Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Cadernos CEDES - Neusa Gusmao - Antropologia e Educacao - As Origens de Um Dialogo - 1997
Cadernos CEDES - Neusa Gusmao - Antropologia e Educacao - As Origens de Um Dialogo - 1997
https://doi.org/10.1590/S0101-32621997000200002
1
condição de prática. Dentro dessa divergência primordial, os profissionais de ambos os
lados se acusam e se defendem com base em pré-noções, práticas reducionistas e muito
desconhecimento. Se há muitas coisas que nos separam - antropólogos e educadores -, há
muitas outras que nos unem. Neste texto, pretende-se ressaltar o que há em comum, já
que o que nos separa só pode ser compreendido com base nesse mesmo patamar . O que
nos une é, portanto, anterior ao que nos separa, e nele se inscreve o diálogo do passado,
tanto quanto a possibilidade do diálogo do futuro.
O diálogo entre antropologia e educação, percebido por muitos como uma "novidade" que
se instaura com as transformações da década de 1970, neste século, é mais antigo que isso
e reporta-se a um momento crucial da história da ciência antropológica. No âmbito deste
artigo, não se poderá dar conta da totalidade dessa história; pretende-se, no entanto,
chamar a atenção para alguns pontos fundamentais. Antes de mais nada, é necessário que
se adentre no pensamento antropológico, em suas bases epistemológicas como ciência e
como ciência aplicada, com seus alinhamentos teóricos, avanços e limites. Aqui parece
residir a importância do passado para nosso presente, pois somente nesse percurso parece
ser possível vencer uma certa instrumentalização da antropologia pela educação,
propiciadora de muitos equívocos, e onde, certamente, se terá, como ganho, a superação
de estigmas e preconceitos que grassam de ambos os lados dessa fronteira ou desse divisor
de águas - a antropologia como ciência, a pedagogia como prática.
Avaliar a questão das diferenças, tão cara à antropologia e tão desafiadora no campo
pedagógico justamente por sua característica institucional homogeneizadora, não é uma
tarefa simples. Desde sempre, a antropologia e a educação têm se defrontado com
universos raciais, étnicos, econômicos, sociais e de genêro, entre tantos outros, como
desafios que limitam ou impedem que se atinjam metas, engendrando processos mais
universalizantes e democráticos. No tempo presente, com tantas mudanças numa sociedade
que se globaliza, estas questões não só não se encontram resolvidas, como renascem com
intensidade perante os contextos em transformação.
O interesse central é trazer o aluno da pedagogia para uma aproximação no campo teórico
da antropologia, que lhe é inteiramente desconhecido. Por outro lado, o aluno de ciências
sociais, campo onde o antropólogo é formado, no caso brasileiro, também desconhece o
itinerário da antropologia no campo da educação. A razão é simples: a educação não tem
sido um dos campos privilegiados pela antropologia, da mesma forma que certas
abordagens teóricas, que estão na origem deste diálogo, também não se constituem em
objeto de conhecimento e análise, em particular, lembro aqui, o culturalismo americano,
representado por Franz Boas e as gerações formadas por ele. Poderíamos elencar um
número significativo de razões para que isto ocorra, mas importa chamar atenção para uma
certa distorção de visão de que somos todos acometidos e que nos leva a considerar
aprioris e ou críticas insuficientes, deixando de entender a constituição da ciência de que
somos herdeiros. Ser herdeiros não nos torna culturalistas, acríticos ou conservadores, mas
exige que reconheçamos que o conhecimento, como ciência, não nasce e morre dentro de
um tempo determinado, senão que se alimenta do que existe antes dele e fornece alimento
ao que lhe sucede, sem nunca deixar de existir como referência. Defendo, ainda, a
importância desse resgate, se quisermos cobrar alguma coerência no fazer de outros
campos, quando se utilizam do referencial da antropologia na abordagem de temas
singulares, particularmente na educação. Essa é a razão pela qual esta reflexão, ainda
iniciante, parte da negação imediata de um tempo mágico - a década de 1970-,1 como
referência para as pesquisas educacionais de tipo etnográfico e também para as pesquisas
no campo das ciências humanas, ditas pós-modernas, que, negando todo o passado,
tornam-se reificadoras de muitos limites.
