de seus direitos (Jannuzzi, N, Jannuzzi, G., 1998, Tabelas 5 a 6,
específicos. Se de um lado, isto seja um princípio p.2901). Isto nos dá uma idéia da precariedade
talvez mais fácil de arregimentar elementos para das condições de vida dessa população.
uma frente de batalha, dada a afinidade de O segundo ponto de debate é o significado
interesse e de amizade, de outro lado, possibilita de PÚBLICO. Temos presenciado a partir
também a formação de guetos fechados, com principalmente de 1995 colocações diferenciadas
boa organização interna, acentuando sobre seu significado, à medida em que se
particularidades importantes sim, muitas dignas modifica o conceito de Estado, diminuindo suas
de serem preservadas; porém, podem dificultar o funções. Assim, antes dessa data era mais
intercâmbio da riqueza que existe na diversidade tranqüilo tomar o público com o significado de
humana e da própria cultura geral do país. É “servir a todos”, mantido e administrado pela
preciso frisar que nessas lutas particulares há sociedade política, isto é, pelo governo federal,
um eixo comum de reivindicação básica dos estadual, municipal, através de contribuições
direitos humanos dos quais as diversas minorias dos nossos impostos e outros empreendimentos
são excluídas. A luta conjunta de todos em torno estatais. O privado era aceito como o que era
desses direitos, sem dúvida, repercutirá mais mantido e administrado por pessoa física ou
fortemente e com mais condição de ser ouvida e jurídica. Hoje se acentua o sentido do termo
conquistada. Talvez devamos pensar em nos unir público, como “aquilo que é aberto, que serve a
em torno dos fundamentos básicos, preservando todos”. Assim, encontramos o termo público,
as diferenças sim, mas intercambiando idéias, referindo-se a organizações científicas,
enriquecendo-nos com as possíveis soluções educacionais, hospitalares, etc, significando o
vislumbradas. Desta forma, nós que estamos que serve à comunidade de forma gratuita ou
lutando por uma dessas faces de direitos sociais, mesmo remunerada seja estatal inteiramente,
que é a educação, também não podemos quer quanto às verbas, quer quanto à
esquecer dos outros direitos dos deficientes, administração, ou em parceria com o privado, ou
como a luta pela saúde e pelos recursos de seja, verba estatal e administração privada e até
sobrevivência, unindo-nos aos demais grupos de mesmo sendo só privada, tanto em verba quanto
excluídos. em administração. É fato que através dos tempos
Nesse sentido, se considerarmos as sempre houve a participação do Estado em
condições de vida dos deficientes, baseando-nos diversas realizações de pessoas físicas e jurídicas
no Censo expandido de 1991, uma vez que o de privadas, principalmente no campo que nos reúne
2000 ainda não está disponível, encontramos os aqui a Educação dos diferentes e mesmo dos
seguintes dados: na população total do pais, de considerados normais Isto era feito através de
146.816.000 habitantes, o número de deficientes verbas, de ceder funcionários, prédios, terrenos,
era de 2.198.489, ou 1,50%. Considerando a etc. E, se houve geralmente a prestação de
faixa de Renda Familiar de 0 a 2 salários mínimos, contas das verbas governamentais cedidas,
nela havia 46,8% da população total e a taxa de sabemos pelo relato de instituições e pela
deficientes nessa mesma faixa era de 1,64%. No observação de algumas de nós que não tem
entanto, a faixa Sem Rendimento, portanto de ocorrido fiscalização estatal dos projetos
maior pobreza, cuja taxa global era de 2,2%, pedagógicos que se desenvolvem nessas
apresentava uma taxa de 5,0% de deficientes. condições. De outro lado, também nós, sociedade
Esses dados variaram para as diversas regiões e civil, não desenvolvemos suficiente
estados do país. Considerando o Estado de São responsabilidade democrática para pedirmos e
Paulo, geralmente apontado como um dos mais mesmo nos dispormos a verificar a adequação
ricos, os deficientes que estão dentro da faixa dos trabalhos escolares aí desenvolvidos. É como
dos Sem Rendimentos, passavam a ser 9,6% se não tivéssemos consciência de que estamos