2
O pioneirismo do diálogo entre antropologia e educação, relatado por Galli (1993), 2 mostra
que, já ao final do século XIX, a antropologia tentava compreender uma possível cultura da
infância e da adolescência. Eram temas de suas pesquisas e de seus debates os processos
interculturais infantis e os sistemas educativos informais, dentro de uma concepção
alargada de educação. Antropólogos participavam em processos de revisão curricular e
continuaram a participar no transcorrer do presente século, nesse e em outros movimentos
ligados à escola e à educação.
Por que ser discípulo de Franz Boas importa? Antes de mais nada, por ser ele mesmo um
aluno de Morgan - outra referência axial na antropologia -, que, rompendo com o mestre,
abre as portas para a fecundidade e as multiplicidades de pensamentos que orientarão
novas abordagens teóricas que alimentam a antropologia do século XX. Os discípulos de
Boas, neste início de século, dão continuidade ao próprio Boas, quando este nos alertava
para o fato de que tínhamos um modelo pedagógico ocidental que iria nos conduzir a uma
pedagogia da violência.
Hoje, quando vemos as dificuldades das escolas, em particular, das escolas públicas de
periferia, o fato de a escola como valor não fazer eco entre os estudantes, a indisciplina
violenta, a evasão escolar e sua face mais cruel, a exclusão social, só para citar alguns
problemas de nosso tempo, cabe perguntar qual a natureza dos riscos de que falava Boas.
Qual a natureza dos riscos de hoje? Para ele, a realidade de seu tempo apontava um risco
para os povos do futuro e para o futuro da própria civilização. A razão era que,
historicamente, a nossa sociedade e a escola que lhe é própria não desenvolviam - e não
desenvolvem - mecanismos democráticos, perante as diversidades social e cultural.
A propriedade e a atualidade da inquietação de Boas revelam que o diálogo foi iniciado, mas
não foi concluído. A breve síntese de um processo vasto e intenso que se desenvolveu na
primeira metade do século, e que não termina aí, está exigindo olhares mais profundos na
história da intersecção entre antropologia e educação. A pergunta que muitos podem fazer
é: Por que seria importante conhecer tais processos? Não estariam eles superados pela
dinâmica de um mundo moderno que se transforma continuamente e de modo acelerado?
3
antropologia da educação - tema e produto de uma grande conversa do passado -, isto
também ocorre no presente, posto que a antropologia e a educação estabelecem um
diálogo, do qual faz parte, também, o debate teórico e metodológico das chamadas
pesquisas educativas, relacionadas às diversas e diferentes formas de vida que, neste final
de século, estão ainda a desafiar o conhecimento. Em jogo, as singularidades, as
particularidades das sociedades humanas, de seus diferentes grupos em face da
universalidade do social humano e sua complexidade através dos tempos e, em particular,
num mundo que se globaliza. Resta, pois, conhecer um pouco dessa história.
O fato mais curioso nesse encontro de culturas de que resultou a conquista da América foi
provavelmente a surpresa de ambos, espanhóis e indígenas, ao se depararem. Uns jamais
suspeitaram da existência dos outros. Para se livrarem do incômodo desse assombro,
ambas as partes mergulharam nas suas tradições míticas, a fim de encontrarem indícios
reveladores ou presságios que os ajudassem a identificar e esconjurar os espectros com que
haviam topado. Que estranha tribo desgarrada dos filhos de Israel seriam esses gentios,
perguntavam os espanhóis? Que pavorosos deuses vingadores eram aquela gente barbada,
toda revestida de metal e montada em veados gigantes, clamavam os indígenas? (Nicolau
Scevcenko. Folha de S. Paulo/Ilustrada, domingo 2/2/1985, p. 53)
O que tem a ver com antropologia e educação o texto acima? O texto conta a história do
contato entre espanhóis e indígenas (astecas, maias, incas) na conquista da América. É um
fato real, histórico e concreto, em que dois povos e duas culturas distintas mostram o
espanto do olhar - do europeu e do indígena, ambos envolvendo de imediato a percepção
de um sobre o outro. Trata-se de um olhar etnocêntrico, fruto, como diz Azcona (1989), da
experiência do agir humano, segundo um modelo explicativo do conhecimento e também
como realidade da cultura, entendida como o sentir, o pensar, o agir do homem em
coletividade. Qualquer experiência vivida, referida a objetos, situações, fatos, são, diz o
autor, intersubjetivos, porque vivemos no mundo da cultura "como homens entre outros
homens, ligados a eles por influências e trabalhos comuns, compreendendo os outros e
sendo objeto de compreensão para outros" (p. 49).
Como diz Scevcenko, "os europeus representando uma civilização mais pragmática e que
lançava nesse momento as bases da ciência positiva moderna, logo passaram a utilizar-se
dos mitos indígenas a seu favor (...) os espanhóis não tiveram escrúpulos em se aproveitar
das crenças indígenas (...) para depois da conquista destruir os seus deuses e impor-lhes o
cristianismo a ferro e fogo" (op. cit., p. 53). A partir daí, segundo o autor, o que se tem é
um trágico processo de invasão, conquista e extinção da cultura indígena.
4
Compreende-se, então, que o mundo da cultura e seu movimento, como parte da história
de um povo, de uma tradição e herança, ao ser confrontado com outros universos,
pressupõe interesses diversos postos numa relação de alteridade (o eu e o outro em
relação) mais que de diversidade (o eu e o outro). Resultam, daí, processos de manipulação
da realidade, segundo diferentes formas de percepção e conhecimento. A experiência de
contato entre povos diferentes e culturas diversas coloca em questão um espaço de
encontro, de confronto e de conflito, marcado pelo diverso, pelo diferente. Esta tensão é
essencial à constituição e ao desenvolvimento da antropologia como ciência e como prática.
O que é o saber? Segundo Galli, é uma dimensão social holística3 que vai do caos à ordem,
para outra ordem; que se desconstrói com bases em pressupostos construtivos, postos em
movimento pela experiência e pela vivência. Trata-se da fruição da cultura, que gera um
fazer reflexivo e crítico, por vezes chamado educação.
Para exemplificar que todas as sociedades possuem técnicas para estimular e corrigir seus
membros da infância à idade adulta, via transmissão de conhecimento, valores e normas,
Melatti (1979) relata o processo educativo de uma criança marubo. Diz ele: "Durante o
tempo em que o indivíduo é uma criança de colo, sem dúvida já se inicia sua formação
como marubo". Ela pressupõe desde o contato com os alimentos até outros hábitos como
amarrar os pulsos, os braços, os tornozelos e as pernas para que engrossem, fazendo dele
um bom trabalhador no futuro. À medida que cresce, está sujeito a tapas, empurrões ou
ainda a punições quando faz algo de errado. Uma punição comum é a urtiga que é passada
no corpo para que a criança deixe de ter preguiça e torne-se aplicada no trabalho. Da
mesma forma, quando maiores, tomam a "injeção de sapo", uma espécie de queimadura
em pele viva, que espanta a preguiça e o panema (azar) (op. cit., pp. 291-301).
Este e outros exemplos entre grupos tribais como os Arapesh, estudados por Mead, ou os
japoneses, estudados por Ruth Benedict, revelam a existência de um sistema de
interpretação de um modo de vida, mas também uma pedagogia, como diz Galli, que se
formaliza como técnica e ritual educativo, criando sistemas especializados nessas técnicas e
ritos. Nesse sentido, cultura e educação são termos que se invocam e se concitam
mutuamente, como afirmam Cazanga M. e Meza (1993). Segundo esses autores,
5
"permanentemente envolvido no processo educativo e pelo simples fato de estar vivendo, o
homem está aprendendo na sociedade pela cultura; a sociedade é o meio educativo próprio
do homem, ainda que a todo momento não tenha consciência disso" (p. 82). 4
Isto não quer dizer que os indivíduos sejam produtos mecânicos de uma linha de
montagem. O homem como ser variável, mutável no temperamento e no comportamento,
não fica à mercê de sua natureza e de sua cultura, mas sim está sujeito a condições
históricas determinadas e determinantes do universo em que está inserido.