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pactuando com o que se realiza com as nossas legalmente como DEVER DO ESTADO, pelo
contribuições de impostos e até mesmo com menos no que e refere à educação, centro de
serviços voluntários, muitas vezes por nós nosso encontro e tão enfatizada no discurso
desenvolvidos nesses locais. Aqui então reside oficial. O art. 205 da Constituição de 1988 deixa
já todo um débito de nossa responsabilidade a educação aberta à promoção, incentivo e
histórica que é indispensável ser corrigido, colaboração da sociedade, mas o art.208,
principalmente à medida em que cresce o louvor parágrafo 1º do inciso VII, expressa que “O
às parcerias e se convoca a sociedade civil à acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito
prestação de serviços, geralmente não público subjetivo” e o parágrafo 2º do mesmo
remunerados. inciso acentua que “O não-oferecimento do ensino
Em Educação Especial, o que vem sendo obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta
historicamente predominante nessas parcerias irregular, importa responsabilidade da autoridade
é a aliança do estado com instituições competente”. Esse ensino obrigatório e gratuito
filantrópicas, que agindo muito sob a base de é pelo menos o fundamental (art.208, inciso 1),
voluntariado, vem criando muitas vezes a imagem repetido na LDB 9394/96 no art.4º, “O dever do
de que basta doar algum tempo ou dinheiro, sem Estado com educação escolar pública será
que se lhes colha o resultado da eficiência do efetivado mediante garantia de: inciso I, “ensino
trabalho educativo. Este procedimento estará fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive
correto? Hoje algumas Organizações Não para os que a ele não tiveram acesso na idade
Governamentais, ONGs, estão procurando própria”. Batalhemos por este direito, mesmo
profissionalizar os voluntários. Já é um progresso, porque, considerando a Educação Especial
mas não deve suprimir a verificação da preocupação básica desse encontro,
competência do desempenho, mesmo que todos percebemos que vem decrescendo a
envolvidos sejam profissionais. Sabemos que participação estatal, embora não tenha havido
democracia é governo participativo e portanto diminuição de impostos cobrados a nós
sempre é preciso avaliar e melhorar a qualidade cidadãos e tenham crescido os louvores à
de atendimento. educação, enfatizada como fator de
Acreditamos que é importante aqui retomar desenvolvimento, de melhoramento das
o significado de PÚBLICO, que ainda resta condições de vida das nações.

Tabela 1
Ano Total Federal % Estatual % Municipal % Privada

1974 096.413 6.483 6,7 044.863 46,5 04.719 04,9 040.348

1981 104.268 1.481 1,4 052.954 50,8 04.401 06,1 043.432

1987 152.246 2.580 1,7 077.451 50,9 07.814 05,1 064.401

1988 166.290 2.605 1,6 082.770 49,8 11.388 06,8 069.527

1996 291.521 1.137 0,4 116.999 40,1 35.868 12,3 137.517

1997 334.507 1.157 0,3 123.461 36,9 48.164 14,4 161.725

1998 337.185 0.898 0,2 115.170 34,5 63.155 18,7 157.962

1999 374.129 840 0,2 119.946 32,1 72.041 19,2 177.838

Fonte: MEC/INEP/SEESP in Ferreira 2000

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A tabela 1 mostra esse decréscimo da propalado desenvolvimento econômico


participação do setor público na Educação sustentado. A conexão educação com o
Especial, principalmente a partir de 1996. desenvolvimento incrementou-se após 1945,
Nota-se o crescimento do atendimento privado, término da segunda guerra mundial ao se constatar
principalmente a partir de 1996. No setor público, que os países com bom nível de educação
embora tenha havido a transferência de alcançaram mais rapidamente a recuperação
responsabilidade do ensino fundamental para o econômica. Considerou-se preponderante essa
município, ainda predomina o atendimento variável, sem salientar o peso político das outras
estadual, dado importante talvez, nas conside- variáveis, entre as quais, o interesse dos planos
rações das novas responsabilidades do município econômicos dos países hegemônicos (Estados
na procura de parcerias públicas estatais. Se Unidos e Rússia)3 no após guerra. Vem-se
considerarmos os dados de 1999 vamos ter aceitando, a partir de então, a organização
a matrícula total de 374.129 alunos em que mundial dentro da produção capitalista que foi
a porcentagem maior é de deficientes men- envolvendo-nos nas suas múltiplas formas,
tais - 197.996 - (52,9%) e a menor porcentagem inclusive gerencial, tomando conta do mundo
é de problemas de conduta - 9.223 - (2,5%). como única forma de produção, hegemônica,
Essas percentagens devem ser olhadas com após o desmantelamento da União Soviética.
cuidado pois são frutos de interpretações dos
O princípio de produtividade dessa visão de
diversos informantes nas escolas e também não
mundo penetrou na educação que vai correndo
tivemos acesso às conceituações sob as quais
atrás da múltiplas formas exigidas pelo mercado
foram pedidas as categorizações.
em mudança acelerada. Vamos assim perdendo
Vamos agora refletir sobre EDUCAÇÃO, algumas dimensões de educação e de trabalho,
hoje enfatizada como fator de desenvolvimento ou seja, perdendo mesmo características do
econômico do país. Tomando a origem do termo próprio homem, nós que nos dispomos a fazer a
educação, vem do latim educare - conduzir, mas caminhada educacional com nossos alunos.
essa condução, como todo conceito, sofre a Esquecemos o fundamental: que somos nós que
ação do tempo, isto é o conceito de educação é construímos a história que aí está e que, portanto,
como todo conceito filho do tempo e se parece podemos modificá-la. Assim, se de um lado
com ele mais do que o filho com seus próprios somos condicionados, circunscritos por essa
pais (parafraseando Marc Bloch, 1952:32). Assim construção temporal que preparamos, de outro
sendo, nós educadores temos assimilado no lado, há dimensões humanas perdidas que
discurso e na prática que hoje a educação é o esperam ser recuperadas para modificar o que
momento intermediário para a preparação do fizemos. Se tudo foi construído pelo trabalho, que
indivíduo para o “mercado de trabalho”, entendendo é o meio pelo qual modificamos o mundo, o
que trabalho é o ingresso em tarefas criadas pela tornamos habitável pelo homem, o humanizamos,
organização social globalizada dentro da apologia há dimensões do trabalho que constituem
do consumo, em que o lucro é acumulado por expressão de capacidades que vêm sendo
uma fatia da humanidade. Acostumamo-nos a desenvolvidas através dos tempos e que
agir sem o preparo para o que aí vem sendo constituem manifestações importantes do
posto, não só o indivíduo fica desintegrado da humano, como, por exemplo, a expressão estética
participação social, como também não há o através da arte (literatura, pintura, dança, música,

(3)
Depois da 2ª Guerra Mundial, os EE. UU. afim de manter a sua expansão, assegurar o emprego no país, o escoamento dos
estoques acumulados durante a guerra e mesmo o próprio pagamento dos débitos adquiridos pelos diversos países, propôs
planos de ajuda econômica, entre eles: o Plano Marshall para a Europa, não aceito pela Rússia e países a ela ligados, e o
Ponto IV para os países latino-americanos. O plano Marshall propunha empréstimos a longo prazo, doações e a colaboração
dos envolvidos no fornecimento de matérias estratégicas, necessárias ao pais proponente.

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arquitetura, poesia, entre outras), manifestações abrangentes, evidenciam a dificuldade de