É comum entre antropologia e educação, portanto, tal como afirma Galli, a existência real e
concreta de diferentes grupos humanos. Uma existência que, segundo Lara (1990), mostra
o mundo cultural marcado por uma luta de interesses, com tudo o que ela implica: a
dominação, a espoliação, entre outras coisas. Para esse autor, os caminhos da produção
cultural de um povo foram, muitas vezes, obstruídos, "enquanto memória negada ou
recalcada, enquanto memória distorcida ou mesmo completamente deturpada por aqueles
que têm a força para se impor. A história cultural de um povo, na maioria dos casos, fica
sendo a história das dimensões hegemônicas dessa cultura" (p. 104).
Retomando pois, o caso dos espanhóis e dos indígenas, fica clara a imposição das crenças
dos valores dos conquistadores em nome de um domínio que nega ao outro a própria
existência de seu mundo. Diziam alguns sábios astecas: "Somos gente simples/ somos
perecíveis, somos mortais,/ deixai-nos, pois, morrer,/ deixai-nos perecer,/ pois nossos
deuses já estão mortos" (Scevcenko op. cit., p. 53). O processo político que impõe a cultura
do outro à revelia dos sujeitos sociais conduz à violência que mata o corpo (genocídio),
como também mata a alma, preservando o corpo físico (etnocídio). Os indígenas não são,
assim, indiferentes às condições vividas, aprendem com elas, e se os espanhóis foram:
"adorados inicialmente como deuses, temidos depois como demônios e desprezados por fim
apenas como bárbaros", é porque os indígenas perceberam a "cupidez dos europeus e na
sua obsessão proselitista, a raiz de todo o sofrimento em que submergiram (...) esse
sentimento (...) transformou-se numa pulsação de resistência e é até os nossos dias
revivido cerimonialmente como na periódica dramatização da morte de Atahualpa" (idem;
ibidem).
Assim, num processo inverso ao da homogeneização proposta pelo campo político das
relações entre povos e culturas distintas, renasce a diferença, celebra-se a alteridade. A
realidade vivida implica um fazer e refazer constantes, via processos culturais que, no dizer
de Lara, produzem e veiculam projetos de vida humana, com propostas tidas como válidas
e como tais transmitidas. Daí que o processo de ver-se e ver a outros homens, só pode
ocorrer em contextos históricos concretos, seja em termos do senso comum, seja em
termos do conhecimento científico.
6
um conhecimento que é outro. Alargado, como diria Merleau Ponty. Um conhecimento como
ciência, ou seja, a realidade como realidade vivida e experimentada pela compreensão de
outras sociedades e da própria cultura.
A primeira dessas teorias, que nasce junto com a própria ciência antropológica, foi o
evolucionismo. As idéias de evolução e progresso, inspirados em princípios da biologia e,
7
portanto, das ciências naturais do século XIX, conduzem a que se pensem as diferenças
entre grupos e sociedades numa escala evolutiva que toma o mundo europeu como modelo
único de humanidade. A concepção etnocêntrica de mundo vê o "outro" a partir de si
mesma e estabelece um fazer científico de base discriminatória e racista, já que entende
que branco, europeu e cristão constituem a superioridade da condição humana, enquanto os
demais povos e culturas representam um atraso, uma sobrevivência do passado do homem
e, como tal, uma condição inferior da própria humanidade. Um evolucionista importante, no
século XIX, foi L. Morgan, inspirador de muitos pensadores, entre eles seu aluno Franz
Boas.
Franz Boas vivencia todas as descobertas de seu tempo e chega ao presente século
trazendo para debate, agora, através de seus próprios alunos, importantes antropólogos da
primeira metade do século XX, uma crítica contundente ao pensamento de seu mestre L.