emocionais expressas pelos sentimentos, desde incluí-los no trabalho e participação geral numa
as mais simples e subjetivas de dor, de alegria, organização capitalista. A partir de 1970
até as que nos fazem perceber e sentir o outro, com a colaboração dos integrantes do acordo
simpatizando-nos com ele, colocando-nos em MEC/USAID feito com os Estados Unidos para
sintonia com ele pela solidariedade, amizade, e elaboração do Projeto Prioritário nº 31, do qual
que nem sempre estão presentes nas nossas resultou o Centro Nacional de Educação Especial,
preocupações educativas, embora sejam denominação transformada desde 1986 (mais
expressão do homem na sua existência plena. informações in G.Jannuzzi,1997), a economia da
Essas manifestações têm aberto outros educação, que foi mais intensamente penetrando
trabalhos ou seja outras modificações da na educação geral desde o término da segunda
sociedade, encantando o mundo pela beleza guerra, como mencionamos, repercutiu na
quer da forma, quer das emoções que geram. Especial repetindo os argumentos antes presentes
Produziram trabalhos diferenciados através dos sobre a necessidade de diminuir os gastos
tempos, concretizados em realizações que estatais com ela, pois que utilizando experiência
extasiam-nos ainda hoje. Assim cumprem-nos americana comprovavam que, mesmo sendo
cultivá-las porque, sem dúvida, repercutirão em maior o custo com a educação de crianças
novas formas de organização social. Se de um ‘infradotadas”, o total gasto para mantê-las durante
lado, com o desenvolvimento das formas de toda a vida seria muito maior caso não recebessem
produção preponderantes, hoje chegamos a um “treinamento” (Pires, 1974:99). Defendiam
nível possível de vida melhor já usufruído por também “o aspecto econômico de toda a família
algumas nações e algumas fatias de nossa do infradotado” que com isso seria libertada para
sociedade nacional, há um grande caminho a ser a produção. O desenvolvimento do país é
percorrido para que a grande maioria não só de defendido com a educação do superdotado,
brasileiros, mas do mundo goze os direitos à citando exemplos de vultos que influíram na arte,
condições de vida digna. Então, precisamos ser ciência, etc. (obra citada, p.100/101). Mesmo
capazes de nesse momento difícil, em que as atualmente, não se tem encontrado a vinculação
condições de trabalho no capitalismo parecem mais geral como o desenvolvimento do país,
se estrangular, sem perder o pé na realidade, nos argumento que impregna a educação do dito
condicionantes das dimensões estreitadas desse “normais”, a não ser também desses
superdotados. Há aqui não só o desconhecimento
mercado de trabalho, ir enfatizando as outras
quanto às capacidades dos diferentes, PNE,
dimensões humanas, abertas à outras formas de
mas toda a vertigem da pressa que nos invade
modificação do real, que através dos tempos, em
para alcançarmos não só o último conhecimento
outros contextos, já se mostraram criadoras e
surgido, mas os possíveis lucros deles auferidos,
que agora, sob outras formas, é fato, deverão
dentro de uma sociedade voltada para valores de
ampliar as dimensões da sociedade.
consumo, revestidos de roupagens atraentes
Interessante notar que nos discursos quer pelos meios de comunicação de massa. No
da sociedade política, quer da sociedade civil, entanto, há toda a riqueza que pode ser apreendida
não se nota explicitamente a defesa da educação com a dimensão do diferente, seja de gênero, de
do portador de necessidades especiais, PNE raça, de físico, de intelectualidade. Pensemos
(nome atual e contestável dos considerados em algumas: primeiro, muitas vezes de forma
diferentes) dentro da ênfase de fator importante contundente nos patenteiam a diversidade
para o progresso econômico da nação. Através humana no seu aspecto manifesto físico ou
dos tempos se a tem defendido por razões intelectivo, lembrando-nos que todos temos as
filantrópicas ou para garantir-lhes a subsistência limitações, que vão se ampliando com a idade, e
ou algum convívio social. Alguns estudos mais que com eles podemos aprender a viver dentro