Morgan. Boas considera a idéia de que cada grupo, cada cultura têm uma história singular,
própria, que depende do que é a vida do grupo, no aqui e agora de sua existência. Não se
trata, portanto, de olhar as diferenças próprias do modo de ser do "outro" como
sobrevivência de um momento já superado pela evolução da humanidade e, como tal,
exemplo vivo de atraso social e cultural. A possibilidade de que a história da humanidade
não tenha seguido um único caminho e direção faz do pensamento de Boas uma condição
revolucionária na compreensão das realidades humanas. Como história múltipla e variada,
elimina o viés do pensamento evolucionista etnocêntrico. Com este princípio, Boas mostra a
imensa riqueza do social humano e a natureza da cultura como não determinada
biologicamente. A cultura, e não a biologia, torna-se referência para pensar as diferenças e
compreendê-las em suas bases constitutivas. O pensamento de Boas, ao investir contra o
evolucionismo de Morgan, possibilita também a crítica aos valores liberais e de igualdade
postos pelo campo político do século XIX, como modelo autocentrado para as sociedades
humanas e suas instituições, entre elas, a escola e seu modelo pedagógico ocidental.
Boas será um crítico atuante diante do sistema educativo americano, denunciando, entre
outras coisas, a ideologia que lhe serve de base, centrada na idéia de liberdade, e sua
prática educativa de cunho conformista e coercitivo, visando criar sujeitos sociais
adequados ao sistema produtivo, segundo um modelo ideologizado de cidadão. Demonstra,
através de estudos diretos obtidos no campo educacional, que a escola inexiste como
instituição independente e, como tal, não possibilita independência e autonomia dos sujeitos
que aí estão. A meta da escola centra-se num aluno-modelo que desconsidera a diversidade
da comunidade escolar e, para contê-la, atua de forma autoritária.
8
em que percebem e sistematizam os caminhos pelos quais "o pesquisador deve ele mesmo
efetuar no campo a própria pesquisa" (p. 75). Com eles, o trabalho de campo se torna a
própria fonte de pesquisa e a condição modular da antropologia como ciência da alteridade
que, segundo Laplantine, se dedica ao estudo das lógicas particulares de cada cultura.
Outros antropólogos que também discutem a escola e a educação nesse período são M.
Herskovits, R. Redfield e C. Kluckholn, que apontam para a questão da escolha cultural, do
papel da cultura e das experiências vividas que marcam e constituem um universo centrado
no relativismo. São parte da discussão: a negação dos chamados "testes de inteligência",
tão em voga nos anos 30/40; as dificuldades de integração cultural do diferente, em face da
visão etnocêntrica da organização escolar; a questão da tarefa do educador perante as
experiências pessoais e a herança cultural e, ainda, a questão dos valores de cada grupo em
face dos conflitos entre grupos e perante as diferenças. A relativização dos saberes e as
conexões entre saberes diversos só se fizeram possíveis em razão das experiências vividas
e da integração no mundo e na cultura de cada um. A exigência, portanto, de se pensar um
saber e uma aprendizagem diversa, porém de igual valor, coloca em vigência uma ética no
fazer antropológico e lhe dá uma dimensão política afinada com seu tempo.
Por sua vez, o funcionalismo dos anos 20/30 baseava-se no fato de que as necessidades de
um povo, grupo ou indivíduo, dadas pela vida em sociedade, encontram na cultura os
caminhos de sua satisfação e conduzem às respostas originais, singulares e coletivas, que
demarcam e estruturam formas próprias de ser e de pensar o mundo, diferentes para cada
povo ou grupo, já que são dependentes da dinâmica de diversos sistemas sociais e de seu
funcionamento. Como conseqüência, a melhor forma de compreender os diferentes povos é
estar com eles, viver em profundidade o universo de suas práticas, entendendo-as como
práticas "encarnadas", como diria Malinowski, ou seja, como práticas que possuem um
sentido e um significado. A perspectiva de que o homem não apenas vive, mas que, ao
viver, questiona, cria sentidos, valores, mitos, artes e ideologias que ordenam sua
compreensão de mundo, revoluciona o fazer etnográfico, pois impõe o trabalho empírico, de
campo, como fundamental na compreensão de outros povos e de nós mesmos.
9
também a compreensão das partes que compõem uma dada cultura em termos de um todo
integrado, de que fala o funcionalismo. Na conjunção de ambas as teorias, torna-se possível
o estudo de pequena parte da sociedade - um microcosmo de seu universo - para
compreendê-la no seu todo. A isso, se propuseram os chamados estudos de comunidade.