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delas, utilizando as que restam e mesmo tentando aprendizagem, mas nas possibilidades de
desenvolver as que enfraquecem, pelo exemplo modificar o mundo e encontrar outras formas de
vivido por eles. Depois, os fortes condicionantes organização de trabalho. Aprendamos a olhá-los.
da organização social, reproduzidos na vida social Há muitos séculos, os grandes pedagogos vêm
pelos setores investidos de poder que vão tecendo enfatizando que o princípio de aprendizagem
a realidade adequada a eles, facilitam o deve ter como referência o próprio aluno. Isto é,
desenvolvimento de certas percepções, de certos parte-se do ponto em que o aluno está,
comportamentos, necessários à sobrevivência sistematiza-se os conhecimentos necessários,
dos que devem se adaptar para subsistir. E através de organização dos saberes e se os
assim, contraditoriamente, desenvolvem também, procura atingi-los por métodos e técnicas
junto com procedimentos de adaptação, outras apropriadas, para que ele possa sempre avançar
potencialidades não necessárias aos que gozam nessa apropriação de conhecimentos
da estrutura de poder. Desta forma vão alargando necessários a um tempo e a um lugar. Defendia-
perspectivas não visualizadas pelos poderosos. se que para o PNE uma das formas se faria
Vejamos por exemplo nós mesmas mulheres. intermediariamente nas classes, escolas, oficinas
Será que agora a ocupação de lugares públicos segregadas, para depois inseri-los quer nas
importantes e as manifestações competentes classes regulares, quer no trabalho produtivo.
que presenciamos de algumas empresárias, Embora não se tenha apoio em dados estatísticos
magistradas, artistas, etc. não foram fruto da de quantos cumpriram tal objetivo, faltem-nos
nossa necessidade de resolver problemas avaliações quer de quantos o conseguiram, quer
diversos utilizando potenciais racionais, afetivos, da competência dos estabelecimentos de ensino,
emocionais, solicitados ao mesmo tempo, juntos, olhando-se nas nossas cidades as instituições
nos problemas cotidianos de nossa subsistência? escolares especializadas, ainda repletas,
O exercício agregado dessas potencialidades, esperando vagas para outros, pode-se presumir
não terá facilitado a própria forma de organização da estreiteza dos resultados. Então, a partir
de nossa luta? Será que não foi usando a nossa principalmente de 1994 entre nós, passou-se
perspicácia, ou seja, a subtileza de atuar em muitas vezes a defender a volta às escolas e
pontos vulneráveis, mas nem sempre muito trabalhos regulares, e até mesmo a realizar
evidentes ao racional “puro” na sua forma extinção de classes especiais e instituições
masculina de significação? Pensemos um pouco especializadas. Aqui, é preciso ter em mente
sobre tal hipótese, que já está sendo percebida que o princípio, defendido há muitos anos, de
por algumas de nós e que talvez mereça partir do aluno continua importante e que também
verificação. o desenvolver o máximo possível os
Quanto à área que nos trouxe aqui, o dito conhecimentos necessários a viver num tempo e
PNE, será que os conhecemos suficientemente? num lugar são fundamentais. Então não basta a
Será que não estamos ainda voltados para volta à escola regular, sem esses elementos que
fazê-los reproduzir só o nosso mundo, o da constituem na verdade a qualidade de ensino, e
maioria? Vygotsky que trabalhou tão bem com são assegurados pela LDB 9394/1996 e
eles, salientou que havia a compensação do recentemente enfatizados pelo Plano Nacional
defeito que “se produz por uma via indireta muito de Educação. Encontrar meios de realizar isto é
complexa, de caráter social e psicológico geral; a nossa tarefa pedagógica. É preciso notar
não se trata de que o cego veja através dos também que continuamos a repetir o que
dedos, do tato, senão que se formem mecanismos tradicionalmente tem sido norma na educação
psicológicos que permitam através desta via, brasileira, a falta de avaliação dos resultados.
compensar a falta de visão” (Vygotsky, 1989). Há Assim estamos inserindo esses alunos em
aqui toda uma aprendizagem a ser explorada, e classes regulares com ou sem salas de recursos
que nos pode auxiliar não só nas teorias de sem verificação; pelo menos não conhecemos

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nenhuma divulgação nesse sentido. Tomando- BEZERRA NETO, Luiz. Sem-Terra. Aprende e
se como exemplo dois dados disponíveis: em Ensina. Campinas, Autores Associados,
1996 num total de 291.521 PNE – 13.476 estavam 1999.
em classes regulares, portanto 5%. Dois anos BLOCH, Marc. Introducción a la História. México,
mais tarde, em 1998, em 337.185 PNE, 43.423, Fondo de Cultura Económica, 1952.
portanto 13% estavam inseridos em classes
regulares. Foi válido? BRASIL/INEP/SEESP. 2001 www.gov.br/seesp/
dados.shtm
E agora, com a descentralização do ensino
fundamental o desempenho dessa tarefa ficou CAÇÃO, Roseli. Interlocução na UNICAMP,
nas mãos das prefeituras, e portanto cabe a cada 16/04/2001.
uma encontrar as vias possíveis para isto,
CLOUZET, Maurice. História Geral das
utilizando trabalho conjunto das diversas Civilizações. A Época Contemporânea: v.2:
secretarias, uma vez que educação é um problema Os Estados Unidos, tomo VII, São Paulo,
complexo necessitando da infra-estrutura da Difusão Européia do Livro, 3.ed. p.99-120.
saúde desde os meios de prevenção no 1973.
atendimento pré, inter e pós-natal; de saneamento
básico, tratamento de doenças infecciosas, etc.; ENGUITA , Mariano F. Es Pública la Escuela
Pública?, xerox, 1999.
de urbanismo, desde os locais escolhidos para
criação de escolas; da secretária de transporte, FERREIRA, Júlio R. Políticas Educacionais e
para o acesso ao atendimento básico; da Educação Especial, MG. Caxambu,
secretaria de trabalho, porque não basta educar comunicação apresentada na reunião da
sem um possível futuro (e aqui estão as outras ANPED, G.T., Educação Especial. 2000.
dimensões já postas de trabalho): da previdência FOLHA DE S.PAULO, 8/04/2.001, C9.
social, pois que sem meios de subsistência
quem poderá estudar? Enfim é todo um trabalho FRANCO, Rolando/SÁINZ, Pedro. “La Agenda
de equipe que urge incrementar no país, sem o Social Latinoamericana del año 2000” in
que não haverá a tão propalada gerência Revista de la Cepal, 73, Abril, p. 65-66, 2001.
operacional e a educação dita de qualidade. GATTI, Bernadete. Formação de Professores;
E é preciso, para finalizar as colocações, problemas e movimentos de renovação.
que dada as condições gerais da grande população Campinas: Autores Associados, 1997.
brasileira, é realmente indispensável que, pelo
HOUART, François. Sociedade civil e Espaço
menos as áreas de educação e saúde recebam
Público. Porto Alegre: Forum Social Mundial,
as prioridades políticas do governo, obedecendo
Biblioteca das Alternativas, xerox, 2001.
os preceitos constitucionais quanto à gratuidade
e qualidade dos serviços e que nós, educadores, JANNUZZI, Paulo De Martino. Indicadores Sociais
auxiliemos, através de um trabalho competente no Brasil. Campinas SP, Editora Alínea, 2001.
a nossos alunos terem argumentos e capacidade
JANNUZZI, Gilberta. As políticas e os espaços
de luta para defender os direitos nesse sentido. para a criança excepcional; in FREITAS,
Marcos Cezar (org) História Social da Infância
no Brasil. São Paulo: Cortez, p.183-224, 1997.
Bibliografia
JANNUZZI, Nicoláo/JANNUZZI. Gilberta.
ALMEIDA, Maria de Lourdes P. A Apropriação do Incidência de deficientes no Brasil segundo
Conhecimento Público pelo Setor Privado na Censo Demográfico de 1991: resultados
Relação Universidade-Empresa: um estudo a empíricos e implicações para políticas.
partir do caso da UNICAMP. Campinas, Caxambu MG, Anais do XI Encontro Nacional
UNICAMP, tese de doutoramento, 2001. de Estudos Populacionais da ABEP. 1998.

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O DIREITO PÚBLICO À EDUCAÇÃO ESPECIAL 23

JANNUZZI, Gilberta. Educação Especial nos SAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia. 33.
anos 90: reflexões. Trabalho feito por ed. Campinas: Autores Associados, 2000.
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Revista de Educação PUC-Campinas, Campinas, n. 11, p. 15-23, novembro 2001

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