Segundo Ruth Cardoso (1986), no campo das ciências humanas o desafio atual é o de
conciliar a conquista do trabalho de campo, sistematizada pelo positivismo e, ao mesmo
tempo, dar conta de esquemas explicativos de outra natureza, centrados na questão das
sociedades complexas, as sociedades de classe, revelada pelas teorias mais críticas e menos
positivistas, tais como o estruturalismo e o marxismo. Diante do trabalho de campo e do
desafio da interpretação, a antropologia e a educação se debatem com o fato de que
sempre existiu "um modelo positivista de sociedade (...) e uma tendência interpretativa ou
compreensiva" das mesmas (Lovisolo 1984, p. 66). Para este autor, a antropologia
interpretativa é aquela que hoje é aceita, tanto no campo das ciências humanas como na
educação, e nisso consiste o desafio de agora. Em debate, o questionamento das práticas
científicas e das práticas educativas no tocante ao trabalho de campo e ao fazer
10
etnográfico que, desenvolvidos na trajetória da antropologia como ciência, são hoje, década
de 1990, campos comuns e conflitivos no diálogo entre antropologia e educação.
Notas
2. Deste ponto em diante, intercruzo, com outros autores, o trabalho de Matilde C.Galli,
"Antropologia Culturale e Processi Educativi", editado pela La Nuova Italia, Scandice,
Firenze, 1993, e tomo por roteiro parcial o curso de antropologia e educação que ministrei
em 1996, na Faculdade de Educação da Unicamp. Agradeço à professora doutora Ana Lúcia
G. de Faria por ter me apresentado à obra de Galli e ter, assim, desencadeado um processo
de reflexão de que participaram também meus alunos, aos quais agradeço pelo incentivo e
pela discussão.
11
Abstract: Today anthropology and education constitute a field of confrontation where the
compartimentalization of knowledge attributes to anthropology the status of science and to
education the status of practice. Within this primary divergence, professionals of both sides
accuse each other and defend themselves based on preconceived ideas, reductionist
practices, and lots of ignorance. Many aspects keep anthropologists and educators apart,
but many others bring them together. In this text, we seek to point out what is similar and
what is different in both areas based on the existence of a past dialogue which makes
possible a future one. Therefore, we consider the possibility of overcoming prejudice and,
thus, aiming at an advance in knowledge.
Bibliografia
AZCONA, Jesús. Antropologia II. A cultura. Petrópolis, Vozes, 1989, Coleção Introdução e
Conceitos. [ Links ]
LARA, Tiago Adão. "Humanismo e Cultura" In: Educação e Filosofia. nº 8. M.Gerais, UFU,
jan./jun. de 1990. [ Links ]
12
LOVISOLO, Hugo. "Antropologia e educação na sociedade complexa." In: Revista Brasileira
de Estudos Pedagógicos. Nº 65, jan./abril de 1984, pp. 56-69. [ Links ]
MELATTI, Delvair e MELATTI, Júlio C. "A criança marubo: Educação e cuidados." In: -
Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Nº 143, jan./abril 1979, vol. 62, pp. 291-
301. [ Links ]
NOVAES, Regina R. "Um Olhar Antropológico." In: Teves, Nilda (org.). Imaginário social e
educação. Rio de Janeiro, Gryphus/FE.UFRJ, 1992, pp. 122-143. [ Links ]
SANCHIS, Pierre. "A crise dos paradigmas em antropologia." In: Dayrell, Juarez
(org.). Múltiplos olhares sobre a educação e cultura. Belo Horizonte, Editora UFMG, 1996,
pp. 23-38. [ Links ]
SANTOS, Boaventura Souza. "Para uma pedagogia do conflito." In: Silva, Luiz H. et
alii (orgs.). Novos mapas culturais. Novas perspectivas educacionais. Porto Alegre,
Sulina/SME, 1995, pp. 15-33. [ Links ]
ZALUAR, Alba. "A aventura etnográfica: Atravessando barreiras, driblando mentiras." In:
Adorno, Sergio (org.). A sociologia entre a modernidade e a contemporaneidade. Porto
Alegre, Sociedade Brasileira de Sociologia/ Editora da Universidade/UFRGS, 1995, pp. 85-
91. [ Links ]
13